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1 A COISA PÚBLICA farsa responsável para 5 atores Rosyane Trotta parcialmente plagiada de “O Malfeitor”, de Tchecov levemente inspirada em “Em Busca da Justiça”, de Bertolt Brecht factualmente baseada em “A lagoa é a lavoura do pescador”, documentário de Maja Margas gravado na comunidade de Zacarias (Maricá-RJ) sonoramente referida nas comunidades pesqueiras de Florianópolis, extintas para dar lugar a condomínios de veraneio PERSONAGENS Delegado - Edir – pescadores - Promotor – Repórter - Inspetor - Maria CENÁRIO Sala de delegacia de uma cidade pequena. APRESENTADOR Eis o homem. Nesta sala ele nos presta seus serviços. Os papéis são sua bússola. Colar o quebrado e endireitar o torto. Proteger os bons e afagar os justos. Ele vai consertar os homens. Ele tem fé na sua serventia. Fecha o livro da razão E abre a delegacia.

A COISA PÚBLICA peça Rosyane Trotta

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APRESENTADOR A COISA PÚBLICA factualmente baseada em “A lagoa é a lavoura do pescador”, documentário de Maja Margas gravado na comunidade de Zacarias (Maricá-RJ) Rosyane Trotta farsa responsável para 5 atores levemente inspirada em “Em Busca da Justiça”, de Bertolt Brecht parcialmente plagiada de “O Malfeitor”, de Tchecov 1

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A COISA PÚBLICA

farsa responsável para 5 atores

Rosyane Trotta

parcialmente plagiada de “O Malfeitor”, de Tchecov

levemente inspirada em “Em Busca da Justiça”, de Bertolt Brecht

factualmente baseada em “A lagoa é a lavoura do pescador”, documentário de Maja Margas gravado na comunidade de Zacarias (Maricá-RJ)

sonoramente referida nas comunidades pesqueiras de Florianópolis, extintas para dar

lugar a condomínios de veraneio

PERSONAGENS

Delegado - Edir – pescadores - Promotor – Repórter - Inspetor - Maria

CENÁRIO

Sala de delegacia de uma cidade pequena.

APRESENTADOR

Eis o homem.

Nesta sala ele nos presta seus serviços.

Os papéis são sua bússola.

Colar o quebrado e endireitar o torto.

Proteger os bons e afagar os justos.

Ele vai consertar os homens.

Ele tem fé na sua serventia.

Fecha o livro da razão

E abre a delegacia.

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CENA 1

O delegado examina um processo de poucas páginas. Entra o Inspetor.

INSPETOR

Bom-dia, doutor.

DELEGADO

Bom dia, Welinton. (estende a mão) Me diga: de que cor é este anel?

INSPETOR

Vermelho, doutor.

DELEGADO

Isso mesmo. Se eu fosse médico, ele seria verde e teria uma cobrinha enrolada.

INSPETOR

E o que isso quer dizer, doutor?

DELEGADO

Que eu me formei em Direito. Não sou doutor.

INSPETOR

Mas o senhor é o delegado de Maricá.

DELEGADO

Por pouco tempo. Só até o titular se recuperar e voltar.

INSPETOR

Se voltar.

DELEGADO

Não entendi.

INSPETOR

É que... Ele não pode voltar... Ele não vai querer porque... Quer dizer... Coisas de

saúde demoram e... Eu não sei de nada.

DELEGADO

Quais são as ocorrências?

INSPETOR

Um bêbado.

DELEGADO

Já mandei soltar.

INSPETOR

?

DELEGADO É só um bêbado, inspetor.

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INSPETOR

Um desordeiro.

DELEGADO

Um pé rapado que não tem onde cair morto.

INSPETOR

Malandro.

DELEGADO

Há delinqüentes que se podem recuperar, há criminosos que se podem coibir. Mas um

bêbado não é um problema criminal. É psicossocial. Não é meu ramo. Adiante.

INSPETOR

O caso da Lopes Mendes.

DELEGADO

Justamente! O caso não me parece muito claro. Pelo que pude entender, o promotor

público entrou com uma queixa sobre danos à ferrovia. Coisa de moleques, com certeza, como o delegado titular aferiu, mesmo sem ter um flagrante. (consulta o

processo) Ele se limitou a mandar colocar uma placa “Não danifique a ferrovia”,

medida educativa e intimidatória, com a qual estou inteiramente de acordo.

INSPETOR

E foi colocada.

DELEGADO

Pois não entendo porque a promotoria agora pede uma investigação.

INSPETOR

Há novos dados no processo.

DELEGADO

Eu sei, Welinton. Eu li tudo hoje de manhã. Esta é a peça mais pobre e mal redigida

que já vi na minha vida. Houve novo depoimento do guarda?

INSPETOR

(ofendido) Sim.

DELEGADO

Ora, inspetor, não seja tão suscetível. Você compreende, eu estou um pouco confuso.

Veja bem, se o guarda ferroviário acusa alguém, basta que se aplique uma multa.

Caso encerrado.

INSPETOR

Mas um guarda não pode acusar sem provas. É preciso investigar. Porque, na medida

em que não houve flagrante...

DELEGADO

Tudo bem, Welinton, não precisa me ensinar o meu trabalho. Os suspeitos, onde estão?

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INSPETOR

Aí fora.

DELEGADO

Mande-os entrar.

INSPETOR

(pega um papel e lê, chamando)

João Antonio dos Santos, Amarino Dias Gonzaga, Edir José de Jesus.

(Entram três pescadores. O Inspetor se coloca de pé ao lado do Delegado, em atitude

formal, para dar início ao ritual de inquirição.)

INSPETOR

Vocês estão aqui para prestar esclarecimento sobre...

(vê que eles olham para outro lugar, distraídos)

Atenção!

DELEGADO Senhores, bom-dia. Não querem sentar?

(nenhuma resposta)

INSPETOR

(para o delegado) Essas bestas além de burras são surdas.

DELEGADO

(decide ignorar)

Eram os senhores que estavam na linha férrea no dia seis do corrente, às oito e meia

da manhã?

PESCADOR 1 (depois de olhar os demais) Hum?

DELEGADO

Eram os senhores que estavam na linha férrea no dia seis do corrente, às oito e meia

da manhã?

PESCADOR 2 (idem) Hum?

INSPETOR

Vocês foram vistos por lá, no dia seis.

PESCADOR 3 Nós nunca bordeja fora da lagoa. Maré ou outra pros lados de Ponta Negra.

