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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO UNIRIO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS CCH PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MEMÓRIA SOCIAL PPGMS CRISTINA DE JESUS BOTELHO BRANDÃO A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DA COMEMORAÇÃO DO DIA DO ÍNDIO NO MUSEU DO ÍNDIO PELA MÍDIA TELEVISIVA RIO DE JANEIRO 2009

A construção discursiva da comemoração do Dia do Índio no Museu

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIROUNIRIO

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS CCH

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM MEMRIA SOCIALPPGMS

    CRISTINA DE JESUS BOTELHO BRANDO

    A CONSTRUO DISCURSIVA DA COMEMORAO DO DIA DO NDIO NO MUSEU DO NDIO PELA MDIA TELEVISIVA

    RIO DE JANEIRO2009

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    CRISTINA DE JESUS BOTELHO BRANDO

    A CONSTRUO DISCURSIVA DA COMEMORAO DO DIA DO NDIO NO MUSEU DO NDIO PELA MDIA TELEVISIVA

    Dissertao apresentada como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Mestre em Memria Social do Programa de Ps-Graduao em Memria Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

    OrientadoraProfessora Doutora Evelyn Goyannes Dill Orrico

    UNIRIO2009

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    BANCA EXAMINADORA

    _____________________________________________

    Orientadora: Professora Doutora Evelyn Goyannes Dill Orrico

    Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO

    _____________________________________________

    Professora Doutora Diana de Souza Pinto

    Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO

    _____________________________________________

    Professora Doutora Isabel Siqueira Travancas

    Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ

    _____________________________________________

    Professora Doutora Marialva Carlos Barbosa

    Universidade Federal Fluminense - UFF

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    Aos ndios brasileiros

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    AGRADECIMENTOS

    A Deus.

    A minha famlia, pela ajuda. direo e aos amigos do Museu do ndio/FUNAI, pelo apoio.

    Aos professores e alunos da ps-graduao, pelas leituras. coordenadora do Programa, pelo incentivo.

    Aos professores de minha banca, pelas dicas e compreenso.A minha orientadora, pelo que me ensinou sobre anlise de discursos, leituras

    e crticas.

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    RESUMO

    Este trabalho objetiva analisar e descrever o processo de produo do

    discurso miditico relativo comemorao do Dia do ndio no Museu do ndio,

    a partir da investigao de dados verbais e visuais de reportagens ao vivo de

    telejornais, utilizando as bases tericas da vertente francesa da Anlise do

    Discurso. As emisses ao vivo sobre o Dia do ndio fazem parte das

    comemoraes como lugares de memria. Assim, a pesquisa problematiza o

    papel da mdia, em particular o da televiso, como partcipe da construo de

    uma memria discursiva relativa aos grupos indgenas brasileiros por meio de

    estratgias discursivas. Nesse processo, revela-se um antagonismo entre o

    discurso da instituio Museu do ndio que valoriza e d visibilidade ao

    dinamismo e diversidade cultural indgena e a manuteno pela tev da

    divulgao da imagem indgena por intermdio de uma viso cultural esttica,

    arraigada no senso comum. O enunciado do ndio autntico atualiza-se aqui

    como uma imagem recorrente, reforando aspectos primitivos e genricos

    dessas sociedades e revelando a existncia de uma rede de imagens implcitas

    e silenciadas. Ao mesmo tempo, h situaes, nessas celebraes miditicas,

    em que as vozes das diferentes etnias indgenas conquistam posio nesse

    jogo de prticas discursivas, de construo de memria. Percebemos, ento,

    um deslizamento de sentidos nos enunciados veiculados pelas edies do

    telejornal analisadas: a apresentao dos ndios ora no presente ora no

    passado. Conclui-se que fala e imagem no caminham de mos dadas: a

    imagem ainda opera com o ndio do imaginrio e a fala j aponta para o ndio

    real, contemporneo.

    Palavras-chave: memria, comemorao, televiso, Dia do ndio, celebrao miditica, Museu do ndio.

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    ABSTRACT

    This piece of research aims to analyze and describe the production

    process of the media discourse relating to the celebration of the the Brazilian

    Indian Day, in the Museu do ndio (Museum of the Brazilian Indian). The

    method involves the examination of verbal and visual in live programs on the

    news program, in the light of the theoretical approach of the French school of

    Discourse Analysis. Live TV programs on the Brazilian Indian Day are part of

    the celebrations as places of memory. Thus, this piece of research examines

    the role of the media, especially of television, as an integral part of the

    construction of a discoursive memory relating to the Brazilian Indian ethnic

    groups through different discoursive strategies. This process shows an

    antagonism between, on the one hand, the discourse of the Museu do ndio

    institution, which both values and gives visibility to the dynamism and to the

    cultural diversity of the Brazilian Indian and, on the other hand, the expression

    by TV of the image of the Brazilian Indian by means of a culturally static view,

    deeply rooted on common sense. The utterance of the authentic Brazilian

    Indian is made concrete as a recurrent image, reinforcing primitive and generic

    aspects of those (Indian) societies and revealing the existence of a network of

    implicit and tacit images. At the same time there are occasions of memory

    construction in these media celebrations, in which the voices of the different

    Brazilian Indian ethnic groups climb a higher rank in this game of discoursive

    practices. We notice then a shift in meaning in the utterances produced by the

    news programs analyzed: the exhibition of the Brazilian Indians smetimem in

    the present, other times in the past. It can be concluded that utterances and

    images do not go hand in hand: images still operate with the idealized Brazilian

    Indian whereas utterances point to the real Brazilian Indian.

    Key-words: memory, celebration, television, Indian Day, media celebration, Brazilian Indian Museum.

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    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Populao indgena e terras indgenas Ano 2000 .......................p. 20Figura 2 Terras Indgenas Ano 2005..........................................................p. 21

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    SUMRIO

    Agradecimentos................................................................................................p.VResumo...........................................................................................................p.VIAbstract..........................................................................................................p.VIILista de figuras..............................................................................................p.VIIISumrio...........................................................................................................p.IXIntroduo.......................................................................................................p.111. Quadro conceitual.......................................................................................p.251.1 O discurso e outros conceitos fins............................................................p.291.1.1 O discurso jornalstico e a narrativa televisiva.......................................p.331.2 O conceito de comemorao como lugar de memria.............................p.361.2.1 A data Dia do ndio................................................................................p.401.3 Memria social e prticas comemorativas................................................p.441.4 Celebrao miditica a comemorao na tev......................................p.461.5 Os conceitos de cultura e identidade........................................................p.491.6 O conceito de representao....................................................................p.551.6.1 Estudos sobre a representao do ndio pela sociedade brasileira......p.57

    2 Museu do ndio: uma instituio de memria cultural..................................p.61

    3 Descrio dos dados e metodologia............................................................p.68

    4 Anlise.........................................................................................................p.774.1Primeira parte - Abertura da matria no estdio pelos apresentadores....p.804.2Segunda parte - Cobertura realizada ao vivo no espao Museu do ndio.p.904.3Terceira parte - Encerramento da edio do telejornal............................p.1024.4Consolidao da anlise dos segmentos................................................p.110

    5 Consideraes finais..................................................................................p.113

    6 Referncias................................................................................................p.121

    7 Bibliografia de Apoio..................................................................................p.125

    8. Anexos......................................................................................................p.1288.1 Transcries na ntegra dos extratos......................................................p.1288.1.1 Extrato Ano 1996.................................................................................p.1288.1.2 Extrato Ano 2005.................................................................................p.1318.1.3 Extrato Ano 2006.................................................................................p.1348.1.4 Extrato Ano 2007.................................................................................p.1378.2 Jornal Museu ao Vivo N25 Edio especial.......................................p.1418.3 Base de Dados Clipping Dia do ndio..................................................p.1428.3.1 BANDEIRANTES.................................................................................p.1428.3.2 CNN EM ESPANHOL..........................................................................p.1438.3.3 CNT......................................................................................................p.1438.3.4 TV CULTURA......................................................................................p.1448.3.5 GNT.....................................................................................................p.1448.3.6 MULTIRIO............................................................................................p.144

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    8.3.7 NECC FACHA......................................................................................p.1458.3.8 REDE TV.............................................................................................p.1458.3.9 REDE RECORD .................................................................................p.1468.3.10 RIO PREFEITURA.............................................................................p.1478.3.11 TV CMARA .....................................................................................p.1478.3.12 SBT....................................................................................................p.1488.3.13 GLOBO NEWS..................................................................................p.1488.3.14 TV GLOBO.........................................................................................p.1498.3.15 CANAL FUTURA...............................................................................p.1508.3.16 UTV....................................................................................................p.1508.3.17 TVE/TV BRASIL.................................................................................p.1518.4 Decupagens / takes dos extratos............................................................p.152

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    INTRODUO

    H cerca de 20 anos que o Dia do ndio (19 de abril) um dia especial

    em minha agenda. Como assessora de imprensa do Museu do ndio, fao parte

    de uma equipe que tem a misso de no deixar esse dia e a instituio serem

    esquecidos. Mas o que fazer para encher de pblico os jardins do museu de

    modo a dar a conhecer a cultura indgena para um pblico cada vez maior?

    Como despertar o interesse da populao no ndia? Qual a programao que

    mais atrair os holofotes da mdia e, consequentemente, de visitantes? Sem

    divulgao em jornais, rdios, televises e internet, a comemorao do Dia do

    ndio, no Museu do ndio, pode no acontecer.

