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Universidade Federal de Pernambuco Centro de Ciências Jurídicas
Programa de Pós Graduação em Direito Mestrado em Direito
A CONDIÇÃO HUMANA DO TRABALHO
EDUARDO SÉRGIO DE ALMEIDA
RECIFE – 2003
Universidade Federal de Pernambuco Centro de Ciências Jurídicas
Programa de Pós Graduação em Direito Mestrado em Direito
A CONDIÇÃO HUMANA DO TRABALHO
EDUARDO SÉRGIO DE ALMEIDA
Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Direito. Orientador. Prof. Dr. João Maurício LeitãoAdeodato.
RECIFE – 2003
Universidade Federal de Pernambuco
Centro de Ciências Jurídicas Programa de Pós Graduação em Direito
Mestrado em Direito
A CONDIÇÃO HUMANA DO TRABALHO
EDUARDO SÉRGIO DE ALMEIDA
Dissertação submetida banca examinadora no dia 03 de setembro de 2003.
Drª. Eneida Melo Correia
Dr. Abrahan Benzaquen Sicsú
Dr. Michel Zaidan Filho
DEDICATÓRIA
Aos meus filhos Rafael e Mariana e a minha mulher, Ana Maria que sempre
me apoiaram nos empreendimentos mais importantes, a minha mãe, Maria das
Neves, e à memória do meu pai, Euclides, exemplo maior para a minha vida.
AGRADECIMENTOS
Um trabalho acadêmico, como a presente dissertação, desnecessário dizê-lo,
não é fruto exclusivo da nossa imaginação criadora. Afora as muitas leituras realizadas para
apoiar a exposição contida no texto, contamos com a colaboração de várias pessoas as quais,
por um dever de justiça devemos agradecer expressamente.
Agradecemos inicialmente ao Prof. Dr. João Maurício Leitão Adeodato pela
orientação firme e rigorosa, e pelas sugestões de leituras.
Além do orientador, algumas pessoas colaboraram decisivamente para que este
trabalho tivesse uma melhor qualidade, ao lerem o texto ou parte dele e fazerem valiosas
sugestões. Cristine Dabat Rufino, historiadora e professora de história, leu a primeira parte e
sugeriu modificações e complementações que foram incorporadas ao texto; Everaldo Gaspar
Lopes Andrade, juslaboralista, professor de Direito do Trabalho, com extensa obra publicada,
além de ler o texto e fazer sugestões, franqueou-nos a sua vasta biblioteca e proporcionou-nos
farto material de pesquisa. Agradecemos a Albano Pepe, professor de filosofia, pelas
conversas esclarecedoras e pela rica troca de idéias; a Jairo Bisol, promotor e professor de
teoria geral do direito, pelas estimulantes conversas durante um veraneio na praia de Pontas de
Pedras.
Às pessoas citadas, que generosamente e de diversas maneiras se dispuseram a
emprestar a sua colaboração para a elaboração deste trabalho, somos imensamente gratos. Os
defeitos do texto são de nossa inteira responsabilidade, como não poderia deixar de ser.
Agradecemos, por fim, aos colegas, juizes do Tribunal Regional do Trabalho da
Paraíba, à época na segunda instância e aqui nomeados, os Drs. Rui Eloi, Vicente Wanderley
N. de Brito, Ana Maria M. Ferreira, Afrânio Neves de Melo, Edvaldo de Andrade e Carlos
Coelho M. Freire, que, compreendendo a importância de uma pesquisa acadêmica, isenta de
maiores preocupações com o dia-a-dia da magistratura, proporcionaram-nos a oportunidade de
cursar o Mestrado em Direito.
RESUMO
Desde os primórdios, a condição de existência do homem sobre a terra encontra-se
ligada ao trabalho incessante. E essa atividade esteve de tal maneira ligada ao viver
cotidiano que algumas sociedades menos complexas sequer desenvolveram um vocábulo
específico para designá-la. Os esquimós, povo dotado de uma rica linguagem, a ponto de
usar mais de vinte termos diferentes para designar neve, não tem uma palavra para indicar
“trabalho”. Para eles estar acordado é o mesmo que estar trabalhando. Em sociedades nas
quais a divisão do trabalho social ocorre com maior intensidade, a ponto de permitir o
surgimento de uma classe ociosa de governantes, de guerreiros e de sacerdotes, não só
existem palavras para designar o trabalho, como surgem idéias sobre ele, não raro
considerando-o uma atividade penosa, às vezes degradante, indigna de homens
verdadeiramente livres. Na cultura greco-romana, por exemplo, o trabalho era considerado
uma atividade vil, e em boa parte executada por escravos. Apenas na Idade Moderna, com
o advento da reforma protestante, na sua vertente ascética, e com o desenvolvimento
acelerado da industrialização, redundando no que se costumou designar de Revolução
Industrial, é que o trabalho passou a ser valorizado, chegando a transformar-se em um
valor em si mesmo, até que com Marx, adquiriu sentido ontologizante, como criador do ser
social do homem. Por causa das grandes transformações na organização empresarial,
mediante a adoção de novos métodos administrativos e a substituição de trabalhadores por
máquinas mecânicas e eletrônicas, apesar do trabalho continuar a ser extremamente
valorizado, o mundo do trabalho entro em crise. Tal crise traduz-se no encolhimento da
oferta de empregos, na perda de força das organizações sindicais, na perda ou a ameaça de
perda de conquistas antigas da classe trabalhadora, que já pareciam definitivamente
incorporadas aos seus direitos sociais. A crise no mundo do trabalho tem reflexos
profundos no Direito do Trabalho, disciplina jurídica essa atualmente incapacitada de
proteger, adequadamente, os trabalhadores e de deter a rápida deterioração das condições
de trabalho e a fragilização das organizações sindicais. De igual modo, o Direito do
Trabalho não tem tido condições de incluir, no seu guarda-chuva protetor, os grandes
contingentes de trabalhadores, ocupados em uma enorme gama de novas atividades,
aparecidas com a mutação das organizações empresariais, ou surgidas em decorrência da
revolução dos computadores e dos meios de comunicação. Em face da crise e dos novos
reclamos sociais, o Direito do Trabalho está a merecer mudanças profundas, a fim de se
adequar às novas modalidades da prestação de trabalho para terceiros. Algumas dessas
mudanças envolvem mutações na fundamentação dessa disciplina jurídica a fim de que ela
possa abranger toda e qualquer atividade remunerada realizada por conta de terceiros.
RIASSUNTO
Fin dai primordi, la condizione esistenziale dell'uomo sulla Terra è legata al lavoro
incessante. Quest'attività è sempre stata così legata al vivere quotidiano, che alcune società
meno complesse non hanno nemmeno sviluppato un vocabolo specifico per designarla. Gli
Eschimesi, popolo dotato di un ricco linguaggio, al punto da utilizzare più di venti termini
diversi per indicare "neve", non hanno, invece, nessuna parola per "lavoro". Per loro,
essere svegli è lo stesso che stare lavorando. In società nelle quali la distribuzione del
lavoro sociale avviene più intensamente, tanto da consentire la nascita di una classe oziosa
di governanti, di guerrieri, di sacerdoti; non solo esistono parole per designare lavoro,
come sorgono anche idee su quest'attività, non di rado considerata penosa, talvolta
degradante, indegna di uomini veramente liberi. Nella cultura greco-romana, per esempio,
il lavoro era ritenuto un'attività vile, ed era in gran parte eseguito da schiavi.
Soltanto nell'Età Moderna, con l'avvento della Riforma Protestante, nel suo versante
ascetico, e con l'accelerato sviluppo dell'industrializzazione, risultante in quello che si era
solito designare Rivoluzione Industriale, è che il lavoro è stato valorizzato diventando un
valore a sé, fino a quando, con Marx, ha acquisito un senso ontologico quale creatore
dell'essere sociale dell'uomo. A causa delle grandi trasformazioni nell'organizzazione
imprenditoriale, mediante l'adozione di nuovi metodi amministrativi e la sostituzione di
lavoratori con macchine meccaniche ed elettroniche, nonostante il lavoro continui a essere
estremamente valorizzato, il mondo lavorativo è entrato in crisi. Tale crisi si traduce in un
accorciamento dell'offerta occupazionale, nella perdita di forza delle organizzazioni
sindacali, nella perdita o minaccia di perdita di antiche conquiste della classe lavoratrice,
che sembravano già definitivamente incorporate ai loro diritti sociali. La crisi nel mondo
del lavoro ha profondi riflessi nel Diritto del Lavoro, disciplina giuridica questa, oggi
impossibilitata a proteggere adeguatamente i lavoratori e a frenare il veloce deterioramento
delle condizioni di lavoro e l'indebolimento delle organizzazioni sindacali. Oltretutto, il
Diritto del Lavoro non ha avuto condizioni da includere, nel suo velo protettore, i grandi
contingenti di lavoratori, impegnati in un'enorme serie di nuove attività, apparse con il
cambiamento delle organizzazioni imprenditoriali, oppure sorte in decorrenza della
rivoluzione dei computer e altri mezzi di comunicazione. In vista della crisi e dei nuovi
reclami sociali, il Diritto del Lavoro si sta meritando profondi cambiamenti, al fine di
adattarsi alle nuove modalità di offerta di lavoro a terzi. Di tali cambiamenti, alcuni
comprendono alterazioni ai fondamenti di questa disciplina giuridica perché essa possa
contenere ogni e qualunque attività remunerata eseguita da terzi.
RESUMO
Desde os primórdios, a condição de existência do homem sobre a terra encontra-se
ligada ao trabalho incessante. E essa atividade esteve de tal maneira ligada ao viver
cotidiano que algumas sociedades menos complexas sequer desenvolveram um vocábulo
específico para designá-la. Os esquimós, povo dotado de uma rica linguagem, a ponto de
usar mais de vinte termos diferentes para designar neve, não tem uma palavra para indicar
“trabalho”. Para eles estar acordado é o mesmo que estar trabalhando. Em sociedades nas
quais a divisão do trabalho social ocorre com maior intensidade, a ponto de permitir o
surgimento de uma classe ociosa de governantes, de guerreiros e de sacerdotes, não só
existem palavras para designar o trabalho, como surgem idéias sobre ele, não raro
considerando-o uma atividade penosa, às vezes degradante, indigna de homens
verdadeiramente livres. Na cultura greco-romana, por exemplo, o trabalho era considerado
uma atividade vil, e em boa parte executada por escravos. Apenas na Idade Moderna, com
o advento da reforma protestante, na sua vertente ascética, e com o desenvolvimento
acelerado da industrialização, redundando no que se costumou designar de Revolução
Industrial, é que o trabalho passou a ser valorizado, chegando a transformar-se em um
valor em si mesmo, até que com Marx, adquiriu sentido ontologizante, como criador do ser
social do homem. Por causa das grandes transformações na organização empresarial,
mediante a adoção de novos métodos administrativos e a substituição de trabalhadores por
máquinas mecânicas e eletrônicas, apesar do trabalho continuar a ser extremamente
valorizado, o mundo do trabalho entro em crise. Tal crise traduz-se no encolhimento da
oferta de empregos, na perda de força das organizações sindicais, na perda ou a ameaça de
perda de conquistas antigas da classe trabalhadora, que já pareciam definitivamente
incorporadas aos seus direitos sociais. A crise no mundo do trabalho tem reflexos
profundos no Direito do Trabalho, disciplina jurídica essa atualmente incapacitada de
proteger, adequadamente, os trabalhadores e de deter a rápida deterioração das condições
de trabalho e a fragilização das organizações sindicais. De igual modo, o Direito do
Trabalho não tem tido condições de incluir, no seu guarda-chuva protetor, os grandes
contingentes de trabalhadores, ocupados em uma enorme gama de novas atividades,
aparecidas com a mutação das organizações empresariais, ou surgidas em decorrência da
revolução dos computadores e dos meios de comunicação. Em face da crise e dos novos
reclamos sociais, o Direito do Trabalho está a merecer mudanças profundas, a fim de se
adequar às novas modalidades da prestação de trabalho para terceiros. Algumas dessas
mudanças envolvem mutações na fundamentação dessa disciplina jurídica a fim de que ela
possa abranger toda e qualquer atividade remunerada realizada por conta de terceiros.
RIASSUNTO
Fin dai primordi, la condizione esistenziale dell'uomo sulla Terra è legata al lavoro
incessante. Quest'attività è sempre stata così legata al vivere quotidiano, che alcune società
meno complesse non hanno nemmeno sviluppato un vocabolo specifico per designarla. Gli
Eschimesi, popolo dotato di un ricco linguaggio, al punto da utilizzare più di venti termini
diversi per indicare "neve", non hanno, invece, nessuna parola per "lavoro". Per loro,
essere svegli è lo stesso che stare lavorando. In società nelle quali la distribuzione del
lavoro sociale avviene più intensamente, tanto da consentire la nascita di una classe oziosa
di governanti, di guerrieri, di sacerdoti; non solo esistono parole per designare lavoro,
come sorgono anche idee su quest'attività, non di rado considerata penosa, talvolta
degradante, indegna di uomini veramente liberi. Nella cultura greco-romana, per esempio,
il lavoro era ritenuto un'attività vile, ed era in gran parte eseguito da schiavi.
Soltanto nell'Età Moderna, con l'avvento della Riforma Protestante, nel suo versante
ascetico, e con l'accelerato sviluppo dell'industrializzazione, risultante in quello che si era
solito designare Rivoluzione Industriale, è che il lavoro è stato valorizzato diventando un
valore a sé, fino a quando, con Marx, ha acquisito un senso ontologico quale creatore
dell'essere sociale dell'uomo. A causa delle grandi trasformazioni nell'organizzazione
imprenditoriale, mediante l'adozione di nuovi metodi amministrativi e la sostituzione di
lavoratori con macchine meccaniche ed elettroniche, nonostante il lavoro continui a essere
estremamente valorizzato, il mondo lavorativo è entrato in crisi. Tale crisi si traduce in un
accorciamento dell'offerta occupazionale, nella perdita di forza delle organizzazioni
sindacali, nella perdita o minaccia di perdita di antiche conquiste della classe lavoratrice,
che sembravano già definitivamente incorporate ai loro diritti sociali. La crisi nel mondo
del lavoro ha profondi riflessi nel Diritto del Lavoro, disciplina giuridica questa, oggi
impossibilitata a proteggere adeguatamente i lavoratori e a frenare il veloce deterioramento
delle condizioni di lavoro e l'indebolimento delle organizzazioni sindacali. Oltretutto, il
Diritto del Lavoro non ha avuto condizioni da includere, nel suo velo protettore, i grandi
contingenti di lavoratori, impegnati in un'enorme serie di nuove attività, apparse con il
cambiamento delle organizzazioni imprenditoriali, oppure sorte in decorrenza della
rivoluzione dei computer e altri mezzi di comunicazione. In vista della crisi e dei nuovi
reclami sociali, il Diritto del Lavoro si sta meritando profondi cambiamenti, al fine di
adattarsi alle nuove modalità di offerta di lavoro a terzi. Di tali cambiamenti, alcuni
comprendono alterazioni ai fondamenti di questa disciplina giuridica perché essa possa
contenere ogni e qualunque attività remunerata eseguita da terzi.
SUMÁRIO
PRIMEIRA PARTE
INTRODUÇÃO ---------------------------------------------------------------------------- 12
CAPÍTULO I
OS VÁRIOS SIGNIFICADOS DA PALAVRA TRABALHO ------------------------------ 17
1.2 O trabalho na cultura greco-romana ----------------------------------------------------- 17
1.3 Concepção de trabalho na cultura hebraica --------------------------------------------- 23
1.4 Concepção de trabalho no cristianismo dos primeiros tempos ----------------------- 24
CAPÍTULO II
O TRABALHO NA IDADE MÉDIA E NO RENASCIMENTO --------------------------- 28
2.1 Os primórdios ------------------------------------------------------------------------------- 28
2.2 O crescimento econômico ----------------------------------------------------------------- 32
2.3 O trabalho no Renascimento -------------------------------------------------------------- 34
CAPÍTULO III
A IDÉIA DE TRABALHO NA REFORMA PROTESTANTE ----------------------------- 38
CAPÍTULO IV
MUDANÇAS NA CONCEPÇÃO DO TRABALHO ----------------------------------------- 43
4.1 Mudanças na concepção do trabalho na Revolução Industrial --------------------------- 46
SEGUNDA PARTE
CAPÍTULO V
DESEMPREGO ESTRUTURAL----------------------------------------------------------------- 51
5.1 Passagem da sociedade industrial para a sociedade pós-industrial – mudança de paradigma ---------------------------------------------------------------------------------------------66
5.2 A globalização e o novo conceito de império -------------------------------------------68
CAPÍTULO VI
FUNDAMENTOS TRADICIONAIS DO DIREITO DO TRABALHO-------------------- 74
61 Princípios do direito individual ---------------------------------------------------------------- 74
6.2 Conceito de Direito do Trabalho-------------------------------------------------------------- 76
6.3 Natureza jurídica (taxionomia) ---------------------------------------------------------------78
6.4 Fontes --------------------------------------------------------------------------------------------79
6.5 Crítica aos fundamentos tradicionais----------------------------------------------------------81
CAPÍTULO VII
O LUGAR DO DIREITO DO TRABALHO NA NOVA ECONOMIA -------------------- 87
7.1A busca de um novo sentido protetor -------------------------------------------------------- 96
CONCLUSÃO---------------------------------------------------------------------------------------101
REFERÊNCIAS-------------------------------------------------------------------------------------105
12
INTRODUÇÃO
O objetivo da presente dissertação é mostrar que a regulamentação jurídica
do trabalho humano, que constitui todo um ramo do Direito — o Direito do Trabalho —
encontra-se atualmente em descompasso com as relações efetivas que se travam entre
tomadores —aqueles que se beneficiam do trabalho alheio — e prestadores de trabalho —
os trabalhadores. Numa terminologia marxiana, poderíamos dizer que a superestrutura
ideológica (o Direito do Trabalho) não corresponde mais à infra-estrutura material das
relações sociais.
Desde o início da década de oitenta do século passado, travam-se grandes
debates a respeito das transformações ocorridas na economia, com reflexos cruciais no
mundo do trabalho humano, sobretudo no que diz respeito ao trabalho assalariado, na
forma de emprego permanente, de horário integral, nos moldes adotados pelas grandes
empresas e que parecia tendente a universalizar-se como praticamente a única forma de
trabalho, restando às outras modalidades, como a prestação de trabalho por contra própria,
de forma autônoma, uma posição absolutamente marginal.
Por ocupação profissional, somos obrigados a tomar conhecimento de tais
transformações, que têm levado a uma diminuição do emprego tradicional e também das
demais fontes de trabalho, e a estudar o assunto que é discutido por economistas,
historiadores, políticos e sociólogos, mas também, de uma maneira ainda muito incipiente,
por juristas, especialmente por aqueles ligados ao Direito do Trabalho, ramo no qual o
tema é mais premente.
O presente texto, fruto dessas preocupações, está dividido em duas partes:
na primeira, procuramos estudar o trabalho e suas diversas concepções através da história.
13
Como as sociedades que nos precederam encaravam a atividade humana destinada à
manutenção da vida e à fabricação de instrumentos e quais as categorias de pessoas que se
encarregavam dessas tarefas. Limitamos o nosso estudo à sociedade na qual nós próprios
estamos inseridos, ao denominado Ocidente, uma vez que o Direito do Trabalho é criação
cultural da sociedade ocidental.
Começamos pela sociedade greco-romana, uma das fontes da nossa
civilização e da qual derivam muitas das nossas mais importantes idéias e instituições.
Depois, fazemos uma breve incursão no pensamento hebreu, a outra fonte das idéias
preponderantes na nossa cultura, ordinariamente denominada de judaico-cristã. Em
seguida, verificamos as mudanças das diversas concepções a respeito do trabalho, que
começaram a ocorrer no fim do Mundo Antigo, por influência do cristianismo, nos seus
primórdios, passamos pelas alterações do significado do trabalho ocorridas na Idade Média
e pelas novas concepções surgidas no Renascimento. Verificamos as transformações da
idéias no movimento da Reforma Protestante, que trouxeram uma mudança fundamental
no modo de conceber o trabalho. Esse movimento de reforma do Cristianismo preparou
ideologicamente o homem para o grande aumento da riqueza e o desenvolvimento das
atividades fabris que culminaram na Revolução Industrial, ocorrida na Inglaterra, mas
cujas conseqüências, do ponto de vista de uma rápida industrialização, logo se espalharam
para outros países da Europa e para os Estados Unidos da América.
Fazemos uma explanação a respeito da Revolução Industrial, para
chegarmos, na segunda parte, aos debates e estudos mais recentes a respeito do rápido
processo de transformação da economia, que, mediante a automação cada vez mais intensa
das atividades industriais e de serviços, da aplicação de máquinas eletrônicas a atividades
que até pouco tempo eram efetuadas por seres humanos, transformam em supérfluos uma
14
gama variada de profissionais, não apenas aqueles sem qualificação, mas muitos deles
grandemente qualificados, como engenheiros calculistas, contadores, substituídos por
máquinas e programas de computadores.
Como as novas tecnologias, poupadoras de mão-de-obra, não se têm
mostrado capazes de criar empregos na mesma medida que os destruídos e nem tampouco
outras atividades surgidas do dinamismo da economia moderna possibilitam a criação de
empregos em quantidade satisfatória para aqueles que necessitam trabalhar, a crise está
instalada e a perplexidade em conseqüência dela é geral. Offe (1992:114) afirma: “no se
entrevé una lógica alternativa del aprovechamiento y la alimentación de la capacidad de
trabajo social, sino que más bien reina algo así como perplejidad estructural”.
