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 A Construção de uma Identidade Pantaneira Eudes Fernando Leite – UFMS/Dourados Neste texto, parto de algumas observações feitas por Michael Pollak 1  a respeito da memória e suas articulações com a identidade, em especial, a identidade social, procurando demonstrar a imbricação entre memória e identidade, discutindo a problemática da identidade pantaneira. Pollak, intelectual austríaco (Viena, 1948-1992) dedicou parte significativa de suas reflexões à temática da identidade social. No Brasil, sua presença parece ter sido marcante, especialmente frutífera quando esteve no CPDOC e no Museu Nacional, no final dos anos 1980. Dois textos publicados na Revista Estudos Históricos, em 1989 e 1992, parecem-me de importância singular para reflexão da problemática entre memória, identidade social e história de vida, pois fazem um balanço dessas questões, articulando-as e demonstrando sua importância naquele momento e, penso, no presente. O autor em tela é enfático ao tomar um aspecto importante da história oral, metodologia que possibilita a produção de um tipo de fonte plurissignificativa para as pesquisas em alguns campos de investigação nas humanidades, que é a recolha de um tipo de memória, individual ou coletiva, impondo a partir de então determinados problemas na forma de tratamento desse material. A preocupação com a construção do fenômeno mnemônico já fora tratado por Halbwachs 2 , nos anos 1920-30 e tem recebido novas e revigoradoras contribuições, na mesma trilha, que indicam a presença da experiência coletiva no forjar da memória e, em seguida, proporcionando mutações constantes na sua forma de permanência. De acordo com Pollak, a memória necessita de, pelo menos, três fatores contributivos para seu aparecimento e existência, a saber: a) os acontecimentos; b) as personagens e, c) os lugares. A partir desses três fatores, é possível compreende r melhor, partindo de algumas  ANPUH – XXIII SIMPÓSIO NACIONA L DE HISTÓRIA – Londrina, 2005. 1

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  • A Construo de uma Identidade Pantaneira

    Eudes Fernando Leite UFMS/Dourados

    Neste texto, parto de algumas observaes feitas por Michael Pollak1 a respeito da

    memria e suas articulaes com a identidade, em especial, a identidade social,

    procurando demonstrar a imbricao entre memria e identidade, discutindo a

    problemtica da identidade pantaneira. Pollak, intelectual austraco (Viena, 1948-1992)

    dedicou parte significativa de suas reflexes temtica da identidade social. No Brasil,

    sua presena parece ter sido marcante, especialmente frutfera quando esteve no

    CPDOC e no Museu Nacional, no final dos anos 1980. Dois textos publicados na Revista

    Estudos Histricos, em 1989 e 1992, parecem-me de importncia singular para reflexo

    da problemtica entre memria, identidade social e histria de vida, pois fazem um

    balano dessas questes, articulando-as e demonstrando sua importncia naquele

    momento e, penso, no presente.

    O autor em tela enftico ao tomar um aspecto importante da histria oral,

    metodologia que possibilita a produo de um tipo de fonte plurissignificativa para as

    pesquisas em alguns campos de investigao nas humanidades, que a recolha de um

    tipo de memria, individual ou coletiva, impondo a partir de ento determinados

    problemas na forma de tratamento desse material.

    A preocupao com a construo do fenmeno mnemnico j fora tratado por

    Halbwachs2, nos anos 1920-30 e tem recebido novas e revigoradoras contribuies, na

    mesma trilha, que indicam a presena da experincia coletiva no forjar da memria e, em

    seguida, proporcionando mutaes constantes na sua forma de permanncia. De acordo

    com Pollak, a memria necessita de, pelo menos, trs fatores contributivos para seu

    aparecimento e existncia, a saber: a) os acontecimentos; b) as personagens e, c) os

    lugares. A partir desses trs fatores, possvel compreender melhor, partindo de algumas

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  • entrevistas feitas com pantaneiros, circunstncias e caractersticas que indicam o formato

    e as caractersticas de uma identidade coletiva que se assenta muito fortemente no

    pressuposto da diferenciao e, conseqentemente, articulao como a noo de

    pertencimento nao brasileira. Nesse sentido, lanar o olhar para a existncia de uma

    noo identitria, cujo circuito espacial pode ser denominado de regional, no a exclui, ao

    cabo, da relao e/ou subordinao da identidade coletiva brasileira.

    Sob tal perspectiva, possvel compreender alguns pontos da identidade

    pantaneira, tomando por base entrevistas realizadas com moradores trabalhadores de

    fazenda de gado da sub-regio conhecida como Nhecolndia.