    Comemorao. Por quase duas dcadas, essa palavra no constava

    nos meus releases. Ela era substituda pela expresso programao alusiva

    ao Dia do ndio para evitar a palavra comemorar com o significado de festejar

    que o uso comum do termo. Festejar o qu? Com tantas terras indgenas

    ainda no regularizadas, com a crescente explorao ilegal de recursos

    naturais nessas reas, com aldeias sem projetos de auto-sustentao, enfim,

    problemas no faltam aos ndios brasileiros. Comemorar, aqui, ainda no

    estava no contexto de recordar, trazer memria.

    Afinal, quem comemora o Dia do ndio? Os ndios ou a sociedade

    envolvente? Lembrando, aqui, uma pergunta de um correspondente do jornal

    Chicago Tribune, em visita nessa data, em 2006, ao Museu do ndio: o Dia do

    ndio para os ndios ou para a nossa sociedade?

    Nesse mesmo ano, comecei a me interessar pelos estudos relativos

    Memria Social. Em contato com a bibliografia relativa a esse campo de

    estudo, ampliei meus conhecimentos e consegui refletir melhor sobre os temas

    comemorao e memria social. Agora j posso escrever a palavra

    comemorao sem o receio de estar subestimando os problemas atuais das

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    comunidades indgenas brasileiras: penso a prtica comemorativa como um

    lugar de memria, onde se ancoram sentimentos, lembranas, tradies e o

    sentido da identidade de um grupo. E nesse sentido que esse tema inserido

    neste trabalho. O passado comemorado e construdo como acontecimento e,

    nesse processo, misturam-se o presente e o passado. Com a comemorao,

    materializa-se a memria. Na fase inicial de anlise, ao observar as matrias

    televisivas sobre a cobertura da comemorao do Dia do ndio, no Museu do

    ndio, com os meus olhos de assessora de imprensa, percebi logo um conflito a

    ser investigado entre o que aparece na tev e a proposta da instituio

    divulgada em seu material impresso, distribudo ao pblico. O discurso

    institucional do Museu do ndio apresenta a inteno de modificar a imagem

    preconceituosa que os brasileiros tm sobre os ndios, no entanto, a sua

    programao comemorativa aparece, na tela da TV, exibindo, com frequncia,

    imagens que reforam aspectos primitivos e genricos dessas sociedades,

    como a cena de ndios danando com os corpos pintados e enfeitados de

    penas descontextualizada da realidade da etnia em foco que se repete,

    anualmente, em vrias edies dos telejornais.

    Na perspectiva do senso comum, em nossa sociedade, opera-se com a

    imagem de ndio genrico. No so consideradas as variedades cultural,

    lingustica e social inerentes s sociedades indgenas brasileiras. Cada uma

    possui a sua prpria identidade. Nada ou pouco informado sobre os aspectos

    da vida tribal, as relaes entre esta e a sua concepo do mundo, a riqueza

    de seu sistema de parentesco e descendncia. E mais, h aqui tambm o

    apagamento da contemporaneidade dos ndios, isto , o ndio situado quase

    sempre no pretrito.

    O meu projeto de pesquisa nasceu, tambm, associado ideia de Jean

    Davallon (1999) da imagem como objeto cultural operador de memria social.

    O problema a ser investigado est no contexto da representao dos ndios

    veiculada pela televiso. Assim, apresento o meu objeto de pesquisa: a

    comemorao do Dia do ndio transmitida pela tev, tendo como base de

    dados o clipping uma seleo por temas de matrias jornalsticas Dia do

    ndio no Museu do ndio. Esse material audiovisual composto de programas

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    e reportagens sobre a programao de comemorao do Dia do ndio no

    Museu do ndio no perodo de 1996 a 2008. A anlise realizada a partir da

    investigao da imagem da comemorao do Dia do ndio que acontece

    dentro do Museu do ndio exibida pelo telejornal RJTV Primeira Edio que

    mais est presente nessa comemorao.

    Dentro do meu campo de investigao, levando em conta o fato de a

    televiso ser um sistema de significao, representao e poder, construindo a

    memria social pelas prticas discursivas engendradas, comecei a observar as

    matrias jornalsticas anuais produzidas, pela TV, sobre o Dia do ndio no

    Museu do ndio. A princpio, essa mdia, de um modo geral, pautou da mesma

    maneira o tema nessa instituio, lembrando, aqui, que exero o papel de

    assessora de comunicao social desde 1987, servindo de canal entre o

    museu e a mdia. Naquela fase, ainda no tinha comeado as minhas anlises

    sistemticas. A minha impresso era de que, nos ltimos anos, as emissoras

    apresentavam, repetidamente, o mesmo formato de matria em relao

    comemorao do Dia do ndio no Museu do ndio: fazendo semelhantes

    perguntas, enquadrando sempre pelo mesmo ngulo imagens de

    manifestaes culturais como a de ndios cantando e danando com pinturas e

    adornos, sem discusses detalhadas sobre a problemtica indgena,

    preferencialmente em um ambiente festivo diante de um pblico escolar infantil.

    Por que silenciar a imagem do ndio vestido, do ndio urbano? Mas isso no

    quer dizer que os sentidos que deslizam nos discursos veiculados pela mdia

    sobre os ndios sejam sempre os mesmos. Seriam, simplesmente, reportagens

    burocrticas para lembrar o Dia do ndio? No haveria nelas situaes em que

    as vozes das diferentes etnias indgenas conquistassem posio nesse jogo de

    prticas discursivas, de construo de memria?

    Durante esses vinte anos trabalhando no Museu do ndio e frente dos

    contatos com a mdia, venho observando que a instituio, ao promover

    eventos com a presena de ndios apresentando suas manifestaes culturais

    como danas e cantos, atrai mais facilmente a mdia. importante informar que

    os ndios, durante a programao, quase sempre esto vestidos de ndios:

    pinturas no rosto e no corpo, enfeites e, preferencialmente, cocares

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    (diademas). Nesse sentido, h que se refletir sobre a possibilidade da eficcia

    da proposta da programao em valorizar a identidade de diferentes etnias.

    A partir dessa experincia frente da Assessoria de Comunicao

    Social, muitos acontecimentos vm chamando a minha ateno. Lembro-me de

    uma reprter de TV, no Dia do ndio de 2006, que no demonstrou interesse

    em realizar matria com os ndios da etnia Nambiquara (MT), pois ao conversar

    comigo considerou o grupo muito fraco (palavras da reprter). Ento, em

    seguida, a mesma reprter pediu para filmar os Fulni- (PE) por danarem

    mais animadamente, segundo expresso utilizada por ela. Na hora, esse

    grupo de ndios era o que cantava mais alto e o que exibia pinturas mais

    coloridas. Observei a o interesse da reprter de mostrar imagens de ndios que

    mais apresentassem caractersticas primitivas, exticas.

    Em outra oportunidade, em 1987, um fotgrafo de uma revista

    jornalstica, de circulao nacional, procurou-me para fotografar um ndio

    escritor do Peru que visitava o Museu do ndio. Era uma liderana de seu povo.

    Quando o fotgrafo viu o ndio, virou-se para mim e comentou que ele no

    possua cara de ndio e, sim, de um professor, o que lhe teria causado maior

    assombro: o ndio usava culos. Ambos os episdios refletem a problemtica

    da imagem estereotipada, presente no imaginrio nacional, que o senso

    comum constri do ndio brasileiro: a do ndio primitivo, extico.

    Parto do pressuposto institucional no qual o espao cultural Museu do

    ndio apresenta o discurso de combate ao preconceito em suas atividades de

    divulgao das culturas indgenas. O combate imagem do ndio genrico,

    representao cristalizada das culturas indgenas, aparece em seu esforo de

    revelar a diversidade existente e histrica entre centenas de grupos indgenas

    brasileiros. Essa problemtica foi destacada na 25 edio (ver anexo 8.2) do

    jornal da instituio Museu ao Vivo , no final de 2003, quando o discurso

    institucional deu nfase questo do patrimnio cultural dos povos indgenas.

    A promoo pelo Museu do ndio de apresentaes de manifestaes culturais

    indgenas (rituais e danas) tem a inteno de propiciar o dilogo intercultural,

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    a troca de conhecimentos e experincias com outros grupos, inserindo-se no

    atual cenrio de debates sobre o patrimnio cultural intangvel.1

    O Museu do ndio realizou diversas atividades em 2006, apresentando a poltica institucional do rgo de divulgao do patrimnio cultural indgena.. Em abril, durante a programao alusiva ao Dia do ndio, foram realizadas diversas aes: danas e cantos indgenas, alm de filmes e eventos para crianas. A programao contou com a presena de ndios Kuikuro (Xingu-MT), Fulni- (PE), Guarani (RJ) e Nambiquara (MT). Todos os eventos foram gratuitos. Cinco mil e 548 pessoas participaram dessa programao especial (Jornal Museu ao Vivo, 2006, Ano 17, N28, p. 3).

    Sabe-se das relaes que variados setores da sociedade envolvente

    mantm com os ndios por meio de concepes estticas da cultura. Para a

    maior parte dos brasileiros, o ndio continua sendo concebido como um

    primitivo, aborgene, que para ser reconhecido como portador de cultura

    indgena deve viver no mato, usar cocar, etc. Seno ele no um ndio de

    verdade e no se leva em conta o seu relacionamento com outras

    comunidades culturais e suas adaptaes criativas de saberes ancestrais.