Parte dessa perplexidade envolve o tema da “globalização”, de que tantos
falam, e poucos realmente sabem do que se trata, mas, indiscutivelmente está ligado às
mudanças na produção e no mundo do trabalho. Por isso há, no capítulo quinto, um
resumo das idéias de Hardt e Negri, contidas no livro Império, que parecem desvendar
teoricamente a estrutura dessa nova articulação mundial e de seus níveis de poder e de
riqueza que afetam a vida de todos. Compreendê-la como causa e, ao mesmo tempo, como
conseqüência das transformações econômicas, dos processos produtivos e do trabalho
humano é imprescindível para a consolidação das idéias e conclusões do presente estudo.
A análise histórica contida na primeira parte não pretende estudar o trabalho
em si e as diversas maneiras como foi prestado, nem tampouco as instituições sociais
decorrentes, sendo muito mais uma tentativa de mostrar que a atual maneira de encarar
trabalho como um valor positivo, nobilíssima expressão da personalidade, como afirmam
Gomes e Gottschalk (1975: 30) a ponto de a Constituição do Brasil, no artigo 1°, inciso IV,
colocar os valores sociais do trabalho como um dos fundamentos da República e do Estado
15
democrático de direito, e o artigo 1° da Constituição da Itália estabelecer o trabalho como
fundamento da República democrática italiana. é de cunho ideológico, tal como foram
aquelas visões que no passado o tiveram como um valor negativo, e situarmos o atual
sistema de idéias, que encara o trabalho como necessidade fundamental do homem, a ponto
de se chegar a afirmar, com o marxismo, que o ser social do homem é derivado do
trabalho. Essa é a razão pela qual só tratamos muito brevemente de instituições históricas
da maior importância, tais como as corporações de ofício, surgidas na Antiguidade e
revigoradas na Idade Média.1
A segunda parte dedica-se ao estudo dos desdobramentos das mudanças,
discutidas no último capítulo da primeira parte, na economia e na política, especialmente
na estrutura do poder, com a dita globalização. Tratamos ainda das mudanças que vêm
ocorrendo a partir da década de setenta do século XX no mundo do trabalho e dos
desdobramentos dessas mudanças no Direito, especialmente no Direito do Trabalho.
Parte das discussões contidas no presente estudo, algumas de cunho
especulativo, encontram-se dispersas em trabalhos de estudiosos de disciplinas diversas:
economistas, sociólogos, filósofos, cientistas políticos, historiadores. Os estudiosos do
Direito, especialmente os estudantes, sejam aqueles da graduação ou aqueles da pós-
graduação, quando se deparam com a disciplina Direito do Trabalho, não têm acesso a uma
introdução histórica mais detalhada de como se desenvolveram as idéias a respeito do
trabalho humano ao longo do tempo, tampouco são alertados para o fato de que há uma
crise estrutural no mundo do trabalho, com muitas atividades tradicionais já desaparecidas
ou em vias de desaparecer, e trabalhadores sendo substituídos por máquinas mecânicas ou
eletrônicas. De igual modo, não são alertados para compreender que as transformações que 1 Para uma interessante visão sobre as corporações, ver KRANZBERG, e GIES, 2001, especialmente o capítulo 8, IL lavoro nel Medioevo: le gilde e il sistema del puttin-out.
16
vêm ocorrendo no mundo do trabalho produzem reflexos profundos no Direito, que
necessita dar respostas rápidas aos novos reclamos sociais. Fala-se em crise econômica, em
diminuição das oportunidades de trabalho, em desemprego estrutural, em globalização,
sem que se mostrem as razões da crise; aquilo que está por trás das mudanças observadas;
quais as novas formas em que se estrutura o poder, tanto em nível local, quanto em nível
mundial.
Tendo em vista as mudanças ocorridas nas relações entre tomadores e
prestadores de trabalho remunerado e o descompasso entre o Direito do Trabalho e o
mundo da vida, onde se travam as relações sociais relativas à prestação de trabalho
humano, verifica-se a necessidade de mudanças substanciais na regulamentação jurídica do
trabalho, em conjunto com outras mudanças nas relações de poder, mediante a
democratização das empresas através do controle social e mediante outras formas de
distribuição da riqueza social, o que implica inclusive na necessidade de modificação dos
fundamentos que levaram à criação e ao desenvolvimento dessa disciplina jurídica ao
longo dos dois últimos séculos.
17
CAPÍTULO I
1 OS VÁRIOS SIGNIFICADOS DA PALAVRA “TRABALHO”; 1:1
TRABALHO NA CIVILIZAÇÃO GRECO-ROMANA; 1:2 CONCEPÇÃO DE
TRABALHO NA CULTURA HEBRAICA; 1:3 CONCEPÇÕES DE TRABALHO NO
CRISTIANISMO DOS PRIMEIROS TEMPOS
1 OS VÁRIOS SIGNIFICADOS DA PALAVRA “TRABALHO”
Nem todas as culturas têm uma palavra exclusiva para designar a atividade
humana que nossa civilização denomina “trabalho”. Kranzberg e Gies (2001: 11) aludem a
pesquisas antropológicas que descobriram que sociedades “primitivas” ainda existentes em
nossos dias, na zona Ártica e na África, não usam um termo específico para designar o
trabalho, muito embora o seu vocabulário seja muito rico em outros aspectos da vida
comunitária, como a caça ou a pesca. Os esquimós, por exemplo, usam mais de vinte
termos para designar a neve e termos diversos para o mesmo animal em condições diversas
pertinentes à caça, como urso que caminha, urso que dorme, urso perigoso.
A explicação para esse aparente paradoxo lingüístico é que, para tais
grupos, o trabalho é sinônimo de vida a tal ponto que não é necessário um termo especial
para designá-lo. Ao nível econômico dessas sociedades, a distinção não é entre trabalho e
não-trabalho, mas somente entre sono e vigília, porque estar acordado significa estar
trabalhando.
18
A palavra “trabalho” não tem um sentido unívoco, servindo para designar
não só uma gama bastante variada de atividades, como também o resultado dessa atividade
mesma.
Assim diz-se que o artesão que fabrica uma determinada peça trabalha, mas
a peça fabricada também é denominada trabalho. O artista que pinta um quadro encara a
sua atividade como trabalho e o resultado, o quadro pintado, também como um trabalho.
Tanto trabalha o operário fabril, manuseando instrumentos e máquinas de pouca
complexidade, o trabalhador braçal sem nenhuma qualificação e muitas vezes analfabeto,
quanto trabalha um escritor, um historiador ou um professor que tem atividades ligadas ao
intelecto. Por outro lado, a palavra “trabalho” não se refere apenas a atividades humanas.
Ciências naturais, como a física, têm um uso específico do termo “trabalho”, significando
uma determinada transformação de energia que pode ser calculada segundo fórmula
matemática precisa.
O trabalho que nos interessa, entretanto, é apenas aquele decorrente da
atividade humana capaz de gerar um acréscimo de bens para o próprio trabalhador ou para
outrem, mediante a transformação da matéria em um objeto de uso, seja este uso prático ou
estético, ou produzir um benefício que torne a vida mais cômoda ou prazerosa, o que
engloba o trabalho na terra, no cultivo e na colheita dos produtos da atividade agrícola, o
cuidado com os animais domesticados, o trabalho nas minas, na indústria, no comércio,
nos estabelecimentos de crédito, de ensino, de lazer etc. Em outras palavras interessa-nos o
que os economistas denominam “fator de produção”, (SANDRONI, 1999: 609) assim
define trabalho: “um dos fatores de produção, é toda atividade humana voltada para a
transformação da natureza, com o objetivo de satisfazer uma necessidade. O trabalho é
uma condição específica do homem e, desde suas formas mais elementares, está associado
19
a certo nível de desenvolvimento dos instrumentos de trabalho (grau de aperfeiçoamento
das forças produtivas) e da divisão da atividade produtiva entre os diversos membros de
um agrupamento social”.
Do ponto de vista jurídico, o trabalho é definido por Süssekind (2002: 3) da
seguinte maneira: “Toda energia humana, física ou intelectual, empregada com um fim
produtivo, constitui trabalho”. Já Sanseverino (1976: 39) o define assim: “Do ponto de
vista jurídico o trabalho é levado em conta, sobretudo, em relação a quem pode utilizá-lo,
mediata ou imediatamente, fruindo as energias expendidas por outrem — definindo-se,
portanto, como atividade adequada a satisfazer as necessidades de qualquer outra
pessoa”.
São sobretudo esses conceitos, o econômico e o jurídico, do trabalho que
têm relevo para o presente estudo.
Esse tipo de atividade — o trabalho — tem sentido diverso, de acordo com
a época histórica em que se pretenda estudá-lo, o que significa que é valorado de diferentes
maneiras, por diferentes culturas ou civilizações.
1:2 - O TRABALHO NA CULTURA GRECO-ROMANA
Para o pensamento grego, os homens verdadeiramente livres não se dedicam
ao trabalho, atividade vil destinada aos escravos. Se algum homem, caído na pobreza,
tivesse que trabalhar para ganhar o próprio sustento, mesmo que não fosse escravo, não era
considerado livre pelos demais cidadãos, uma vez que estava submetido à necessidade. O
exercício da política, na administração da cidade e o serviço militar eram as atividades dos
homens livres, o mesmo ocorrendo com a atividade contemplativa. Arendt (1993: 40) diz
20
que “todos os filósofos tinham como certo que a liberdade situava-se exclusivamente na
esfera política; que a necessidade é primordialmente um fenômeno pré-político,
característico da organização do lar privado”.
Para Aristóteles, (2000: 10-11) “o trabalhador é uma espécie de
instrumento e a vida consiste no uso, não na produção. O servidor é o ministro da ação:
chamam-no propriedade da casa, como parte dela”. Os romanos não encaravam o
trabalho de modo diferente, pois o próprio termo “trabalho” vem da palavra latina
tripalium, que significava canga e instrumento de tortura. Essas concepções sobre o
trabalho que legaram os antigos fazem parte da visão do mundo da classe dominante, o que
não quer dizer que também os submetidos à dominação não compartilhassem, pelo menos
em parte, da visão da aristocracia; senão, como se manteria a sociedade? A força exclusiva
só é capaz de manter determinada classe no poder, só pode assegurar determinado “status
quo” por períodos muito curtos. A cultura greco-romana, entretanto, durou vários séculos.
Embora hoje se reconheça que, ao lado dos escravos, homens livres
destituídos de riqueza também trabalhassem no mundo antigo, o grosso da produção
destinada ao mercado, sobretudo na Roma do Império, era devido à mão-de-obra escrava. 2
O trabalho escravo, em qualquer cultura ou época, interfere no trabalho livre, gerando um
sentimento de desprezo por qualquer forma de trabalho produtivo, que passa a ser encarado
com vil e indigno, contaminando a pessoa do trabalhador. Podemos verificar isso em nosso
próprio tempo, em relação ao enorme preconceito de cor e classe existente em países como
o Brasil ou os Estados Unidos da América em relação às pessoas negras. No mundo
antigo, homem verdadeiramente livre deveria dedicar-se a tarefas outras, como a política, a
guerra, ou aos prazeres. 2 Para uma interessante discussão a respeito da inexistência de trabalho livre na Antiguidade ver ARENDT, 1993:76-77, nota 69.
21
Zimmern, citado por Norberto Elias, (1994: 55 V. II) afirma que o
sentimento de aversão ao trabalho gerado pela escravidão leva a um estado de coisas tal em
que os escravos tendem a ser os únicos produtores, e as ocupações em que trabalham, as
únicas do país, acarretando a dependência da sociedade, para a criação de riqueza, de
ocupações que não admitem mudança. Tal sociedade viverá em constante necessidade de
mão-de-obra que não pode ser suprida por ela própria, devendo ser trazida do exterior. No
mundo antigo essas necessidades eram supridas principalmente pela guerra, embora
também pela auto-reprodução, pela venda de si mesmo, no caso de miséria, pela venda dos
filhos pelos pais e pela redução à escravidão do devedor insolvente. O vencedor da batalha,
quando não dizimava inteiramente as populações vencidas, reduzia-as à escravidão.
Arendt, (1993: 94) afirma que “a opinião de que o labor e o trabalho eram vistos com
desdém na Antiguidade, pelo fato de serem tarefa de escravos é um preconceito dos
historiadores modernos. Os antigos raciocinavam de outra forma: achavam necessário ter
escravos em virtude da natureza servil de todas as ocupações que servissem às
necessidades de manutenção da vida”. Essa autora distingue labor de trabalho. Para ela
labor “labor”é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujo
crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio têm a ver com as necessidades
vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida. O trabalho “work” é a
atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, à fabricação de objetos
destinados a durar.
Segundo Weber (1997: 41) a guerra antiga era caça de escravos e levava
constantemente prisioneiros de guerra para o mercado de escravos nas cidades. Na
Antiguidade, a preponderância do trabalho servil sobre o trabalho livre aumenta
incessantemente na “oikos” “a grande produção doméstica, autoritariamente dirigida, de
22
um príncipe, senhor territorial, patrício, cujo motivo último não reside no interesse
capitalista de lucro monetário, senão na cobertura natural e organizada das necessidades
do senhor.” (WEBER, 1996a: 311). Seria então uma organização econômica natural
centrada na unidade doméstica. 3
Somente os proprietários de escravos podiam prover as suas necessidades,
mediante o trabalho servil e, além disso, produzir um excedente para o mercado.
A empresa escravista é ávida por homens, em qualquer sociedade em que
tenha havido escravidão, em função das duras condições de trabalho impostas aos
escravos, os homens gastam-se logo, rapidamente consumidos pela fadiga, pelos maltratos
e pelas doenças, havendo necessidade de reposição constante da mão-de-obra. Como na
Antiguidade o abastecimento de escravos era feito precipuamente pelo aprisionamento dos
inimigos derrotados em batalha e o seu fornecimento aos grandes proprietários de terras,
por meio do mercado de escravos, a pacificação do Império Romano reduziu o
aprovisionamento de escravos, com graves conseqüências para o modo de produção da
antiguidade. Em sentido diverso De Masi, (1999: 85/86), afirma: “ainda que muito
difundida já se definiu como infundada a idéia de que o emprego de escravos tendesse a
diminuir principalmente porque o abastecimento de prisioneiros se tornasse mais difícil.
Ainda durante a alta Idade Média, o tráfico de escravos, a imposição da escravidão aos
devedores inadimplentes e aos miseráveis, a criação, as guerras vitoriosas contra os
bárbaros e a venda de crianças punha à disposição uma quantidade de “gado humano”
superior à demanda”.
3 Economia natural seria aquela em que não há emprego de dinheiro. Para maior aprofundamento, ver LE GOFF, 1995: 299.
23
1:3 – CONCEPÇÃO DE TRABALHO NA CULTURA HEBRAICA.
Os gregos encaravam o trabalho como a herança dos deserdados, como
essencialmente dor e necessidade, fadiga e pena, sem dar qualquer explicação, sem
justificar tal condenação. Já os hebreus atribuíam a “queda” ao pecado original, à
desobediência de Adão às ordens do Senhor. No Gênesis lê-se que, depois do pecado
cometido por Adão, Deus lhe disse: Porque ouviste a voz da tua mulher e comeste do fruto
da árvore que eu te havia proibido comer, maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela
com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida. Ela te produzirá espinhos
e abrolhos, e tu comerás a erva da terra. Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até
que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e em pó te hás de tornar. (GÊNESIS,
III, 17-19).
O homem trabalha para expiar o pecado original cometido por Adão e Eva
no paraíso terrestre, destinado à sua morada, juntamente com as outras criaturas. O
trabalho, portanto, é pena e pena motivada, o que lhe confere um caráter de expiação,
permitindo a redenção final. O paraíso, do qual o homem foi expulso em decorrência do
pecado, será novamente restaurado, e, como ocorreu no começo da história, o gozo dos
frutos da terra será dado ao homem, sem que este necessite fazer qualquer esforço.
Por meio da disciplina no culto ao Deus verdadeiro, poder-se-ão conseguir
novamente os bens, a justiça e a felicidade perdidos, chegando-se à instauração do reino de
Deus. Se o reino se instaurará pela graça de Deus, é necessário, no entanto, prepará-lo não
só com a prece, mas também com a disciplina no trabalho com a qual adquire significação.
O reino não será dado instantaneamente e sem esforço, mas será o resultado de um
processo que surge da realidade de uma vida dura, devendo ser conquistada passo a passo,
24
pois Deus, mesmo misericordioso, exige a participação do homem para o advento do reino
que há de vir. O reino não é só graça, mas também conquista. O ativismo do trabalho
adquire sentido. Eis aqui os germes da ética protestante tão bem descrita por Weber
(1996a)
Segundo Bataglia (1958: 62) a visão hebraica do trabalho representa
decisiva mudança com relação à visão da cultura greco-romana, pois, mesmo como pena,
implica a valorização do trabalho humano. Não faltam contradições, porém, entre a visão
dominante dos hebreus e outras, dentro dessa mesma cultura, que anseiam por uma
condição de beatitude, de obtenção dos bens terrenos sem trabalho, sem fadiga. O reino, na
escatologia hebraica, é concebido em sentido materialista como fruição das coisas terrenas
na ausência de qualquer trabalho.
1:4 CONCEPÇÃO DE TRABALHO NO CRISTIANISMO DOS PRIMEIROS TEMPOS
Na origem do cristianismo e nos ensinamentos de Jesus, conforme nos
transmitiram os seus seguidores, os autores dos livros que compõem o Novo Testamento,
encontramos justificações proféticas que prevêem o fim dos tempos e o advento do reino
de Deus. As doutrinas escatológicas do cristianismo dos primeiros tempos levaram a uma
justificação para a rejeição do trabalho. O povo eleito deve estar propenso para o reino e a
viver uma vida religiosa e moral, de modo a ser digno do advento de reino de Deus. Esse
reino torna-se cada vez mais espiritual; fruição de bens espirituais para todos os homens e
não apenas para um povo escolhido, como aquele dos hebreus, imerso na materialidade da
fruição de bens terrenos para um povo eleito.
25
Para Battaglia, (1958: 63) o cristianismo foi a primeira religião
autenticamente universalista. Gibbon (1989: 198), contrapondo o cristianismo à religião
hebraica, assim se pronuncia: “A promessa do favor divino, em vez de confinar-se
facciosamente à posteridade de Abraão, estendeu-se universalmente ao liberto e ao
escravo, ao grego e ao bárbaro, ao judeu e ao gentio”. As demais religiões da
Antiguidade eram aquelas particulares de um povo ou de determinada cidade. Enquanto a
escatologia hebraica previa um reino destinado ao povo eleito — os próprios hebreus —
em relação privilegiada com Deus, os cristãos pregavam o advento de um reino destinado a
todos os homens. Para os hebreus, só a eles era destinado um mundo sem trabalho; com o
advento do reino, o gentio poderia trabalhar para o judeu.
Nos evangelhos, a negação do valor do trabalho é patente. Em Mateus,
lemos: “Portanto, eis que vos digo: não vos preocupeis por vossa vida, pelo que comereis,
nem por vosso corpo, pelo que vestireis. A vida não é mais que o alimento e o corpo não é
mais que as vestes? Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam, nem recolhem nos
celeiros e nosso Pai celeste as alimenta. Não valeis vos muito mais que elas?” (MATEUS,
VI, 25-26).
São Lucas repete o que se encontra no evangelho segundo Mateus, variando
apenas umas poucas palavras; não se altera, contudo, o sentido da prédica, que é a de Jesus.
“Portanto vos digo: não andeis preocupados com a vossa vida, pelo que haveis de comer;
nem com o vosso corpo, pelo que haveis de vestir. A vida vale mais do que o sustento e o
corpo mais do que as vestes. Considerai os corvos: eles não semeiam nem ceifam, nem têm
despensa, nem celeiro; entretanto Deus os sustenta. Quanto mais valeis vós do que eles?”
(LUCAS, XII, 22-24).
26
A doutrina cristã, como a hebraica, é escatológica, porém a escatologia
cristã difere daquela dos hebreus em alguns pontos substanciais. A hebréia é particularista
e a cristã, universalista; aquela é ligada ao mundo e à fruição de bens materiais, esta,
espiritualista, voltada para o mundo que há de vir, não na terra, mas no céu. Assim sendo,
que valor poderia ter o trabalho e o acúmulo de riquezas, se só estamos aqui de passagem?
O nosso sustento Deus proverá, como provê o sustento da outras criaturas suas.
Os primeiros cristãos só condenam o trabalho, entretanto, como fonte de
distrações do verdadeiro objetivo de todos os homens, a conquista da vida eterna no
paraíso celeste. O trabalho, em si, é indiferente. Com o apóstolo Paulo, todavia, o
cristianismo começa a adotar uma visão diversa em relação ao trabalho. Na segunda
epístola aos tessalonicenses, São Paulo diz: “Sabes perfeitamente o que deveis fazer para
nos imitar. Não temos vivido entre vós desregradamente, nem temos comido de graça o
pão de ninguém. Mas, com trabalho e fadiga, labutamos noite e dia, para não sermos
pesados a nenhum de vós. Não porque não tivéssemos o direito para isso, mas para vos
oferecer em nós mesmos um exemplo a imitar. Aliás, quando estávamos convosco, nós vos
dizíamos formalmente: quem não quiser trabalhar não tem o direito de comer. Entretanto
soubemos que entre vós há alguns desordeiros, vadios que só se preocupam em
intrometer-se em assuntos alheios. A esses indivíduos ordenamos e exortamos a que se
dediquem tranqüilamente ao trabalho para merecerem ganhar o que comer”.
(TESSALONICENSES, III, 7-12).