DELEGADO

(troca olhar com o inspetor) Pela linha?

PESCADOR 3

Si-si. Só de linha. Rede nós faz é de vender.

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PESCADOR 2

É, si-si.

PESCADOR 1

Só de vender.

INSPETOR Vocês não entenderam. O delegado está falando da ferrovia.

PESCADOR 1

Hum?

INSPETOR Ouve a pergunta, seu...

DELEGADO

Os senhores não querem sentar?

INSPETOR

O guarda Joaquim dos Santos viu vocês na via férrea.

PESCADOR 3

O Jaquim!

PESCADOR 2

A linha do trem!

(eles parecem felizes por ter compreendido)

INSPETOR

O senhor confirma esta declaração?

PESCADOR 1

Hum?

INSPETOR

Deixa desse “hum” e responde. Eram ou não eram vocês que estavam... (pega o

papel do delegado e lê) no quilômetro 205 da ferrovia?

(começa um gradativo jogo entre os pescadores)

PESCADOR 3

Eu não sei qualé o número da linha. Nunca contei os palmo todo que ela tem.

PESCADOR 2 (para 3) Quando eu nasci já tava, esticadinha.

PESCADOR 3

(para 2) E diz que é lá de Deus-me-livre que ela vem.

PESCADOR 1

(para 2) Nós tava lá nos pau de ferro nesse dia?

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PESCADOR 2

(para 1) Se um me viu e diz que é eu, é bem possíve.

PESCADOR 3

(para si) Se um me viu e diz que é eu, de manhãzinha... (para 1) Então é eu, porque

retrato eu nunca tive.

INSPETOR

Vocês sabem onde estão?

PESCADOR 3

Na poliça. Por causa de quê? O soldado quase nos ranca o braço mas não mexeu o

gogó pra dizer um nada. Causa de quê? Nós não roubou... Não brigou...

INSPETOR

Isso é o que veremos.

DELEGADO

O que faziam ali?

PESCADOR 1

Hum?

INSPETOR

No dia que o guarda os viu, vocês estavam fazendo o que?

PESCADOR 2

Ô, dotôri, a cabeça não guarda. O tempo não cabe dentro dela inteirinho feito leitão

de festança. No-no. Esquece.

PESCADOR 3

Uma coisa diferente, lembra. Que nem esse dia de hoje. Porque eu nunca vim numa casa de poliça, então não dá de esquecer.

PESCADOR 1

É. Um que entra não esquece.

PESCADOR 2

Mas na linha do trem...

PESCADOR 1

Ô...

DELEGADO (triunfante) Ah! Então não era a primeira vez! Vejam bem. (enche o peito e volta-se para o inspetor)

Primeiro: está claro que não é um motivo de viagem que os leva à ferrovia, caso

contrário eles iriam à estação e não aos trilhos. Segundo: eles acabam de dizer que

não era a primeira vez e nem sequer podem se lembrar quando foram vistos pelo

guarda tal a freqüência com que o fazem. Então... (aos pescadores) Vocês já estiveram

lá outras vezes. E não foi para pegar o trem! (ao inspetor) Não foi para pegar o trem. Correto? (toma fôlego) Se vocês admitem que não havia nenhuma intenção de usar a

ferrovia como todos usam, nem a estavam atravessando como muitos atravessam,

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nem sequer andando rumo a algum lugar como também se pode fazer... Então por

que, me digam, com que intenção um homem vai até os trilhos da ferrovia?

PESCADOR 1

(depois de um tempo)

Dos outro num sei. Eu fui na idéia de pegar u’a porca.

DELEGADO

Ah! Então você confessa? Está vendo, Welinton? É por meio do diálogo e do respeito

que se chega à verdade. Parabéns, senhor. A sua sinceridade é muito louvável. Isso

será levado em consideração. Quem dera todo delegado encontrasse suspeitos com a

sua dignidade. (anota) Para tirar uma porca. (consulta uma ficha) Agiu por conta

própria?

INSPETOR

Eu explico: você fez isso da sua cabeça ou foi incentivado por alguém?

PESCADOR 2

Os dois casado.

INSPETOR

Como os dois? Não pode haver duas respostas para essa pergunta. Ou a pessoa age

por vontade própria ou não.

PESCADOR 2

Si, si. Ma tem a mistura, maré ou outra. Tem a vontade e tem tumém a nicissidade. E o pobre segue mais a precisão que a vontade. Conforme quer Deugi Nosso Senhor.

INSPETOR

E daí?

PESCADOR 2 Daí que os que têm mais um pouco encomenda e os que tem menos trabalha. E

graças ao bom deugi nós inda pode trabalhar.

INSPETOR

(apertando)

Quem encomenda?

PESCADOR 2

Os que num pesca, que cumpra já pescado. Pro peixe é tudo igual, que ele só tem

vuntade e num tem precisão, cas’que no mar tem tudo dele se fartar.

PESCADOR 1

Isso quando um num joga lixo de matar cardume.

PESCADOR 3

Ah, é!

DELEGADO

Escutem bem. Outro no meu lugar trataria vocês como se tratam os bêbados: manda

dar uns tapas e tranca na cela até o dia seguinte. (o inspetor pega o cassetete)

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Mas eu não sou a favor da violência.

(o inspetor guarda o cassetete)

Vocês não são crianças. Têm que respeitar a lei.

PESCADOR 1

A lei, é. Sou muito de respeitar. Cas’que pros bobo a lei num foi escrita. Nem o piá

mais tanço vai se meter com a linha pura. Um que num entende nada, esse sim, pode ser, ma eu nunca me avistei com um desse.

DELEGADO

Eu não entendi sua resposta. Fale claro e devagar, para que possamos conversar.

PESCADOR 1 Vosselença, credite qu’eu tô isfergulhando as palavra o mió que posso.

DELEGADO

(gesto para que ele fale)

Bem, então...

PESCADOR 3 Então... Nós arranja as porca.

INSPETOR

Nós quem?

PESCADOR 2 O povo todo. Té os patrão pesca de vara e de rede!

DELEGADO

(começa a perder o controle)

Mas ninguém está falando de pesca! Estamos falando de porca. Por favor, responda

apenas o que se pergunta. Por quê você fez isso?

PESCADOR 2

O quê?

DELEGADO

Pegou uma coisa que não era sua, danificou um bem que pertence ao transporte

coletivo. O que passa pela sua cabeça? Do que é que lhe serve essa porcaria?

PESCADOR 3

A porca? A porquinha?