    A instituio de memria Museu do ndio monta, anualmente, o cenrio

    do acontecimento da comemorao do Dia do ndio e equipes de reportagem

    retiram fragmentos do evento para represent-lo na midiatizao. H um

    conflito entre a proposta da instituio Museu do ndio e o que veiculado pela

    mdia. Dessa maneira, comea a construo do meu problema de pesquisa

    que surge a partir dessa viso esttica que, a princpio, parece predominante e

    que congela uma imagem idealizada do que seja a cultura indgena,

    cristalizando e reforando uma determinada representao dos ndios. Tal fato

    impede que a diversidade cultural dos grupos indgenas brasileiros seja

    1 Um passo importante foi dado, em 1989, com a recomendao da UNESCO sobre a Salvaguarda da Cultura Popular e Tradicional. A partir dessa abordagem, a UNESCO promoveu a adoo, pelos estados nacionais, de medidas e programas que visaram, primeiro, a preservao e, depois, a valorizao das culturas tradicionais. Para saber mais sobre o assunto, consulta-se GALLOIS, Dominique T. (org.) Patrimnio Cultural Imaterial e Povos Indgenas: exemplos no Amap e norte do Par. So Paulo: Iep, 2006, pginas 15 e 16.

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    amplamente mostrada. Essa imagem fixadora incoerente com a pluralidade

    e o dinamismo da realidade indgena.

    No captulo da anlise, estudo os silenciamentos/apagamentos e

    implcitos (pistas e vestgios) em relao s imagens veiculadas. Para tentar

    esclarecer, assim, o conflito entre a proposta da instituio Museu do ndio e o

    que veiculado pela mdia, investigando a construo discursiva, pela mdia

    televisiva, da comemorao do Dia do ndio no Museu do ndio.

    Entretanto, importante lembrar que h momentos nessas matrias

    principalmente em sua dimenso verbal em que os ndios ganham voz e

    conquistam posio, produzindo sentidos positivos em relao questo

    indgena.

    A partir disso, surge uma questo:

    Como tem sido construda a imagem do ndio na mdia

    televisiva em relao comemorao do Dia do ndio no

    Museu do ndio nos ltimos dez anos?

    Tomando como referncia os estudos da antroploga Dominique Gallois

    (2006) que aponta para o pressuposto da autenticidade cultural, arraigado no

    senso comum, e para a pesquisa da Inesita Arajo (1998) que identifica o

    discurso primitivista na TV e a ideia dominante de que o ndio autntico

    aquele do registro discursivo primitivista, posso especificar melhor a minha

    questo: como o enunciado do ndio autntico (primitivo), presente no

    imaginrio nacional, se manifesta no discurso miditico televisivo falas e

    imagens relativo s comemoraes do Dia do ndio no Museu do ndio? Ou

    ainda, como a TV se apropria e refora o enunciado do ndio autntico

    (primitivo)?

    As questes formuladas vo ajudar a dar conta do objetivo geral que

    analisar e descrever o processo de produo do discurso relativo

    comemorao do Dia do ndio, no Museu do ndio, a partir da investigao do

    clipping televisivo Dia do ndio no Museu do ndio como base de dados

    (anexo 8.3).

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    Aproveito este momento para explicar os critrios de seleo utilizados

    para chegar ao corpus de minha dissertao. Dentro da minha Linha de

    Pesquisa Memria e Linguagem, o formato ao vivo das narrativas jornalsticas,

    das chamadas celebraes miditicas, encaixa-se adequadamente discusso

    da comemorao como um lugar de memria. Ao destacar esse formato,

    percebemos que a emissora TV Globo, com o seu telejornal RJTV Primeira

    Edio, foi a mais regular em relao s coberturas da comemorao do Dia do

    ndio, sendo que duas matrias ao vivo foram descartadas, na anlise, por no

    terem sido realizadas dentro do espao Museu do ndio. Partindo de sete

    horas, trinta e cinco minutos e cinco segundos de matrias e programas sobre

    o Dia do Indio no Museu do Indio, encontrei quatro emisses ao vivo

    realizadas, no espao da instituio e na prpria data comemorativa Dia do

    Indio (19 de abril), por um mesmo telejornal. A primeira foi em 1996 e

    acontecendo de novo somente a partir de 2005. Assim, preenchendo os

    requisitos de formato ao vivo de coberturas realizadas no Dia do ndio dentro

    do espao Museu do ndio, chegamos ao seguinte recorte: RJTV Primeira

    Edio dos anos 1996, 2005, 2006 e 2007.

    Como toda a imagem discurso (PINTO, 2002), pretendo seguir os

    preceitos da vertente francesa de Anlise do Discurso, a fim de compreender a

    construo discursiva da comemorao do Dia do ndio (19 de abril), na mdia

    televisiva, pela anlise do clipping, das coberturas sobre essa comemorao

    no Museu do ndio. Com esse instrumental, vou observar como se constitui

    essa prtica discursiva.

    A justificativa deste estudo repousa no interesse em mostrar a

    importncia da cobertura da comemorao do Dia do ndio no Museu do ndio

    pela mdia televisiva, como contribuio ao processo de reflexo sobre a

    construo da memria nacional. Os historiadores, cada vez mais, tm utilizado

    a imprensa como fonte primria nas suas pesquisas. O prprio interesse do

    Museu do ndio em montar e arquivar o clipping O Dia do ndio no Museu do

    ndio demonstra essa preocupao. A anlise do clipping revela de que

    maneira as informaes fornecidas por uma Assessoria de Imprensa so

    trabalhadas pelo reprter e ajudam na construo da imagem da instituio.

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    Eles informam muito. E por essa razo que o clipping hoje de extrema

    importncia e cercado de cuidados (CARVALHO, 2009, p. 25), garante o

    recm publicado Manual Prtico de Assessoria de Imprensa. Como

    construdo o discurso da temtica indgena, visto e ouvido por milhes de

    brasileiros, pela telinha da televiso? So verses que podem vir a construir

    uma memria social. O clipping mencionado rene as matrias televisivas

    anuais sobre a comemorao do Dia do ndio no Museu do ndio desde 1996.

    Penso que de grande responsabilidade contribuir para o processo de reflexo

    da instituio em relao divulgao da temtica indgena.

    No dia 25 de janeiro de 2008, saiu publicada, no O Globo, a matria

    Brasileiros confiam mais na mdia. De acordo com uma pesquisa realizada

    pela multinacional de relaes pblicas Edelman, 64% dos brasileiros

    consideram a mdia a mais confivel das instituies, o que nos leva a refletir

    sobre a relevncia dos estudos envolvendo a mdia, as representaes sociais

    e a formao da opinio pblica.

    Cabe aqui destacar a minha atividade profissional de assessorar o

    relacionamento de uma instituio de memria o Museu do ndio com os

    meios de comunicao (lugar de memria). Nessa relao, o Museu do ndio,

    por exercer o papel de guardio da cultura indgena, atrai os holofotes da mdia

    e funciona como locao ideal para a comemorao do Dia do ndio.

    Finalizando, atualmente existe a preocupao de diversos pases e

    instituies com a diversidade cultural. No Brasil, o ensino de histria e cultura

    indgena passou a ser obrigatrio para alunos dos Ensinos Mdio e

    Fundamental. Uma lei sancionada pelo presidente Luiz Incio Lula da Silva, no

    dia 10 de maro de 2008, incluiu a obrigatoriedade da temtica no currculo das

    escolas pblicas e particulares.

    A viso etnocntrica ainda predomina na perspectiva dos que privilegiam

    o conhecimento tecnolgico como padro, considerando os traos culturais

    no-ocidentais como impedimento ao desenvolvimento. Como escreveu a

    antroploga Dominique Gallois, necessrio engajar todas as naes na

    preservao dos patrimnios culturais que refletem a diversidade cultural no

  • 19

    mundo para que toda a humanidade pudesse se reconhecer como herdeira das

    mais importantes e belas realizaes humanas (GALLOIS, 2006, pg.15).

    No Brasil, h cerca de 220 grupos indgenas que so muito diferentes

    entre si. A divulgao dos diversos modos e jeitos de saber e de fazer dos

    grupos indgenas brasileiros colabora para a preservao desse patrimnio. A

    UNESCO passou a se destacar na luta pela defesa da riqueza que resulta da

    diversidade cultural. Isso coloca em evidncia a pluralidade cultural que, para

    ela, uma condio essencial para o convvio pacfico entre povos.

    Outros informes sobre a situao atual dos indgenas no Pas so

    necessrios, a fim de esclarecer ao leitor aspectos importantes da realidade

    desse segmento populacional na sociedade brasileira. Conforme o Censo

    Demogrfico IBGE/2000, existem 734 mil pessoas auto-identificadas como

    indgenas, 170 lnguas indgenas e a populao indgena est, assim,

    distribuda por rea:

    rea Rural 47,8%

    rea Urbana 52,2%

    Segundo a Fundao Nacional do ndio FUNAI , h tambm 63

    referncias de ndios ainda no contatados, chamados de isolados, alm de

    existirem grupos que esto requerendo o reconhecimento de sua condio

    indgena junto a esse rgo.

    Mais da metade da populao indgena habita as regies Norte e

    Centro-Oeste do Pas, mas encontramos ndios vivendo em todas as regies

    brasileiras com exceo dos estados do Piau e Rio Grande do Norte. Mesmo

    no Piau, existem grupos de pessoas que vm se auto-identificando como

    indgenas e reivindicando tal reconhecimento (dados retirados do site da

    FUNAI em 27/01/2008).

    A seguir, dois mapas que ajudam a visualizar, no Brasil, as categorias

    populao e terras indgenas, baseados na anlise feita pelo IBGE, acerca dos

    indgenas com base nos resultados dos Censos Demogrficos 1991 e 2000.

  • 20

    Populao indgena e terras indgenas Ano 2000

    Fonte: IBGE, Diretoria de Geocincias, Coordenao de Geografia; IBGE, Censo Demogrfico 2000; Fundao Nacional do ndio, Diretoria de Assuntos Fundirios.

  • 21

    Terras Indgenas Ano 2005

    Fonte: IBGE, Diretoria de Geocincias, Coordenao de Geografia e Coordenao de Cartografia, Malha Municipal do Brasil, Situao em 2001; Fundao Nacional do ndio, Diretoria de Assuntos Fundirios.

