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A CONQUISTA DO ENSINO SUPERIOR EM MATO GROSSO:
HISTORIA E MEMORIA
Renata Neves Tavares de Barros Freitas - UFMT
Educa~ao - Historia-Memoria
Este trabalho, fruto da pesquisa realizada no ambito do Curso de Mestrado, busca
reconstruir 0 processo hist6rico da criayao da Universidade Federal de Mato Grosso
(UFMT), entre os anos de 1967 e 1970, periodo em que se intensificaram os debates para a
sua criayao, privilegiando a amilise da mobilizayao da comunidade local (Cuiaba). Essa
mobilizayao ocorreu no contexto dos governos militares, numa epoca anterior a divisao do
Estado de Mato Grosso, marcada pela acirrada disputa entre 0 norte, capitaneado por
Cuiaba, a entao capital do estado, tida como a capital cultural e administrativa, e 0 suI,
representado por Campo Grande, concebida como a capital economica, pela hegemonia de
poder na regiao.
Embora a criac;;aode uma universidade no estado fosse concebida com inevitavel, a
existencia do movimento citadino pela sua criac;;ao,ao mesmo tempo em que "apressou" a
decisao federal, parece ter sido fundamental para que Cuiaba fosse a sede de uma
Universidade Federal, uma vez que a influencia oriunda da supremacia economica de
Campo Grande apontava para uma outra direc;;ao: sediar a UFMT no suI do Estado,
contrariando a 16gica entao existente de implantayao da primeira universidade federal nas
capitais.
Trata-se de urn registro academico plOneHO sobre esse movimento social, cUJa
hist6ria, ate entao, encontrava-se inscrita apenas nas lembranc;;as individuais de seus
protagonistas. Muitos deles ou ja sao falecidos ou se encontram em idade avanc;;ada,0 que
nos colocou diante da necessidade urgente de apreender suas mem6rias para registrar a
participac;;ao da comunidade local nessa luta.
A reconstruc;;ao da trajet6ria desse movimento foi subsidiada na Hist6ria Oral, por
melO da realizac;;ao de entrevistas que provocaram depoimentos orais trazendo a tona
lembranc;;as individuais mediante a atividade de rememorac;;ao do passado vivido. 0 recurso
a mem6ria oral dos protagonistas foi utilizado como alternativa a escassez de registros
sobre a participac;;ao da populac;;ao local na luta pela criac;;aoda UFMT. Soma-se a isso 0
reconhecimento de que 0 recurso a mem6ria ajudaria a vislumbrar a multiplicidade de
enfoques, de angulos, de pontos de vista, sendo portanto capaz de recuperar essa passagem
da historia em sua complexidade.
As entrevistas foram realizadas com 14 sujeitos representantes de varios setores da
sociedade: lideres estudantis, alunos secundaristas, professores e alunos das instituiy5es de
ensino superior entao existentes, deputado federal, entre outros.
Inicialmente, procurei pessoas que notoriamente haviam estado presentes aos
acontecimentos daquele periodo, seja por sua condiyao de lideres seja porque era voz
corrente sua participayao. Junto a esses primeiros entrevistados foi possivel confirmar a
hipotese inicial de que teria havido urn movimento estudantil na gestayao da UFMT. A
partir de entao, cada depoente sugeriu, a vezes espontaneamente e as vezes induzidos por
mim, nomes para as futuras entrevistas. Estas sugest5es podem ser explicadas pelo fato de
que "somos, de nossas reeordac;iJes, apenas uma testemunha, que as vezes nao ere em seus
proprios olhos efaz apelo eonstante ao outro para que eonjirme a nossa visao ".i
Como 0 numero de possiveis sujeitos para a pesquisa nao parava de crescer, optei
pelo criterio de que aceitaria como novos depoentes aquelas pessoas que tivessem sido
indicadas por mais de urn entrevistado. Considerando que as pessoas mais citadas, com as
quais realizei as entrevistas, foram capazes de fornecer-me informay5es necessarias para a
reconstruyao dos fatos, nao procurei aquelas citadas uma so vez.