DELEGADO

Do que é que nós estamos falando?! Claro que é da porca! A porca! Por que você tirou a porca!

PESCADOR 1

Eu num já disse? Ô, mô Jesusi! Eu disse. Tô caducano?

DELEGADO

Então eu não ouvi, pronto, fiquei surdo! Importa-se de repetir a explicação?

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PESCADOR 1

Módi pescar.

INSPETOR

Para pescar.

PESCADOR 1 Antão. A porca, não tem? Pogi, peso de pescar, módi pescar. Apõe a porca na linha,

ma-hum?

INSPETOR

Vocês querem dizer que usam a porca como peso para o anzol? Que amarram a porca

no anzol para pescar?!

PESCADORES

Si, si!

(riem, aliviados)

INSPETOR

Qualquer criança sabe que para isso não é preciso tirar uma porca da linha férrea, basta usar um chumbo, um preguinho qualquer.

PESCADOR 2

Sinhôri nunca pegou em vara, hum? Chumbo não acha na rua e preguinho não vai no

fundo. Hê, não se vê coisa mió que porca. Tem peso, hum? E num percisa furar que já

vem com fuinho. Só marrar bem, instantinho tá pronto, vai no fundo e se panha o de mió.

INSPETOR

É só “marrar bem” e jogar vocês três no fundo da cela!

DELEGADO (fita o inspetor, inspira) Prestem atenção. Os senhores não podem fazer isso. O que

todos usam, é de todos e não é de ninguém. Todos devem cuidar daquilo que é de

todos como se fosse seu, embora sabendo que nada é inteiramente seu porque, antes

de ser seu, é de todos. Correto?

PESCADOR 3

Si-si. Lá na vila Zacaria tudo é de todos cas’que os primeiro pescador já encontrou ansim o mar, os peixe e a terra. Ninguém cumprou, foi Deugi. Isso é coisa, ó, de

fundamento.

DELEGADO

Justo.

PESCADOR 3

Ma pareceu otro dia um Beltrano dizendo que é tudo dele, vai vender e fazer

condomine. Como pode? Nós é nascido e criado e foi lá tumém que nasceu todos

parente, tudo pescador. E como pode u’a coisa que é de todos e não é de ninguém

virar de um só ansim do dia pra noite?

INSPETOR Nós não estamos falando da sua vida. Estamos falando do país. Lesar o patrimônio

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público é crime e ponto final.

PESCADOR 1

Poss’ embora?

DELEGADO

Estamos conversados.

(Saem os pescadores e o inspetor. O delegado arruma papéis. De uma gaveta tira um

livro grosso com o título “Ética”. Pega dentro dele recortes de jornais guardados

cuidadosamente. Lê. Passagem de tempo.)

CENA 2

PROMOTOR

Bom dia, delegado.

DELEGADO Bom dia. O senhor é...

PROMOTOR

Xavier Sersan. O promotor. Eu vim lhe falar sobre o caso da ferrovia. O caso me

parece muito claro.

DELEGADO

Pois é, Xavier. Não entendo porque a promotoria, depois de pedir investigação,

resolveu abrir um inquérito.

PROMOTOR

Houve um acidente na ferrovia. Um descarrilamento. Isso põe em risco a vida de milhares de pessoas que todos os dias cruzam o Estado.

DELEGADO

Essa linha só serve a transporte de carvão.

PROMOTOR

Pior ainda. Já imaginou o prejuízo que pode decorrer disto? E quem seriam os responsáveis? Não podemos permitir que a lei seja desrespeitada.

DELEGADO

Mas, caro senhor, trata-se apenas de uma porca.

PROMOTOR Não seja ingênuo, meu caro... (consulta o crachá do outro) Silva! Desde cedo os

pescadores estão reunidos na Praça Central. Haverá uma manifestação. Quem se

responsabilizará caso a autoridade do poder judiciário seja arranhada? Você tem em

mãos o líder de um movimento que pode muito bem ter apoio internacional para

promover a desordem.

DELEGADO Com que intuito?

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PROMOTOR

Isso é seu dever descobrir. Investigar e aplicar a lei! Não se esqueça: “a lei é o código

de ética do bom policial”. Agora vou andando. Ah, convidei alguns representantes do

Ministério Público para assistir o depoimento do suspeito. Veja lá como vai se sair.

DELEGADO Para assistir o depoimento? Mas...

PROMOTOR

Até lá, senhor... Silva!

(Sai o promotor. O delegado espera que ele chegue à rua e então grita.)

DELEGADO

Welinton!!!!!

(alguns segundos de aflição do delegado até que o inspetor se apresente)

INSPETOR Chamou, doutor?

DELEGADO

Eu lhe fiz alguma coisa, inspetor? Pisei no seu pé, xinguei a sua mãe, registrei alguma

reclamação a seu respeito no relatório semestral?

INSPETOR

Que eu saiba...

DELEGADO

Então por que você está querendo me fritar?!!!

INSPETOR

Eu, doutor? Senhor. Chefe. Colega.

DELEGADO

O promotor está disposto a levar adiante o inquérito baseado na denúncia de

conspiração, formação de quadrilha, lesão ao patrimônio público... e o cacete a

quatro! E você não me diz uma palavra! (sacode o processo) Não escreve uma linha! Ou você está de má vontade ou é de uma incompetência colossal!

INSPETOR

Se não há uma terceira opção, eu...

DELEGADO Quem se beneficia da linha de ferro?

INSPETOR

A ferrovia é propriedade do Estado, dout...

DELEGADO

Isso eu sei! Quero saber quem usa, quem transporta, o que transporta, quanto transporta... É isso que eu preciso saber! Apure! E estes pescadores? Quem exorta

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estes infelizes? Quem lidera? Quem está envolvido? É igreja? É político? É organização

não governamental? Qual? Ligada a quem? Tudo isso você precisa responder. É o seu

trabalho. Abre os ouvidos, Welinton. Eu não quero passar os anos nesta vida de

abestado. Eu vim do Rio de Janeiro e vou voltar para lá. Logo, tenho que mostrar

serviço, entende? Você não quer melhorar de vida, inspetor? Todo mundo quer

melhorar de vida. E não é catando piolho em macaco que se evolui, compreendeu?

Então me ajude a trabalhar. Vamos merecer um emprego melhor, seu Welinton. Tira a bunda da cadeira, sai do conforto destas paredes e vai bater canela na rua. Anda!

(retendo o inspetor) Ah! E vê se lembra de anunciar as visitas.