  • 22

    Dois grupos indgenas so citados em duas matrias jornalsticas do

    corpus: os 13.303 ndios Xavante (dados de 2007), de lngua da famlia J, que

    vivem, no Mato Grosso, em comunidades autnomas. E os 2.930 ndios Fulni-

    (dados de 1999), de lngua Ia-T ou Yat do tronco Macro-J, vivendo em

    Pernambuco. Este grupo o nico do Nordeste que conseguiu manter ativa a

    sua prpria lngua. (Fonte: Povos Indgenas no Brasil: 2001-2005, Instituto

    Socioambiental, 2006).

    O Dia do ndio no Museu do ndio est vivo, certamente, na memria das

    crianas que j visitaram o museu levadas por suas escolas para festejar o Dia

    do ndio. E, tambm, em tantas outras cabeas que viram pelas TVs esse

    acontecimento. Nestas, poder estar congelada a imagem de um ndio

    genrico de cocar. E a no saberemos se um Xavante, Av-Canoeiro,

    Guarani, Tiri, Wajpi, Patax, Tikuna, Xicrin.

    Nesse sentido, este trabalho contribui para a compreenso das

    estratgias discursivas utilizadas pela TV na construo de uma representao

    genrica relativa ao ndio brasileiro.

    Para dar conta do objetivo de depreender essas estratgias, este

    trabalho, inicialmente, apresenta o quadro conceitual com comentrios sobre

    leituras em que percebi a relao da construo da memria dos povos

    indgenas com a comemorao do Dia do ndio na televiso. Nesta parte,

    constam os conceitos de discurso, formao discursiva, memria social,

    comemorao, identidade, cultura e representao.

    No subitem O conceito de comemorao como lugar de memria,

    abordo a comemorao como lugar de memria no sentido dado pelo

    historiador francs Pierre Nora (1993): lugar onde uma sociedade ancora sua

    memria. Para tanto, tambm utilizo o referencial terico de Michael Pollak

    (1992) que explica ser possvel encontrarmos lugares de apoio da memria na

    memria mais pblica, isto , nos lugares de comemorao. Entram aqui,

    tambm, dados histricos sobre o Dia do ndio para dar subsdios ao conceito

    de comemorao como lugar de memria.

    Ainda nessa parte, analisarei as emisses ao vivo da programao do

    Dia do ndio fazendo parte das comemoraes, tambm, como lugares de

  • 23

    memria. So celebraes miditicas, em forma de narrativas, que colocam em

    relevo a questo da memria: o passado comemorado e reconstrudo como

    acontecimento e, nesse processo, misturam-se o presente e o passado

    (BARBOSA, 2004).

    Na seo dos conceitos de identidade, cultura e representao,

    discutida a construo da indianidade. apresentada a problemtica da

    autenticidade que a narrativa sobre a temtica indgena construda pelo

    enunciado do ndio autntico, presente no imaginrio nacional, como j dito

    acima quando construo o meu objeto de pesquisa, revelando a viso esttica

    que embasa a ideia de cultura. Essa concepo se manifesta pela procura da

    autenticidade, sem considerar a troca de conhecimentos e experincias que um

    grupo mantm com outros, sem considerar a dinmica cultural.

    A UNESCO, que integra o grupo de instituies das Naes Unidas,

    difunde a recomendao a favor da diversidade cultural por meio da valorao

    e preservao dos patrimnios culturais material e imaterial indgenas. O

    Museu do ndio deve assumir, junto sociedade nacional, o papel de

    conscientizador em relao importncia da participao das produes

    indgenas no patrimnio cultural da Nao, fortalecendo, assim, a identidade de

    diversas etnias. No entanto, a sua programao comemorativa do Dia do ndio,

    exibida pela tev, veicula cenas onde a diversidade cultural indgena no

    ganha visibilidade.

    Em seguida, apresento o Museu do ndio uma instituio de memria -

    e suas prticas discursivas na tentativa de discutir o meu problema de

    pesquisa. Sero evidenciadas as narrativas museais sobre a relao entre

    memria e patrimnio.

    No captulo da descrio dos dados e metodologia, apresentada a

    Anlise do Discurso no estudo do texto e da imagem, a fim de explicitar os

    mecanismos discursivos das matrias jornalsticas selecionadas.

    Por fim, a anlise dos dados procura mostrar, pelos procedimentos que

    conjugam a descrio e a identificao das imagens indgenas com a

    transcrio das falas das personagens, as construes discursivas recorrentes

    com a aplicao das bases tericas da vertente francesa da Anlise do

  • 24

    Discurso AD. Nessa parte, apresento o processo de construo da

    celebrao miditica por meio de quadros, contendo os elementos visuais das

    cenas como enquadramentos e movimentos de cmera. Pretendo, assim,

    problematizar o papel da mdia, em particular o da televiso, como partcipe na

    construo da memria coletiva: a televiso reconstruindo memria. Entra

    tambm aqui a ideia da imagem como operador de memria social

    (DAVALLON, 1999), considerando a interveno concreta da imagem no

    estabelecimento de uma forma de memria societal prpria a nossa poca e a

    nossa sociedade.

  • 25

    1. QUADRO CONCEITUAL

    O trabalho da professora Inesita Arajo Televiso e Indianidade:

    questes sobre a construo narrativa da imagem do ndio pela televiso

    (1998) foi para mim um marco inicial na fase de criao desse projeto de

    pesquisa. Nele, a autora aborda o modo pelo qual a temtica indgena tratada

    pela TV, produzindo sentidos indesejveis para a sociedade indgena.

    Pretendo, agora, dez anos depois, por uma anlise sistemtica do clipping

    televisivo Dia do ndio no Museu do ndio, conseguir apontar

    brechas/aspectos, nesse importante veculo de comunicao de massa que a

    televiso, por onde as vozes dos ndios consigam negociar os seus discursos

    com outros grupos sociais a favor da diversidade cultural. Como ela mesma diz

    em seu artigo, necessrio aprofundar esse vis de estudos, formulando

    anlises de discursos que permitam comprovar de forma mais sistemtica tudo

    o que foi levantado aqui, a ttulo de hiptese (Araujo, 1998, p.44).

    O artigo Todo ano, no ms de abril (2002), de Jos Ribamar Bessa

    Freire, sobre as matrias produzidas pelos canais de TV no Dia do ndio, fez-

    me refletir sobre as coberturas televisivas anuais da comemorao do Dia do

    ndio no Museu do ndio. No momento, trilho um caminho, onde h evidncias

    de um quadro de reforo aos preconceitos em relao aos ndios brasileiros

    como afirma o autor. No entanto, tambm esbarro em situaes favorveis

    como as que do uma maior visibilidade s etnias indgenas por meio dos

    media.

    Outro texto que impulsionou a minha pesquisa, ou melhor, deu flego a

    minha formao de jornalista, foi Jornalistas, senhores da memria?, de

    Marialva Barbosa, que trata da ao de natureza memorialstica do jornalista, j

    que a memria uma operao do presente e conformadora da prpria

    identidade. Foi da que tirei a ideia do conceito de celebrao miditica para

  • 26

    caracterizar a cobertura televisiva da comemorao do Dia do ndio no Museu

    do ndio. Ele importante para esclarecer a repetio, anualmente, do formato

    ao vivo das matrias jornalsticas relativas comemorao do Dia do ndio.

    A antroploga Dominique Gallois, em seu livro Patrimnio cultural

    imaterial e povos indgenas (2006), trata do reconhecimento e da salvaguarda

    do patrimnio cultural imaterial indgena. Dele, eu extra a ideia do enunciado

    do ndio autntico, profundamente arraigado no senso comum, que pretendo

    analisar no discurso televisivo. E continuo a estudar o assunto acerca dos

    discursos da indianidade no mbito de novos fluxos de identidade e cultura,

    privilegiando o autor Marshal Sahlins com sua defesa de que a cultura dos

    povos no est acabando e que as culturas esto sempre em processo de

    renovao e reestruturao.

    Nesta seo, vou abordar conceitos que fazem parte do

    desenvolvimento da minha pesquisa como discurso, memria social,

    comemorao, celebrao miditica, identidade, cultura e representao.

    Atravs do discurso das comemoraes televisivas, chegamos at a maneira

    pela qual construda retratada a imagem de um grupo social dentro do

    processo de construo da memria social. A discusso desses conceitos

    importante no meu trabalho para o entendimento das narrativas, utilizadas pelo

    Museu do ndio e pela tev, dirigidas ao acontecimento de comemorao do

    Dia do ndio e s sociedades indgenas.

    A adoo da Anlise de Discurso AD da vertente francesa, na minha

    pesquisa, deve-se ao seu modo de tratar a linguagem como prtica social e

    histrica. Pelos discursos, lugares de produo de sentidos, podemos melhor

    compreender a relao do homem com a sua realidade. Para o

    desenvolvimento da minha proposta de trabalho, envolvendo a televiso como

    formadora de imaginrios coletivos e fonte de memria de uma sociedade, a

    compreenso da linguagem como prtica simblica fundamental. Nesse

    campo de conhecimentos, a memria, quando pensada em relao ao

    discurso, tratada como interdiscurso, ou seja, a memria discursiva: o saber

    discursivo que torna possvel todo dizer. Orlandi assim justifica a disciplina:

  • 27

    A anlise de discurso aponta, pois, para novas maneiras de ler, para outros gestos de leitura, outra escuta, sustentada por dispositivos tericos e analticos que nos permitem no apenas nos reconhecermos no que lemos (ou ouvimos) mas que conheamos o modo como os sentidos esto sendo produzidos e as posies sujeito se constituindo na relao do simblico com o poltico (ORLANDI, 2006, p. 28).