O apóstolo pensa o trabalho de maneira completamente nova, como
atividade digna e não degradante, a exemplo do que ocorria no mundo antigo greco-
romano, ou como pena, consoante o pensamento hebraico. Ele põe em relevo o seu lado
positivo. O trabalho favorece a saúde do corpo, pois o ócio o enfraquece e o homem ocioso
27
pode derivar para o mal. A obrigação que tem cada indivíduo de ganhar o seu próprio
sustento passa a dar nova dignidade ao trabalho. Isso não significa, entretanto, que com
São Paulo o trabalho passou a ter valor autônomo, com um fim em si mesmo, ao contrário,
constitui simples meio para a consecução dos objetivos do cristianismo. Ao homem basta
ganhar o necessário para comer e vestir, toda riqueza excedente pode levar a desvios do
caminho do reino de Deus. “Tendo alimento e vestuário contentamo-nos com isto. Aqueles
que ambicionam tornar-se ricos caem nas armadilhas do demônio... Porque a raiz de
todos os males é o amor ao dinheiro. Acossados pela cobiça alguns homens se desviaram
da fé e se enredaram em muitas aflições”. (TIMÓTEO, VI, 8-10).
Apesar de novas, as idéias surgidas no cristianismo primitivo a respeito do
trabalho só muito timidamente se diferenciavam do hebraísmo. A importância fundamental
da visão cristã é aquela que considera os homens iguais em natureza, todos sendo dotados
de personalidade. O cristianismo abre caminho para que se possa compreender o homem
como pessoa, como sujeito moral, opondo-se às concepções do paganismo, que
consideravam o escravo como coisa, o “ïnstrumentum vocale”, como os denominavam os
romanos, para diferenciá-los dos animais, “instrumentum semivocale”.
28
CAPÍTULO II
2 O TRABALHO NA IDADE MÉDIA E NO RENASCIMENTO 2:1 OS PRIMÓRDIOS;
2:2 CRESCIMENTO ECONÔMICO NA IDADE MÉDIA; 2:3 O TRABALHO NO
RENASCIMENTO
2:1 OS PRIMÓRDIOS
A cultura do ocidente medieval surgiu das ruínas do Império Romano do
Ocidente. A questão da queda de Roma, dos motivos que levaram a um império milenar e
multinacional, que se estendia por três continentes – Europa, Ásia e África – ainda
encontra-se em aberto. Uma obra de história, como o livro clássico Declínio e Queda do
Império Romano, de Gibbon, atribui o desaparecimento do Império Romano, entre outros
fatores, ao aparecimento e ao desenvolvimento do cristianismo, somados à fraqueza de
caráter dos últimos imperadores. Nas suas palavras: “não nos cause surpresa ou escândalo
saber que a introdução, ou pelo menos o abuso, do cristianismo teve alguma influência do
declínio e na queda do Império Romano”. (GIBBON, 1989, : 443).
Estudiosos mais recentes, entretanto, dispondo de maiores informações,
fruto da pesquisa desenvolvida nos dois últimos séculos, encontram as causas da queda
sobretudo em problemas internos dessa brilhante civilização. Quaisquer que tenham sido as
causas do fim do Império Romano, a organização social que viria a seguir e que dominou a
Europa durante aproximadamente mil anos, começou a desenvolver-se ainda durante o
império. Segundo Weber (1997, : 46), com a pacificação interna e externa, contraiu-se e
reduziu-se o aprovisionamento regular de escravos, o que trouxe como conseqüência uma
grande crise de mão-de-obra. Como os escravos viviam em acampamentos, numa forma de
vida em tudo semelhante à dos soldados aquartelados, sendo-lhes vedada a constituição de
29
família monogâmica, a auto-reprodução de mão-de-obra escrava, nessas condições,
dificilmente ocorria de acordo com as necessidades da grande empresa escravista.
Nos últimos tempos de Roma, devido à escassez de trabalhadores, os
escravos foram dispersados fora da “Oikos” e colocados no seio da família, pois, assim,
ficava garantida a auto-reprodução da força de trabalho, que já não era encontrada em
quantidade suficiente no mercado de escravos. Estava preparada a transição do trabalhador
escravo, produtor de mercadorias em benefício do seu senhor, para o trabalhador servo da
gleba, adstrito à terra que cultivava, em parte para si próprio, assegurando a sobrevivência
pessoal e da família e, em parte, em favor do seu senhor.
As debilidades político-administrativas dos últimos imperadores, incapazes
de conter a anarquia interna e as invasões externas dos bárbaros, transformaram toda a
organização social. Os grandes senhores de terras abandonaram as cidades e
estabeleceram-se nas suas propriedades rurais, levando consigo as suas famílias e os seus
escravos. Com a dispersão no campo, cessaram ou ficaram grandemente reduzidas as
trocas que alimentavam o comércio entre as províncias, com a conseqüente diminuição do
uso da moeda. O sistema econômico que se seguiu, o da Idade Média, até a volta do
crescimento das cidades, a partir do século XI, foi predominantemente natural. A grande
propriedade rural tendeu, então, para a autarquia; todo o imprescindível para as
necessidades básicas da vida: alimento, vestuário, os poucos instrumentos de trabalho,
como facas, foices, enxadas, as armas para a defesa, provinham dos campos, dos teares,
das forjas e das oficinas da própria herdade.
O modelo da cultura medieval foi predominantemente rural, ao contrário do
que ocorreu na cultura da Antiguidade clássica, na qual a cidade tinha grande importância,
sobretudo política e cultural.
30
No mundo antigo os centros urbanos eram lugares mais de consumo do que
de produção, ao contrário das cidades que se desenvolveram na Idade Média, quando se
iniciou a progressiva fuga da população dos campos para as aldeias, num processo inverso
àquele que deu origem ao feudalismo, nos estertores do Império Romano. O colapso da
produção, devido à escassez de mão-de-obra e à diminuição da navegação de longo curso,
em função das invasões bárbaras, determinou que as cidades perdessem importância como
fonte de vida política e de cultura.
Durante toda a Idade Média, o trabalho escravo, que nunca desapareceu de
todo4, teve reduzida expressão social, o que colocou a sociedade européia, desde o início,
em um curso diferente daquele adotado na Antiguidade. “O papel muito pequeno
desempenhado pela importação de escravos e de mão-de-obra escrava dava aos
trabalhadores, mesmo como classe inferior, um grande peso social”. (ELIAS, 1994, : 56).
Para nossas finalidades, na presente dissertação, não interessa o alongamento no exame de
todas as possíveis causas que, com o fim do mundo antigo, levaram à formação e ao
desenvolvimento da sociedade feudal. Interessam, sobretudo, aquelas transformações
ocorridas no âmbito dos processos produtivos e as mudanças espirituais que levaram a uma
diferente relação entre os homens e ao surgimento de novas concepções em relação ao
trabalho e ao trabalhador.
Numa sociedade em que a classe trabalhadora é relativamente livre, na qual
o trabalhador deixou de ser coisa, mero instrumento falante e passou a ser considerado
pessoa, e na qual as categorias superiores – aristocracia e alto clero – não trabalhavam, a
dependência das camadas privilegiadas em relação às classes inferiores foi sempre
4 Sobre a escravidão na Europa durante a Idade Média e épocas posteriores, ver LE GOFF, 1995.
31
crescente, o que implicava e tinha de implicar em ganho de poder social das camadas
inferiores.
A transição entre o regime de trabalho escravo e o de trabalho livre foi lenta
e gradual. O estatuto social dado aos indivíduos mantinha a demarcação entre escravidão e
liberdade. Esta, porém, não significava independência pessoal, mas apenas o fato de se
pertencer ao povo (populus) e de ser responsável perante as instituições públicas. Tal
distinção era mais acentuada nas sociedades germanizadas porque estas se baseavam num
corpo de homens livres. O direito de usar armas, seguir o chefe guerreiro nas expedições e
partilhar os eventuais produtos do saque constituía os critérios básicos de liberdade dos
germanos. Nas províncias submetidas a Roma, a liberdade dos camponeses era menor que
a observada entre os germanos, estando aqueles sujeitos a formas de exploração
econômicas mais onerosas.
A maioria dos camponeses cultivavam as terras pertencentes a outrem. A
sua liberdade formal estava limitada, na prática, por uma série nem sempre determinada de
obrigações para com o seu senhor, desde a prestação de trabalho nos campos, no trato das
lavouras e dos animais do senhor que tinham precedência sobre o trato das lavouras e dos
animais dos servos, até o fornecimento de alimentos para os exércitos profissionais.
Maurice Dobb, com base em Marx, conceitua o trabalho servil, característico do
feudalismo, em contraste com o trabalho escravo, do seguinte modo: No sistema de
produção feudal, “o produtor direto encontra-se na posse de seus meios de produção, das
condições materiais de trabalho necessárias à realização de seu trabalho e à produção de
seus meios de subsistência. Ele empreende sua agricultura e as indústrias caseiras rurais
a ela ligadas como um produtor independente, ao passo que o escravo trabalha com
condições de trabalho pertencentes a outrem”. (DOBB, 1981: 45).
32
2:2 O CRESCIMENTO ECÔNOMICO NA IDADE MÉDIA
A partir do século XI, a Europa conheceu notável progresso econômico,
com o renascimento do comércio de longa distância, o aumento da circulação do dinheiro e
uma maior movimentação de pessoas e idéias. Tal progresso deu-se concomitantemente ao
aumento da população. Em Le Goff, lê-se: “J. C. Russel afirma que a população da
Europa Ocidental passou de 22,5 milhões de habitantes por volta de 950, para 54,5
milhões nas vésperas da peste negra em 1348, ou segundo M. K. Benett de 42 milhões por
volta do ano 1000 para 73 milhões em 1300. Menciona também que o número máximo de
habitantes de princípios do século XIV é pouco superior ao da prosperidade romana dos
fins do século II, observando que tal crescimento parece caracterizar-se como uma
simples recuperação”. (LE GOFF, 1995: 298). Qualquer que tenha sido a cifra verdadeira,
verifica-se que o crescimento da população foi expressivo.
O aumento das necessidades de troca implicou um maior desenvolvimento
da profissão de comerciante e da comunidade comercial; incrementou a circulação de
dinheiro através das trocas mercantis; incentivou a produção destinada ao mercado,
trazendo conseqüências profundas para o fechado mundo feudal. Desenvolveu-se a
tendência, em algumas regiões, a substituir-se a prestação de serviços por um pagamento
em dinheiro e a arrendar-se a propriedade senhorial por dinheiro ou a fazer o seu cultivo
mediante mão-de-obra assalariada.
As cruzadas foram outro fator importante no crescimento do comércio e da
riqueza e na circulação de novas idéias, adquiridas no contato com os povos e culturas
islâmicos. Decorrência do aumento do comércio foi o crescimento das cidades,
33
transformadas em entrepostos mercantes e centros de produção manufatureira. A existência
nas cidades e as relações comerciais contrastavam com a vida no campo. Enquanto as
relações no campo tendiam a ser mais estáticas, a vida nas cidades — com comércio de
curta e longa distância — exigia grande dinamicidade dos seus agentes e uma abertura ao
diferente, ao novo. O mútuo contato dos homens, facilitado e intensificado nas
aglomerações urbanas, tendia, por si só, a despertar o desejo de mudança em relação ao
fechado mundo feudal. A população das cidades e do campo passou a desejar e reivindicar
a liberdade de ir e vir quando e para onde lhe aprouvesse; dispor livremente das terras; ter
os seus próprios tribunais para julgamento das pessoas e das querelas civis,
independentemente dos tribunais feudais: Também desejava fixar os seus impostos de
conformidade com as suas próprias conveniências, livrando-se dos tributos, multas e
contribuições feudais que dificultavam a atividade econômica. Pacificamente ou em luta
aberta, as cidades conquistaram a sua liberdade em relação ao senhor feudal. O grau de
liberdade dessas cidades não era uniforme, antes variou consideravelmente, havia desde as
cidades independentes, como as repúblicas italianas, até aquelas que só superficialmente
conseguiram se desvencilhar do controle do senhor feudal.
Qualquer que tenha sido o grau de independência da cidade medieval, esta
foi, certamente, o lugar onde se processaram as mudanças técnicas e espirituais que, após
um longo tempo de maturação, deram origem ao mundo moderno. Segundo Dobb (1981:
79) a influência desintegradora do crescimento do mercado sobre o mundo feudal pode ser
identificada, em grande parte, com o surgimento de cidades como organizações
corporativas, ao passarem a possuir relativa independência econômica e política em relação
ao senhor feudal. Enquanto a pressão da exploração feudal e a escassez de terras para o
cultivo e o pastoreio estimularam o êxodo dos camponeses para as cidades, estas
34
constituíam-se por si mesmas em um lugar de liberdade, numa sociedade que não era livre,
em fator de atração sobre as populações rurais que desejavam fugir às inúmeras
contribuições feudais, desempenhando, destarte, papel fundamental no declínio do
feudalismo.
As novas condições econômicas e sociais decorrentes do crescimento do
mercado e do crescimento das cidades tenderam a modificar fortemente as relações de
produção e o crescimento do trabalho livre do comerciante e do artesão.
Para Kranzberg e Gies (1991: 67), um dos fenômenos mais surpreendentes
da alta Idade Média é o reaparecimento das antigas corporações de ofício. Embora não se
saiba a origem das corporações medievais, a proliferação de atividades especializadas e de
artesãos na Europa, nos séculos XI e XII, foi acompanhada do renascimento ou da
fundação de uma grande quantidade de corporações. Estas tinham como objetivos básicos
prevenir a concorrência desleal, proteger o mercado corporativo e estabelecer o controle da
qualidade dos artigos produzidos pelos trabalhadores especializados pertencentes às
corporações.
Em decorrência das mudanças ocorridas na maneira de trabalhar, durante a
Idade Média, seria razoável esperar uma alteração na atitude dos homens em relação ao
trabalho humano, contudo só entre os pensadores do momento histórico seguinte – o
Renascimento – essa mudança começou a se tornar clara.
2:3 O TRABALHO NO RENASCIMENTO
O Renascimento é fase decisiva da cultura ocidental. Teve início na Itália e
disseminou-se posteriormente por outros países europeus. O interesse do homem foi
35
transferido do além, da vida futura após a morte, para o “aqui-e-agora”, para a vida vivida
na terra, no entanto, isso não significava uma volta pura e simples aos modelos clássicos
do paganismo, como chegaram a pensar alguns, certamente com base na ânsia de os
renascentistas redescobrirem e imitarem os valores do passado e lerem os clássicos que
lhes pareciam revelar a verdade. Platão, Cícero e Sêneca, no entanto, foram usados para os
propósitos dos humanistas que os redescobriram e que neles buscaram apoio para as suas
próprias teses, sem a preocupação de uma leitura sistemática e situada.
Segundo Sciacca (1968: 7), “o Humanismo, nascido na Itália num clima
espiritual e cultural acentuadamente cristão e ainda católico, longe está das decisivas
tentações da heterodoxia. Seus anseios de renovação, suas tentativas de crítica, suas
aspirações de liberdade são, indubitavelmente, fermentos novos que o distinguem da Idade
Média e da Escolástica, mas são ainda elementos ativos de uma viva concepção cristão-
católica de vida”. Na visão do mencionado autor, teria sido impossível uma volta pura e
simples às concepções do paganismo, após treze séculos de cristianismo, como algumas
correntes historiográficas modernas pretendem ver, uma antítese entre o Humanismo
renascentista e a Idade Média; houve isto sim, uma mistura de ruptura e continuidade,
como costuma acontecer em momentos de transformação radical durante os quais o novo
muitas vezes brota do velho ou pelo menos está enraizado na antiga tradição.
Entre os maiores humanistas do Renascimento, encontram-se homens como
Pico della Mirandola, Giordano Bruno e Tommaso Campanella, cristãos devotos, muito
embora não se submetessem aos estreitos limites da visão da Igreja Medieval. É justamente
entre os humanistas renascentistas que começam a surgir novas idéias a respeito do
trabalho. Esse humanismo leva a uma valorização do homem em todos os aspectos. Em
Pico della Mirandola, que Sennett (2001: 121) diz ser a primeira voz moderna do homo
36
faber), o homem, criado por Deus em completa liberdade, pode-se transformar no que
quiser, dependendo apenas da sua vontade e do seu empenho. Tem-se aqui algo bem
diverso do que se observa no mundo antigo, a exaltação da ação considerada não no
sentido grego de estar entre os homens, de participar das assembléias, de compartilhar da
administração da cidade. O agir renascentista é pragmático e significa um estar no mundo,
participando das decisões que afetam o viver cotidiano, o que implica tanto as sublimes
criações do espírito, quanto a fabricação de instrumentos como arados, barcos, armas.
Segundo Giordano Bruno, apud Battaglia (1958: 109), o ócio é condenado.
Na obra Spaccio della bestia trionfante, diz ele: “Na idade de ouro, pois, os homens não
eram, pelo ócio, mais virtuosos do que, até o presente, são virtuosos os animais; e talvez
fossem mais estúpidos que estes. Ora, havendo entre eles, pela emulação da atos divinos e
pala adaptação a encargos espirituais, nascido as dificuldades, surgindo as necessidades,
aguçaram-se os engenhos, inventaram-se as indústrias, descobriram as artes... .” O
trabalho é, pois, criador da vida plenamente humana, mas não é todo trabalho que é
louvado. O trabalho em si mesmo não é um valor absoluto. Bruno distingue o trabalho do
homem superior — o herói, o gênio — daquele executado pelo homem comum. O trabalho
dos primeiros é elevado, tendente à conquista de uma vida justa, em contato com a verdade
e o divino; o do segundo, baixo, vil, destinado à satisfação das necessidades materiais e ao
gozo dos instintos, sendo necessária a existência dos homens de baixa condição para que
possa florescer a filosofia, a ciência e a arte por meio do homem de espírito elevado. O
trabalho se legitima apenas enquanto possibilita a existência do homem superior.
Campanella já tem uma visão sobre o trabalho mais próxima daquela que
viria a prevalecer nos séculos seguintes. Na sua obra Cidade do Sol, delineia, numa
sociedade utópica, um sistema de educação fundado no saber e no trabalho. A educação
37
não se exaure no saber intelectual, comportando também o treinamento esportivo, a
preparação militar e o aprendizado dos ofícios. Para ele, não há estudo, por mais elevado
que seja, que prescinda do atendimento às atividades manuais. Ele não faz distinção entre
ofícios especulativos e ofícios mecânicos, reservando o trabalho intelectual aos homens
superiores e o trabalho manual aos deserdados, com o faz Giordano Bruno. De acordo com
Campanella (194?, : 35), “ninguém se considera diminuído ao servir à mesa, na cozinha
ou nas enfermarias: cada função é tida como um mister, e, a seu ver, todos os atos
praticados pelas diferentes partes do corpo humano são igualmente honrosos.
Não têm o sórdido costume de possuírem servos, bastando-lhes e, muitas
vezes sendo até excessivo, o próprio trabalho”.
O pensamento de Campanella é antecipatório, pois chega mesmo a
preconizar a redução da jornada de trabalho para menos de quatro horas por dia, mediante
a divisão dos ofícios entre todos.
38
CAPÍTULO III
3. A IDÉIA DE TRABALHO NA REFORMA PROTESTANTE
A Reforma foi um movimento religioso fundamental para o
desenvolvimento do mundo moderno. Desse movimento interessam-nos, sobretudo e para
os objetivos da presente dissertação, as mudanças ocorridas na concepção dos homens a
respeito do trabalho. Como vimos anteriormente, para os primeiros cristãos, o trabalho era
encarado como moralmente neutro, apesar da posição de São Paulo de que não deveríamos
constituir um ônus para os irmãos, sendo um dever trabalharmos para o nosso sustento.
Entretanto, se alguém dispunha de riquezas suficientes, poderia viver isento de trabalho,
sem que tal conduta merecesse censura de quem quer que seja. Na Idade Média, o trabalho
continua a ser encarado como pena e, no Renascimento, apesar de alguns dos seus mais
esclarecidos espíritos esposarem uma concepção diferente a respeito do trabalho, este não é
valorizado por si mesmo.
Com Lutero, homem em muitos aspectos ainda ligado à Idade Média e para
quem o trabalho era “remedium peccati”, ocorre uma mudança decisiva na idéia de
trabalho. Em função da desvalorização da vida monástica, considerada por ele como uma
falta de carinho egoísta pelo homem e pelo mundo, concebe a idéia de que no trabalho
secular é que se desenvolve a verdadeira vocação do homem no serviço de Deus e do
próximo. Esse conceito de vocação, segundo Weber (1996b: 53), manifesta-se como
dogma em todos os ramos do Protestantismo.
39
Com Calvino e o Calvinismo e com os demais ramos do protestantismo
ascético – Metodismo, Pietismo e as seitas derivadas do movimento Batista5 –, o conceito
de vocação encontra-se intimamente ligado ao dogma da predestinação. Para esses ramos
do Protestantismo, o homem está predestinado por Deus, desde sempre, para a salvação
eterna ou a eterna condenação, sendo imperscrutáveis os desígnios divinos. As boas obras
não contribuem para a obtenção das graças de um Deus bondoso, capaz de se comover com
o esforço e o arrependimento dos homens, seus filhos. Também não lhes vale a
intermediação de uma Igreja ou de um sacerdote como intercessor entre o homem e Deus,
nem tampouco o recurso à confissão e às fórmulas mágicas do ritual, através das quais os
pecados são perdoados e a reconciliação do pecador com a divindade ofendida poderia
sempre ocorrer. “No que era, para o homem da época da Reforma a coisa mais importante
da vida – sua salvação eterna – ele foi forçado a, sozinho, seguir seu caminho ao encontro
de um destino que lhe fora designado na eternidade”. (WEBER, 1996b: 72). A filiação à
verdadeira Igreja, embora necessária para a salvação, não se destinava a oferecer consolo
ao crente. A relação deste com Deus era vivida em isolamento espiritual.