(Sai o inspetor. O delegado abre o processo. Revê. Passagem de tempo.)

CENA 3

(O delegado agora está um pequeno tribunal improvisado, que inclui o público como

audiência. Entra Edir.)

PESCADORA

Fu bom memo o sinhôri me chamar aqui cas’que os home das farda fúru l’im casa e num era nem cunvidado nem nunciado. E olharu tudo e misturaru tudo. Então isso é

jeito de perntar as coisa?, de nem falar c’a pessoa que é do chão, que tá quieto no

seu canto e num é de responder sineta que não toca? E então nós é o quê, bicho de

futucar casa pra percurar os ovo? Ou bicho é esse que não sabe usar nem a cabeça

nem as palavra e só faize memo é fuçar feito o cão?

(vendo que ele a ignora) Misturaru tudo as coisa antão o bicho é quem? que nós é do chão e que num era nem cunvidado nem nunciado e futucaru feito o cão e pessoa é o

quê que num faize um nada e tá quieto e chega esse das farda percura os ovo feito

gavião antão nós o que é... A pôia.

DELEGADO

Se acalmou? Então sente que não converso com gente em pé. (ela obedece) Fiz outra intimação porque há novidades no processo. Como não foram fornecidas da sua parte,

tiveram que ser fornecidas pela polícia. A justiça precisa dela quando as pessoas não

cooperam. Além disso (gesto para a platéia) convoquei alguns cidadãos para

testemunhar o seu depoimento.

(Edir abraça a mochila que carrega e olha o público. Caminha até o mais próximo e

lhe aperta a mão. Vê o que está do lado dele e aperta sua mão, e assim sucessivamente até perceber que não conseguirá apertar a mão de todos.)

DELEGADO

A promotoria abriu um inquérito para apurar a denúncia de atentado ao transporte

ferroviário. Com que finalidade um cidadão, ou um grupo de cidadãos, estaria

tentando pôr em risco a linha férrea federal? Não se trata mais de uma queixa, mas de uma investigação, compreende? Portanto, responda com clareza: com que objetivo

você retira uma peça que pertence aos trilhos da ferrovia?

PESCADORA

Módi pescar.

DELEGADO Seu Edir, não lhe parece um tanto indireta esta relação que pretende propor entre a

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pesca e a porca? Todos sabem como se pesca. Podemos falar em anzol, em linha, em

isca, em rede, corda, fios de nylon e sabe-se lá que outros apetrechos. Mas não

estamos falando em peixes, caro senhor, estamos falando de porca, uma porca que

estava nos trilhos de uma ferrovia. Imagino que um pescador não tenha motivos para

sabotar o transporte público. Provavelmente aceitou (gesto de dinheiro) os favores de

alguém que não queria agir por conta própria. Eu compreendo que uma pessoa na sua

condição necessite desses pequenos auxílios. (espera resposta) Então é isso, o senhor foi induzido... foi coagido... hã... obrigado!

PESCADORA

(aperta a mão do delegado)

Se adisponha!

DELEGADO

Você está se fazendo de bobo, nasceu ontem ou caiu do céu? Não vê onde está? Não

compreende as conseqüências do seu ato?

PESCADORA

Hô... vosselença tem estudo a módi cumprender. Nosso Sinhô do céu não dá sabença

a gente feito nós.

DELEGADO

Não queremos prejudicar um inocente. Mas você tem que colaborar. Agora, faça-me o

favor, deixe de lado essa história de pesca.

PESCADORA E dá de deixar de lado? Dá nada! Desde menina a gente ia pra caeira com o pai e o

vô. E pescar é o que nós sabe fazer, de pesca nós conhece. Dá de deixar de lado não,

vosselença.

DELEGADO

Você insiste que tirou a porca do trilho para usar como peso de anzol?

PESCADORA

Mô Jesuisi. Si num é pra pescar, módi qui? Brincadeira? Êh? Se vancê pói no gancho

u’a isca viva ô minhoca... ‘tão ela havera de afundar sem peso? Só se tiver c’o diabo

no corpo! Sem peso só se pega manjuba. E escasseia. De primeiro, não. Panhava de

todo jeito, de rede, de tarrafa, de arpéu, de boléia, de fisga, de gruzeira, de munzuá,

té de mão. Tempo de vó Gangana, té baleia panhava. E cururuca, curimã, peixe niquim, peixe beatriz... Tanto peixe que tinha de fastar c’a mão pra descer o anzóli.

(Som de telefone celular. O delegado procura de onde vem, encarando os presentes.

Enfim descobre que é o seu.)

DELEGADO Alô. Pois não, é ele. Sim, sim, pode ligar. Boa tarde, senhor. É uma honra receber o

seu... Absolutamente. Não, de modo algum. Claro. Evidente. Sim-sim. Com certeza.

Perfeitamente.

PESCADORA

(a um espectador) Biacú é o mió do mar. Ma traidero, é. Mata o que num sabe

arrumar. Tem de campiar. Esfolar bem e fazer u’a cunha na carne, bem no lugar do bigo, que o danado tem o bigo venenado.

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DELEGADO

Certo. Afinal, são juizes...

PESCADORA

Esse peixe é fogo. A peçonha pode se mocosar na cabeça. Tem de bispar bem. Diz

que a peçonha só dá ni mês de letra “rê”. Mas nisso num creio. Os de pele escura se assanha na quaresma, lá isso é. E tem tumém os que mata quinze dias do Natal.

DELEGADO

O titular está de licença. Eu sou o interino. Delegado Silva.

PESCADORA Escaldado num tem mió. Por volta uns quiabo de ponta quebrada escolhido a dedo,

coisa de mais de palmo largo, baba forte e decisão no prato, maxixe, jilô, u’as

banana-da-terra, u’as batatona doce, fatia de abóbra, tomate dos muito estado de

madureza, batata do reino, u’aipim-rosa, rodela de inhame, repolho, couve e fruta-

pão. Tudo de bom e cardeado pro mió escaldado de biacú.

(O delegado, que desligou o telefone e anotou qualquer coisa em um papel, entrega-o ao Inspetor.)

DELEGADO

Mande liberar a entrada destes dois juizes.

(Sai o Inspetor. Ele liga o projeto de slides)

(a Edir) Sua casa foi revistada por dois policiais. (exibe o slide onde se vê um militar de costas diante de uma porta) Aí só se vê um porque o outro é quem segura a

câmera. (outro slide) A porta de entrada... (outro) que dá para este cômodo, uma

espécie de saleta.