Urn fato bastante interessante ocorreu nesta etapa da pesquisa: varias pessoas que
tiveram conhecimento da realizayao deste trabalho, se colocaram espontaneamente a
disposiyao, no senti do de contribuir para a reconstruyao e 0 registro da mobilizayao pela
criayao da UFMT. Esse acontecimento funcionou como uma especie de "mola
propulsora", pois sentia cada vez mais de perto 0 entusiasmo dos protagonistas em ver toda
essa historia resgatada.
Convem mencionar que entre os entrevistados se encontram alguns que, sem ter
participado do processo, se ofereceram para dar seu depoimento, argumentando ter sua
historia profissional ligada intimamente a esta Instituiyao. Tal argumento foi por mim
ace ito e tais pessoas entraram no rol dos depoentes porque as informay5es que me deram
puderam mostrar angulos significativos do papel da UFMT na regiao.
As entrevistas tiveram durayao media de uma hora, sendo que os depoimentos
foram gravados em fitas. Atraves dos depoimentos obtive informayoes bastante valiosas, 0
que contribuiu decisivamente na reconstruyao da trajetoria dessa mobilizayao, durante a
qual foram realizadas diversas manifestayoes, como por exemplo, abaixo-assinados,
passeatas, comicios, acampamentos em frente a sede do governo etc. No decorrer de sua
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realizayao, procurei deixar os depoentes "livres para lembrar". Nesse sentido, utilizei-me
de entrevistas abertas, 0 que se de urn lado facilitou e enriqueceu a coleta de dados, por
outro lado, dificultou-me a analise dos mesmos. Pela riqueza do material obtido, os
depoentes foram participes fundamentais na recomposiyao deste quadro.
Alem dos depoimentos, outras fontes utilizadas para a coleta de dados foram os
jornais veiculados na epoca (Diario de Cuiaba, 0 Estado de Mato Grosso e Tribuna
Liberal) e os documentos oficiais existentes. A memoria oral foi cotejada com a memoria
arquivada, permitindo a reconstruyao da historia do movimento pela criayao da UFMT
com uma riqueza de detalhes que, de outra forma, nao teria sido possivel.
Este estudo configura-se como uma pesquisa historica, cuja preocupayao maior foi
com a reconstruyao do passado relativo a luta empreendida pel a criayao da Universidade
Federal de Mato Grosso. Convem salientar 0 compromisso deste estudo com uma "historia
viva", preocupada em fazer uma leitura do passado, entre tantas outras possiveis, a partir
das memorias daqueles que vivenciaram 0 momenta em questao(FENELLON, 1994).
Nesse sentido, urn dos pressupostos basicos foi a relayao entre passado e presente,
entre ayao e pensamento, na perspectiva de nao permitir que a historia aparecesse "como
uma necropole adormecida, onde perpassam apenas sombras despojadas de substdncia. "ii
Pelo contnirio, procurei dar visibilidade as vozes daqueles que estiveram engajados no
processo historico de criayao da UFMT, evidenciando aquilo que as pessoas comuns
lembram dos acontecimentos, a partir do seu cotidiano de lutas e reivindicayoes.
o estudo do fato cotidiano, ainda que seja considerado como nao-acontecimento,
como algo sem significayao pelos grupos majoritarios (governos, Igrejas, partidos
politicos), possibilita "uma determinaqao dos sintomas que definem 0 estado de saude de
uma sociedade". iii Por constituir-se a parte do funcionamento institucional, 0 seu estudo
caracteriza-se, ao mesmo tempo, como urn instrumento revelador e uma necessidade
historica.
Nesse contexto, cabe ao historiador elucidar 0 caso e fornecer urn fio condutor, na
interface das funyoes critica, civica e etica, procurando desvelar os meios atraves dos quais
uma sociedade "se pensa, se exprime e se historiciza "iv
A memoria do processo de gestayao da UFMT e algo real, presente no conteudo
dos jornais da epoca, nas fotos em aIbuns de familia, nas lembranyas das pessoas que dele
participaram. Entretanto, "por muito que se deva a memoria coletiva, e 0 individuo que
recorda"v e, a medida que os anos passam, arrancando de nosso convivio muitos dos
protagonistas, ameayando a sobrevivencia do acervo contido em suas recordayoes,
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encontramo-nos diante da necessidade urgente de preservar essas lembranc;as, atividade
esta que, de acordo com BOSI (1994), nao teria outro caminho senao escrevendo sobre as
mesmas, procurando fixar os seus trac;os cada vez mais fugidios, na medida em que "0
{mico meio de salvar as lembram;as e .fixa-las por escrito, uma vez que as palavras e os. nvipensamentos morrem, mas os escntos permanecem.