    Cabe, a este trabalho, a tarefa de tentar aplicar a disciplina no campo

    das imagens em movimento. Pretendo analisar no s o que ouvimos, mas

    tambm o que vemos.

    Dentro do contexto dos estudos acerca do funcionamento da linguagem,

    pretendo tecer anlises sobre a produo do discurso e conceitos correlatos

    (formao discursiva, pr-construdo, interdiscurso e memria discursiva)

    baseados na Escola Francesa de Anlise do Discurso. Esta retoma vrias

    postulaes do filsofo francs Michel Foucault (1926-1984) sobre o discurso e

    as formaes discursivas. O principal fundador da anlise do discurso de linha

    francesa foi o filsofo francs Michel Pcheux (1938-1983). No Brasil, a

    linguista Eni Orlandi a principal divulgadora de seus fundamentos,

    apresentando as bases tericas e os procedimentos analticos para a sua

    compreenso na qualidade de prtica simblica.

    O que ler significa? Os anos 60 do sculo XX foi um momento em que a

    leitura suscitou questes ligadas interpretao. Autores como Althusser,

    Foucault, Lacan, Barthes, e outros pensadores da poca, indagaram o que ler

    queria dizer. Abriu-se a um lugar disciplinar para a anlise de discurso. No

    Brasil, ela se constitui na perspectiva que trabalha o sujeito, a histria e a

    lngua como uma disciplina de entremeio, fazendo-se na contradio de trs

    campos de saber: a lingustica, a psicanlise e o marxismo com um particular

    desenho disciplinar (ORLANDI, 2006, p. 14).

    O discurso mais do que transmisso de informao (mensagem) feito

    de sentidos entre locutores. E todo dizer, discursivamente, um deslocamento

    nas redes de filiaes (histricas) de sentidos (PCHEUX, 1990). A unidade da

    anlise de discurso o texto. O texto possui comeo, meio e fim, mas, se o

  • 28

    considerarmos como discurso, instala-se logo a sua incompletude. Trs

    aspectos so importantes destacar: a incompletude do discurso (ele nunca

    uma unidade fechada); a historicidade, constitutiva do discurso; e o fato de que

    o sujeito se constri no discurso.

    A lngua, como sistema e estrutura2, se apresenta como a base comum

    aos falantes, j o discurso a ao do homem na lngua com a finalidade de

    expressar e produzir sentidos:

    o sentido de uma palavra, de uma expresso, de uma proposio etc. no existe em si mesmo mas, ao contrrio, determinado pelas posies ideolgicas que esto em jogo no processo scio-histrico no qual as palavras, expresses, proposies etc. mudam de sentido segundo as posies sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referncia a essas posies, isto , em referncia s formaes ideolgicas nas quais essas posies se inscrevem (PCHEUX, 1997, p.160).

    O conceito de discurso que vamos trabalhar aqui est bem explicitado

    por Eni Orlandi, no prefcio do livro Anlise de discurso: princpios e

    procedimentos, 2005, como movimento dos sentidos, errncia dos sujeitos,

    lugares provisrios de conjuno e disperso, de unidade e de diversidade, de

    indistino, de incerteza, de trajetos, de ancoragem e de vestgios (ORLANDI,

    2005, p.09). Como ela mesma define: o ritual da palavra, mesmo o das que no

    se dizem.

    O assunto pertinente ao campo da memria social3, j que so as

    prticas discursivas do cotidiano, englobando as produzidas em contextos

    institucionais como a famlia, a igreja, a escola, o trabalho e as veiculadas

    pela literatura e pela mdia, que contribuem para a sua construo.

    Se considerarmos que na linguagem que so construdas as culturas humanas, precisamos admitir que tambm a linguagem que pode propiciar o acesso melhor compreenso dos mecanismos e recursos que utilizamos para construir a memria e as configuraes identitrias a ela relacionadas. (FERREIRA, 2005, p. 109)

    2 Ver obra Curso de lingstica geral, de Ferdinand de Saussure (1916).3 Ver conceito em HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. So Paulo; Vrtice, 1990.

  • 29

    1.1 O discurso e outros conceitos afins

    Mas, o que h, enfim, de to perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, est o perigo?

    Michel Foucault, 2006, p. 08

    Como j mencionamos antes, Pcheux (1969), em sua crtica ao sistema

    elementar da comunicao, falar que o discurso mais do que transmisso

    de informao (mensagem). Para ele, no h a relao linear entre o

    enunciador e o destinatrio do seguinte circuito da comunicao: o emissor

    transmite uma mensagem (informao) ao receptor, referindo-se a algum

    elemento da realidade e formulada em um cdigo (a lngua), O discurso efeito

    de sentidos entre os locutores. Orlandi explica:

    Esses efeitos resultam da relao de sujeitos simblicos que participam do discurso, dentro de certas circunstncias dadas. Os efeitos se do porque so sujeitos dentro de certas circunstncias e afetados pelas suas memrias discursivas (ORLANDI, 2006, p.15).

    Para Ferreira (2003), o discurso funciona como uma metfora que

    requer a cada construo um transporte de um campo para outro. a carga de

    significncia que o torna to denso e o faz devolver linguagem a sua

    materialidade e ao sujeito a sua contradio. O discurso no fala nem texto,

    um processo que produz sentidos. Podemos falar em deslizamentos de

    sentidos que circulam sem destino.

    Percebemos que o sujeito e a situao (contexto scio-histrico) esto

    no bojo da anlise do discurso. Estes participam ao constiturem,

  • 30

    discursivamente, partes das condies de produo do discurso. Assim,

    precisamos relacionar o discurso com suas condies de produo, sua

    exterioridade. Em toda situao de linguagem, os contextos imediato

    (circunstncias imediatas da enunciao) e scio-histrico (ideolgico, mais

    amplo) funcionam conjuntamente.

    O sujeito, na anlise do discurso, a posio-sujeito projetada no

    discurso. O enunciador e o destinatrio indicam diferentes posies-sujeito. O

    que conta a projeo da posio social do sujeito, um lugar que este ocupa

    para ser sujeito do que diz. Trata-se de um imaginrio. Por exemplo, quando

    falamos professor, no do professor que estamos falando, mas da imagem

    que a nossa sociedade faz dele. Cada lugar tem sua fora na comunicao

    estabelecida. As relaes de fora fazem parte do modo como as condies de

    produo do discurso se estabelecem. O lugar social do qual falamos marca o

    discurso com a fora da locuo que este representa (ORLANDI, 2006,

    pg.16). Importa se falamos do lugar de professor ou de aluno.

    Logo, as posies-sujeito no so neutras e se nutrem do poder que as

    constitui em suas relaes de fora. Em sua obra A ordem do discurso,

    Foucault vai mais alm: O discurso no simplesmente aquilo que traduz as

    lutas ou os sistemas de dominao, mas aquilo por que, pelo que se luta, o

    poder do qual nos queremos apoderar (FOUCAULT, 2006, pg.10). No incio

    dessa mesma obra, Foucault apresenta a hiptese de que, em toda a

    sociedade,

    a produo do discurso ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero de procedimentos que tm por funo conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatrio, esquivar sua pesada e temvel materialidade. (FOCAULT, 2006, p.8)

    O autor fala, a, dos procedimentos de excluso que atingem o discurso.

    Sabemos que no podemos falar de tudo o que queremos em qualquer lugar,

    em qualquer momento, em qualquer circunstncia. So muitas as formas de

  • 31

    controle existentes na sociedade que atingem as prticas discursivas como

    verdadeiros sistemas de coero.

    O conceito de discurso apresentado por Pcheux em seus trabalhos

    est ligado diretamente ideologia. Inicialmente, o autor tomou este conceito

    de Louis Althusser. Mais tarde, suas formulaes englobaram as noes de

    formao discursiva e formao ideolgica de Foucault explicitadas em suas

    obras Arqueologia do Saber e A ordem do discurso. Para Pcheux, a

    formao discursiva tudo que pode ser dito ou deve ser dito (sob qualquer

    forma) em determinada formao ideolgica, ou seja, a partir de uma posio

    dada em uma determinada conjuntura (OLIVEIRA e ORRICO, 2005, p. 80).

    As formaes discursivas manifestam, na linguagem, as formaes

    ideolgicas que lhes so correspondentes. Assim, conclumos que no

    podemos pensar o sentido e o sujeito sem pensar a ideologia, como no

    podemos, tambm, pensar a ideologia, discursivamente, sem pensar a

    linguagem. Ento, como afirma ORLANDI (2005), um dos pontos fortes da

    Anlise do Discurso ressignificar a noo de ideologia a partir da

    considerao da linguagem: uma definio discursiva de ideologia.

    A ideologia, por sua vez, nesse modo de a conceber, no vista como conjunto de representaes, como viso de mundo ou como ocultao da realidade.No h alis realidade sem ideologia. Enquanto prtica significante, a ideologia aparece como efeito da relao necessria do sujeito com a lngua e a com a histria para que haja sentido. (ORLANDI, 2005, p. 48)

    O trabalho ideolgico um trabalho da memria e do esquecimento.

    Segundo Pcheux, uma formao discursiva no um espao estrutural

    fechado, j que ela permanentemente invadida por elementos provenientes

    de outros lugares, por exemplo, os pr-construdos. O pr-construdo designa

    o que remete a uma construo anterior exterior, mas sempre independente, e

    que se liga ao que construdo no enunciado. um j-dito, um trao no

    discurso de um discurso anterior.