PESCADORA

On qu’ô tava?!

DELEGADO

(outro slide) A cozinha. (outro) E... uma janela, que dá para o quintal. (outro) Em

seguida... este é... o quintal. Mas o que encontramos está... (outro) isto aí é... não,

ainda não é este. (outro) Ah, sim. Lá no fundo. Estão vendo ali? (Edir se levanta) Tem

outra que mostra melhor... (outro) Ah, aí está. Duas porcas que foram encontradas...

PESCADORA

Vorte!

DELEGADO

Como?

PESCADORA

Vosselença, licença ver de novo, só u’a nisquinha, aquela do pinante na areia. Pói?

DELEGADO

(volta o slide) Esta aqui?

PESCADORA Aquele safado! Calma, Edir, num vá se freventar causo dum nada.

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DELEGADO

O que foi?

PESCADORA

Descarado! Isso é bananeira que já deu cacho, ele e os parente tudo.

DELEGADO

Do que você está falando?

PESCADORA

Foi esse negro de ganho que me levou as duas galinha, disso tô certa feito céu cima

da Terra.

DELEGADO

A quem você está se referindo?

PESCADORA

(aponta um pedaço de enxada no canto do slide)

Esse toco de enxada. É de Surriso de Bambá, escondido com o rabo de fora. Mora aqui na cidade, mas maré ou outra vai no Zacaria. Veje como são as coisa, um mulato

safado desse, bom de pegar na enxada pra trabalhar vez na vida, fica aí vendendo té

a mãe, carregando merda a dois vintém, bando de pobre descarado. (ao delegado)

Duas galinha de botar ovo bom.

DELEGADO Se acalme, por favor.

PESCADORA

Já tumei muito café frio na casa desse... como é o nome?, Suvaco de Bumbú. A

mulher se meteu no mundo e nem notícia deu, causo de pancadaria. Ele num bota

nada den’de casa, bebe, joga e mente té dormindo. Num vale o que o gato enterra. (ao delegado) Os ovo do meu pequeno o sem vergonha tirou. Eu vou lá.

DELEGADO

Agora não!

PESCADORA

Tu tá arrumando prá cabeça, essezinho. Nós vamo assentar as costura, eu vou descer a biaba! Te acarqueto os óio, pau de sebo!. Te dou uma camaçada de pau!

DELEGADO

Faça o favor de sentar.

PESCADORA A pinta da mãe tá cheia de bicho berne! Cascavel de pescoço! Sabonete de ioiô! Vem

aqui, desavergonhado! (à platéia) É covarde tumém. (para o slide) Cara de cu!

DELEGADO

Eu vou te trancar numa cela! Isto é um inquérito, seu Edir! Você está na polícia, não é

na feira. (aos espectadores) Desculpem. Vamos prosseguir.

(vira outros slides, procurando mais detalhes, mas aparece o policial bebendo uma cerveja e dando tchauzinho para a câmera)

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Mas o que é isso?

(desconcertado, desliga o aparelho)

Estas porcas, de que lugar foram desaparafusadas e quando?

PESCADORA

Sinhôri diz aquela debaixo do bauzinho vremeio ou a do quintáli?

DELEGADO

Não sei onde elas estavam. Não interessa. O que interessa é que foram encontradas

na sua casa.

PESCADORA

Sei não.

DELEGADO

Como não sabe?

PESCADORA

Sinhôri vosselença bota um cardume de prigunta e faize que não ouve. Eu posso

perntar, euzinha aqui, posso tumém lhe perntar u’a coisinha? On’qu’eu tava no retrato?

DELEGADO

Visivelmente não estava em casa.

PESCADORA E como entra ansim casa de pobre e nem bate as palma?

DELEGADO

Os homens tinham um mandato judicial para revistar a casa.

PESCADORA E eu num tô e ansim memo vai entrano? E mos dereito?

DELEGADO

Seus direitos? Essa é boa! Seus direitos! Você sabe para que servem as porcas

quando elas estão lá nos dormentes?

PESCADORA É um prego de rosca e a porca prende do outro lado, ansim. Não tem?

DELEGADO

Exatamente. A porca segura o parafuso que segura os dormentes que prendem os

trilhos do trem. Sem as porcas, os trilhos se soltam, o trem descarrila e há um

acidente.

PESCADORA

Deugi livre, selença! Nem pensa u’a coisa dessa!

DELEGADO

Portanto, quem tira as porcas dos trilhos está provocando um acidente.

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17

PESCADORA

Antão a gente é pagão ou um bandido qualquer? Graça Deugi a gente viveu a vida

inteira e num é dizer que fez a mal a pessoa ma nem nunca teve um pensamento

desse na cabeça... Nos livre e guarde a Rainha do Mar!

DELEGADO

E por que motivo, na sua opinião, acontecem os desastres de trem? Desaparafuse três porcas e aí tens o desastre!

PESCADORA

Ora! Quantos ano nós aqui destarraxamo as porca, e Iemanjá ajudou, e agora... Hã!

S’eu levasse um trilho pra casa ou butasse u’a tora em cima, aí sim. Mas... ora!

DELEGADO

Mas trata de entender, as porcas prendem os trilhos aos dormentes!

PESCADORA

Isso nós entende. Nós num tira todas, nós deixa.

DELEGADO (desamarra um grande mapa que mostra gráficos e fórmulas)

Veja isto. É uma análise do Departamento de Física da Polícia Federal. Preste atenção.

Cada metro de aço da linha férrea está colocado sobre 3 dormentes aos quais é fixado

por meio de 9 parafusos de 12 milímetros, com capacidade para suportar uma força

de 500 newtons vezes xis, sendo xis a variante do atrito entre o aço e a madeira.

Quanto maior a velocidade, maior o impacto de “Tê-linha”, o peso do trem, sobre “Tê-duas-linhas”, os parafusos. Correto? Existem três equações para se chegar ao cálculo

de probabilidade de descarrilamento do trem. Há muitas variáveis, como o número de

passageiros, os grãos de areia nos trilhos, a umidade relativa do ar... Mas, enfim,

para descarrilar um trem é preciso reduzir em 49 por cento a força efe, o que

equivaleria a desaparafusar 3,2 porcas por metro de trilho. Basta isso para que se

tenha um acidente. Uma porca... pode ser um descuido. Mas duas, é a premeditação de um crime.

PESCADORA

Selença chama crime o que tira uma porquinha duma coisa que tem pra mais de

milhão? Isso é coisa sem juízo!