A mem6ria coletiva e urn ponto de convergencia entre as ciencias humanas e
sociais, sendo construida a partir das lembranc;as do que as pessoas vivenciaram
concretamente no cotidiano de uma realidade socia1.vii HALBWACHS propoe uma analise
que compreenda a sociedade em sua totalidade, concebendo 0 individuo integrado na vida
social. Nessa perspectiva 0 Autor nos alerta para 0 fato de que
"nossas lembranr;aspermanecem coletivas, e elas nos silo lembradaspelos outros, mesmo que se {rate de acontecimentos nos quais s6 n6sestivemos envolvidos, e com objetos que s6 n6s vimos. If; porque, emrealidade, nunca estamos s6s. "VIII
Em decorrencia da integrac;ao do individuo na realidade do seu meio social, suas
lembranc;as adquirem consistencia quando remetidas as de outros integrantes desta mesma
realidade, isto e, algo que foi vivenciado e experimentado concretamente, como parte de
uma cotidianeidade compartilhada comunitariamente, atraves da interayao social.ix E nesse
sentido que HALBW ACHS afirma que a nossa mem6ria nao se apoia na historia
aprendida, mas na hist6ria vivida.
Por esta razao pode-se dizer que mem6ria nao e sonho, e trabalho, sendo a
lembranc;a uma imagem construida pelos materiais que se encontram agora a nossa
disposic;ao. Disso decorre a impossibilidade de reviver 0 passado tal como 0 ocorrido, uma
vez que 0 contexto social encontra-se modificado, restando-nos a possibilidade de
"re./azer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiencias do
passado. "x
Segundo PORTELLI (1997), a Hist6ria Oral, por se ater as versoes do passado,
salienta a essencialidade do individuo. A faculdade de lembrar, ainda que moldada de
varias formas pelo meio social, e intrinsecamente uma arte profundamente pessoal. Nessa
perspectiva, "a historia oral e, num sentida mais amp la, uma ciencia do individuo, na qual
contextos sociaculturais interagem com a su~jetividade individual. "xi
A medida que a pessoa recorda, burilando as lembranc;:asdo passado, traz a tona os
simbolos que foram construidos a partir da realidade cotidiana, de forma interativa.
Entretanto, nem todos os entrevistados se lembram das mesmas situac;:oes, uma vez que
cada urn deles retem do passado aspectos que the foram significativos, tendo em vista que
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do passado ''fica 0 que sign?fica. E.fica nao do mesmo modo: as vezes quase intacto, as
vezes profundamente alterado. "xii Dessa forma, a Historia Oral tende a representar a
realidade nao atraves de uma uniformizayao, onde todas as peyas sao iguais, mas como urn
mosaico,onde "cada entrevista e importante por ser diferente de todas as outras. "xiii
"A memoria e um processo individual, que ocorre em um meio socialdinamico, valendo-se de instrumentos socialmente criados ecompartilhados. Em vista disso, as recordac;:oespodem ser semelhantes,contradit6rias au sobrepostas. Porem, em hip6tese alguma, aslembranc;:asde duas pessoas sao - assim como as impressoes digitais, oua bem da verdade, como as vozes - exatamente iguais. "XIV
:E preciso ressaltar que a memoria coletiva nao pode ser confundida com a historia.