O mundo, para o puritano, existe apenas para a glória de Deus. O cristão
eleito encontra-se no mundo somente para aumentar essa glória, cumprindo os ditames, os
mandamentos de Deus, e, para tanto, deveria empregar todas as suas forças e lhe dedicar
toda a sua existência. Toda atividade do cristão é precipuamente uma atividade para a
maior glória de Deus, o amor ao próximo é expresso no cumprimento das tarefas diárias
que nos são impostas pelas necessidades, pois quem trabalha para si também trabalha para
os demais.
5 Trataremos todos os ramos do Protestantismo ascético englobadamente, pois as diferenças de cada um, para os objetivos da presente dissertação, não são significativas.
40
O problema de saber se estamos entre os escolhidos, numa época em que a
salvação após a morte era a mais importante das questões com que os homens se
defrontavam, era decisivo. Como todos são predestinados ou à salvação, à vida eterna, ou à
condenação, à morte eterna, é dever do crente considerar-se um dos eleitos, pois a falta de
confiança equivale à falta de fé. Para alcançar-se essa autoconfiança uma atividade
profissional intensa era recomendada, pois apenas ela afugentava as dúvidas religiosas e
dava a certeza da graça.
As boas obras não se prestavam à obtenção da salvação, entretanto elas
eram indispensáveis como sinal de que aqueles que as praticavam estavam entre os eleitos.
O trabalho penoso e infatigável era obrigação de todo cristão e tinha como objetivo a glória
de Deus e não a satisfação dos desejos do homem e nem o gozo dos prazeres que os frutos
do trabalho pudessem comprar. Trabalhava-se porque o labor intenso era do agrado do
Senhor. Eis aí a glorificação do trabalho pelo trabalho, ainda tão cara ao nosso tempo.
De acordo com Weber (1996b: 81-82), “o Deus calvinista requeria de seus
fiéis não apenas “boas obras” isoladas, mas uma santificação pelas obras coordenadas
em um sistema unificado”. Tal atitude levou à conduta moral do homem comum a perder o
seu caráter assistemático, sujeitando-o a um método sólido, fundamental para o moderno
mundo empresarial, tanto do ponto de vista do empresário, quanto do lado do trabalhador.
A vida do crente, que era dirigida unicamente para a salvação, encontrava-se
completamente racionalizada do ponto de vista mundano, com o objetivo exclusivo de
aumentar a glória de Deus na terra. Tal racionalização, entretanto, permeava todos os
outros aspectos da atividade do crente, e a conseqüência indireta, não planejada, era a
racionalização de toda a vida econômica.
41
Se o trabalho árduo leva à riqueza, o descanso e o gozo estão vedados ao
verdadeiro crente, pois o desfrute da riqueza, mediante o ócio e os prazeres sensuais,
significa desistência da procura de uma vida santificada. O descanso de uma vida
consagrada a Deus se dá no outro mundo, neste, o homem deve trabalhar o tempo todo na
atividade que lhe foi destinada pela divina providência, isto é, na sua vocação. A perda de
tempo é, assim, considerada um pecado grave.
Enquanto Santo Tomás de Aquino, interpretando a passagem de São Paulo –
quem não quer trabalhar não tem direito a comer (TESSALONICENSES, III, 10) –,
conclui que o trabalho é necessário para o sustento do indivíduo, sendo lícito a quem tem
posses não trabalhar, o protestantismo ascético concebe o trabalho como um dever de
todos, pobres ou ricos, porque todos têm uma vocação recebida da providência e devem
reconhecê-la e exercê-la para a maior glória de Deus. Dessa maneira, o trabalho converte-
se na própria finalidade da vida, de modo que, como afirma Battaglia, “caindo pouco a
pouco a finalidade transcendente, o trabalho aparece na sua crueza, como dever
imotivado, trabalho pelo trabalho...”. (BATTAGLIA, 1958: 138-139).
Apesar da valorização do trabalho em si, não é qualquer ocupação que
desfruta de alto apreço. Correlata à idéia de vocação encontra-se a idéia de trabalho
especializado, realizado ordenadamente, dentro de uma vocação destinada por Deus a cada
indivíduo. O trabalho irregular, que o homem comum muitas vezes é obrigado a aceitar,
deve sempre ser encarado como transitório, pois lhe falta o caráter sistemático requerido
pela concepção de ascetismo secular. “Na ética quaker é a vida profissional do homem que
lhe dá certo treino moral, uma prova do seu estado de graça para a sua consciência que se
expressa no zelo e no método, fazendo com que ele consiga cumprir a sua vocação. Na
42
concepção puritana de vocação a ênfase sempre é posta nesse caráter metódico de ascese
vocacional...”. (WEBER, 1996b:115).
A ética protestante que, segundo Weber, está na origem do espírito do
moderno capitalismo naturalmente não era uma ética do homem de negócios, do
empresário; o homem comum, o simples trabalhador, também estava imerso em tal ética,
uma vez que a religião era de todos. O trabalho corriqueiro também era glorificado, desde
que o trabalhador fosse fiel a seu ofício, no exercício da vocação que lhe foi destinada por
Deus, independentemente das riquezas que pudessem advir do seu labor. A vocação do
homem comum para o trabalho era correspondente à atitude aquisitiva do empresário. A
ascese religiosa era responsável pela existência de trabalhadores sóbrios, industriosos e
disciplinados que tinham no trabalho a finalidade da vida desejada por Deus. Estava
preparado, desse modo, o ambiente cultural que levaria ao enorme desenvolvimento
material dos séculos seguintes.
43
CAPÍTULO IV
4. MUDANÇAS NA CONCEPÇÃO DO TRABALHO NA REVOLUÇÃO
INDUSTRIAL
No capítulo anterior expomos, com base no ensaio de Weber A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo, a transformação na maneira de encarar o trabalho
humano, ocorrida inicialmente, nos países mais desenvolvidos da Europa e que depois se
estendeu para o que é hoje os Estados Unidos da América. Juntamente com as influências
espirituais que levaram às enormes transformações culturais da sociedade ocidental,
estudadas por Weber, outras de cunho econômico e político estiveram em ação e influíram
poderosamente no rumo dos acontecimentos que plasmaram o mundo moderno e a
sociedade em que nossas vidas se desenvolvem. Weber não ignora os demais fatores. No
ensaio citado, afirma: “não se pode aceitar a tese ou doutrina segundo a qual o espírito do
capitalismo somente teria surgido em conseqüência de determinadas influências da
Reforma, ou que o Capitalismo, como sistema econômico, seria um produto da Reforma”.
(WEBER, 1996b: 61). Entretanto a obra toda é uma refutação à tese de Marx (1977: 24),
exposta no prefácio de Contribuição à Crítica da Economia Política, nos seguintes termos:
“O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social,
política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é
o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência”.
Para Marx, é a infra-estrutura econômica que determina a superestrutura,
denominada por ele ideológica e que Weber prefere chamar de espiritual. Na Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo, Weber parte do estudo das transformações
ocorridas na maneira de os homens se relacionarem com a divindade e as conseqüências
44
dessa nova visão espiritual – ideológica, na terminologia marxiana – na gênese do espírito
do capitalismo moderno, caracterizado pela disciplina ascética na realização das atividades
cotidianas, pela sistematização do trabalho e pela racionalização de toda a vida pessoal e
profissional; na transformação do antigo ideal monástico de vocação, considerado com tal
a dedicação total ao serviço de Deus, com o afastamento do mundo e o enclausuramento
tão característicos do catolicismo medieval; em serviço de Deus nas tarefas do mundo, na
realização de um trabalho encarado como uma profissão designada por Deus para cada
homem e exercida como vocação, unicamente para a glorificação divina. Esses foram
fatores espirituais decisivos para a existência do mundo moderno.
Entre os fatores materiais que contribuíram para as enormes transformações
do mundo, a partir do fim da Idade Média, como já mencionado, tem-se o crescimento da
população, das cidades, o incremento do comércio, com o conseqüente desenvolvimento
do uso da moeda, das ciências e das técnicas, com o aperfeiçoamento de instrumentos já
existentes e a criação de novos. Contribuições da maior relevância para as transformações
apontadas no presente estudo foram a expropriação dos produtores, com a cercamento das
terras comunais e a expropriação dos bens da Igreja pelos príncipes que aderiram à
Reforma, levando à concentração da propriedade da terra nas mãos de poucos e à expulsão
dos camponeses das terras cultivadas e em que viviam com as suas famílias, desde tempos
remotos, e das quais tinham a posse sob diversos títulos.
De acordo com Marx (1981: 19), na Inglaterra, a servidão da gleba tinha
desaparecido de fato nos fins do século XIV e, a partir daí e principalmente no século XV,
a maioria da população compunha-se de camponeses livres cultivando a sua própria terra,
protegidos por títulos feudais que lhes asseguravam o direito de posse. Com o crescimento
dos lanifícios, o parlamento e os grandes senhores unidos deram início à expulsão dos
45
camponeses das terras de cultivo, destinando-as às pastagens para as ovelhas cuja lã
abastecia a próspera indústria manufatureira. O desapossamento do camponês lançou uma
grande massa de homens na busca desesperada por meios de subsistência e foi essa massa
de deserdados que formou o exército de mão-de-obra barata que abastecia a florescente
indústria inglesa. Com o desapossamento dos camponeses, a indústria passou a contar com
uma abundante força de trabalho de homens, mulheres e crianças, famílias que, em
desespero, aceitavam qualquer tipo de trabalho, nas condições mais aviltantes e em
ambientes os mais infectos e insalubres, por salários que mal lhes permitiam continuar
vivos.
O camponês, acostumado a sua vida tradicional, não se adaptava às
condições de trabalho exigidas pelos capitalistas nas manufaturas. Tendo terra para cultivar
e criar alguns poucos animais domésticos, como porcos, galinhas e bois, dificilmente
trocaria o modo de vida ao qual estava habituado pelo trabalho assalariado, em regime de
quartel, da manufatura em expansão. A sua redução à mais absoluta penúria, de modo a
não lhe restar mais nada, a não ser a sua força de trabalho, foi uma das condições
essenciais para o surgimento do moderno proletariado, da moderna força de trabalho
disciplinada, submetida a rotinas precisas, a rígidas jornadas de trabalho que, no início do
desenvolvimento do capitalismo moderno, prolongavam-se além das doze horas por dia. O
trabalho tradicional, na Idade Média, era realizado – do ponto de vista moderno – de forma
assistemática. Havia quase tantos dias de descanso quantos eram os dias de labor. Segundo
Arendt (1993, : 45), “calcula-se que, durante a Idade Média, as pessoas raramente
trabalhavam mais que a metade dos dias do ano. Havia 141 feriados oficiais. O
monstruoso crescimento do número de horas de trabalho é típico do início da revolução
industrial, quando os trabalhadores tiveram que competir com as máquinas recém-
46
introduzidas”. Semelhante sistema não favorecia a nascente indústria que para se
desenvolver necessitava da disciplina do trabalhador e a sua completa submissão às rotinas
do processo produtivo e a separação do produtor dos meios de produção: terra e a posse
dos instrumentos de trabalho.
As mudanças nas mentalidades proporcionadas pelo protestantismo
ascético, combinadas com o desapossamento do camponês e a sua expulsão da terra,
deixando-o completamente dependente da única coisa que ainda lhe restava e que poderia
ser vendida no mercado, a sua força de trabalho, moldaram o mundo do trabalho como o
conhecemos: o trabalho como atividade assalariada, efetuada para outrem, em
contraposição ao trabalho realizado pelo trabalhador independente, que trabalha para si
próprio. Hoje, trabalho e emprego são quase sinônimos.
4.1 MUDANÇAS A RESPEITO DO TRABALHO NA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL
Hobsbawm (1982: 45) afirma que a Revolução Industrial foi provavelmente
o mais importante acontecimento da história do mundo, pelo menos desde a invenção da
agricultura e das cidades. Argumento discutível, por não considerar invenções
fundamentais, como a escrita, usada inclusive como critério diferenciador de sociedades,
considerando-se aquelas que conhecem a escrita como portadoras de maior complexidade e
maior grau de desenvolvimento, em contraposição às sociedades que não dispõem de
escrita (ágrafas) ou a invenção da roda. Por outro lado, havia quadros sociais já
estabelecidos antes do aparecimento e uso do intensivo da maquinaria, como a perversão e
depois o abandono dos regulamentos corporativos que levaram ao desabrochar da grande
produção. Seja como for, a Revolução Industrial, ocorrida na Inglaterra e que teve seu
47
maior desenvolvimento entre as décadas de 1780 e 1800, é um acontecimento histórico de
importância indiscutível e mudou não só a Inglaterra, pois outros países da Europa e os
Estados Unidos da América também experimentaram rápido crescimento industrial,
levando as atividades fabris a prevaleceram sobre as atividades agrárias e pastoris. Essas
transformações foram de tal porte e deram-se com tamanha rapidez, que o termo
“revolução” é inteiramente adequado para denominar os acontecimentos que
transformaram radicalmente a economia, a sociedade e as idéias dos homens a respeito do
mundo em que viviam. Passou-se de uma concepção mais ou menos estática do mundo, na
qual as coisas estavam destinadas a permanecer como o que sempre foram, de uma geração
a outra, para uma concepção do progresso como lei natural, na qual o desenvolvimento e as
mudanças eram encarados não só com naturalidade, senão como necessários.
A Revolução Industrial deu a partida para o que se chama, em economia, de
crescimento auto-sustentável e, após esse evento, as mais diversas sociedades foram
capazes de aumentar constantemente a produção de mercadorias, serviços e empregos, até
que os países mais desenvolvidos, especialmente no segundo pós-guerra, conseguiram
oferecer trabalho a praticamente todos os que desejassem, trabalho que se deu na forma de
emprego assalariado. De conformidade com Gorz (1987: 9-10), “Trabalho hoje em dia
designa praticamente apenas uma atividade assalariada. Os termos “trabalho” e
“emprego” tornaram-se equivalentes: o trabalho não é mais alguma coisa que se faz, mas
algo que se tem”. Diferentemente do que ocorre hoje, no passado a maior parte da
população vivia no campo e cuidava da terra e dos animais de criação, trabalhando para si
próprios em atividades, na maior parte das vezes, de mera subsistência ou na produção de
objetos de uso pessoal e familiar.
48
Foi, sobretudo, a partir do século XIX que se desenvolveu o trabalho
abstrato, segundo Marx, realizado com o fim de se obter outra coisa que não um benefício
direto em serviços ou bens para o próprio trabalhador ou seus dependentes. O trabalho
abstrato é equiparado a uma mercadoria que se vende no mercado. O homem trabalha a fim
de conseguir uma renda e não o que foi diretamente obtido com a energia despendida.
Para Marx o trabalho assume uma dimensão ontológica. A atividade
material do homem, decorrente da criação dos instrumentos que fazem a mediação entre o
homem e a natureza e dos homens entre si, constitui a mais importante forma de
objetivação do ser social. É pelo trabalho que o homem separa-se da natureza, pois a
fabricação de objetos imprime uma mudança na natureza circundante e, como esse é o
resultado das suas condições materiais de existência, a mudança destas implica a mudança
do homem. É o homem como criador de si mesmo, por meio do trabalho.
Além de origem do ser social, o trabalho, para Marx, é a fonte da economia,
pois todo valor econômico deriva do trabalho: valores de uso como fruto do trabalho
concreto; valores de troca procedente do trabalho abstrato. Já o capital não passa de
trabalho acumulado.
O trabalho, porém, não foi, desde sempre, um valor em si, uma fonte de
realização pessoal e nem tampouco fonte de vínculo social. Essas idéias a respeito do
trabalho nasceram com o protestantismo ascético e se desenvolveram com o grande
crescimento da indústria e a propagação do trabalho assalariado. Na obra de nosso escritor
maior, Machado de Assis, que seguramente reflete o pensamento da época, o trabalho não
é valorizado. Faoro (1988: 209), em livro memorável no qual analisa o Segundo Império
sob a ótica do grande escritor, observa: “A herança é a chave dos cabedais do chamado
capitalista, herança presente ou futura. Herdeiros foram Brás Cubas, Bentinho (D.
49
Casmurro), Félix (Ressurreição), Jorge (A Mão e a Luva), ou outro Jorge (Iaiá Garcia),
Estácio (Helena), Rubião (Quincas Borba) e muitos outros, de menor envergadura. O
traço comum dessa legião de filhos e sobrinhos aquinhoados pela morte virá do horror ao
trabalho; todos cultivam o bom e elegante ócio”.
No Brasil, essa mentalidade contrária ao trabalho adentra o século XX e
penetra no imaginário popular através de uma música de muito sucesso na primeira metade
do século chamada Acertei no Milhar, de Geraldo Pereira e Wilson Batista, que diz em um
dos seus versos: “Etelvina minha filha... acertei no milhar ganhei quinhentos contos não
vou mais trabalhar...” . Mesmo em países protestantes, como a Alemanha, tal mentalidade
não deveria ser assim tão disseminada. Mann (198?: 45), na Montanha Mágica, diz do
personagem Hans Castorp que este devotava ao trabalho um respeito religioso, porém “no
seu íntimo gostava mais das horas de lazer, livres do lastro de chumbo das tarefas
penosas”. E não se pense que esse personagem fosse católico ou livre pensador, pertencia
a uma família ligada à igreja reformada.
O emprego garantido a todos, realizava-se através do pleno emprego, forma
histórica, aliás, nunca universalizada, pois os trabalhadores dos países pobres sempre se
defrontaram com grande escassez de empregos. Num país como o Brasil, que só
tardiamente iniciou o seu processo de industrialização que em termos práticos, ocorreu
após a Revolução de Trinta, o pleno emprego nunca passou de uma aspiração. Acreditava-
se que o desenvolvimento econômico, em um determinado momento futuro, geraria
empregos para todos. Essa esperança começa a mostrar-se uma quimera, mesmo nos países
mais ricos, muito embora vários governantes ainda não encarem o problema de frente. Pelo
menos nos discursos oficiais, todos eles pregam o crescimento econômico como remédio
para o desemprego, mas essa alternativa não vem cumprindo o papel desejado.
50
O debate está instaurado. Intelectuais têm levantado a questão e muito se
tem discutido a respeito das mudanças palas quais passa a economia e o mundo do
trabalho.
51
SEGUNDA PARTE
CAPÍTULO V
5. DESEMPREGO ESTRUTURAL; 5.1 PASSAGEM DA SOCIEDADE
INDUSTRIAL PARA A SOCIEDADE PÓS-INDUSTRIAL – MUDANÇA DE
PARADIGMA; 5:2 A GLBALIZAÇÃO E O NOVO CONCEITO DE IMPÉRIO
5. DESEMPREGO ESTRUTURAL
O Horror Econômico, O Fim dos Empregos, O Colapso da Modernização
dentre outras obras, dão o tom da discussão a respeito das avassaladoras mudanças que se
observam no mundo do trabalho, conseqüência do emprego maciço dos processos de
automação e informatização da indústria e dos serviços, das novas formas de produção e
das novas técnicas administrativas e gerenciais.
O livro da ensaísta francesa Forrester, Horror Econômico, tem o grande
mérito de advertir para os graves problemas que afligem a humanidade, em conseqüência
do desemprego causado pelo uso intensivo de novas tecnologias. Segundo ela, “um
desempregado, hoje, não é mais objeto de uma marginalização provisória, ocasional, que
atinge apenas alguns setores; agora ele está às voltas com uma implosão geral, com um
fenômeno comparável a tempestades, ciclones e tornados, que não visam ninguém em
particular, mas aos quais ninguém pode resistir. Ele é objeto de uma lógica planetária que
supõe a supressão daquilo que se chama trabalho; vale dizer, empregos”. (FORRESTER,
1997: 11). Apesar dos seus méritos inegáveis, a obra não contém qualquer dado ou estudo
aprofundado sobre os problemas que levanta. Forrester é escritora, sem compromisso com
verdades factuais imediatas ou com estudos sistemáticos a respeito das causas que levaram
o capitalismo à adoção de processos produtivos que tornam o homem supérfluo. O livro é
52
um libelo e seguramente atingiu seu objetivo: chamar a atenção sobre os problemas não
apenas do desemprego como era visto no passado, momento entre um emprego que se
perdia ou deixava e outro emprego que se conseguia, mas principalmente sobre outro
problema muito mais grave, o de milhões de seres humanos que, dispensados do emprego,
não mais conseguem outro ou sequer um trabalho, sob qualquer outra forma.
Ao contrário do livro de Forrester, o livro de Rifkin, O Fim dos Empregos, é
obra bem documentada, baseada em dados de pesquisas sobre automação, novos processos
produtivos – reengenharia – e aplicação de alta tecnologia à produção. A tese central do
livro de Rifkin é a de que os empregos estão desaparecendo a grande velocidade e que o
fenômeno tende a se agravar. Nas suas palavras, “enquanto as primeiras tecnologias
industriais substituíram a força física do trabalho humano, trocando a força muscular por
máquinas, as novas tecnologias baseadas no computador prometem substituir a própria
mente humana, colocando máquinas inteligentes no lugar dos seres humanos em toda a
escala da atividade econômica”. (RIFKIN, 1995: 5).
Segundo esse autor, mais de 75% da força de trabalho das nações
industrializadas desempenham tarefas repetitivas e muitas delas podem ser substituídas por
máquinas automáticas e computadores, o que significa enorme ameaça de desemprego para
esse tipo de trabalhador.
As esperanças alimentadas por políticos e economistas de que os empregos
eliminados na indústria possam ser substituídos por outros, criados no setor de serviços,
provavelmente se revelarão ilusórias, pois a automação também leva à eliminação de
trabalho na prestação de serviços. De acordo com o autor, na década anterior à de
lançamento do livro, o qual é de 1994, mais de três milhões de postos de trabalho
administrativos foram suprimidos nos Estados Unidos.