    Para aclarar essas ponderaes, passo a tratar de aspectos que corporificam o

    fenmeno do qual trato nesse paper. No dia 21 de dezembro de 1996, nos dirigimos at

    uma modesta residncia, instalada na periferia de Corumb, cidade localizada no

    pantanal sul-mato-grossense. A nossa espera, encontramos o senhor Valdomiro Lemos

    de Aquino, na ocasio com 60 anos de idade. O senhor Valdomiro encontrava-se

    bastante tmido, sem deixar de ser acolhedor, revelava certo grau de preocupao com

    nossa presena, mesmo porque h tempos insistamos com ele, por meio de uma sua

    filha, na importncia de sua entrevista e, por decorrncia, de sua narrativa.

    Classifico a entrevista do senhor Valdomiro Lemos de Aquino como um dilogo

    agradvel, mas cujo resultado ou contedo, em princpio, pouco acrescentara s nossas

    pesquisas sobre a experincia de vida do homem pantaneiro. Contudo, se essa entrevista

    no apresentou avanos informativos face s outras j realizadas, seu contedo e,

    especialmente, a leitura e a representao exposta pelo entrevistado confirmaram muitas

    informaes j conhecidas, revelando assim sua concatenao com a histria local e,

    portanto, sua singularidade no contexto da consolidao de uma memria coletiva e da

    identidade pantaneira.

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  • O cerne da entrevista constitui-se da experincia vital do senhor Valdomiro, o que

    a circunscreve no mbito das histrias de vida. Mas essa experincia vital, ao ser narrada,

    apresenta o ato memorativo que caracteriza o encontro em que ocorreu a gravao.

    Nesse centro e em sua substncia se manifesta o ato operacional de organizao

    discursiva, cujo objetivo era responder s indagaes feitas pelos entrevistadores. O

    contedo, portanto, dessa entrevista traz componentes de mbito coletivo, herdados e ou

    vivenciados em comum, mediados pelo instante da rememorao (Pollak, 1992). Nessa

    linha, adiro compreenso e alerta de Ecla Bosi a respeito da fonte oral que [...] sugere

    mais que afirma, caminha em curvas e desvios obrigando a um interpretao sutil e

    rigorosa3.

    As respostas apresentadas aos estmulos que as questes proporcionavam ao

    entrevistado apresentavam muitos componentes que caracterizam a compreenso do

    senhor Valdomiro no campo identitrio regional: o pantaneiro. O fio condutor de sua

    noo de pertencimento decorre da auto-insero no universo regional, provocando

    suas capacidades de resistir e enfrentar eventos rotineiros com algum sucesso. De uma

    maneira geral, as linhas que prendem o entrevistado ao Pantanal esto essencialmente

    concatenadas s estratgias de vida bastante arraigadas na regio e, ainda,

    singularidade de sua vida, que ele procura relatar enquanto conjunto de eventos inseridos

    numa temporalidade pessoal.

    A histria de vida do senhor Valdomiro encerra sua compreenso e rememorao

    a respeito de fenmenos individuais e coletivos, mas que conferem um significado

    particular sua existncia, porque dizem respeito vivncia nica e insubstituvel do

    narrador. Uma tal constatao importante por conta de sua obviedade mesma, ou seja,

    o sentido e formato do auto-entendimento do entrevistado revelador no instante em que

    espelha componentes universais e regionais mesclados pela experincia do individuo que

    compartilha de impresses e sensaes perceptveis em outras personagens.

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  • Encontrar os componentes que conformam um tipo regional, a partir da entrevista

    do senhor Valdomiro, pressupe como importante as caractersticas regionais na narrativa

    recolhida. O esboo identitrio, por sua vez, traz tona o significado recente do espao

    regional no face-to-face do sentimento de nacionalidade, ou brasilidade. O Pantanal

    brasileiro, desde os anos 1960, foi progressivamente transformado em um ambiente

    paradisaco. Uma tal imagem representativa foi sendo associada outra que remete aos

    debates a respeito da identidade regional, ganhando evidncia na mdia a figura do

    pantaneiro. De fato, o fortalecimento da identidade regional est articulado propagao

    de noes identitrias brasileiras, funcionando como um contraponto ampliao do

    conhecimento das caractersticas culturais e econmicas no pas e fora dele. De

    acordo com essa compreenso, a identidade em questo articula-se s demandas locais

    e mesmo miditicas na direo de valorizar caractersticas regionais como artefatos

    que corroborem a factibilibidade de uma sociedade e uma regio singulares.