"Do mesmo modo que 0 passado nao e historia, mas objeto da hisloria, assim a memoria
nao e historia, mas urn de seus o~jelos. "xv De acordo com HALBW ACHS (1990),
enquanto a memoria e primitiva e instintiva, a hist6ria e autoconsciente, com poder de
abstrayao. A memoria nao se resume a ser urn mero instrumento armazenador de imagens
do passado, pois e uma forya ativa e dimimica. "E uma corrente de pensamento continuo,
de uma continuidade que nada tern de artificial, ja que retem do passado somente aquilo
que ainda esta vivo ou capaz de viver na consciencia do grupo que a mantem."xvi Os
conteudos nao verbalizados nas entrevistas sao tao importantes quanta os que foram ditos;
os silencios tern significados. E neste ponto reside uma das grandes contribuiyoes da
Historia Oral que, ao transformar "objetos de estudo" em "sujeitos", concorre "para uma
historia que nao so e mais rica, mais viva e mais como vente, mas tambem mais
verdadeira. "XVii
Pela riqueza das informayoes obtidas atraves das entrevistas, os depoentes foram
participes fundamentais na recomposiyao da luta pela criayao da UFMT. Durante essas
entrevistas, nasceu uma relayao permeada pelo mutuo interesse em conservar 0 narrado,
em registrar 0 passado, de onde emerge 0 reconhecimento de que "a arte essencial do
historiador oral e a arte de ouvir. "xviii Por esta razao, "a memoria e afaculdade epica por
excelencia. "xix Complementando essa ideia, poderiamos dizer que "somos aquilo que
lembramos. Alem dos afetas que alimentamos, a nossa riqueza sao os pensamentos que
pensamos, as ar;i5es que cumprimos, as lembranr;as que conser vamos e nao deixamos
apagar e das quais somos 0 unico guardiao. "xx
Para a realizayao desta pesquisa, parti da hipotese de que teria havido urn
movimento estudantil na gestayao da UFMT, uma vez que me parecia inconcebivel
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entende-Ia como d<idiva de urn governo, apostando na existencia da participayao dos
estudantes locais na conquista do direito de acesso ao ensino superior.
As primeiras entrevistas confirmaram a hipotese inicial, contrariando certa
incredulidade vigente quanta a sua sustentayao. Incredulidade esta possivelmente
produzida pelo fato de que 0 conteudo da historia oficial nao faz referencia a qualquer
participayao popular. Por tradiyao herdada ao longo dos tempos, costuma-se atribuir poder
de decisao e de reivindicayao as classes hegemonicas, as elites polfticas, numa crenya de
que a historia so e feita pelos mais fortes, sendo a participayao popular desmerecida e
silenciada. Devido a essa incredulidade, reforyada pel a quase inexistencia de escritos que
registrem a participayao da populayao local na luta pel a criayao da UFMT, disseminou-se
na sociedade mato-grossense a ideia de sua criayao como luta isolada de grupos politicos
detentores de algum poderio regional, sem qualquer participayao social. E e contra essa
ideia, que perpassa 0 senso comum, que esta pesqui sa se contrapos desde 0 principio, com
o proposito de evidenciar que a aspirayao popular a democratizayao do ensino superior,
fortalecida atraves das reivindicayoes e lutas empreendidas naquele momenta historico,
concorreu para a criayao da Universidade Federal de Mato Grosso.
Nesse sentido, fundamental e oportuna foi a participayao dos estudantes
secundaristas, dos professores e alunos da Faculdade Federal de Direito de Mato Grosso e
do Instituto de Ciencias e Letras de Cuiab<i. Nas atuayoes desses diferentes segmentos do
setor educacional, traduzia-se a necessidade de lutar contra 0 exodo da mocidade mato-
grossense para 0 sui do pais, de qualificar a mao de obra local de acordo com as
peculiaridades da regiao.
De acordo com 0 material coletado, atraves dos depoimentos e das noticias da
imprensa, pode-se dizer que Cuiab<i se mobilizou pel a criayao da Universidade Federal, e
mobilizou-se muito. Entre os anos de 1967 e 1970 parece ter sido 0 assunto do momenta
na Capital, aglutinando pessoas de origens diversas: estudantes secundaristas, estudantes e
professores dos cursos de nivel superior entao existentes, donas de casa, comerciantes, a
imprensa local, politicos de esquerda e de direita, Mayonaria, Lions Clube etc. ...Enfim,
era uma camada significativa da populayao local reivindicando a criayao da UFMT, com
sede em Cuiaba. E nesse ponto esteve a grande divergencia: onde sediar a UFMT?
o periodo em questao antecede a divisao territorial do Estado de Mato Grosso,
epoca marcada pela acirrada disputa entre 0 norte e 0 sui pela hegemonia de poder na
regiao. Campo Grande (suI) e Cuiab<i (norte) travavam entre si uma luta historica, de
longa data. 0 sui do Estado jamais aceitou Cuiaba como capital e esta, por sua vez, nao
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admitia a supremacia economica e eleitoral de Campo Grande. A luta pela cria<;ao da
UFMT emerge nesse contexto de extrema rivalidade, com ambas as cidades reivindicando
para si a instala<;ao da sede da Universidade.