DELEGADO Isso é roubo! E lugar de ladrão é na cadeia!

PESCADORA

Antão prende o povo todo!

DELEGADO O artigo 236 do Código Penal trata dos danos criminalizáveis aos bens públicos, ou

seja, os danos que põem em risco a segurança quando o culpado sabia das

conseqüências do seu ato. E você não podia desconhecer ao que leva este

desaparafusamento incessante de porcas. A pena varia de seis meses a dois anos de

reclusão, conforme o dano. Isto apenas por desaparafusar, compreende?

PESCADORA O dotori sabe mió. Nós somo gente ignorante. Que é que nós entendemo?

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DELEGADO

Você entende tudo! Você está mentindo e se fazendo de idiota!

PESCADORA

Num minto não! Ma num minto não. A crovina, a tainha, anchova, arraia, o cação, o

dourado, o guaçu, vive tudo lá pro fundo. Dotôri quer mostrar otoridade. Não é por nada, é pra módi dar exemplo e o povo não busar. Ma tanto rufufú causo du’as porca!

Caçar bandido cês não vão!

DELEGADO

Cala a boca!

PESCADORA

Percura lagosta na terra, percura minhoca na água e num atenta bem debaixo do seu

nariz, causo ô já disse já meu chamador, que é Edir José de Jesus, nome de minha

avó. É surdeza ou é zovido de marisco? Eu sou Edir e sou mãe de três bacuri.

Entendessi?

DELEGADO Edir? Dona Edir? Não é possível! Tem certeza? Quer dizer... Deve haver um engano.

(lê) Edir José de Jesus, residente à rua... Viúva. Meu Deus! É isso mesmo. Que

loucura. Dona Edir. Como é que eu pude confundir assim? É que eu nunca conheci

uma Edir mulher, sabe? Eu conheci um médico, Doutor Edir. Mas... Dona Edir. Que

loucura. Me desculpe.

PESCADORA

Posso ir embora?

DELEGADO

Não. O senhor está... a senhora está presa.

PESCADORA

Co’assim, presa? Num posso! Tem muito que fazer. O mercado fecha e as galinhas

que aquelezinho...

DELEGADO

Um trem descarrilou. Muitas pessoas tiveram um grande prejuízo. Com ou sem

intenção, não se pode furtar o que pertence à União. Na cela a senhora vai poder pensar sobre isso.

PESCADORA

Ma, dotôri...

DELEGADO Fique quieto, não me atrapalhe. (fecha suas gavetas e sai)

PESCADORA

Presa... Que tuvesse u’a razão, eu ia. Eu sou Edir José, que toda gente conhece de

Dedé. Pói perntar na vila, se num credita. Sem peso só se pesca manjuba. Té o

gobião, e num há peixe pió, té o gobião num vai na isca sem peso. Gente que pesca

no raso às vez morde uma perca. De raro. Já tô calada agora, vossença desculpe. Num minto não. Deugi livre! Tão nós é pagão ôô bicho do mato ôô bandido? Ma nem

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pensamento ruim, não, meu bom Santim, palavra. U’a porca, vossença. Antão não

tira todas, nós deixa. Nós somo tudo gente ignorante, o dotôri sabe mió. Ma, ôôô, de

porca pesqueira nós conhece. Dotôri tá ouvindo, taí? O home das farda é minhoca da

terra igual nós, sem entendimento. Tro dia deu dois murro no pescador, quebrou

barco, jogou no rio, virou no chão de chute. Si si, minhocão, juízo de minhoca da

terra. Lei! Tem de julgar com entendimento, não é à toa. Pode té surrar, mas pela

culpa, com consença. Ma co’assim prá prisão, vossença, co’ansim? Tá doid! Qui a menina num reza de noite e o fio, a rede, nós percisa... Vosselença? Alumeia ãh? Tô

dizendo, pregunte na vila. Que tuvesse u’a razão eu ia. Ôh! Nhô! A pôia!

CENA 4

(Edir, na cela, cantarola, resmunga, conserta uma rede enquanto deixa um “café de

boia-fria” esquentando no bujãozinho. O delegado trabalha em sua mesa. Entra a

servente.)

MARIA

Dá licença, doutor. Eu vim trocar a lâmpada.

DELEGADO

Que lâmpada?

MARIA

Ué. Chegou no almoxarifado um pedido da administração de uma lâmpada para a sua

mesa. Passou pelo protocolo na semana passada e eu...

DELEGADO

Ah, sim. Eu fiz o pedido. Já troquei. Como é que um delegado pode trabalhar no

escuro?

MARIA Não sei, não, doutor.

DELEGADO

Eu não sou doutor. Sou advogado. Se você tiver uma lâmpada mais forte, eu

agradeço.

MARIA Essa é de 60.

DELEGADO

Não dá pra colocar uma de 100?

MARIA Tem que pedir por escrito e justificar.

DELEGADO

Justificar que o delegado precisa enxergar o que lê, o que vê, o que escreve?

MARIA

Ou então dar um jeitinho. O senhor sabe. Aqui tem dois caminhos. O caminho do papel, que é o certo e pode levar até dois meses porque entra em muita sala e muita

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fila. Hoje mesmo o eletricista consertou o vídeo que estava parado há um mês porque

o fio da tomada se partiu. No outro caminho é tudo bem mais ligeiro, mas tem que

fazer uns amigos. Eu sou amiga do eletricista. Eu falo com ele e ele faz, porque é meu

amigo. Porque mesmo o patrão mais alto precisa, em alguma hora precisa, do peão

mais baixo.

DELEGADO Tá bom, Maria, troca a lâmpada e pode sair mais cedo hoje.

MARIA

Tem uma de 100 aqui, que eu ia botar no corredor mas pode ficar pra outro dia. Quer

que coloque agora? Certo. Tá uma confusão aí fora que o senhor nem imagina.

Vieram os pescadores todos do Zacaria. Diz que não saem da rua enquanto a tal mulher não sair daqui. Esse povo gosta muito de falar. “Ah, pobre moça, com três

filhos pra criar”. Eu também tenho filho pra criar e por isso mesmo não vou me meter

a fazer fuzuê. O doutor fez muito bem de prender. Esses pescadores são uns

arruaceiros. Tá tudo aí na frente. Tem até faixa escrito que o mar é a lavoura do

pescador – coisa besta. Esse povo do Zacaria mora de frente pro mar e não quer sair

por nada. Coitados. Não vêem que aquele mar não é mais pro bico deles? Mais um

ano ou dois e o Zacaria vai ter hotel pra ricaço e estrangeiro. Se bobear, nem banho mais o povo vai poder tomar.