53
A utopia de um mundo sem trabalho, sonho antigo do homem e que hoje se
vislumbra como possibilidade real, não tem tido o poder de mobilizar as energias da
humanidade para a construção de um futuro de liberdade. Ao contrário, a ausência de
trabalho tem levado à marginalização de contingentes cada vez maiores de pessoas,
lançando-as ao desespero e aprofundando a divisão entre os que têm e os que não têm
trabalho e renda, entre os “incluídos” e os “excluídos” da sociedade de consumo, com o
conseqüente esgarçamento do tecido social.
Sobre este último aspecto, Rifkin (1995: 239) afirma: “Alguns especialistas
militares acreditam que estamos entrando em um novo e perigoso período da história
caracterizado pelo que eles chamam de conflitos de baixa intensidade. No novo ambiente
de conflito de baixa intensidade, o exército e as forças policiais nacionais tornar-se-ão
cada vez mais impotentes para dominar ou mesmo coibir a violência e darão lugar às
forças de segurança particulares que serão pagas para garantir zonas seguras para as
classes de elite da aldeia global de alta tecnologia”. Não é isso que já se verifica no
Brasil, onde os mais abastados se escondem cada vez mais em condomínios fortificados,
cercam-se de seguranças particulares, usam automóveis blindados e os muito ricos
deslocam-se de helicóptero entre os seus locais de moradia e os locais de trabalho?
As preocupações a respeito da diminuição das oportunidades de trabalho
não são novas. Um espírito mais lúcido já advertia, em 1958, para o fato de que a
automação esvaziaria as fábricas e libertaria a humanidade do fardo do trabalho e
acrescentava que essa libertação era apenas aparente, pois a era moderna glorifica o
trabalho, transformando toda a sociedade numa sociedade operária que desconhece as
atividades superiores a serem incrementadas com a conquista dessa liberdade. (ARENDT,
1993: 12).
54
Com a rápida diminuição da necessidade de trabalho humano poderíamos
chegar ao absurdo de viver em uma sociedade de trabalhadores na qual não haveria
trabalho. Desse modo, não seria apenas o pacto social que teria de ser repensado, mas as
próprias bases da sociedade ocidental moderna teriam de mudar.
O livro de Kurz, O Colapso da Modernização, assume tons apocalípticos
vendo no fim do denominado “socialismo real” o prenúncio da superação da atual
sociedade produtora de mercadorias, o que não se daria apenas com a administração das
crises por parte dos Estados, mas por um movimento social mo qual o uso da força não
estaria descartado uma vez que “não se tornou desnecessária, apesar de todas as
diferenças resultantes do nível mais elevado de socialização, a forma geral das históricas
revoluções burguesas, inclusive da Revolução de Outubro”. (KURTZ, 1999: 210). Em
outro ponto da sua obra, Kurz esclarece que a revolução de que fala não seria do tipo em
que uma classe tivesse de derrotar outra antagônica. Qualquer violência resultante dessa
revolução dar-se-ia porque o sistema produtor de mercadorias não seria abandonado
voluntariamente por seus representantes.
Em 1995, foi constituída na França uma comissão para estudar as
perspectivas do trabalho e do emprego nos vinte anos seguintes. Tal comissão, presidida
por Jean Boissoannat, apresentou um interessante e bem fundamentado relatório, publicado
no Brasil pela LTr sob o título 2015 Horizontes do Trabalho e do Emprego. No prefácio
desse relatório, o presidente da comissão distingue três diferentes funções do trabalho: a
primeira seria a de produção, pela qual ele cria riqueza; a segunda, de distribuição, pela
qual o trabalhador recebe um preço pelo seu trabalho; a terceira seria uma função de
inserção social.
55
De conformidade com o mencionado relatório, todas as funções do trabalho
encontram-se em rápida transformação. O desenvolvimento econômico modifica a função
de produção, deslocando trabalhadores de um setor para outro da economia, por exemplo,
da industria para os serviços. O emprego intensivo de máquinas reduz a necessidade de
trabalho humano em amplos setores da economia e a reorganização dos processos
produtivos exige novas qualificações que não são apenas técnicas. Essas mudanças não
afetam somente o trabalho e o emprego, mas têm conseqüências na subjetividade dos
trabalhadores. 6
As mudanças na função de produção, com o deslocamento de trabalhadores
de um setor para outro da economia, as alterações nos processos produtivos e a
substituição acelerada de trabalhadores por máquinas cada vez mais sofisticadas – as
chamadas máquinas inteligentes – têm afetado o nível de emprego, promovendo a
fragilização das organizações de trabalhadores, com a conseqüente redução do poder de
pressão e negociação dos que vivem do trabalho, levando a uma diminuição da
participação desses na distribuição da riqueza social que, não obstante, não pára de crescer,
salvo nos momentos de crise.
A questão não é mais de aumentar a produção, de assegurar o crescimento
econômico. Isso, por si só, não é suficiente para integrar as pessoas ao mercado de
trabalho. Ormerod (1996: 169), assevera que as variações da taxa de crescimento
econômico não levam automaticamente a variações do emprego ou do desemprego. As
novas questões que se apresentam e que devem ser resolvidas em futuro não muito distante
têm relação mais com a distribuição da riqueza do que com a sua criação. Isso é verdade
pelo menos para os países desenvolvidos e para os setores dito modernos dos países em 6 SENETT, 2001, aponta as mudanças na subjetividade dos trabalhadores, decorrentes da reorganização do trabalho.
56
desenvolvimento, onde há grande abundância de produtos e serviços, e, se há pessoas
carentes, isso se dá por motivos principalmente políticos e não propriamente econômicos.
Medidas de redução geral da jornada de trabalho podem influir
positivamente na questão do emprego, ocorrendo o mesmo com outras mais difíceis de
implementar, como aquela defendida por algumas lideranças da sociedade, de assegurar
uma renda mínima a cada pessoa, independentemente da prestação de qualquer serviço e
da disposição de procurar trabalho ou não. Tal renda não se confunde com o seguro-
desemprego, pois seria paga até àqueles que nunca estiveram empregados e não
pretendessem sê-lo. Outras medidas, como o aumento da idade em que se começa a
trabalhar, com maior tempo de escolaridade obrigatória, estímulo às mulheres para que
permaneçam mais tempo junto aos filhos, não só logo após o parto, mas durante os
primeiros anos da infância desses, quando a sua presença é mais necessária, podem levar a
alterações positivas na oferta de trabalho.
Entre todas as alterações que vêm sendo advogadas, a que parece mais
importante é aquela que prevê a diminuição da jornada de trabalho. Essa alteração pode ser
geral, atingindo todos os trabalhadores, como aquela implementada na França pela
denominada Lei Aubry, que estabeleceu a obrigatoriedade de as empresas com mais de 20
(vinte) empregados adotarem jornada de 35 (trinta e cinco) horas de trabalho por semana,
a partir de 1º de janeiro de 2000, ou a proposta de redução para 40 (quarenta) horas
semanais da jornada de trabalho dos brasileiros, feitas pelo Partido dos Trabalhadores – PT
– durante a campanha eleitoral de 2002 e que o presidente eleito assegura irá implementar,
provavelmente por via legislativa, todavia, mediante prévia e ampla negociação entre
empregados e empregadores. As reduções de jornada de trabalho também podem dar-se
por categorias ou profissões, atingindo trabalhadores de uma certa idade ou determinadas
57
especialidades, podem ser obtida por via legislativa ou negociada livremente entre
trabalhadores e empresas, diretamente ou por meio de suas associações representativas.
Essas mudanças não são novidade e já vêm ocorrendo em muitas atividades.
É cada vez mais comum o chamado trabalho a tempo parcial, as jornadas flexíveis, em que
se trabalham apenas alguns dias por semana, interessando ao tomador do trabalho não a
força de trabalho em si, senão o resultado da atividade do trabalhador. Talvez mais do que
uma diminuição do trabalho – não negamos que isso ocorra –, as dramáticas mudanças por
que vem passando a sociedade na forma de contratar e remunerar pessoas vêm chamando
mais atenção, levando à perplexidade políticos e estudiosos do tema, como economistas,
sociólogos e juristas. Cocco (2001: 36), assevera: “Veremos que uma das características
do pós-fordismo é a de difundir socialmente o trabalho ao mesmo tempo em que o
emprego formal diminui. Ao desassalariamento formal corresponde, na verdade, uma
expansão do assalariamento de fato”. Para esse autor as mudanças se dariam, sobretudo,
na forma da prestação de serviços sem que houvesse menos trabalho para as pessoas.
Pesquisas quantitativas realizadas por outros, no entanto, apontam em direção diversa.
Boissonnant (1998, : 71) mostra-se que a partir de 1970, o aumento do desemprego na
França foi constante, passando de 2,5% em 1970 para 12,4% em 1994, tendo havido uma
pequena queda entre 1985, quando chegou a 10,2%, e 1990, quando recuou para 8,9%,
voltando a subir em 1992. No entanto, Rands (2001: 87), citando dados publicados por The
Economist, diz que, de 1997 até 2001, foram criados na França cerca de dois milhões de
empregos e que a taxa de desemprego vem declinando no país, estando em 8,7% em
janeiro de 2001. O aumento dos postos de trabalho na França, a partir de 1977 ter-se-ia
dado com a implementação das políticas de redução da jornada, inicialmente com a
58
aplicação da Lei Robim, de 11 de junho de 1996, posteriormente modificada pela citada Lei
Albry.
Inúmeras são as vozes que defendem a redução drástica da jornada de
trabalho como uma das melhores formas de aumentar a oferta de trabalho para todos. O
lema é menos horas de trabalho, para que haja mais trabalho para mais pessoas. Embora
fácil de propor, tal redução não será de fácil implementação, demandando ampla
negociação entre capital e trabalho, além da participação ativa do Estado. Isto porque as
doutrinas neoliberais, ainda hoje em voga, perdem cada vez mais a credibilidade, em
virtude dos desarranjos causados nos países que as aplicaram, mormente naqueles ainda
não desenvolvidos, muitos dos quais levando a sua população a enormes e desnecessários
sofrimentos, em nome de idéias impingidas de fora, criadas por economistas e políticos
que os críticos dizem estarem a serviço de interesses das grandes empresas transnacionais,
industriais e sobretudo financeiras, que pregaram a liberação das economias, a
desregulamentação das relações de trabalho e o absenteísmo do Estado em relação às
questões sociais, a pretexto de que a “mão invisível” do mercado seria capaz de ajustar as
necessidades sociais. Tal pensamento baseia-se na teoria econômica ortodoxa que, de
conformidade com Ormerod (1996: 226), é insustentável. Nas suas palavras, “o cerne do
modelo da economia teórica, o equilíbrio geral competitivo, baseia-se numa visão
inteiramente equivocada do mundo moderno. Os preceitos comportamentais derivados de
um indivíduo autônomo e determinista numa ilha deserta, o Homem Racional Econômico
idealizado pela teoria ortodoxa, não se aplicam “em masse” aos seres humanos de uma
grande economia moderna”. Em relação às ciências sociais e à ciência econômica em
particular também Arendt (1993: 47-59), critica os fundamentos destas que, segundo ela,
pressupõem que os homens comportam-se ao invés de agirem.
59
Os detentores do capital, certos políticos e certos economistas sempre estão
prontos a alegar que uma diminuição na jornada de trabalho pode significar rendimentos
decrescentes do capital, perda de lucros e de competitividade econômica em relação a
outras empresas de lugares onde as jornadas de trabalho permaneçam longas e estafantes.
Ao longo do tempo, porém, o que se verifica é uma constante diminuição da jornada diária,
semanal e anual de trabalho de um máximo de até oitenta horas semanais, atingido na
revolução industrial, para patamares muito mais baixos, principalmente nos países mais
desenvolvidos, e um igualmente constante aumento da produtividade e da renda, tanto dos
capitalistas quanto dos trabalhadores. A riqueza tem aumentado e não diminuído nos países
em que a jornada de trabalho é menor. A França, por exemplo, onde a jornada máxima não
passa de trinta e cinco horas semanais, é o segundo país mais rico da Europa e a quarta ou
quinta economia do mundo, ao passo que o Brasil, com mais do dobro da população, onde
a jornada máxima é de quarenta e quatro horas semanais, figura como nona ou décima
economia mundial, o que demonstra a falácia da argumentação daqueles que são contra a
redução da jornada de trabalho.
A riqueza, como nos ensina a economia política, é uma criação social. No
sistema de produção capitalista, há uma apropriação desigual dessa riqueza, pelos
trabalhadores e pelos detentores dos meios de produção, pelos os capitalistas e pelos que
têm apenas a força de trabalho para vender no mercado. A substituição de homens por
máquinas, ao fazer com que grandes contingentes de pessoas percam os empregos e não
mais consigam trabalho, vem aumentando a desigualdade na distribuição da riqueza, com a
balança pendendo ainda mais em favor dos capitalistas. Graves desequilíbrios na
distribuição da riqueza põem em risco toda a tessitura social, causando graves disfunções
na sociedade, como os crescentes índices de violência urbana, a deterioração dos locais de
60
moradia dos trabalhadores, a desagregação familiar, a perda de valores morais etc.,
originando conflitos velados, ou abertos e generalizados de cujas conseqüências ninguém
está a salvo. Há também um enorme custo social pelo desemprego, e tal custo é suportado
por todos, inclusive pelos mais ricos e privilegiados, mesmo que a maior carga seja
suportada pelos pobres. A Terra, nossa casa comum, ainda é o único planeta habitável, a
nossa única opção de lugar para viver. Enquanto os ricos dos países pobres guardam a
ilusão de que, se mudando para os países ricos, estarão protegidos, os ricos dos países
economicamente desenvolvidos não podem ter a mesma fantasia. Em um contexto diverso
mas ilustrativo do que afirmamos, Hardt e Negri (2001: 407), afirmam: “os Estados
Unidos não são um lugar para onde a Europa ou mesmo o cidadão moderno podem fugir
para resolver a sua inquietação e infelicidade: não existe tal lugar”.
A redução da jornada de trabalho já vem ocorrendo ao longo dos dois
últimos séculos. Na revolução industrial, a carga de trabalho chegava a ser de 14 ou 15
horas por dia no verão e hoje não passa de oito ou menos horas por dia, o que mostra não
ser impossível, quer do ponto de vista político, quer econômico que venha ainda a ser
substancialmente reduzida. No mencionado 2015 Horizontes do Trabalho e do Emprego,
há uma proposta de que a redução da jornada de trabalho dos franceses seja programada
para ocorrer até o ano de 2015, fixando-se em 1.500 horas anuais, das quais 10% sejam
consagradas à formação permanente do trabalhador, isso considerando-se o assalariado que
trabalha em tempo integral. Ao lado do trabalho em tempo integral, temos cada vez mais o
trabalho em tempo parcial, que pode atender tanto aos interesses das empresas quanto dos
próprios trabalhadores. Estes poderiam usar o tempo livre para desenvolver outras
atividades, tais como: formação e aperfeiçoamento profissional, formação e
aperfeiçoamento cultural humanístico, desenvolvimento de atividades profissionais
61
autônomas, desenvolvimento de atividades políticas, prática de esportes, trabalho
voluntário em prol da comunidade ou outras que proporcionem satisfação pessoal.
A proposta de diminuição da jornada de trabalho vai na contra-mão dos
defensores do livre mercado e da ausência do Estado no trato da questão social que alegam
ser uma das causas do desemprego elevado a excessiva regulamentação do trabalho, o que
gera pesados ônus à produção, prejudicando a produtividade das empresas e a competição
interna e internacional. Essa é a ótica dos defensores do neoliberalismo, que é uma
doutrina econômica e política, desenvolvida a partir da década de 1970, e defende a
absoluta liberdade de mercado e uma restrição à intervenção estatal sobre a economia, só
devendo esta ocorrer em grau mínimo, em setores imprescindíveis. Tal doutrina andou
muito em voga, porém, já a partir da década 1980, nos países mais ricos, começou a sofrer
forte contestação, tendo-se prolongado por toda a década de 1990, nos países mais pobres,
alguns dos quais levaram-na muito a sério, aplicando-a ao “pé da letra”, segundo os
ditames de Washington e dos organismos internacionais de crédito e finanças, como o FMI
e o Banco Mundial, a ponto de levarem as suas economias à bancarrota, sendo o caso da
Argentina o exemplo mais notório. Os adeptos da pregação neoliberal em relação à
desregulamentação das relações de trabalho argumentam que as empresas não contratam
mais trabalhadores porque a existência de leis conferindo excessiva proteção ao trabalho
tolhe a iniciativa econômica que, assim, prefere não investir na expansão da produção ou
escolhe substituir o trabalho humano por máquinas que economizam mão de obra e
encargos sociais.
A pregação neoliberal em favor da desregulamentação do trabalho humano,
sob o pretexto de aumento da oferta de emprego, é refutada por muitos. Ormerod (1996:
183-184), por exemplo, afirma: “A Grã-Bretanha anterior à Primeira Guerra Mundial era
62
uma sociedade muito mais próxima dos ideais de livre mercado do que as economias da
Europa ocidental em geral nos últimos cinqüenta anos. Os trabalhadores tinham
pouquíssimos direitos, havia muito trabalho eventual e os ônus dos quais as companhias
hoje se queixam, como licença maternidade e indenização em caso de demissão
praticamente não existiam. Mas apesar disso o desemprego não era baixo, em média 5%
da força de trabalho ao longo do período, atingido 8% ou 10%”. Estudos comparativos
mostram que a taxa de desemprego não varia em função da regulamentação maior ou
menor do trabalho, havendo países onde as relações de trabalho são muito regulamentadas
os quais têm desemprego menor do que outros onde essa regulamentação é precária.
Muito embora em algumas atividades específicas a desregulamentação ou a
reforma da legislação trabalhista e previdenciária possa ser vantajosa, por desonerar as
pequenas e microempresas, a adoção generalizada de mecanismos legais tendentes a abolir
regulamentos protetores do trabalho e do trabalhador duramente conquistados só faz
aumentar ainda mais a carga de agruras suportadas por aqueles que dispõem unicamente da
sua força de trabalho para provirem a subsistência própria e a de seus familiares, em nada
contribuindo para o crescimento da riqueza social e o bem-estar geral.
Vivemos novos e difíceis tempos em termos de trabalho e distribuição das
riquezas produzidas pelo trabalho. Alguns pensadores enxergam nesses novos tempos a
iminência do desastre. Para Forrester (1997: 136), “pela primeira vez a massa humana não
é mais necessária materialmente, e menos ainda economicamente, para o pequeno número
que detém os poderes e para o qual as vidas humanas que evoluem fora de seu círculo
íntimo só têm interesse, ou mesmo existência — isso se percebe cada dia mais —, de um
ponto de vista utilitário”. Em épocas anteriores, os homens também sofreram maus tratos
mas as sociedades do passado necessitavam de pessoas em grande número, o que não é
63
mais o caso. Segundo Kurz (1999: 17), “se uma crise global continua objetivamente
amadurecendo, essa crise deve ser procurada naquele nível em que se encontram todos os
sistemas sociais até agora conhecidos da modernidade”. Para outros autores, será o
advento de uma nova era plena de promessas de liberdade do trabalho quando a
humanidade, enfim liberta do jugo milenar da necessidade, poderá dedicar-se às atividades
mais nobres do amor, do lazer, do ócio criativo. Para De Masi (2000: 7), “o progresso
humano nada mais é do que um longo percurso do homem rumo à intencional libertação,
primeiro da fadiga física e depois da faina intelectual”. Enquanto, numa situação de
desemprego, os homens são lançados na marginalização e na miséria, a libertação do
trabalho preconizada por esse autor produz uma melhor distribuição da riqueza, tarefas
autodeterminadas pelos próprios trabalhadores, atividades intelectuais mais gratificantes,
valorização das qualidades estéticas, mais atenção à qualidade de vida e maior
possibilidade de auto-realização.
O certo é que as rápidas transformações da economia e do mundo do
trabalho ocorridas nos últimos vinte ou trinta anos colocam-nos naquele estágio do “não-
mais” e do “ainda não” de que nos fala Hannah Arendt: entre o passado, que já se foi, e o
futuro, que não divisamos. O futuro, porém, não está predeterminado desde sempre, não é
mera conseqüência inexorável de forças obscuras da história na qual os homens não
desempenham qualquer papel relevante, sendo meros joguetes dessas forças. Ao contrário,
os seres humanos são autores, partícipes e responsáveis pelo resultado das suas ações e
decisões. O trabalho continuará sendo, num futuro previsível, fonte de inserção social, de
renda, de satisfação e até de realização pessoal. Competirá a nós todos decidir se haverá
trabalho apenas para um reduzido número de seres humanos, cabendo aos excluídos a
situação de párias e aos incluídos a situação de cidadãos, partícipes da divisão dos frutos da
64
riqueza ou se haverá trabalho e renda para aqueles que necessitarem e desejarem trabalhar,
de modo a integrar toda a humanidade neste nosso mundo cada vez menor, mais
interdependente e mais frágil.
É do resultado do agir humano, dos mútuos acordos e das mútuas
concessões que estamos dispostos a fazer que dependerá o nosso futuro. A respeito do
tema, escreve Offe (1992: 12): El acceso al trabajo para todos depende de la renuncia
parcial al trabajo por parte da cada individuo. La alternativa estaría representada por la
segregación social de aquellos que resultan “despedidos” del mercado de trabajo, cuyo
previsible número ha de traer consigo necesariamente la quiebra de la “red de seguridad
social”.