A origem sulista do entao governador Pedro Pedrossian agravava a situa<;ao, uma
vez que toda a sua sustenta<;ao politica estava no suI do Estado. Decorrente dessa
peculiaridade, dizia-se neutro na disputa entre Cuiaba e Campo Grande, preferindo deixar a
decisao da localiza<;ao da sede da Universidade a cargo do Ministerio da Educa<;ao. Essa
indefini<;ao interna parece ter dificultado e retardado a cria<;ao da UFMT. Somam-se a
esse quadro algumas medidas tendenciosas a favor de Campo Grande, como, por exemplo,
o inicio das obras da cidade universitaria de la, antes mesmo que Cuiaba estivesse
aparelhada, 0 que despertou nos habitantes da Capital urn sentimento apaixonado de amor
as tradi<;oes locais, fazendo com que se unissem, a principio, por la<;os de amizade, em
defesa dos direitos constitucionais de Cuiaba, enquanto Capital de Mato Grosso. "Foi um
movimento local, de amor a Cuiab6, a Mato Grosso e de crenc;a de que nos como Capital
tinhamos 0 direito de ter a Universidade Federal aqui em Cuiab6 ", afirma urn dos
protagonistas.
CONSIDERA<;:OES FINAlS
Neste processo de reconstru<;ao hist6rica do periodo gestacional da Universidade
Federal de Mato Grosso, cumpre-nos registrar algumas considera<;oes relevantes.
Inicialmente e preciso destacar que 0 movimento pel a cria<;ao da UFMT come<;ou a
se estruturar a partir do momenta em que a carencia de acesso ao ensino superior no Estado
de Mato Grosso passou a ser sentida pela sociedade local como uma necessidade real. Nao
teria havido aqui a demanda pela universidade se as pessoas nao a percebessem como urn
bern a ser conquistado. Foi a existencia dessa carencia, aliada a conscientiza<;ao social
acerca da necessidade de prove-la, que desencadeou todo 0 processo de luta pel a cria<;aode
uma Universidade Federal no Estado.
Esse processo de luta, caracterizado como movimento citadino, consegmu
paulatinamente congregar diversos atores sociais. Se, a principio, foi uma causa dos
estudantes secundaristas e dos estudantes dos estabelecimentos de ensino superior entao
existentes, a medida que as reivindica<;oes come<;am a ganhar visibilidade atraves das
manifesta<;oes de rua, passa a mobilizar multiplos atores: comercio, politicos, entidades
representativas, imprensa, donas-de-casa. A partir de entao, a cria<;~aoda UFMT deixa de
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ser uma aspirayao estritamente estudantil para se constituir na causa de toda a populayao
local.
o periodo em evidencia precede a divisao do Estado de Mato Grosso, cUJa
peculiaridade maior era a acirrada disputa intema entre 0 norte, representado por Cuiaba, e
o suI, capitaneado por Campo Grande. A primeira tentava de todas as formas fazer valer a
sua condiyao historica de Capital do Estado, enquanto que a segunda, detendo a
supremacla economica e eleitoral, lutava contra Cuiaba pela hegemonia de poder no
Estado.
A luta pela criayao da UFMT aflora ainda mais esse sentimento oposicionista,
fazendo com que ambas as cidades se organizassem em frentes isoladas para obter do
Govemo Federal a autorizayao de abrigar a sede da reitoria da Universidade. Pode-se dizer
que esta foi outra luta dentro da luta maior de democratizayao do ensino superior, de
conquistar a UFMT para 0 Estado. Para nortistas e sulistas a questao da sede era ponto de
honra.