DELEGADO

Já trocou, Maria?

MARIA Olha que já ofereceram dinheiro, apartamento. Mas eles não saem por nada. É uma

gente burra. Eu, se me oferecessem qualquer coisa melhor que a minha casa,

qualquer vida melhor para os meus filhos, eu fazia o que eles quisessem. A pessoa

tem que querer melhorar de vida, não é mesmo? São tudo uns matuto. Pescar não dá

nada, mal se come com a venda dos peixes. Eles vivem mais é de uma roupa que a

mulher lava pra fora, os docinhos que uma outra faz pra dia de festa, assim, sempre nas migalhas. Os filhos estão por aqui – um que é trocador de ônibus, outro que

trabalha no balcão.

DELEGADO

Já trocou, Maria?

MARIA Ninguém mais quer pescar. Só velho. Mas eles não querem sair de lá por nada e ainda

vêm fazer arruaça na porta da gente. Prende mesmo, doutor, prende pra ver se eles

aprende. Agora já troquei e já vou indo que estou vendo que o doutor está querendo

trabalhar sossegado. Mas não se aborreça demais, doutor. Qualquer coisa que

precisar, pode chamar. E não se esqueça da minha licença. Vou sair mais cedo.

Licença.

(Sai a servente. Toca o telefone.)

DELEGADO

(atendendo) Pode ligar. Linhares?! Como vai?! Pois é, nunca mais a gente... Você

soube? Agora veja, eu aqui, numa delegacia do fim do mundo, cinco mil habitantes,

pensando que finalmente tinha encontrado um trabalho de sossego e de repente... Sei lá! Não! Prendi só para averiguar e para dar um susto no povo. É uma gente muito

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largada essa aqui, sem noção de coisa nenhuma. Também, o governo foi passar uma

linha no meio do nada! Não me diga! Sei. Não me diga. Ele disse isso? Não pode ser.

Eu? Mas, Linhares... Eu... Mas... Peraí!... Não... Mas, afinal, é uma porca! É. Está

bem, Linhares, vou pensar. Tá bem. Até. (desliga) Eu, hein.

REPÓRTER

(entrando com o câmera) Dá licença, doutor.

DELEGADO

Quem são vocês?

REPÓRTER

Estamos fazendo uma reportagem sobre...

DELEGADO

Quem deixou você entrar?

REPÓRTER

Não existem portas para nós, doutor. O senhor acredita que a ferrovia foi sabotada

por um grupo de delinqüentes ou está trabalhando com a hipótese de um movimento alimentado por uma organização internacional?

DELEGADO

Não tenho nada a dizer.

REPÓRTER O pescador preso tem antecedentes criminais?

DELEGADO

Por favor, se retirem.

REPÓRTER O que é que eles exigem?

DELEGADO

Com licença.

REPÓRTER

É verdade que o senhor está sendo ameaçado? (saindo) É verdade que o senhor está sendo ameaçado?

(O delegado volta à mesa. Edir continua cantando. Ele não consegue se concentrar.)

DELEGADO

A senhora não pára quieta? Já não bastam as visitas? É um compadre aqui, uma comadre ali. Isso tá parecendo maternidade!

PESCADORA

O mar... O mar não é de ninguém, é de que sabe os segredo. Tem muito segredo, e

um vai abrindo para o outro, que vai abrindo para o outro... e o pescador nunca

acaba. Muita coisa sabe o que pesca, coisa que não dá de contar, só pescando. (ao

delegado, que se aproximou da cela) Foi meu avô que inventou a pandorga. Sabe o que é pandorga? É uma invenção pra um pescador só jogar mais de dez linha de

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anzóli du’a vez. Cas’que ele tinha precisão. Tinha a família grande, e tinha tumém a

cidade. Naquele tempo já tinha as primeira casa de remédio e de vender roupa e

roupa bonita, coisa muito importante que é a gente ficar bonito. Tão importante que

vinha gente lá do deugi livre que era pra cumprar uns pertence. Qu’eu tava dizeno?

Ah! A pandorga. Antão, tinha gente enchendo a cidade e cumprava muito peixe. Meu

vô vendia. Depois veio as peixaria que tem barco bom e guarda os peixe no gelo. Vem

barco do Japão, pega os cardume de tainha inteirinho. Os peixe rareia. Antão hoje em dia tem muitos que compra e poucos que pesca. Qu’eu tava dizeno?

DELEGADO

A pandorga.

PESCADORA A pandorga. Meu vô pensou u’ idéia. Pegou uns papel, colou com arroz cozido e botou

na moldura. Marrou um fio, e no fio muitas linha de anzóli. Niqui o vento soprava,

subia o papel no ar, o papel corria e detrás dele corria as linha por cima d’água

panhando os peixe. Isso é a pandorga e foi meu vô que pensou. Depois os menino

pegou só o papel, pra brincadeira, e deram nome de pipa. E a pipa não é de ninguém

e é de todos que sabe o segredo. Isso é coisa de fundamento.

(oferece um café ao delegado e os dois bebem por um tempo em silêncio.) O povo do Zacaria tá brigando, cas’que os mais moço quer vir pra cidade.

DELEGADO

É, os jovens estão sempre querendo o que é diferente. Quando voltarem, vocês não

vão reconhecer nem os olhos. Mas é preciso deixar que se vão.

PESCADORA

Os meus eu deixo, não ligo. Mas nós não pode vender a terra pro Beltrano, como eles

quer.

DELEGADO

Ele não tem nome?

PESCADORA

É uma companhia de não-sei-quê, de fazer condomíne.

DELEGADO

Ah, o tal da construtora.

PESCADORA

Se vende a terra, ninguém tem mais pra onde voltar. E pescar é o que nós sabe, de

pesca nós conhece.

DELEGADO

Mas a terra é de vocês por direito de usufruto. A Constituição garante a posse da terra para quem mora e produz nela há mais de cinco anos.

PESCADORA

Nós somos de lá desde o primero parente.

DELEGADO

Pois então. Ele não pode fazer nada.

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23

PESCADORA

Já fez. Botou fogo, dirrubou casa, assustou os morador.

DELEGADO

Isso é crime! Façam uma denúncia! Não se pode ficar passivo diante de uma agressão

dessas.