Falar em acordos mútuos e nas conseqüentes concessões neles implícitos
significa remeter à questão política, à formação e à manutenção do poder que permite a
vida do homem em sociedade. Para Arendt (2001: 36-41), que teorizou a respeito, o poder
depende do consenso e não da violência. “o poder corresponde à habilidade humana não
apenas de agir, mas agir em concerto... e governo é essencialmente poder organizado e
institucionalizado”. Weber (1996a: 43), contrariamente, entende que o poder pressupõe a
violência pois, para ele, o poder é a possibilidade de impor a própria vontade sobre a
conduta alheia. Segundo ela, nenhum poder pode sobreviver apoiando-se apenas na força
bruta. Assim, a fim de que a humanidade preserve o poder e, em conseqüência, o nosso
viver em comum, é necessário que se mantenha o consenso, que o pacto social seja
constantemente reformulado e aperfeiçoado, caso não queiramos cair no totalitarismo,
totalitarismo que considera o homem supérfluo e sem lugar num mundo comum. Em nossa
época, condições para a formação de um estado totalitário são reais. A persistência da
pobreza, o aumento da desigualdade entre pobres e ricos, o aumento da população
65
coincidindo com o emprego de técnicas administrativas e gerenciais, aliadas à rápida
automação da produção e dos serviços, que tem desempregado milhões de pessoas,
doravante não mais empregáveis e que são, portanto, do ponto de vista do “mercado”,
descartáveis, são canteiro fértil para as tentações totalitárias. Segundo Kurz (1999: 186),
“os poderes e os representantes desse mundo único ... têm de proceder como poder
policial internacional contra as revoltas da fome” .
O totalitarismo já foi experimentado pela humanidade com o nazismo e o
stalinismo. Além da monstruosidade desses dois regimes totalitários, pelos crimes que
cometeram e que são do conhecimento de todos, a manutenção de um governo totalitário
por um longo período de tempo seria inviável, sob pena de destruir a sociedade a ele
submetida, pois não se pode viver permanentemente na companhia de inimigos potenciais,
de um potencial espião, um potencial delator. Necessitamos estar na companhia de outros
homens que nos sejam caros e nos quais confiamos, por isso pensamos que um otimismo
moderado não é de todo injustificável. A humanidade provavelmente saberá encontrar um
caminho que leve à sua sobrevivência com um mínimo de harmonia, o que implica a
divisão, não igualitária porque utópica, pelo menos mais justa dos frutos do trabalho e da
riqueza social, permitindo a todos uma vida senão plena, com um mínimo de desigualdade,
embora o caminho possa ser mais ou menos longo, cheio de avanços e recuos.
66
5.1 A PASSAGEM DA SOCIEDADE INDUSTRIAL PARA A SOCIEDADE PÓS-
INDUSTRIAL — MUDANÇA DE PARADIGMA
Muitos pensadores — Lyotard, Jamenson — entendem que superamos a
modernidade e entramos em uma nova era, que vivemos em uma outra civilização que, à
falta de melhor nome, designam de pós-moderna. Outros pensadores — Habermas —
negam que tenha havido mudança de parâmetros, no pensamento ocidental, a ponto de que
se justifique falar em mudança civilizacional, uma vez que não se esgotou o modo de ser
da modernidade. Do ponto de vista da produção, alguns autores como De Masi, por
exemplo, gostam de falar em sociedade pós-industrial, que teria substituído aquela que
existiu até meados do século XX, denominada de sociedade industrial. Sem querer entrar
diretamente nessa discussão, pensamos que o conceito de “paradigma”, tal como usado por
Kuhn (1990) para explicar as mudanças que ocorrem no campo do conhecimento
científico, pode ajudar-nos a compreender a atual crise cultural, as mudanças na produção
e os seus efeitos no mundo do trabalho.
“Paradigma” seria, para esse autor, entre outras acepções, um conjunto de
crenças, valores, técnicas partilhados pelos membros de uma comunidade científica
determinada e dentro do qual os cientistas pensam e trabalham. Os cientistas trabalham, no
campo específico da sua especialidade, amparados por um paradigma amplamente aceito e
partilhado pela sua comunidade científica. De posse de um determinado paradigma, a
comunidade científica desenvolve as suas pesquisas no que esse autor chama de ciência
normal. Dentro do paradigma aceito, alguns fenômenos não são notados ou, quando o são,
constituem meras anomalias pouco relevantes para o desenvolvimento da ciência normal.
Ocorre que, muitas vezes, as anomalias vão-se acumulando, e chega um momento em que
67
o paradigma em que se desenvolvem as pesquisas não mais dá conta das tarefas com as
quais se defrontam os cientistas, tornando necessário o desenvolvimento de um novo
paradigma. Entretanto, até que surja um novo paradigma, com melhores soluções aos
problemas colocados pelos pesquisadores, o velho paradigma não é abandonado.
Ocorrendo a mudança paradigmática, no entanto, acontece o que Kuhn denomina de
“revolução científica”.
Aplicando as idéias desse autor ao campo social, especialmente no que diz
respeito ao mundo do trabalho e da distribuição das riquezas, podemos dizer que um
paradigma está sendo rapidamente superado, sem que ainda tenha surgido outro que o
substitua. No âmbito da produção, da apropriação da riqueza e do desenvolvimento das
relações entre capital e trabalho, as alterações são profundas. As velhas formas em que
vinham desenvolvendo-se as relações produtivas e a tendência histórica a uma divisão mais
eqüitativa dos frutos da riqueza social se inverteram, passando o capital a apropriar-se de
parcela maior dessa riqueza, em detrimento da classe trabalhadora. Esta, com a crise das
esquerdas e o fim do socialismo real, ficou desnorteada e sem ideário para enfrentar o
capital. Este, por sua vez, sem qualquer ideologia que lhe fizesse contraponto, afinou o
discurso e partiu para o ataque, conseguindo desnortear ainda mais a classe trabalhadora
que, posta na defensiva, logo começou a perder poder e direitos duramente conquistados
nas lutas sindicais e políticas.
Ao avanço do capital, ancorado na ideologia neoliberal sobre os direitos dos
trabalhadores e sobre a propriedade estatal de meios de produção, os trabalhadores não
puderam opor grande resistência, acuados pelo desemprego estrutural decorrente das novas
formas de organização da produção, da automatização e da informatização da indústria e
dos serviços. Também não contrapuseram ao discurso neoliberal do capital um discurso
68
alternativo. Claramente, o velho paradigma, no qual a relação capital versus trabalho
vinha-se desenvolvendo encontra-se em processo de superação acelerado, mas não se
encontra claramente delineado outro que venha a substituí-lo. Enquanto um autor como
Kurz vê na crise do atual modelo de produção de mercadorias a iminência do desastre, De
Masi vê nas transformações da economia e do mundo do trabalho a aurora de um novo
tempo, pleno de promessas de libertação da classe trabalhadora do jugo da necessidade.
5.2 A GLOBALIZAÇÃO E O NOVO CONCEITO DE IMPÉRIO
Diretamente ligado à mudança paradigmática mencionada anteriormente, o
tema “globalização” é discutido exaustivamente por um grande número de pessoas, sem
que se saibam exatamente do que tratam. A palavra virou moeda corrente e nenhuma
conferência ou artigo que se preze no âmbito das ciências sociais, o qual pretenda tratar de
política, economia ou direito, frente à aceleração das mudanças econômicas e sociais e de
seus efeitos nos demais setores da vida em comum, deixa de mencionar a globalização em
algum dos seus aspectos.
A obra escrita a quatro mãos por Hardt e Negri (2001), parece esclarecer
pontos fundamentais desse relativamente recente e, segundo muitos estudiosos, irreversível
fenômeno social. Esses autores sustentam que um novo paradigma envolvendo produção,
distribuição e circulação da riqueza, um novo poder englobando o mundo inteiro, surgiu
com a decadência do Estado nacional e em decorrência dos amplos movimentos:
financeiros, de mercadorias e de multidões de trabalhadores, citando-os textualmente:
“Juntamente com o mercado global e com os circuitos globais de produção, surgiu uma
ordem global, uma nova lógica e estrutura de comando — em resumo, uma nova forma de
69
supremacia. O império é a substância política que, de fato, regula essas permutas globais,
o poder supremo que governa o mundo”. (HARDT; NEGRI: 11).
“Império”, no sentido exposto por esses dois autores, não se confunde com
imperialismo. Enquanto no império a soberania tem uma forma nova, unindo organismos
nacionais e supranacionais de acordo com uma lógica única, o imperialismo, em sua forma
tradicional, está assentado no Estado nacional, com suas fronteiras definidas e de cujo
território emanava o poder a partir do qual os territórios coloniais são controlados.
O império não está encarnado em qualquer país específico. Os Estados
Unidos assumem um papel privilegiado na estrutura do império, mas não são eles mesmos
o império, este não tem fronteiras e o poder por ele exercido não tem limites. A sua
constituição tem uma estrutura piramidal composta de três camadas, cada uma contendo
diversos níveis. No cume da pirâmide estão os Estados Unidos, a única superpotência
existente, que detém a hegemonia sobre o uso da força em qualquer lugar da Terra. Ainda
na primeira camada, mas num segundo nível, encontram-se os Estados mais ricos e
importantes do primeiro mundo e que controlam os instrumentos monetários globais e são
capazes com isso de regular as trocas internacionais. Esses estados estão unidos em uma
série de organismos internacionais como: G7, o Clube de Paris, a Conferência de Davos,
etc. No terceiro nível da primeira camada, existe um conjunto de associações que
demonstra poder cultural e biopolítico em nível global. “Biopoder é a forma de poder que
regula a vida social por dentro, acompanhando-a, interpretando-a, absorvendo-a e a
rearticulando. O poder só pode adquirir comando efetivo sobre a vida total da população
quando se torna função integral, vital, que todos os indivíduos abraçam e reativam por
sua própria vontade”. (HARDT; NEGRI: 43).
70
A segunda camada é estruturada pelas redes que as empresas capitalistas
transnacionais estenderam no mercado mundial (redes de fluxo de capital, de fluxo de
tecnologias, de fluxo de populações). Ainda na segunda camada e num nível geralmente
subordinado às empresas transnacionais, encontra-se o conjunto de Estados nacionais que
consistem, atualmente, em organizações locais territorializadas. Nesse esquema, os Estados
nacionais captam e distribuem os fluxos de riqueza de e para o poder global e disciplinam
suas populações.
A terceira camada da pirâmide consiste em grupos que representam os
interesses populares no arranjo global de poder. Esses grupos são primeiramente os
Estados nacionais subordinados ou menores e, mais diretamente, as várias organizações
independentes dos Estados, como as ONGs.
A estrutura do império, como descrita acima, derivaria, segundo Hardt e
Negri, de observações empíricas da constituição e do funcionamento da sociedade global.
Essa situação assemelhar-se-ia à descrição teórica que Políbio fez para o Império Romano,
levando em consideração as três formas boas de poder: monarquia, aristocracia e
democracia, corporificadas no Imperador, no Senado e na Comitia popular. A monarquia
serve de âncora à unidade e à continuidade do poder. É base e cume da autoridade
imperial. A aristocracia define a justiça mediante a virtude. A democracia organiza a
multidão segundo um esquema representativo, de modo que o povo possa ser submetido às
normas do regime e o regime possa ser obrigado a satisfazer às necessidades do povo.
O império hoje também seria constituído por um equilíbrio funcional entre
essas três formas de poder: a unidade monárquica e seu monopólio global da força;
articulações aristocráticas, por meio de empresas transnacionais e Estados nacionais; e
71
comitia democrático-representativa, que apresenta a forma dos Estados nacionais,
juntamente com diversos tipos de ONGs, mídia etc.
A monarquia imperial pós-moderna envolve o governo de unidade do
mercado mundial e, por isso, é chamada para garantir a livre circulação de bens, a
tecnologia e a força de trabalho, não estando localizada num lugar definido e separado; no
império pós-moderno, não há uma Roma. O corpo monárquico é multiforme e difuso no
espaço.
Do mesmo modo que o capitalismo é superior ao feudalismo, a existência
do império não seria algo negativo, não só do ponto de vista dos processos produtivos, mas
também por assegurar maior liberdade aos trabalhadores e às massas em geral. É um passo
à frente em relação ao imperialismo que caracterizou o capitalismo de uma fase anterior, já
devidamente superada. A integração dos mercados, a globalização da produção, liberta
populações inteiras da dominação tradicional decorrente das relações camponesas ou do
trabalho urbano na fábrica a qual impunha os controles do tipo taylorista e fordista. Assim,
não há o que lamentar pela existência do império, devendo-se procurar os caminhos de
contestação dessa nova ordem imperial no sentido da libertação da multidão. Esses
caminhos não são claros, e as formas tradicionais de luta parecem esgotadas, no entanto
não chegamos ao fim da história, como querem os dominadores. “Quando os velhos
lugares e formas de luta declinam surgem outros, novos e mais poderosos. O espetáculo
imperial não é um mundo couraçado, mas na verdade ele abre a possibilidade real de
subverte-lo e novas potencialidades de revolução”.(HARDT; NEGRI: 345)
O breve resumo que fizemos da idéia que Hardt e Negri têm da nova forma
de poder global nos parece importante para a compreensão dos fenômenos de unificação
dos mercados nacionais em um único mercado mundial e de globalização da economia, da
72
cultura e da estruturação do poder a nível mundial. Mesmo que a existência do império tal
como proposto pelos autores não corresponda a um fenômeno observável empiricamente
como pretendem, a idéia dos dois a respeito de como se organiza e se exerce o poder em
escala mundial tem um valor senão descritivo pelo menos heurístico e mostra-nos que o
atual modelo produtivo, que implica a crescente desigualdade na distribuição da riqueza e
do poder com a marginalização de significativas parcelas da população, não é algo de
definitivo, não chegamos ao fim da história. A superação do paradigma, a exemplo do que
ocorre nas ciências, segundo a visão de Kuhn, é gestada dentro do modelo aceito e, quando
isso ocorre, dá-se uma revolução, isto é, o mundo em que o cientista passa a trabalhar, após
a superação do velho paradigma, é incompatível com o antigo, o mesmo ocorrendo com o
mundo da vida. Suplantado um velho modo de produção e distribuição da riqueza e do
poder, o mundo surgido das cinzas do velho é incompatível com o superado.
Independentemente de essa transformação ser ou não violenta, pode-se dizer que houve
uma mudança revolucionária, no sentido que Kuhn (1990: 145) dá à palavra revolução.
“Quando mudam os paradigmas muda com eles o próprio mundo.”
É essa transição entre um velho paradigma e um modelo totalmente novo
que parece estar ocorrendo. A rearrumação do poder, em nível mundial, denominada
globalização, é um dos indícios mais importantes dessa mudança, cujos desdobramentos
não são passíveis de previsão. A imprevisibilidade dos desdobramentos das mudanças,
porém, não deve impedir-nos de agir. As sensíveis transformações já ocorridas na
produção e na forma da prestação de trabalho da sociedade industrial, na qual prevalecia a
prestação de trabalho subordinado, em tempo integral, por prazo indeterminado, na forma
de emprego, para uma outra, na falta de melhor nome, designada de pós-industrial, em que
prepondera o trabalho precário, o trabalho a tempo parcial e o trabalho autônomo, estão a
73
exigir respostas rápidas em termos de formulação de novas políticas, mas também na
adaptação do Direito do Trabalho às novas circunstâncias sociais.
No capítulo seguinte, faremos uma breve exposição das posições de vários
juslaboralistas a respeito da fundamentação tradicional do Direito do Trabalho e, ao final
do capítulo, procederemos a crítica à tais fundamentos.
74
CAPÍTULO VI
6. FUNDAMENTOS TRADICIONAIS DO DIREITO DO TRABALHO
6.1 PRINCÍPIOS 6.2 CONCEITO 6.3 NATUREZA JURÍDICA 6.4 FONTES
6.5 CRÍTICA AOS FUNDAMENTOS TRADICIONAIS
6.1 PRINCÍPIOS
Para Nascimento (1998: 199-200), os princípios do Direito do Trabalho
podem ser encarados de uma perspectiva jusnaturalista ou de um ponto de vista positivista,
dependendo da concepção ideológica do doutrinador.
Os jusnaturalistas compreendem os princípios como postulados
metajurídicos, superiores às normas de direito positivo, não podendo este contrariá-los. São
regras de direito natural que fundamentam a ordem jurídica positiva, provenientes da
própria natureza das coisas. Os princípios são supralegislativos, exteriores às regras
positivadas no ordenamento jurídico, e independente destas. Manifestam-se como valores
que estão acima dessa regras.
A concepção jusnaturalista dos princípios implica que sejam considerados
universais, válidos, portanto, para todo e qualquer ordenamento jurídico, independente de
tempo e lugar. Tal concepção despreza a história e a geografia, pois, se observarmos os
diversos sistemas jurídicos, verificaremos a grande variabilidade de fundamentações do
Direito. Enquanto no ocidente a concepção mais difundida é a de que o Direito visa
fundamentalmente à paz social, na China, o objetivo maior da ordem jurídica é a
preservação da harmonia, não apenas entre os homens, senão também entre o céu e a terra,
uma vez que os homens participam da ordem cósmica, e suas ações devem perseguir esta
75
harmonia. Quebrada esta, incumbe às autoridades, como base no direito tradicional,
procurar fazer com que transgressor e vítima cheguem a um consenso, a fim de que se
restaure o equilíbrio social, essencial à ordem cósmica. (DAVID, 1998: 471-484)
Para os positivistas, os princípios são ínsitos ao ordenamento jurídico,
encontrando-se ora implícitos no conjunto de normas, ora devidamente explicitados em lei.
São interiores à ordem jurídica, dentro da qual devem ser buscados. A partir dessa
perspectiva, teriam função meramente integradora, colmatando as lacunas da lei.
Segundo o positivismo, os princípios seriam não apenas gerais do Direito, mas
nacionais, restritos a determinado ordenamento, ou setoriais, válidos apenas para o Direito
do Trabalho ou um dos seus setores, podendo-se falar em princípios de direito individual,
princípios de direito coletivo.
Cumprindo função meramente integradora e devendo ser buscados a partir
das leis, de conformidade com o método indutivo, até atingir regras gerais, restritos aos
parâmetros das normas vigentes, não seriam universais, mas modificáveis, na medida em
que o direito positivo fosse alterado.
Sanseverino (1976: 19-20) assevera que o Direito do Trabalho manifesta-se
dominado por princípios gerais que se distinguem dos informadores de outras disciplinas
jurídicas, tendo em vista o elemento subordinação. Todavia não indica quais são esses
princípios, limitando-se a relacionar os elementos distintivos do Direito do Trabalho, tais
como: autonomia institucional; caráter excepcional de suas disposições; sistema particular
de sanções; concepção finalista da tutela do trabalhador.
Russomano (1976: 65-70) entende que o Direito do Trabalho tem seus
próprios princípios e refere-se a alguns, selecionados entre aqueles mencionados por
Deveali, que são: princípio da progressão racional; princípio da sinceridade das leis
76
trabalhistas; princípio da economia; princípio da tutela dos direitos do trabalhador;
princípio da igualdade.
Para os juslaboralistas latino-americanos, a obra de referência básica sobre
princípios do Direito do Trabalho é o livro de Plá Rodriguez Princípios de Direito do
Trabalho. Plá Rodrigues (2000: 61), que fez escola e tem inúmeros seguidores, relaciona
os seguintes: 1) princípio da proteção que se desdobra em três variáveis: a) in dúbio pro
operário; b) regra de aplicação mais favorável; c) regra da condição mais benéfica; 2)
princípio da irrenunciabilidade dos direitos; 3) princípio da continuidade da relação de
emprego; 4) princípio da primazia da realidade; 5) princípio da razoabilidade; 6) princípio
da boa-fé; 7) princípio da não discriminação.
Delgado (2001: 36-37), na esteira de Plá Rodriguez, refere-se aos princípios
especiais do direito individual do trabalho e aponta os seguintes: a) princípio da proteção;
b) princípio da norma mais favorável; c) princípio da imperatividade da norma trabalhista;
d) princípio da indisponibilidade dos direitos trabalhistas; e) princípio da condição mais
benéfica; f) princípio da inalterabilidade contratual lesiva; g) princípio da intangibilidade
salarial; h) princípio da primazia da realidade sobre a forma; i) princípio da continuidade
da relação de emprego.
6.2 CONCEITO DE DIREITO DO TRABALHO
Gomes e Gottschalk (1975: 31) conceituam o Direito do Trabalho do
seguinte modo: “Direito do Trabalho é o conjunto de princípios e regras jurídicas
aplicáveis às relações individuais e coletivas que nascem entre os empregadores privados
77
— ou equiparados — e os que trabalham sob sua direção e de ambos com o Estado, por
ocasião do trabalho ou eventualmente fora dele”.
Russomano (1976: 41), seguindo o pensamento de Galart Folch, define o
Direito do Trabalho como: “conjunto de normas jurídicas destinadas a regular as relações
entre empregadores e empregados e, além disso, outros aspectos da vida destes últimos,
mas, precisamente, em função de suas condições de trabalhadores”. O autor ressalta que
essa definição tem o mérito de estabelecer o objeto específico do Direito do Trabalho que é
a relação de emprego.
Para Catharino (1982: 42), “Direito do Trabalho é o conjunto de princípios
e normas que regulam, principalmente, as relações imediatamente ou mediatamente
ligadas ao trabalho remunerado, livre, privado e subordinado, e, ainda, aspectos relativos
à existência dos que o executam”
Assim como Gomes e Gottschalk, Catharino compreende os princípios
como parte integrante do Direito do Trabalho. Para ele, no entanto, os princípios seriam
científicos, porém inspirados na idéia de Justiça que informaria as normas jurídicas. Essa
posição é claramente jusnaturalista. Outros doutrinadores, porém, asseguram serem os
princípios gerais do direito dedutíveis logicamente do sistema.
Para Sanseverino (1976: 14), tomando por base o direito do seu próprio
país, a Itália, “o Direito do Trabalho pode definir-se como a parte do ordenamento
jurídico relativo à organização e a ação do Estado e das associações sindicais para a
tutela da classe trabalhadora, em geral, e em particular, em vista da disciplina das
relações de trabalho subordinado”. Tal definição, segundo a própria autora, comporta a
normatização do trabalho e das associações profissionais, abrangendo ainda o direito
sindical e a previdência social.