  • 32

    Para que uma expresso tenha sentido preciso que ela j faa sentido

    antes (efeito do j-dito). A isso que chamamos historicidade na anlise do

    discurso. Chamamos de efeito de pr-construdo, a impresso do sentido que

    deriva do j-dito, do interdiscurso e que faz com que ao dizer j haja um efeito

    de j dito sustentando todo o dizer (ORLANDI, 2006, p. 18).

    Podemos at nos chocar quando enfrentamos essa realidade: nada

    original, neutro ou novo em nossa fala. Nossos discursos no so inditos. H

    sempre algo por trs nos guiando e querendo nos recolocar nos trilhos quando,

    numa aventura, samos deles. Se acontece o diferente, temos que enfrentar

    toda uma sociedade, tentando nos excluir do processo de vida, de produo de

    sentidos. Possenti explica que a AD rompe com a concepo de sujeito uno,

    livre, caracterizado pela conscincia (isto , sem inconsciente, sem ideologia) e

    tomado como origem (POSSENTI, 2004, p. 388, sic). Os sujeitos no processo

    de produo discursiva acreditam que so senhores de seus discursos, mas,

    na verdade, passam de sujeitos a assujeitados. O sujeito do discurso, ento,

    apropria-se da memria.

    Para definir o conceito de memria discursiva, destaco o intelectual

    francs Jean-Jacques Courtine (1985) com seu esquema dos eixos. Segundo

    sua teorizao, o eixo vertical o da constituio do dizer e o eixo horizontal

    o eixo da formulao. Como eixos se cruzam, todo dizer se d no cruzamento

    do que chamamos constituio e formulao, sendo que a constituio do dizer

    determina a sua formulao. A memria se situa no eixo vertical e qualquer

    formulao se d determinada pelo conjunto de formulaes j feitas, mas

    esquecidas. Da a memria discursiva ser constituda pelo esquecimento,

    sustentando cada palavra por meio do j dito. De forma alguma essa memria

    um reservatrio de informaes ou uma memria de arquivo (da qual no

    esquecemos).

    Em relao ao meu trabalho, a memria discursiva construda em

    tempos remotos, relativa imagem do ndio, funciona como um imaginrio

    formado pelos discursos construdos por vrias instncias sociais como a

    escola, a literatura, o cinema, a msica e a histria oficial. E sobre esse

    imaginrio j existente que a televiso opera, de forma seletiva, quando celebra

  • 33

    o Dia do ndio em sua tela. Nesse sentido, a tev, com suas estratgias de

    construo do discurso a respeito dos ndios, torna-se fonte de pesquisa para

    meus estudos.

    1.1.1 O discurso jornalstico e a narrativa televisiva

    Em seu artigo Discurso e instituio: a imprensa (MARIANI, 1999),

    Mariani explica que, no sculo XIX, afirma-se uma posio institucional para a

    imprensa como instituio organizada a partir da formulao de prticas

    jurdicas que regulamentam o modo como deve ocorrer a textualizao: pelo

    impedimento de se dizer qualquer coisa que afete as bases do imaginrio

    ocidental cristo. O discurso jurdico, impondo regras e punies aos

    participantes da prtica jornalstica, passa a ser um aval para a ilusria

    imparcialidade. Da vem o mito do jornalismo verdade, isto , a iluso de que

    os jornais so apenas veculos de informaes verdadeiras, isentas e

    imparciais.

    O poder da designao, abordado por Kanavilil Rajagopalan em Por

    uma linguagem crtica: linguagem, identidade e a questo tica, mostra como

    o discurso jornalstico imprime seu ponto de vista atravs da fabricao de

    novos termos de designao para se referir s personagens novas que surgem

    no cenrio e aos acontecimentos novos que capturam a ateno dos leitores

    (Rajagopalan, 2003, p. 84). Como podemos pensar numa imprensa neutra, se

    h um julgamento de valor disfarado no simples ato de denominar? Se o

    discurso, como j falamos antes, um produtor de sentidos.

  • 34

    Nesse sentido, h a emisso de uma opinio por parte da mdia,

    disfarada de um ato de referncia neutra. Um alerta para o ouvinte ingnuo.

    Movida por essa inteno, segue o quadro, destacando algumas

    denominaes dadas aos ndios nas reportagens selecionadas, como

    contribuio ao estudo das prticas discursivas do Dia do ndio.

    Categoria RJ TV - 1 Edio/TV GLOBO Dia do ndio

    Designaes dadas aos ndios

    ANO 1996 ANO 2005 ANO 2006 ANO 2007

    Diversas tribos

    Xavantes, Guaranis,

    Tupiniquins

    Primeiros habitantes de nossa terra

    Autntico Xavante

    Donos

    Representantes da tribo Fulni-

    Eles s tem o dia 19 de abril

    Os ndios

    No artigo A mdia e o lugar da histria, Ribeiro destaca que o

    acontecimento jornalstico remete a um contedo ao mesmo tempo

    transparente (dada a sua ancoragem factual) e profundamente opaco (devido

    ao jogo oblquo das denominaes - PCHEUX apud RIBEIRO, 2005, p.

    117).

    Por mais que os pesquisadores discutam a no-objetividade jornalstica,

    sabe-se da dificuldade de se conseguir negar a sua caracterstica de

    ancoragem factual. Os acontecimentos, projetados como notcias, so a

    unidade bsica de construo dos jornais. como se os acontecimentos

    abordados pelas matrias jornalsticas tivessem saindo naturalmente do real.

    Acreditamos, assim, que o que deu no jornal a verdade. Apesar de,

    geralmente, os nomes, datas e acontecimentos no serem inventados e de

    essas informaes estarem mais ou menos iguais em outros jornais

    revelando uma coerncia , as interpretaes (pontos de vista) aos fatos

    concretos so diversas.

    Segundo Barbosa,

  • 35

    ao difundir uma narrativa do mundo (ainda que selecionada entre mltiplas possibilidades factuais), a mdia no mero espelho da realidade, fazendo sempre um trabalho de produo de significados, determinantes na constituio daquilo que chamamos realidade. (BARBOSA, 2007, p. 133)

    Voltando minha pesquisa, de acordo com o meu relacionamento

    (pessoal ou telefnico), como assessora de imprensa do Museu do ndio, que

    mantive com o pessoal da imprensa televisiva, encarregado de pautar o que vai

    ser exibido pela emissora, a comemorao do Dia do ndio no considerada

    pelas pautas do telejornalismo uma matria factual, portanto, prioritria.

    Em conversa informal com a pauteira da TV Globo, a cobertura de

    nosso evento, no Museu do ndio, pode ser considerada uma matria

    produzida, no factual. Ela comentou, ainda, que para tal indicado o formato

    ao vivo, uma pista para o entendimento dessas matrias comemorativas como

    celebraes miditicas (conceito discutido mais adiante).

    Percebemos que, quando o Dia do ndio (19 de abril) cai num final de

    semana4, a presena da mdia televisiva prejudicada. Nesse perodo, as

    emissoras trabalham com esquema de planto, com equipe reduzida,

    atendendo apenas o que considerado prioridade e a produo do formato ao

    vivo torna-se mais complicada.

    Importante ressaltar aqui que a narrativa televisiva introduz uma

    suspenso do tempo no presente do telespectador que participa do processo: o

    passado torna-se presente vivido na cena da telinha. Outra caracterstica desse

    tipo de narrativa o fato de a imagem figurar o real. Da a confuso de

    significaes que o pblico produz em relao aos gneros televisuais,

    misturando ficcional e factual.

    Assim, depois de tomarmos conhecimento das bases tericas da AD

    para a compreenso do funcionamento da linguagem enquanto prtica

    simblica, passamos para o conceito de comemorao. A comemorao, neste

    trabalho, vista como um lugar de memria no sentido dado pelo historiador

    Pierre Nora (1993): lugar onde uma sociedade ancora sua memria.

    4 Ver anexo 8.3 da base de dados Clipping Dia do ndio no Museu do ndio.

  • 36

    De que maneira so construdos os enunciados da comemorao? Para

    responder essa questo, precisamos entender as especificidades da

    construo desses rituais de celebrao.

    1.2 O conceito de comemorao como lugar de memria

    este vai-e-vem que os constitui: momentos de histria arrancados do movimento da histria, mas que lhe so devolvidos. No mais inteiramente a vida, nem mais inteiramente a morte, como as conchas na praia quando o mar se retira da memria viva.

    Pierre Nora, 1993, p. 13

    Passo, agora, a abordar a comemorao como lugar de memria no

    sentido dado pelo historiador francs Pierre Nora (1993). Para tanto, tambm

    utilizo o referencial terico de Michael Pollak (1989 e 1992) que v o tema das

    comemoraes dentro do contexto da memria como lugar de disputa, de

    conflito.

    Para refletir sobre a categoria lugares de memria, teremos que fazer

    um breve relato da anlise de Pierre Nora sobre as noes de memria e

    histria. Os lugares de memria nascem da conscincia de que no h

    memria espontnea. A memria vida, carregada por grupos vivos, aberta

    dialtica da lembrana e do esquecimento, em permanente evoluo. Assim,

    preciso criar arquivos. So lugares com efeito nos trs sentidos da palavra

  • 37

    material, simblico e funcional: de registros escritos a datas comemorativas,

    passando por celebraes e smbolos, at museus, bibliotecas, obras de arte.