    Focalizar esses e outros aspectos na fala do senhor Valdomiro reclama a

    presena do verbal entrevistado. O fragmento abaixo apresenta um dos componentes de

    auto-valorao do pantaneiro em questo, remetendo, na seqncia, s leituras exticas

    sobre o ser pantaneiro, relembrada no curso da entrevista. Para o senhor Valdomiro, sua

    personalidade no prescinde de alteraes diante de ns ou de outras pessoas:

    - O que eu s longe do patro eu s perto dele; no nego no a minha responsabilidade!

    A manuteno de uma imagem e postura diante dos outros mencionada em um

    contexto de matizao da personalidade e de suas caractersticas positivas ou negativas.

    H uma remisso, sublunar, ao mundo do trabalho quando se refere s

    responsabilidades, j que o entrevistado um capataz de fazenda. A figura do patro

    empresta auto-afirmao um potencial simblico expressivo: nas relaes sociais do

    Pantanal igualmente, em outras regies rurais brasileiras o proprietrio-patro

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  • caracteriza o poder econmico e encarna um tipo de autoridade, reforando laos de

    hierarquia e diferenciao social. Nessa direo, a permanncia dos procedimentos e das

    caractersticas pessoais ocupam uma posio de destaque e de desafio porque

    mesmo perante o poder, ela no se altera, denunciando o convencimento do entrevistado

    a respeito de sua pessoa e seus valores.

    De forma complementar, possvel encontrar na descrio do tipo local, o

    complemento que articula a aparncia relatada a partir de um outro lugar - e a essncia

    compartilhada pelo entrevistado. Perguntado sobre a caracterizao do pantaneiro,

    capturamos um paradoxo interessante de valorao do que no perceptvel ao

    estranho. No ponto de vista do senhor Valdomiro, h uma imagem captada por estranhos

    que se difere do homem-real:

    [...] o pantanero [...] tem pessoas que acham que o pessoal pantanero so pessoas assim muito bravo, pessoa servage, n? Mas num ! O pantanero so pessoas boa! O pessoar que sabe arreceb tudo mundo, sabe convers... Ento deferente do que o pessoar que tem aqui. Como agora, esses dias, l em casa, cheg um pessoar que vei aqui daqui, esqueo o nome do lugar, ento eu tava cunversando com eles. Ento eles tavam me falando que l pra eles contam que aqui no Pantanar a ona pega o pantanero assim. Diz que o pantanero vai l no peo pantanero e a ona pega o cara. O pessoar j tem esse custume, ningum vorta, n? A eles tiveram em casa. Tiveram uns dois meses em casa... que o pessoar so muito bravo que pantanero so muito bravo, ficam parado assim, numa sombra, cada um com um monte de revorve na cintura. Ento tem pessoa que j olha pro camarada que t parado, o camarada pergunta o que t olhando, se a pessoa responde, ele j atira [...] No assim no. Quer dizer, acontece de mat certos peo, n? s vezes o peo mata o otro peo, mas muito difcil, n? Acho que o pirigo na cidade, n? A cidade muito forte mas o Pantanar ...4

    No fragmento acima, destaca-se a imagem enviesada a respeito do pantaneiro.

    Essa imagem relatada ao entrevistado por um visitante permite o alinhamento de uma

    compreenso que no corresponde ao ser regional. Para o senhor Valdomiro, a violncia

    ocorre no ambiente pantaneiro, mas ela est circunscrita a uma situao peculiar,

    diferindo-se do mesmo fenmeno no espao urbano. O componente que valoriza e

    destaca o pantaneiro sua receptividade e generosidade, embora essa faceta no seja

    imediatamente perceptvel ao visitante. A configurao de um discurso, em cujo interior

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  • encontram-se sinais mais ou menos intensos de aspectos que singularizam o

    habitante pantaneiro, pode ser encontrada em vrias entrevistas realizadas com

    moradores do Pantanal. Quanto imagem da violncia urbana, interessante notar que o

    entrevistado vive no Pantanal e seu deslocamento at a cidade de Corumb ocorre nos

    finais de ano, somente quando o ramo urbano de sua famlia no viaja at a fazenda na

    qual trabalha. Na sua histria de vida evidente sua averso ao mundo urbano e suas

    particularidades.

    No fortuita a presena da situao mencionada na memria do entrevistado.