78
Genro (1985: 36) define o Direito do Trabalho como: “conjunto de
princípios e normas jurídicas, reguladores das soluções individuais e coletivas que se
estabelecem entre aqueles que alienam a disponibilidade de sua força de trabalho com
subordinação jurídica e aqueles que a adquirem mediante retribuição”. Coerente com as
suas posições ideológicas esse autor põe em relevo a questão da alienação da força de
trabalho, ressaltando que o trabalhador vende não o seu trabalho, mas a sua força de
trabalho, formulação essa derivada de Marx.
Do exame dos vários conceitos ou definições transcritos, conclui-se que o
Direito do Trabalho destina-se a regular as relações jurídicas decorrentes da prestação de
trabalho subordinado, vale dizer das relações entre empregadores e trabalhadores, surgidas
em virtude da relação de emprego, estando fora do seu campo protetor outras relações de
trabalho nas quais não haja subordinação do prestador ao beneficiário da força de trabalho.
6.3 NATUREZA JURÍDICA
Tradicionalmente, procura-se situar o Direito do Trabalho entre um dos
grandes ramos do direito pertinentes à primeira grande dicotomia a surgir, ainda na
Antiguidade, aquela que divide o direito em público e privado. Seria esse um problema
taxionômico ou de classificação e não a tradicional perspectiva essencialista, tão cara aos
doutrinadores jurídicos.
Em que pese às discussões e posições, sustentando alguns que o Direito do
Trabalho é público, outros que é ramo do direito privado, prevaleceu à doutrina que
mantém a nossa disciplina no campo privado, mesmo considerando-se que o interesse
objetivado — a proteção do hipossuficiente — é preponderantemente público, uma vez que
79
previne a irrupção de graves conflitos sociais. Algo semelhante ocorre no direito de
família, o interesse público na regulamentação do casamento, da filiação, dos deveres
recíprocos entre cônjuges e entre pais e filhos é marcante, sem que essa parte do direito
tenha se separado do ramo a que tradicionalmente está ligada, o Direito Civil, principal
galho da frondosa árvore jurídica no campo privado, do qual tantos outros direitos
especializados brotaram.
Não obstante a classificação do Direito do Trabalho como direito privado, o
intervencionismo estatal em relação às políticas salariais, em relação à regulamentação
mínima das condições de trabalho em casos como jornada, remuneração, salubridade dos
locais da prestação de serviços, intervalos intra e interjornadas, limita de tal maneira a
autonomia da vontade das partes integrantes do contrato de trabalho que alguns chegaram a
propor, não sem razão, a existência de um terceiro gênero, o misto, entre o direito privado
e o público, no qual o Direito do Trabalho estaria inserido. Tal classificação, entretanto,
não vingou.
6.4 FONTES
A metáfora “fontes do direito”, tem relação com a idéia de lugar de onde
brota o direito, do mesmo modo que a água brota da fonte. Ascenção (2001: 248) afirma
que “fontes do direito são modos de formação e revelação de regras jurídicas.. e
acrescenta: a fonte é pois uma manifestação ou fenômenos social que tem o sentido de
conter uma regra jurídica”.
No início do século XX, o jurista francês François Geny passou a distinguir
dois tipos de fontes: 1) substanciais ou materiais, correspondendo aos fatos históricos, aos
80
dados da natureza e aos ideais que norteiam os homens em uma cultura e em um momento
histórico dado; 2) formais, correspondendo à elaboração daquilo que provém das fontes
materiais, por meio de formas solenes expressas em leis, costumes jurídicos, jurisprudência
etc.
Em Direito do Trabalho, os autores também se referem às fontes materiais e
às fontes formais, enfocando, sobretudo, as fontes formais que, nos direitos pertencentes ao
sistema romano-germânico, são, preponderantemente, de caráter estatal, em que pese ao
fato de as origens históricas do Direito do Trabalho estarem intimamente ligadas às lutas
dos trabalhadores pela melhoria das condições de trabalho, da remuneração e da proteção
contra infortúnios como doenças e incapacidade.
Para Gomes e Gottschalk (1975: 69-70), a fonte primária ou fonte comum a
todo direito privado é a vontade das partes. É do contrato que nasce o vínculo de trabalho,
que é fonte voluntária da relação de emprego. As outras fontes denominam de fontes
imperativas e as dividem em quatro categorias, a saber: a) fontes de produção estatal; b)
fontes de produção profissional; c) fontes de produção mista; d) fontes de produção
internacional.
Russomano (1976: 75-76) divide as fontes formais em três categorias: a)
derivadas da vontade do Estado; b) derivadas da vontade dos indivíduos; c) derivadas da
vontade coletiva. Como para ele a lei é a fonte do direito por excelência, seria da vontade
do Estado que derivariam a maior parte das normas trabalhistas.
Sanseverino (1976: 21), tendo em vista o ordenamento italiano, divide as
fontes formais do seguinte modo: a) leis, decretos legislativos, decretos-leis e
regulamentos; b) decretos legislativos que contêm tratamentos econômicos e normativos
mínimos e contratos coletivos obrigatórios “erga omnes”; c) usos normativos ou
81
consuetudinários; d) contratos coletivos de direito comum; e) regulamentos internos. As
três primeiras categorias denomina de fontes externas, objetivas e normativas, por
conterem comandos externos para empregados e empregadores; as duas últimas denomina
de fontes internas, subjetivas ou contratuais, uma vez que derivam da vontade, são fontes
autônomas.
6.5 CRÍTICA AOS FUNDAMENTOS TRADICIONAIS
Os fundamentos tradicionais do Direito do Trabalho encontram-se em
cheque. Baseiam-se no modelo da superada sociedade industrial onde predominava a
prestação de trabalho subordinado em horário integral, por prazo indeterminado e, às
vezes, para toda a vida na mesma empresa. O trabalhador subordinado, nessas
circunstâncias, poderia esperar progredir na empresa, passando de funções mais humildes a
outras de maior importância, e poderia aspirar a uma remuneração crescente ao longo do
tempo de duração do contrato de trabalho, até que sobreviesse a aposentadoria.
O paradigma da sociedade do trabalho da era industrial mudou
radicalmente. Hoje são várias as alternativas de trabalho em ocupações novas: o
teletrabalho, aquele realizado com o auxílio do telefone, do fax, da internet, no qual o
trabalhador é responsável por seus êxitos e fracassos; o trabalho autônomo, precário, em
tempo parcial. Surgem novas organizações que propiciam oportunidades de ocupação e
renda, como as cooperativas, as empresas de economia social, as ONGs etc. Paralelamente
a essas mudanças, o emprego formal, de tempo integral e por prazo indeterminado, diminui
a olhos vistos, a ponto de ser inteiramente apropriada a metáfora que fala em desertificação
dos postos de trabalho.
82
A diminuição do trabalho tradicional, na forma de empregos, tem-se
mostrado uma tendência irreversível, uma vez que a organização empresária da sociedade
pós-industrial prefere uma estrutura produtiva “enxuta”, flexível, obtida mediante a
terceirização da maior parte das suas atribuições para empresas menores e mais
especializadas, para cooperativas ou simplesmente para o trabalhador individual, que passa
a ser mero prestador de serviços eventual a várias organizações distintas. Por outro lado,
passa-se de um sistema de produção local, integrado, no máximo, dentro do Estado
nacional, para outro de integração mundial, via modernos processos de comunicação
proporcionados pala criação de novas tecnologias e difusão das antigas, como fax,
telefones celulares, computadores, internet etc.
O desenvolvimento dos transportes, com o conseqüente barateamento dos
fretes, é outro fator a facilitar a integração dos mercados locais em uma rede mundial, de
modo a permitir que um produto, ou apenas parte dele, seja produzido na região da terra
que possa fazê-lo com menor custo, para daí ser distribuído pelos diferentes mercados
consumidores do planeta. Também o deslocamento de unidades fabris inteiras, de um local
para outro, às vezes de um continente para outro, é uma realidade cotidiana, dependendo
apenas da conveniência dos empreendedores capitalistas.
A aparição de inúmeras e novas atividades econômicas e laborais, muitas
vezes completamente distintas daquelas existentes na sociedade industrial, preponderantes
até meados do século passado, implica nova organização da atividade produtiva, com
efeitos profundos nas relações de trabalho, tanto individuais quanto coletivas. Por outro
lado, o estabelecimento de um capitalismo de dimensão mundial, propiciado pelos
modernos meios comunicação e que se impõe à revelia dos Estados nacionais, desarticula
as relações de trabalho tradicionais.
83
As mudanças no mundo do trabalho, amplamente constatadas por
sociólogos e economistas, já a partir da década de setenta do século XX, não foram
acompanhadas de mudanças no Direito do Trabalho ou sequer foram objeto de
preocupação mais aprofundada da maioria dos juristas, a não ser muito mais tarde. Um
jurista de nomeada como Nascimento (1998: 35-36), menciona apenas algumas
possibilidades de alteração da legislação trabalhista, porém não avança muito mais que o
conhecido discurso neoliberal, que preconiza a desregulamentação e a flexibilização das
relações de trabalho, ao propor um modelo de Direito do Trabalho intervencionista
seletivo, no qual estariam presentes o intervencionismo estatal e a espontaneidade, com
realce para esta.
Ao recomendar a prevalência do que denomina espontaneidade e depois de
detalhar a sua proposta, o citado autor não faz mais do que preconizar a volta do velho
ideal de liberdade contratual, tão caro ao liberalismo de antanho, baseado em uma suposta
igualdade das partes, mesmo que estas, no caso do Direito do Trabalho, sejam não os
trabalhadores individuais e os empregadores, mas as representações sindicais de uma e
outra categoria, tendo em vista as mudanças ocorridas no mundo da produção e do trabalho
terem fragilizado enormemente as organizações de trabalhadores, hoje na defensiva no
mundo inteiro.
Na literatura especializada referente ao Direito do Trabalho, encontramos
poucas reflexões a respeito da necessidade de mudanças profundas nesse ramo jurídico,
decorrentes das transformações apontadas nas relações produtivas e laborais que, antes de
meramente circunstanciais, são de intensa repercussão e se afiguram, para o bem ou para o
mal, irreversíveis. Uma das poucas exceções é a tese de doutoramento de Andrade (2001)
84
apresentada à Faculdade de Direito da Universidade Deusto, situada na cidade espanhola
de Bilbao.
Indo de encontro às necessidades de propostas prospectivas a respeito das
desejáveis mudanças no Direito do Trabalho, Andrade, após situar adequadamente o
problema, mediante o estudo da evolução das várias visões a respeito do trabalho e das
transformações da economia, da organização empresária e das novas relações de trabalho
daí surgidas, faz um extenso arrazoado a respeito da fundamentação tradicional do Direito
do Trabalho, critica essa fundamentação e propõe novo modelo de direito, baseado em
nova fundamentação.
Em primeiro lugar, aborda a questão dos princípios, alegando que os
formulados pela teoria tradicional dizem respeito apenas a particularismos do Direito
Individual do Trabalho e não a pressupostos de todo o Direito do Trabalho. Aduz ainda
que, mesmo se fosse possível considerá-los como tais, teriam perdido a sua legitimidade,
em virtude das transformações ocorridas na sociedade do trabalho, atualmente centrada em
outros paradigmas.
Partindo de um ponto de vista ancorado na Teoria da Ação Comunicativa,
entende que os princípios de Direito do Trabalho devem ser contextualizados dentro de
uma fundamentação ético-discursiva e isso supõe, segundo ele, a existência de mínimos
éticos, pois, em uma sociedade pluralista, os cidadãos devem conviver com as distintas
concepções de felicidade que cada um possui, desde que compartam preceitos mínimos de
justiça. Esses mínimos éticos, no âmbito do Direito do Trabalho, têm como objetivo dar
efetividade à aspiração de uma vida boa para todos, tendo em conta que isso só poderá
realizar-se estando presentes os ideais de eqüidade e justiça distributiva.
85
Baseado nos novos paradigmas da sociedade pós-industria, propõe outros
princípios, de caráter fundamentador do Direito do Trabalho, que seriam os seguintes: a)
princípio da prevalência das relações coletivas sobre as relações individuais; b) princípio
de democratização da economia e do trabalho humano; c) princípio da proteção social; d)
princípio do trabalho como categoria de direito humano fundamental; e) princípio de
prevalência do processo negociador de formação da norma sobre o processo estatal, dentro
de uma comunidade real de comunicação.
Em relação às fontes preconiza, a prevalência da fonte negocial sobre as
demais, seguindo os princípios que formulou. Para isso ocorrer, seria necessária a
reconstrução das organizações coletivas e sua presença nos novos movimentos sociais, a
fim de que possa existir uma verdadeira comunidade de comunicação com um discurso
simétrico. Nessa perspectiva, as normas produzidas pelos sistemas tradicionais, atuando
apenas em um âmbito específico e limitado, ficariam subordinadas às regras produzidas
pelos agentes sociais.
A natureza jurídica do Direito do Trabalho, tomando o termo “natureza
jurídica” como mera taxionomia ou problema de classificação e não como perspectiva
essencialista, na qual se buscaria uma suposta “essência” ou natureza fixa e imutável de
dada coisa ou fenômeno, implicaria considerá-lo como pertencente ou enquadrado no
campo dos direitos humanos fundamentais, direitos esses não mais vistos de conformidade
com os postulados clássicos dos direitos fundamentais, senão do ponto de vista de uma
nova teoria da sociedade, baseada em uma concepção moderna da Teoria Compartida de
Justiça Distributiva.
Apesar da sólida argumentação teórica, Andrade não deixa claro se a
refundação proposta seria possível nos marcos da atual sociedade, com sua desigual
86
distribuição de riqueza e poder, na ocasião em que conquistas seculares dos que vivem do
trabalho correm o risco de desaparecer, quando organizações sindicais de todo o mundo,
longe de se estarem reforçando, encontram-se na defensiva, quando os governos, mais do
que nunca, estão a serviço dos negócios privados, quando milhões de seres humanos,
considerados supérfluos, são alijados do mercado de trabalho, ou se as mudanças
preconizadas se dariam em um outro contexto no qual o discurso, a comunicação simétrica
se tivessem tornado possíveis. Tampouco está claro como se darão os mútuos acordos
gerais prévios no âmbito da sociedade, a fim de que os agentes cheguem a acordos
específicos no campo das relações de trabalho.
Pensamos que o problema continua em aberto. A necessidade de
reformulação do Direito do Trabalho é inegável. A proposta de inclusão de todos os que
vivem do trabalho no círculo protetor do direito é uma necessidade e já tarda em ser
implementada. A questão central da atual sociedade do trabalho não é meramente jurídica,
mas sobretudo política, exigindo nova definição de papéis e novas formas de controle da
riqueza social e do poder. O político e o jurídico, entretanto, não estão separados, não são
compartimentos estanques, instâncias completamente autônomas da sociedade. Segundo
Bobbio (2002: 23) “direito e poder são as duas faces da mesma moeda: só o poder pode
criar o direito e só o direito pode limitar o poder” poder esse que é tanto político quanto
ocorre no seio das organizações econômicas e sociais.
87
CAPÍTULO VII
7. O LUGAR DO DIREITO DO TRABALHO NA NOVA ECONOMIA; 7.1 A
BUSCA DE UM NOVO SENTIDO PROTETOR.
7.1 O LUGAR DO DIREITO NA NOVA ECONOMIA
O direito continuará a ser um instrumento fundamental no disciplinamento
da conduta social, num horizonte previsível. Habermas, (1987: 504), entende que “há uma
tendência a judisciarização dos conflitos na sociedade moderna, com o aumento do direito
escrito. Essa tendência se caracterizaria pela regulação jurídica de novos assuntos sociais
regulados até o momento de maneira informal e pelo desmembramento de uma matéria
jurídica global em várias matérias particulares”. As enormes e rápidas transformações na
economia e no mundo do trabalho não levarão a sociedade a prescindir, pelo menos num
futuro próximo, do Direito do Trabalho, para regular os interesses em conflito entre
aqueles que vendem a sua força de trabalho e aqueles que permanente ou transitoriamente
contratam determinada atividade a terceiros. Mudando a economia e as relações sociais,
mudam necessariamente as normas jurídicas que disciplinam as relações econômicas e
sociais. Tais mudanças ocorrem em maior ou menor velocidade, muitas vezes sendo
necessária apenas uma mudança na interpretação das normas que, no direito dos países do
sistema romano-germânico, são genéricas o suficiente para permitirem a sua adaptação a
situações novas não previstas originalmente pelo legislador. Outras vezes, deve-se mudar a
legislação sob o influxo das mudanças no mundo da vida, e, se essas mudanças são
demasiado grandes, como é o caso do mundo do trabalho, a reformulação da legislação
deve ser precedida de amplo debate público, no qual estejam envolvidos todos os
interessados, que não são apenas os trabalhadores e os controladores da riqueza, mas toda a
88
sociedade organizada através dos partidos políticos, a comunidade acadêmica, os
intelectuais independentes, as igrejas etc., enfim, todos aqueles que, direta ou
indiretamente, participam das responsabilidades pela condução dos negócios públicos,
dentro ou fora do aparelho estatal.
O trabalho assalariado na forma de emprego, como o conhecemos na
atualidade, é uma criação da sociedade industrial e nunca chegou a ser universalizado fora
dos países mais ricos. O Direito do Trabalho é um fruto dessa criação, “o sindicato e o
Direito do Trabalho são subprodutos da fábrica” (VIANA, 2001: 51) tendo surgido
primeiramente nos países de rápida industrialização, como um meio de proteger a
segurança e a saúde dos trabalhadores. Na Inglaterra, o Factory Act, de 1833, estabelecia
limites à jornada de trabalho, determinando que essa deveria começar às 5:30 e terminar às
20:30 horas. Na França uma lei de 1841 estabelecia a idade mínima de oito anos para
admissão ao trabalho e limitava a jornada diária de trabalho a oito horas para crianças de
oito a doze anos e de doze horas para crianças de doze a dezesseis anos. Tal direito
desenvolve-se durante todo o século XIX nas sociedades ocidentais mais industrializadas,
visando à proteção da pessoa do trabalhador, mas também à sua liberdade e à sua
dignidade. Em paralelo, desenvolvem-se as liberdades coletivas, com o reconhecimento do
direito à livre associação (sindicalismo), o reconhecimento do direito de greve, porém, só
no início do século XX, é que algumas formas jurídicas, como o contrato de trabalho, são
verdadeiramente institucionalizadas, (BOISSONNAT, 1998: 279) mostrando-nos que o
trabalho assalariado na forma de emprego não esgota o conceito de trabalho.
Em relação à contratualidade da relação de emprego, permitam-nos uma
ligeira digressão crítica. A doutrina costuma buscar as origens do contrato de trabalho no
direito romano, que distinguia a “locatio operarum” da “locatio operi faciendi”, o
89
primeiro contrato tendo em vista o trabalho em si, o que hoje a economia política
denomina força de trabalho, e o segundo, a obra realizada pelo trabalhador. O contrato de
trabalho derivaria da “locatio operarum”. Nada mais tolo do que tentar conferir dignidade
ao Direito do Trabalho arranjando-lhe uma origem provecta. Os institutos jurídicos são
criações humanas, fruto das culturas que lhes deram origem, destinando-se a equacionar
determinados problemas, determinadas relações sociais carentes de disciplinamento
jurídico. Querer transplantar tais institutos para culturas completamente diversas, a fim de
explicar criações recentes pelo recurso ao passado, é completamente descabido e de
erudição inútil, mais da ordem do mito do que da explicação científica, racional. Temos de
buscar compreender o Direito do Trabalho e os seus diversos institutos no contexto do
mundo moderno, especialmente no contexto do industrialismo, para melhor
compreendermos as mudanças necessárias a esse direito, que deverá continuar a ser
instrumento de proteção dos que vivem do trabalho, seja ele prestado de forma dependente
ou por outras formas, ao invés de procurarmos uma suposta “essência” do trabalho
assalariado.
O mundo do trabalho vem atravessando profundas transformações.
Inicialmente, a partir da segunda metade do século XX, verificou-se uma enorme
diminuição do operariado industrial e um expressivo crescimento das ocupações no setor
de serviços, tanto nos países centrais, de capitalismo avançado, quanto nas áreas mais
industrializadas do chamado Terceiro Mundo. Recentemente, vem-se verificando uma
grande diversificação na maneira de contratar trabalhadores, tendo-se intensificado o
trabalho temporário, o trabalho em tempo parcial, o trabalho subcontratado, o trabalho
terceirizado etc., e o chamado desemprego estrutural, que atinge praticamente todas as
partes do mundo.
90
Conseqüências da precarização das relações de trabalho e do desemprego
estrutural são a diminuição dos ganhos da classe trabalhadora, a desregulamentação das
condições de trabalho impostas pelos detentores do capital, quer em forma de franco
desrespeito às normas protetoras do trabalho, quer na forma de terceirizações legais e
muitas vezes fraudulentas, de que são exemplo as pseudocooperativas de trabalho, quer por
meio de revogação, pelos parlamentos, de parte da regulamentação trabalhista, sob o
pretexto de que, retirando-se os entraves ao rápido desenvolvimento produtivo, favorecer-
se-ia a criação de novos empregos. O sindicalismo encontra-se em declínio em todo o
ocidente, quer nos países desenvolvidos, quer naqueles em desenvolvimento, como o
Brasil. 1 Segundo Viana, (2001: 54/55), “se antes o sindicato sentava à mesa para
negociar conquistas, hoje tem de usar a pouca força que lhe resta para evitar o processo
de reconquista patronal... Se era um sindicato de ataque, agora se vê transformado em
sindicato de resposta ou de defesa”. Os vigorosos movimentos em defesa dos interesses
dos trabalhadores promovidos pelos sindicatos são cada vez mais raros, havendo ainda
diminuição dos trabalhadores associados aos sindicatos. De acordo com Antunes, (2000:
67) “pode-se destacar uma nítida tendência de diminuição das taxas de sindicalização,
especialmente na década de 1980”. Acresce-se aos problemas da diminuição das taxas de
sindicalização a dificuldade de incorporação aos sindicatos dos trabalhadores a tempo
parcial, os temporários, e aqueles vinculados à economia informal, uma vez que o
sindicalismo está tradicionalmente ligado aos trabalhadores permanentes que trabalham em
jornadas completas.