    Para Nora, a razo fundamental de ser de um lugar de memria

    bloquear o trabalho do esquecimento e, ao mesmo tempo, estar apto para a

    metamorfose, sofrendo um deslizar permanente de significados. Destaque para

    o trecho do texto Entre Memria e Histria, a problemtica dos lugares que faz

    parte de La Republique, primeiro volume de Les Lieux de Mmoire, projeto

    coordenado por Nora:

    Os lugares de memria nascem e vivem do sentimento que no h memria espontnea, que preciso criar arquivos, que preciso manter aniversrios, organizar celebraes, pronunciar elogios fnebres, notariar atas, porque essas operaes no so naturais. por isso a defesa, pelas minorias, de uma memria refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que levar incandescncia a verdade de todos os lugares de memria. Sem vigilncia comemorativa, a histria depressa os varreria. So basties sobre os quais se escoram. (NORA, 1993, p.13)

    O surto da memria em todo o mundo vem da ameaa do

    esquecimento. A necessidade de criar arquivos que marca o contemporneo,

    com suas transformaes fase da acelerao da histria (NORA, 1993,

    p.13), vem do fato de no haver memria espontnea, da a construo dos

    lugares de memria.

    Como reflexo a esse tpico, a obra Seduzidos pela Memria, de

    Andreas Huyssen, vai ao encontro do meu objeto de anlise a comemorao

    do Dia do ndio , quando fala do fenmeno recente da musealizao, isto , as

    obsesses com a memria e com o passado: No h dvida de que o mundo

    est sendo musealizado e que todos ns representamos os nossos papis

    neste processo (HUYSSEN, 2000, p.15).

    Huyssen tambm constri uma ponte entre memria e os meios de

    comunicao de massa, ao afirmar que

  • 38

    a acusao de amnsia feita invariavelmente atravs de uma crtica mdia, a despeito do fato de que precisamente esta desde a imprensa e a televiso at os CD-Roms e a Internet que faz a memria ficar cada vez mais disponvel para ns a cada dia. (Idem, 2000, p.18)

    Fechando a abordagem sobre a seduo pela memria, Abreu (1994)

    nos explica: Vivemos cercados por comemoraes. Rituais comemorativos

    no nos parecem nenhuma novidade tal a sua frequncia no dia a dia de

    nossas vidas. Essas comemoraes so prprias do mundo moderno, onde se

    observa uma tendncia fragmentao da vida coletiva (ABREU, 1994, p. 20).

    A autora apresenta, no texto Entre a nao e alma: quando os mortos

    so comemorados, a comemorao como uma inteno deliberada dos

    agentes produtores da memria social para criar laos de continuidade. As

    comemoraes adquiriram um significado especialmente importante no

    momento em que o rompimento da memria com as antigas tradies e com o

    costume levou a criao de novos mecanismos (ABREU, 1994, p. 21). Assim,

    surgiu a necessidade de instituir novas formas de preservao, de

    memorizao e de arquivamento no mundo moderno. Para a autora, os

    pesquisadores Pierre Nora com seus lugares de memria e Eric Hobsbawm e

    Terence Ranger com a expresso tradies inventadas esto se referindo a

    um mesmo processo, enunciando que, no mais havendo uma memria

    incorporada na tradio e no costume, teria sido necessrio criar lugares

    prprios para a sua construo. (Idem, Ibidem). Nesse contexto, podemos

    inserir a definio do pensador e filsofo contemporneo, o francs Paul

    Ricoeur5, para o conceito de rememorao: trabalho de construo de uma

    memria coletiva.

    Agora, vamos expor as ideias acerca do tpico anterior do socilogo

    Michael Pollak que define os elementos constitutivos da memria individual ou

    coletiva: os acontecimentos, os personagens e os lugares. O autor explica que

    possvel encontrarmos lugares de apoio da memria na memria mais

    5 Definio de conceito retirada do artigo Rememorao /comemorao: as utilizaes sociais da memria, de Helenice Rodrigues da Silva, publicado na Revista Brasileira de Histria, vol.22, n44, SP, 2002.

  • 39

    pblica, que so os lugares de comemorao. Problematiza, ainda, os vestgios

    datados de memria como aquilo que fica gravado como data precisa de um

    acontecimento:

    Todos sabem que at as datas oficiais so fortemente estruturadas do ponto de vista poltico. Quando se procura enquadrar a memria nacional por meio de datas oficialmente selecionadas para as festas nacionais, h muitas vezes problemas de luta poltica. (POLLAK,1992, p. 203)

    As comemoraes fazem parte de um processo de construo de poder,

    de disputa, sobretudo se considerarmos que ela seletiva.

    A memria organizadssima, que a memria nacional, constitui um objeto de disputa importante, e so comuns os conflitos para determinar que datas e que acontecimentos vo ser gravados na memria de um povo. (POLLAK, 1992, p.203)

    Para Pollak, a organizao da memria em funo das preocupaes

    pessoais e polticas do momento mostra que a memria um fenmeno

    construdo.

    Assim, necessrio documentar o presente e relembrar, a todo o

    momento, o passado. Multiplicam-se os lugares de memria. Os momentos de

    celebrao ancoram memrias que no podem se perder, sentimentos que

    intensificam o presente, funcionando como elemento de identificao para

    todos que participam da prtica comemorativa.

    Durante a leitura dos trabalhos dos autores apresentados acima,

    consolidei a ideia de que o acontecimento de comemorao do Dia do ndio

    est inserido no contexto atual de preocupao com a memria e com o

    passado. Pela prtica comemorativa, os agentes produtores da memria social,

    nesse caso a televiso e a prprio Museu do ndio um lugar de memria ,

    pretendem, no mbito de disputas e relaes de poder, fortalecer determinados

    valores na nossa sociedade. Atravs desse dilogo, pude levar a problemtica

  • 40

    da musealizao para o contexto da questo indgena. Trata-se de um enfoque

    equivocado em relao s sociedades tradicionais, que situa os ndios no

    passado com risco de extino. Tal viso aparece em minhas anlises iniciais

    como veremos adiante.

    1.2.1 A data Dia do ndio

    Focalizando as comemoraes em torno do Dia do ndio, podemos partir

    da noo de lugares de memria, explicitada anteriormente, para refletir sobre

    a preocupao com a organizao da memria nacional, estabelecendo

    relao entre ela e a origem indgena.

    O Presidente da Repblica, pelo Decreto-lei n5.540, de 2 de junho de 1943, determinou que o Brasil comemore solenemente o Dia do ndio a 19 de abril de cada ano, data escolhida pelo Instituto Indigenista Interamericano, com sede no Mxico, para que todos os pases americanos solenizem as memrias dos primitivos povoadores do Novo Mundo (CNPI, 1946, p.11, grifos meus).

    Na dcada de 30, surgiram as primeiras ideias a respeito de um

    programa indigenista continental. Em 1933, durante a VII Conferncia

  • 41

    Interamericana, o representante do Mxico props a realizao de um

    Congresso Indigenista Interamericano com essa finalidade.

    Por sugesto da Oitava Conferncia Internacional Panamericana em

    Lima, Peru, em 1938, aconteceu, dois anos depois, o Primeiro Congresso

    Indigenista Interamericano, no Mxico, que props aos pases da Amrica a

    adoo da data de 19 de abril para o Dia do ndio. O nico delegado brasileiro

    presente no Congresso foi o antroplogo Edgard Roquette-Pinto.

    Atravs do Decreto-lei 5.540, de 2 de junho de 1943, assinado pelo

    ento Presidente Getlio Vargas, o Brasil adotou essa recomendao. No ano

    seguinte, o pas comeou a celebrar a data com solenidades, atividades

    educacionais e divulgao da cultura indgena. Foi organizada, uma Semana

    do ndio. Essa primeira comemorao foi confiada ao ento General Cndido

    Mariano da Silva Rondon, presidente do Conselho Nacional de Proteo aos

    ndios CNPI, antroploga Helosa Alberto Torres, diretora do Museu

    Nacional e, tambm, membro do CNPI.

    Nas vsperas da celebrao de tais comemoraes foi distribuda a

    seguinte nota aos jornais:

    O Brasil, do mesmo modo que as demais Naes americanas, comemorar festivamente ste ano o Dia do ndio, escolhido pelo Instituto Indigenista Interamericano para celebrar a memria dos primitivos povoadores da terra americana e para homenagear as tribos silvcolas remanescentes, que ainda representam um patrimnio humano de real valor. (CNPI, 1946, p. 9).

    De acordo com os dados da publicao da Comisso Rondon, a

    programao estava dividida em duas partes: palestras de divulgao nos

    programas radiofnicos da Hora do Brasil e exposio etnogrfica montada no

    hall da Associao Brasileira de Imprensa, alm de exibio de filmes e

    realizao de conferncias.

    No encerramento dessa Semana, o General Manuel Rabelo declarou em

    sua conferncia sobre as populaes indgenas: Nosso primeiro dever

  • 42

    preservar a sua existncia como uma relquia da humanidade, mediante a

    proteo oficial, ativa e eficiente, aos seus remanescentes (CNPI, 1946, p.15).

    Como explicado anteriomente, foi, no Mxico, em 1940, que foi proposta

    a data de 19 de abril para o Dia do Indio. E a data foi apropriada, no Brasil, pela

    poltica nacionalista da poca. O dia 19 de abril era o dia do aniversrio de

    Getulio Vargas. Constou em discurso de Rondon, durante a comemorao, a

    seguinte meno ao aniversrio do presidente:

    eu quero, antes de nos despedirmos, repetir que hoje o aniversrio do Dr. Getlio Vargas. A citao desta data natalcia e as referncias que acabo de expender, justificam a proposta que fao para que fique consignado, em ata, um voto efusivo do nosso louvor ao Presidente Getlio Vargas, pela sua ao benevolente e desassombrada em favor dos nossos irmos das selvas. (CNPI, 1946, p.14)

    Em 24 de maio de 1944, foi publicado, no jornal Correio da Manh, o

    artigo A Margem da Semana do ndio de Batista de Castro. Nele, o autor citou

    as comemoraes da Semana do ndio:

    Alm do propsito a que diretamente visaram, as comemoraes da Semana do ndio h pouco realizadas, serviram para relembrar problemas etnogrficos que, a bem dos nossos foros de cultura, no deveriam permanecer relegados ao mais recndito silncio, como ora se encontram... As comemoraes da Semana do ndio, assim, se outras finalidades no lograram, ao menos serviram para relembrar to palpitantes assuntos que, incontestvelmente, merecem a devida considerao dos governantes, nestes dias sombrios, mas, tambm, onde ala o colo tanta frioleira empavonada.(CNPI,1946, p. 207).