PESCADORA

Agora diz que dá casa na cidade.

DELEGADO

Botaram isso no papel?

PESCADORA

Não, foi de pessoa!

DELEGADO

Sem papel não se prova nada.

PESCADORA E uma folha que o vento leva vale mais que a palavra do home?

DELEGADO

Mentir qualquer um mente, mas mentira por escrito vira verdade. É por isso que

existe a lei.

PESCADORA

Serve de nada. Serve de nada tumém as casa da cidade. Nós não pode carregar o

mar nas costa feito caramujo. Dá de levar não.

DELEGADO

Pois então fiquem e briguem pelo direito de vocês.

PESCADORA

Eles é que devia de tá preso.

DELEGADO

Isso só um inquérito para responder.

PESCADORA

Ma o dotôri me prendeu de primero.

DELEGADO

Porque houve flagrante.

PESCADORA

Quê?

DELEGADO

Ora, dona Edir, a senhora sabe que cometeu um erro grave.

PESCADORA E como solta?

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DELEGADO

O tempo. O seu processo está correndo.

PESCADORA

A vida tumém.

DELEGADO Pense antes, na próxima vez que quiser fazer o que não deve.

PESCADORA

(entrega um envelope)

E isso aqui?

DELEGADO

O que é?

PESCADORA

Não sei. Conheço muito as letra mas não sei ler.

DELEGADO É o valor da fiança. Como a senhora conseguiu este cheque?

PESCADORA

Veio junto com isso aqui.

DELEGADO (examina)

É uma promessa de venda da sua casa. Esse cheque é o sinal da venda. E é a sua

fiança.

PESCADORA

Quê?

DELEGADO

O representante da construtora está dando um cheque que paga a sua soltura.

PESCADORA

Então dinheiro solta as pessoa? O dotôri não disse.

DELEGADO

Não disse porque pensei que a senhora... Bem, o dinheiro paga a soltura e isto se

chama fiança.

PESCADORA

Então só pobre é que fica.

DELEGADO

Só que ele está fazendo isso em troca da sua casa, entendeu? Se a senhora usa este

cheque, está assumindo o compromisso de vender a sua casa.

PESCADORA

Eu não vou ficar aqui, meus filhos crescendo lá fora. Eles quer que eu vendo o mar pra eles. Eu vendo. O mar é de todos.

Page 25: A COISA PÚBLICA peça Rosyane Trotta

25

DELEGADO

Se a senhora faz isso, nunca mais vai poder pescar naquelas águas. Ele começa

comprando uma casa. Daqui a pouco faz com outro e outro, até conseguir expulsar

todos os pescadores.

PESCADORA

E é só assinar e eu posso ir embora?

DELEGADO

Pense bem, dona Edir. Essas terras são para a vida toda. E a sua prisão é por pouco

tempo. Não vai ser difícil provar que a senhora não teve culpa do acidente.

PESCADORA Onde é que assina?

DELEGADO

Isso é chantagem. Estão se aproveitando da sua situação. Se você me deixar tirar

uma cópia destes documentos, pode-se entrar com uma denúncia contra a

construtora.

PESCADORA

Eu boto as porca de volta, dotôri.

DELEGADO

?

PESCADORA

Eu boto as porca qu’eu ranquei tudo de volta pro lugar.

DELEGADO

Não adianta, dona Edir. Eu não posso.

PESCADORA

Eu num posso tumém levar o mar nas costas, tumém num posso. (pausa) Foi esse

Beltrano que mandou me prender?

DELEGADO

A senhora está presa porque cometeu um crime.

PESCADORA

Não foi ele que mandou prender?

DELEGADO

Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Uma é porca, outra é terra. Uma é o

poder público, outra é a iniciativa privada.

PESCADORA

Foi esse Beltrano que mandou me prender.

DELEGADO

Isso é imaginação dessa gente!

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PESCADORA

Pra obrigar o povo a sair do Zacaria.

DELEGADO

Coisa de gente ignorante.

PESCADORA E construir o tal condomine.

DELEGADO

(bate na papelada)

Isso aqui é a realidade.

PESCADORA

Pogi pra mim é, ó, pitafo.

DELEGADO

Eu fiz uma investigação idônea, dona Edir. Ou a senhora duvida?

PESCADORA Não sei o que é, mas desconfio, si sinhori. Quem vai fazer a minha defensa? Que

essas porca pode muito bem os pinante levar no bolso pra tirar retrato den’de casa.

Eu num tava! Essezinho que abriu nem é meu parente! Essa poliça é tudo cumprada.

DELEGADO

Está aqui a porca! Está vendo?

PESCADORA

Tem meu nome nela? Antão num é minha.

DELEGADO

(grita) Tolices! A senhora só diz tolices! Gente ignorante e analfabeta não pode questionar o sistema judiciário!

PESCADORA

Não precisa espremer o gogó que eu escuto cação quando nada dez metros debaixo

do mar.

DELEGADO Eu lhe dei todas as chances de defesa! (espalha papéis na mesa) registro de

ocorrência, depoimento da primeira testemunha, investigação de provas, dados dos

suspeitos, requerimento da Secretaria de Transportes, ordem judicial do Tribunal

Regional, relatório da delegacia de polícia, mandato de busca da Secretaria de

Segurança, análise do Departamento de Física, parecer do juiz regional, mandato de

prisão...

(Joga tudo no chão. Vai até a cela, abre o cadeado e escancara a porta. Ela estende a

ele o cheque. O delegado não pega.)

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CENA 5

MARIA

Licença, doutor.

(dirigindo-se à cadeira do delegado, que está vazia)

Eu trouxe o seu lanche. (vê que ele não está)

Ah, eu sempre me esqueço.

(para a cela, onde ele está)

Tão habituada de falar com o senhor ali. A sua esposa mandou estes lençóis. Disse

que o doutor gosta de lençol limpo. Cada um tem suas manias. Só que não é

permitido pelo regulamento. Mas o doutor é meu amigo. (entrega uma garrafinha térmica)

Tirei um pouco antes do Bonifácio colocar açúcar. Ele é danado pra adoçar o café e eu

sei que o doutor toma amargo porque “de doce já basta a vida”. Ah, doutor, eu gosto

da sua prosa. É pouca mas é boa. Pode ficar com a garrafa. Mais tarde eu venho

buscar. Não se aborreça muito aí, doutor. É por pouco tempo. Logo-logo vão lhe levar

para o Rio de Janeiro. Aquilo sim! Cidade grande, bonita!

FIM