    Ela diz respeito imagem do habitante local, exposta por algum alheio ao meio que,

    transposta na fala do senhor Valdomiro, no preenche um perfil identitrio desejvel. Ao

    evidenciar a negao da violncia extremada e sem motivos no seu meio, o

    entrevistado estabelece um dilogo com uma representao que absolutiza uma imagem,

    transferindo seu significado para todo um coletivo. H a uma negao de um perfil e a

    tentativa de traar outro que seja mais coerente com o sentimento de incluso no tempo e

    no espao pantaneiros. A figura desejada para compor o perfil identitrio do entrevistado

    faz parte de uma memria que apresenta componentes mais expressivos e que

    possivelmente valorizam algumas caractersticas e procedimentos em relao a outros.

    Essa memria procura sinalizar para um paradigma desejvel, produzido no contexto da

    situao do rememorar. Para Bosi:

    A memria opera com grande liberdade escolhendo acontecimentos no espao e no tempo, no arbitrariamente mas porque se relacionam atravs de ndices comuns. So configuraes mais intensas quando sobre elas incide o brilho de um significado coletivo.5

    No mbito do Pantanal, caracterizado como um espao particular no territrio

    brasileiro, a idia de pertencer ao mundo local significa compartilhar saberes e, ainda,

    possuir ligaes mais intensas com o modus vivendi e o modus faciendi regional. Uma tal

    forma de identidade localiza a possibilidade de pertencimento pressupondo as

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  • experincias de vida possveis naquele espao, mesmo que o Pantanal apresente

    diversidades internas bastante expressivas. O domnio de algumas prticas de trabalho,

    de caractersticas do cotidiano, de interao e disputa com o meio aparecem plenamente

    como componentes da identidade pantaneira.6

    A Percepo de algumas caractersticas regionais, marcadas nas entrevistas de

    histria oral, demonstra que a identidade pantaneira compreensvel no contexto da

    valorizao do espao e das formas de vida regionais. Insistir que o pantaneiro s existe

    face ao significado do Pantanal no tautologia ou determinismo geogrfico, mas

    constatar que o habitante local toma para si vrios procedimentos que s podem ser

    compreendidos juntamente com a percepo do meio e do entorno; da ligao

    complementar, interativa que tambm atualiza o viver no Pantanal.

    A identidade pantaneira, identificada na entrevista com o senhor Valdomiro Lemos

    de Aquino, estabelece um dilogo em voz baixa com outros entrevistados, apontando

    para a identidade construda sobre pilares que misturam valores, crenas, procedimentos

    e autodefinio frente ao ambiente em que vivem. Por ltimo, embora no encerre a

    problemtica, acrescento que em outras entrevistas, encontram-se afirmaes cujo

    contedo no concordam com a compreenso do senhor Valdomiro; inversamente,

    indicam um distanciamento noo pertencimento regio e identificao com a cultura

    local e sua configurao. Os qualificativos que o senhor Valdomiro destaca para valorizar

    sua identidade so enunciados, nessas outras entrevistas, para negar o pertencimento ao

    ambiente e, especialmente, cultura local, cujas caractersticas mais lembradas, nessa

    leitura que no encerra concepo de pertencimento, so o atraso e o desconhecimento

    de tcnicas de trabalho mais sofisticadas. Os componentes empregados para justificar e

    consolidar o tpico pantaneiro amplo o suficiente para proporcionar outras leituras,

    produzindo outra forma de sentimento de (no)pertencimento quela regio de grande

    amplitude e muitas formas de auto-identificao.

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  • 1 POLLAK, Michael. Memria e identidade Social. In. Estudos Histricos. Rio de Janeiro:FGV. Vol. 5, n 10, 1992. p. 200-212. 2 HALBWACHS, Maurice. A memria Coletiva. Trad. Laurent L. Schaffter. So Paulo: Vrtice, 1990. 3 BOSI, Eclea. O tempo vivo da memria; ensaios de psicologia social. So Paulo: Ateli Editorial, 2003. p.20. 4 ENTREVISTA Valdomiro Lemos de Aquino (filme-vdeo). Produo: Eudes Fernando Leite & Frederico Augusto G. Fernandes. Corumb: Ceuc/UFMS, 1996. 60 min (aprox.), color., son., VHSc. 5 BOSI, Ecla. Op. cit. p. 31. 6 Um exemplo dessa situao pode ser encontrado no estudo que realizei a respeito das comitivas de boiadas e suas relaes com as modificaes ocorridas na regio. Ver: LEITE, Eudes Fernando. Marchas na histria, comitivas e pees-boiadeiros no Pantanal. Campo Grande/Braslia: EDUFMS/Ministrio da Integrao Nacional. 2003.

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