O Direito do Trabalho, originário de um período que os sociólogos do
trabalho designam de taylorista-fordista, precisa-se transformar para dar conta das novas
realidades do trabalho. O vínculo de subordinação, principal critério para a caracterização
91
de uma relação de emprego como contrato de trabalho, vem-se enfraquecendo ou
tornando-se mais difícil de ser percebido. Desaparecendo os contornos nítidos que
caracterizam o contrato de trabalho, desenvolvidos pela doutrina, fica mais difícil estender
a rede de proteção que o Direito do Trabalho confere ao empregado, para um grande
número de trabalhadores. Por outro lado, a autonomia de muitas atividades é
progressivamente reduzida, por conta do aumento da dependência econômica do
trabalhador frente à empresa, mostrando a insuficiência do critério de subordinação.
Para Barros (2001: 15), “a contraposição “trabalho subordinado” a
“trabalho autônomo” exauriu sua função histórica”. Segundo ela, as transformações dos
processos produtivos e das modalidades de atividade humana reclamam do Direito do
Trabalho uma resposta à evolução dessa nova realidade. A doutrina já sugere um novo tipo
legal, que seria o de trabalho coordenado ou trabalho parassubordinado, com tutela
inferior àquela instituída para o trabalho subordinado e superior àquela prevista para o
trabalho autônomo. A vida negocial é muito rica e dinâmica, surgindo a todo o momento
novas formas de relações não previstas pelo direito. Critérios fixados na norma ou nos
princípios, quer gerais do direito, quer particulares de um dado ramo jurídico, são muitas
vezes insuficientes para dar conta da realidade sempre mutável.
Exemplo significativo das dificuldades de se estender a proteção das normas
trabalhistas a determinadas atividades é o dos motoristas de táxi que, não dispondo de
veículo próprio, dirigem automóveis pertencentes a uma empresa, denominada locadora de
táxi, pagando uma diária previamente ajustada. Se aplicarmos o critério da subordinação de
uma maneira ortodoxa, deixamos esse tipo trabalhador de fora da proteção das normas
trabalhistas, pois, aparentemente, ele trabalha de maneira completamente autônoma, tendo
obrigação de pagar o valor ajustado com a empresa ao fim de cada dia de trabalho. A
92
dependência desse profissional é, entretanto, indiscutível. As empresas de locação de táxi
são, em regra, organizações de certo porte, dispondo de inúmeros veículos, às vazes
centenas ou milhares, e poderiam ter profissionais empregados nos moldes tradicionais
para dirigirem os seus veículos, não o fazendo por conveniência econômica, em face das
dificuldades de controle do trabalho e da renda. Por uma questão de método organizacional
dessa atividade, tende-se a considerar o motorista que trabalha para tais empresas como
trabalhador autônomo. A jurisprudência dos tribunais do trabalho é oscilante a respeito.
Encontramos decisões considerando essa atividade como relação de emprego e outras
considerando-a autônoma, como se pode ver, por exemplo, nos dois arestos a seguir
transcritos, ambos do TRT da 2ª Região, em São Paulo, apenas com relatores diferentes, o
primeiro, da lavra do Juiz Floriano Correia, com o seguinte teor: “É empregado o
motorista de táxi de propriedade de empresa que explora tal serviço, sendo nulo e írrito o
contrato de locação de táxi”. O segundo, da lavra do Juiz Francisco de Oliveira, com a
redação que segue: “Taxista, Não se traduz em vínculo, nem se vislumbra fraude, na
contratação autônoma de elemento que explora o ramo de taxista, mediante aluguel de
veículo, mediante paga diária. Corre o risco de seu próprio empreendimento, posto que
trabalha quando bem entender, permanecendo com o veículo de segunda a domingo, sem
qualquer fiscalização sobre o trabalho produzido”. (CARRION, 1992: 377-527) Isso se dá
numa atividade já tradicional entre nós, imagine-se quais as dúvidas e perplexidades as
novas formas em que se dá a prestação de trabalho não são capazes de suscitar.
As delimitações jurídicas que estabelecem as características do contrato de
trabalho, conferindo-lhe como conteúdo ordinário o trabalho, na produção direta
quantificável, em tempo ou quantidade de produtos ou tarefas executadas, distinto da
pessoa do trabalhador e em benefício direto da empresa, encontram-se hoje muitas vezes
93
misturadas pelas práticas surgidas na vida negocial. Por outro lado, é cada vez mais
exigido o envolvimento pessoal dos trabalhadores em atividades em que se leva em conta o
resultado, o que confere a esses trabalhadores largo grau de autonomia. Em relação ao
desenvolvimento da economia da informação, do trabalho criativo, o tempo de trabalho
deixa de coincidir com os parâmetros estabelecidos pelo modelo de produção que vigorou
até a primeira metade do século XX. Qual é a jornada de trabalho de um empregado da
Microsoft ocupado no desenvolvimento de novos programas de computadores, se, mesmo
jogando videogueime está procurando soluções novas para os programas que estão sob seu
encargo? O tempo de trabalho, para as novas atividades, tornou-se bizarro, incerto, difícil
de captar com os velhos parâmetros. Por outro lado, algumas atividades estão limitadas a
uma jornada de oito horas por dia, caso de um trabalhador do comércio, por exemplo,
outras se estendem e preenchem todos os momentos da vida, como o caso de um escritor,
um cientista, um artista.
No âmbito empresarial, assiste-se à inversão da tendência à concentração
em grandes unidades fabris verticalizadas. As grandes empresas procuram repassar, por
subcontratação ou por meio de empresas coligadas, atividades menos qualificadas ou que
sejam menos lucrativas, chegando a extremos, como no caso da fábrica de caminhões da
Wolkswagen, localizada em Resende, no Rio de Janeiro: onde a dona da marca controla
apenas a concepção dos produtos e os processos de produção, sendo a fabricação e mesmo
a montagem das partes componentes dos veículos integralmente terceirizadas.
As pequenas empresas, subcontratadas pelas maiores, são obrigadas a
suportar os ônus da flexibilização trabalhista, nem sempre dispondo de capacidade
econômico-financeira para tanto. No limite dessa flexibilização, desenvolve-se o falso
94
trabalho autônomo, as falsas cooperativas de trabalho, expedientes esses muito conhecidos
dos que lidam com o Direito do Trabalho entre nós.
Direito do Trabalho tem sido impotente para barrar as mudanças ou sequer
limitar as fraudes mais evidentes. Em termos da execução das tarefas, estamos passando de
um tipo de trabalho concentrado no tempo para um tipo de trabalho disperso no tempo. Em
relação à empresa, passamos daquela que assume todas as funções produtivas para a
empresa fragmentada, altamente especializada e dependente de um sem-número de outras,
fornecedoras de peças ou serviços. Essas mutações no plano econômico e organizacional
das empresas resultam em que as responsabilidades sociais, no plano jurídico-trabalhista e
previdenciário, não mais coincidam com a responsabilidade econômica. O emprego
assalariado por prazo indeterminado em período integral, que vinha tornando-se modelo
para a aplicação da legislação trabalhista, perde esse seu caráter frente às novas formas de
trabalho temporário, a tempo parcial, autônomo, informal etc. Necessitamos de novas
formas que contemplem a proteção dos novos trabalhadores nas atividades surgidas em
função das mudanças na produção.
O Direito do Trabalho não pode mais continuar sendo apenas o direito dos
empregados assalariados tradicionais, sob pena de ver restringido cada vez mais o seu
campo de atuação e de deixar sem proteção mais e mais trabalhadores. A ideologia
neoliberal, nascida sob os auspícios do governo Teacher, na Inglaterra, e Reagan, nos
Estados Unidos, revelou-se perversa nos seus efeitos sobre a economia e a sociedade,
especialmente sobre os países mais pobres e a classe trabalhadora, aumentando a
concentração de riqueza nas mãos dos já ricos, os detentores do capital, e os seus
defensores, os altos executivos. Felizmente, essa doutrina vem perdendo adeptos e exceto
uma minoria muito conservadora e míope ou os defensores intransigentes, posto que
95
beneficiários dos grandes capitais, é que ainda sustentam a ortodoxia neoliberal. Se
pretendermos preservar a paz civil e valores como liberdade, justiça e democracia,
poderemos continuar a aprofundar a divisão social entre os do topo e os da base da
pirâmide social? Até que ponto os mais pobres aceitarão a permanência do status quo ou o
agravamento da sua situação?
96
7.1 A BUSCA DE UM NOVO SENTIDO PROTETOR
As transformações do Direito do Trabalho devem-se dar num quadro mais
amplo de transformações jurídico-institucionais e implicam a ampliação da proteção
conferida pelo Direito do Trabalho e de Previdência Social para os trabalhadores em geral:
autônomos, precários, a tempo parcial etc, a ampliação das responsabilidades sociais das
empresas, que não podem ser encaradas apenas como negócios privados, propriedade
absoluta de alguém ou de alguns, que as exploram para auferirem lucros, sem
preocupações com os trabalhadores e o restante da sociedade. Isso num horizonte em que a
sociedade atual não se encontre sensivelmente transformada, isto é, que continue a
prevalecer a atual lógica societal, com o predomínio do controle privado das atividades
econômicas. Bobbio (2002: 70) entende que o desenvolvimento da democracia não
implica desenvolvimento de um novo tipo, como a democracia direta, mas a ocupação de
espaços até então dominados pelas organizações hierárquicas e burocráticas, pois, segundo
ele, “os dois grandes blocos de poder descendente e hierárquico das sociedades
complexas — a grande empresa e a administração pública — não foram até agora sequer
tocadas pelo processo de democratização”. Elias, (1994) prevê que um possível
desenvolvimento da sociedade poderá levar ao controle social das corporações de
negócios, a exemplo do que ocorreu com o desenvolvimento dos Estados nacionais,
originalmente propriedade privada de um grande senhor no sistema feudal e que se foi
agigantando, e, em conseqüência, aumentando os poderes do príncipe, até chegar ao ponto
em que foi necessário estabelecer o controle social sobre essa propriedade agigantada,
nascendo o Estado moderno, que deixou de ser propriedade de uma família, uma casa
97
reinante, passando a ser submetido ao controle de parcelas cada vez maiores da população.
A visão de Elias pode parecer fantasiosa, mas, na mesma obra, que é de 1936, ele escreve
que está nascendo um Estado único na Europa, composto dos maiores Estados nacionais e
que o processo poderá levar trinta ou trezentos anos, mas fatalmente ocorrerá. Proféticas
palavras, pois não é justamente o que está ocorrendo sob os nossos olhos e em nosso
próprio tempo? Primeiro, tivemos a unificação comercial de vários Estados europeus e,
mais recentemente, a união monetária, com a criação do euro, moeda única de doze países
da Europa. Já existe um parlamento europeu e um tribunal europeu. Pode-se viajar de um
país a outro sem ser molestado por fronteiras onde se exigem passaportes, vistos etc, O
estado único está a caminho e a passos largos na Europa.
O controle social dos grandes conglomerados industriais, financeiros e de
serviços já é uma necessidade, face ao enorme poderio acumulado por essas corporações
sobre os destinos de milhões de pessoas, algumas delas individualmente mais poderosas do
que muitos Estados. Faltam-nos instrumentos políticos, melhor dizendo, falta poder
político à sociedade para estabelecer tal controle, o que não quer dizer que isso nunca
ocorrerá. Como se dará o controle social da riqueza e da sua distribuição também não é
algo fácil de ser previsto. Provavelmente, não ocorrerá sem luta na qual poderá haver muita
violência , pois é improvável que os atuais detentores do controle da riqueza recuem de
suas posições e concordem espontaneamente em dividir essa riqueza e esse poder mantido
mediante o domínio do aparelho estatal, com todo o seu aparato institucional, que inclui a
legislação, as forças policiais e militares, a administração pública, a administração da
justiça e o controle dos meios de difusão da ideologia dominante, como a escola, a
imprensa, a arte conformista, os esportes, as festas populares e outras diversões de massa e
o mais importante: os meios de comunicação e lazer de massas, como a televisão, o rádio e
98
os jornais. Também são instrumentos de controle nas mãos dos mais ricos as forças de
segurança privadas que garantem a auto-exclusão dessa camada privilegiada que mora em
locais separados, auto-segregadas, fortemente guardadas por homens e toda uma
parafernália eletrônica e que se locomove de helicópteros e procura relacionar-se, em
locais exclusivos, apenas com os seus pares ou áulicos. É sustentável tal estado de coisas?
E se o é, por quanto tempo?
Refletindo a respeito da necessidade de controle social dos meios de
produção, Cocco (2001: 160) escreve: “paradoxalmente, na época das privatizações, a
questão da propriedade pública dos meios de produção torna-se central... Os processos de
financeirização e privatização apenas obscurecem, pelos efeitos da hiperacumulação, os
novos desafios, os que abrem uma batalha social e imediatamente política em torno da
participação de todos no trabalho e na propriedade (o que é mais do que ter emprego e
salário)”. No livro Império, Hardt e Negri (2001: 323) têm opinião semelhante quando
dizem que a nossa atual realidade econômica e social é definida pelos serviços e relações
produzidos em comum. Produzir seria, então, cada vez mais, construir “comunalidades”
(sic.) de cooperação e comunicação. Nessa situação, o conceito de propriedade como o
direito de usar, gozar e dispor livremente de um bem seria cada vez mais despropositado,
pois é cada vez menos o número de bens que podem ser possuídos exclusivamente. A
comunidade é que produz e, nessa produção, é reproduzida e redefinida. “A propriedade
privada, apesar de sua força jurídica, não tem como deixar de tornar-se um conceito mais e
mais abstrato e transcendental, e, portanto, mais afastado da realidade “.
Qual a opção ao controle social da riqueza? A eliminação dos homens
tornados supérfluos, como teme Forester? A marginalização total dos descartados?
99
Mesmo nos marcos da atual divisão do poder e do controle da riqueza,
pode-se pensar novas formas de inclusão social em favor das categorias marginalizadas
pelo desemprego ou pela precarização das relações de trabalho. Toda a coletividade deve
ser envolvida na busca de soluções e na divisão das responsabilidades. A idéia de uma
renda mínima para todos não é nova, tem um precedente em Thomas Paine, inglês que
participou da Revolução Americana, foi secretário de estado no governo do General
Washigton e em 1796, preconizou o pagamento, sem condições, de uma dotação invariável
a todos os adultos que compusessem a sociedade. O pagamento de uma renda mínima a
todos que não tenham uma fonte estável da qual possam tirar o sustento próprio e de seus
familiares é justo e desejável, muito embora possa ser fonte de acomodação e estigma
social para os beneficiários de tais programas, e ser tomado como equivalente público da
caridade privada. Entretanto, os inconvenientes dos programas de renda mínima podem ser
atenuados se combinados com outros programas de inserção social através de educação,
treinamento para novas profissões, práticas estimuladas de esportes, participação em
círculos de discussão com pessoas em situação semelhante etc.
Por outro lado, a substituição de governos pode ser de fundamental
importância para diminuir a precarização dos direitos dos trabalhadores, desde que os
novos governantes se comprometam com os interesses das amplas maiorias e adotem
ativas políticas de ampliação das possibilidades de trabalho, seja por meio de estímulos à
criação de empregos, seja pelo apoio a microempresas ou a atividades autônomas,
redistribuição da propriedade fundiária etc. Políticas públicas de apoio aos sindicatos, ao
invés de outras visando à sua subordinação ao governo e ao capital, e legislação que tenha
em mira proteger o trabalhador também são capazes de impedir os recuos de conquistas
duramente obtidas.
100
As mudanças de governo preconizadas não são aquelas trocas rotineiras de
governantes em virtude do término do prazo legal dos mandatos eletivos, muito embora
não ignoremos que, mesmos essas substituições, possam levar a alguns ganhos para
aqueles que vivem do trabalho. O que temos em mente, porém, são as mudanças mais
profundas, decorrentes das lutas sociais e políticas da população organizada em sindicatos,
ONGs, associações civis de diversas espécies, igrejas, etc, que impliquem na eleição de
governantes firmemente comprometidos com os interesses da maioria e não, como
acontece atualmente, com determinados grupos altamente organizados e poderosos, ligados
ao capital.
101
CONCLUSÃO
Após mostrarmos que a atual maneira de encarar o trabalho humano como
um valor em si, a ponto de se lhe atribuir caráter ontológico — segundo Marx , o ser social
do homem deriva do trabalho — foi plasmada historicamente, por meio da ética protestante
e do industrialismo, encontramo-nos em condições de afirmar que, no momento em que o
trabalho começa a rarear, devido à substituição de seres humanos nas atividades mecânicas
primeiro e, depois nas atividades mentais por máquinas, as idéias a respeito do trabalho
necessitam sofrer radical transformação.
Muito embora o trabalho, num horizonte previsível, persista como fonte de
obtenção de renda e de inserção social, não deverá continuar a ser considerado como um
valor em si mesmo, independentemente de qualquer finalidade, devendo ser socialmente
admitido viver sem trabalhar. Por outro lado, o trabalho que resta deverá ser dividido entre
aqueles que necessitam e querem trabalhar. Para que isso se torne possível, a jornada de
trabalho deverá ser sensivelmente reduzida, de modo a propiciar oportunidades de trabalho
ao maior número de pessoas. Todos trabalhariam menos horas para que cada um pudesse
ter trabalho.
Reconhecemos que o estágio de desenvolvimento a que chegamos não
parece apontar para um futuro promissor em matéria de participação de todos nos frutos da
riqueza social através do trabalho ou de formas outras, antes pelo contrário. O
enfraquecimento das organizações de trabalhadores, a diminuição da sua participação
política, a diminuição de conquistas que já pareciam definitivas, como as proporcionadas
pelo estado de bem-estar social, indicam uma tendência oposta.
102
A história da moderna sociedade ocidental, no entanto, tem-se caracterizado
por um alargamento da democracia, alargamento esse entendido como a inclusão de
parcelas crescentes da população nas decisões políticas e também numa maior participação
dessa na riqueza produzida socialmente. Embora o alargamento das bases do poder político
e na participação na renda nacional possa ser constatado historicamente, isso não se deu de
maneira retilínea. Na primeira metade do século XX, por exemplo, tivemos o
recrudescimento do poder despótico em vários países, a exemplo do que ocorreu na Itália,
com o fascismo, e na Alemanha, com o nazismo, despotismos que fizeram recuar a
liberdade e reduziram a participação do povo a mero simulacro.
A atual conjuntura político-econômica, na qual os detentores do controle da
riqueza e do poder político aumentam a sua participação relativa em tal controle, em
detrimento das camadas menos favorecidas de trabalhadores subordinados ou autônomos,
bem pode ser um momento de inflexão histórica mais ou menos duradouro mas que, ao
fim, revelar-se-á um mero recuo temporário na tendência histórica de maior
democratização da sociedade.
Pensamos que vivemos em uma época de transição e que a participação de
parcelas cada vez maiores da população no poder político e na divisão da riqueza social
tende a aumentar, no longo prazo, seguindo a tendência histórica. Apesar da
imprevisibilidade do futuro, podemos aventar caminhos possíveis para o alargamento da
democracia: um maior controle social das grandes empresas, implicando uma maior
distribuição da riqueza e do poder, é uma probabilidade.
Juntamente com as modificações no âmbito político e econômico, algumas
mudanças na regulamentação jurídica do trabalho humano são não apenas necessárias mas
verdadeiramente urgentes, devido à circunstância de o Direito do Trabalho, fruto da
103
Revolução Industrial, estar baseado em um modelo de prestação de serviços — trabalho
permanente, subordinado, em horário integral — que tende a tornar-se senão a exceção,
diante de outras formas, como o trabalho precário, a tempo parcial, autônomo etc., um
modelo minoritário frente aos demais.
No Brasil, a Consolidação das Leis do Trabalho, diploma legal no qual estão
contidas as normas básicas de proteção ao trabalhador, dispõe no art. 3°: “Considera-se
empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a
empregador, sob a dependência deste e mediante salário”. Só a tais trabalhadores, aqueles
que prestam serviços em caráter permanente e subordinados a empregador, os
denominados pela doutrina “empregados”, é que se deve abrir o guarda-chuva protetor da
legislação trabalhista. Os demais trabalhadores devem continuar à margem das garantias
oferecidas pelo Direito do Trabalho? Obviamente não. Concordamos com Andrade (2001:
557-561) que propõe seja o Direito do Trabalho um direito humano fundamental, o que
significa estender a rede de proteção legal desse ramo do direito a toda prestação de
trabalho em benefício de terceiros.
A proteção legal ao trabalho realizado para outrem deve-se dar mediante a
garantia de condições mínimas de trabalho respeitantes a higiene e segurança do
trabalhador e dos locais de trabalho, contraprestação pecuniária mínima, intervalos
regulares para repouso, proteção contra infortúnios, como acidentes e doenças que
incapacitem temporária ou definitivamente para o trabalho.
Em países nos quais, como o Brasil, há uma justiça especializada
competente para julgar dissídios entre empregados e empregadores, a Justiça do Trabalho,
muito mais célere do que a Justiça Comum e praticamente gratuita para o trabalhador,
quaisquer demanda envolvendo a prestação de trabalho remunerado deve ser de
104
competência da Justiça do Trabalho, independentemente de ser a relação de trabalho
subordinada ou não. Isso ajudará a dar efetividade à proteção legal ao trabalho remunerado
em qualquer circunstância em que for prestado.
105
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