Neste cenario de extrema rivalidade, a indefiniyao do chefe do executivo estadual
(politico de bases sulistas) quanto a localizayao da sede parece ter retard ado e dificultado 0
nascimento da UFMT. Para se ter uma ideia da situayao, no Ministerio da Educayao havia
dois pedidos de criayao da UFMT: 0 primeiro, encaminhado pelos manifestantes do norte
solicitando a sua criayao, com sede em Cuiaba; 0 segundo, encaminhado pelos sulistas,
reivindicando a sede em Campo Grande. Fruto dessa disputa, nasce a Universidade
Estadual de Mato Grosso (UEMT), como uma medida do governo estadual para arrefecer
os animos sulistas face a perda da disputa pela UFMT. De certa forma, pode-se dizer
que a rivalidade Cuiaba x Campo Grande acabou produzindo urn saldo positivo, na medida
em que Mato Grosso conquistou duas universidades, ao inves de urna, concorrendo para
aumentar as oportunidades da juventude mato-grossense de acesso ao terceiro grau, num
processo de democratizayao do ensino superior no Estado.
o caminho ate a implantayao da UFMT foi arduo para os manifestantes, em meio aameaya cada vez mais concreta de Campo Grande sediar a UFMT. Por todas as
dificuldades encontradas, vividas e superadas pelos seus atores no decorrer de todo 0
processo, a luta pela criayao da Universidade Federal de Mato Grosso vive etemizada na
memoria dos seus protagonistas, os quais se sentem orgulhosos de te-Ia empreendido, uma
vez que esta parece ter sido a maior luta ja ocorrida na Capital do Estado, capaz de
mobilizar toda a cidade.
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Vencida a luta contra 0 exodo da j uventude local para os grandes centros em busca
da aquisic;ao do saber, a criac;ao da UFMT foi urn marco para 0 Estado de Mato Grosso.
Na sua implantac;ao foi possivel conhecer outro modelo de universidade que nao fosse
adepto dos curriculos do eixo Rio - Sao Paulo: nascia uma universidade voltada aos
interesses regionais, preocupada em responder as suas necessidades - era a Universidade
da Selva ou "Universidade de indio", como alguns ignorantes de sua filosofia costumavam
referir-se a ela. Por seu pioneirismo e pela ousadia dos seus projetos, passou a ser
conhecida nacional e intemacionalmente. Foi 0 grande momenta da UFMT, razao pela
qual se fazem necessarios novos estudos, novas pesquisas, que deem conta de explorar e
analisar a trajet6ria dessa fase inicial da UFMT - a Uni-Selva.
Este trabalho, cujo objetivo foi resgatar a participac;ao da populac;ao local na
reivindicac;ao pelo ensino superior publico no Estado de Mato Grosso, servira tambern para
promover uma reflexao acerca do delicado momenta por que passam as universidades
publicas deste pais, de onde resulta a importancia hist6rica de recuperac;ao daquele
processo de luta no momenta presente.
Estamos numa linha limitrofe de cerceamento dos direitos sociais adquiridos ao
longo dos tempos, direitos estes que foram conquistados no embate de fon;as entre a
sociedade civil e 0 Estado. Dessa forma, passam a estar seriamente comprometidos 0
direito a educac;ao, a saude, a moradia, aos meios de transporte etc. Particularmente, no
que se refere a educayao, estamos diante da ameaya concreta de desmantelamento do
ensino superior publico e gratuito.
Nao ha tempo para espera. A hist6ria nos convoca a aglr em defesa do malOr
patrimonio de urn povo: a educac;ao e a cultura. Nessa perspectiva, este trabalho
intenciona ser nao uma fuga dos conflitos atuais, numa viagem saudosa ao passado. Mas,
sobretudo, constituir-se como uma fonte a desvelar para a atual sociedade mato-grossense
reflex5es e motivos pelos quais se envolver na luta pel a manutenyao da Universidade
Federal de Mato Grosso.
NOTASiB051, 1994, p. 407ii FEBVRE apud MOTA, 1992."' FERRO, 1989, p. 121.iVBEDARIDA, 1998, p. 151.vv B051, 1994, p. 411.vi HALBWACHS, 1990, p. 80-81.viiHALBWACH5, 1990.viii Idem, p. 26
"BERGER & LUCKMANN, 1985.
9
XBOSI, 1994, p. 55.
xipORTELLI, 1998.
xiiBOSI, 1994, p. 66.
xiii PORTELLI, 1997, p. 17.
xivldem, 1997, p. 16.
xVSAMUEL, 1997, p. 44.
xV'HALBWACHS, 1990, p. 81-82.
xViiTHOMPSON, 1992, p. 137.
xViiipORTELLI, 1997, p. 22.
xix BOSI, 1994, p. 90.
xxBOBBIO, 1997, p. 30.
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