    Em sua tese Tutela e Resistncia Indgena, Andrey Cordeiro Ferreira

    chama a ateno para o carter nacionalista implcito no ritual do Dia do

    ndio, uma iniciativa nascida dentro do CNPI que foi criado durante o Estado

    Novo, enquanto rgo consultivo, em 1939.

  • 43

    Devemos analisar este rito para poder compreender todos os significados expressos pelo ritual em seu conjunto. Isto porque, certos signos sero selecionados do contexto da ideologia nacionalista implcita na poltica indigenista que gerou o ritual do dia do ndio. (FERREIRA, 2007, p. 191)

    E conclui: O Dia do ndio foi utilizado pelo Estado-Nacional como

    ferramenta localizada da sua auto-construo. O projeto de nacionalizao do

    ndio utilizou esta data para implementar um ritual que encenasse o mito de

    origem da nao, de maneira que o indigenismo foi tambm parte da poltica

    global nacional-desenvolvimentista utilizada pelo Estado Novo, para construir

    uma identidade nacional. (IDEM, p.189, sic)

    Hoje, a comemorao do Dia do ndio continua, mas como um lugar de

    memria que, para Nora, onde a memria se cristaliza e se refugia. A

    celebrao dessa data pela sociedade nacional um lugar para registrar e

    lembrar o passado, onde a memria dos primeiros habitantes se conserva.

    tambm para celebrar a sua identidade, comemorar o seu passado.

    Focamos aqui comemorao como a programao de eventos (exibio

    de exposies, atividades para crianas e adultos, realizao de manifestaes

    indgenas como danas, rituais e cantos e outros), promovida pelo Museu do

    ndio, para celebrar o Dia do ndio dentro da instituio. A anlise acontece a

    partir da investigao da imagem dessa comemorao na tev.

  • 44

    1.3 Memria social e prticas comemorativas

    No seguinte texto Memria, Esquecimento, Silncio, Michael Pollak

    dialoga com Halbwachs (1990) e seu conceito de memria coletiva, alm de

    contextualizar a categoria lugares de memria de Nora no processo de

    enquadramento da memria6:

    Em sua anlise da memria coletiva, Maurice Halbwachs enfatiza a fora dos diferentes pontos de referncia que estruturam nossa memria e que a inserem na memria da coletividade a que pertencemos. Entre eles incluem-se evidentemente os monumentos, esses lugares da memria analisados por Pierre Nora, o patrimnio arquitetnico e seu estilo, que nos acompanham por toda a nossa vida, as paisagens, as datas e personagens histricas de cuja importncia somos incessantemente relembrados, as tradies e costumes, certas regras de interao, o folclore e a msica, e, por que no, as tradies culinrias. (Pollak, 1989, p.3) (grifo meu).

    O trecho acima, ao falar da fora dos diferentes pontos de referncia

    os lugares de memria que estruturam nossa memria, inserindo-a na

    memria da coletividade de que fazemos parte, remete ao conceito de memria

    social de Maurice Halbwachs que tenta responder o problema da coeso

    social. O que faz com que os indivduos construam laos sociais ou coletivos

    que se mantm com relativa firmeza? Para Halbwachs, essa coeso

    6 Expresso de Henry Rousso em Le syndrome de Vichy. De 1944 nous jours. Paris: Seuil, 1990.

  • 45

    garantida pelos quadros sociais da memria, entendidos como um sistema de

    valores que unifica determinados grupos familiares, religiosos, de classe7.

    Outros homens tiveram essas lembranas em comum comigo. Muito mais, eles me ajudam a lembr-las: para melhor me recordar, eu me volto para eles, adoto momentaneamente seu ponto de vista, entro em seu grupo, do qual continuo a fazer parte, pois sofro ainda seu impulso e encontro em mim muito das ideias e modos de pensar a que no teria chegado sozinho, e atravs dos quais permaneo em contato com eles. (HALBWACHS, 1990, p. 27)

    O autor Pollak explica que a referncia ao passado serve para manter a

    coeso dos grupos e das instituies que compem uma sociedade, alm de

    definir seu lugar respectivo. A memria funciona para definir e reforar

    sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades. Alm dos

    discursos em torno de acontecimentos e de grandes vultos, os rastros desse

    trabalho de enquadramento so os objetos materiais como monumentos,

    museus, bibliotecas e outros. Porm, o autor adverte: a memria seletiva.

    Nem tudo fica gravado e registrado.

    Pollak fala em memrias subterrneas, referindo-se s camadas

    marginalizadas (as minorias). Para ele, no se trata de historiar memrias que

    j deixaram de existir, mas trazer superfcie memrias que prosseguem seu

    trabalho de subverso no silncio e de maneira quase imperceptvel e que

    afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados

    (POLLAK, 1989, p. 4), travando-se, ento, a disputa entre memrias ou a luta

    entre a memria oficial e as memrias subterrneas.

    Pollak esclarece, conforme dito anteriormente, que so comuns os

    conflitos para determinar que datas e que acontecimentos vo ser gravados na

    memria de um povo como, por exemplo, as datas oficiais que so fortemente

    estruturadas do ponto de vista poltico. Neste caso, a memria nacional

    constitui um objeto de luta importante, pois diferentes processos e agentes

    7 GONDAR, J, DODEBEI, Vera (Orgs.). O que Memria Social? Rio de Janeiro: Contra Capa, 2005.

  • 46

    atuam na sua constituio quando acontece um processo de negociao para

    conciliar memria coletiva e memrias individuais.

    O passado comemorado e construdo como acontecimento. Nesse

    processo, misturaram-se o presente e o passado. Com a comemorao,

    materializa-se a memria. No mais esqueceremos o fato, j que ele, agora,

    est marcado em um calendrio. Ele pode gerar poder por sua valorao

    pblica e lucro se for comercializado como produto.

    No prximo tpico, estabeleceremos uma aproximao dos conceitos

    comemorao e celebrao miditica.

    1.4 Celebrao miditica a comemorao na tev

    Em seu trabalho Jornalistas, senhores da memria?, a professora

    Marialva Barbosa conceitua a comemorao/celebrao miditica como um

    tipo de evento miditico que coloca em relevo a questo da memria. Espcie

    de marco que reatualiza o passado. Para ela, a comemorao um importante

    instrumento utilizado pela prtica jornalstica para construir uma dada memria

    da sociedade.

    Sabe-se que a narrativa jornalstica marcada pela identidade do

    instante. Ento, o mecanismo para se eliminar o dficit em relao ao passado

    construir a comemorao como um acontecimento, atravs de uma lgica

    narrativa na qual o passado usado ao mesmo tempo em que o presente,

    gerando uma realidade diferente daquela da transmisso direta. Na veiculao

  • 47

    do acontecimento de comemorao pelos meios de comunicao, o passado e

    o presente se misturam num processo de construo de memria como

    ilustrado na citao a seguir:

    Para isso, mistura-se o presente e o passado, razo pela qual tornam-se os meios de comunicao verdadeiros guardies das comemoraes contemporneas e construtores de uma dada memria atravs da montagem de uma verdadeira indstria da comemorao. (BARBOSA, 2004, p.11)

    Percebo que as coberturas anuais, pela mdia televisiva, da

    programao comemorativa do Dia do ndio no Museu do ndio esto no

    contexto deste conceito. As emisses ao vivo sobre o Dia do ndio fazem parte

    das comemoraes, tambm, como lugares de memria, movidas pelo medo

    do esquecimento.

    A celebrao da data nacional do Dia do ndio lembra aos brasileiros a

    cultura indgena como fragmento de nossa histria, de nossa identidade, com a

    inteno de tornar esses aspectos memorveis. Para Marialva Barbosa8, em

    relao ao caso do Dia do ndio, a comemorao dessa data, no Museu do

    ndio, celebrada na mdia. Ainda segundo a autora, os meios de comunicao

    comemoram suas datas significativas ou as datas que eles mesmos elegem

    como emblemticas para a histria do pas. Dessa maneira, reinstaura-se uma

    dada memria nacional, lugar onde coexistem memrias coletivas atuais e

    reservatrio do que resta das antigas memrias comemorativas.

    Se a memria histrica se condensa em torno dos lugares e dos monumentos, tambm se sintetiza em torno das celebraes. E nesta construo e, por extenso, naconstituio de uma dada identidade coletiva, a mdia desempenha papel essencial. (BARBOSA, 2007, p. 55)

    8 Palestra de abertura do IV Seminrio de Memria e Linguagem, no dia 12 de novembro de 2001, na UNIRIO.

  • 48

    Da, o uso da expresso celebrao miditica, afirmando aqui a sua

    importncia para esta pesquisa, j que a anlise a ser realizada acontece a

    partir da investigao da imagem da comemorao do Dia do ndio que

    acontece dentro do Museu do ndio transmitida pela tev.

    Mais adiante, no captulo da Anlise, veremos que, em relao ao fato

    de as comemoraes miditicas reatualizarem o passado, no caso da temtica

    indgena, apenas alguns aspectos desse pretrito so atualizados, outros so,

    simplesmente, esquecidos. Nas imagens da comemorao do Dia do ndio no

    Museu do ndio, transmitidas pela tev, o ndio do tempo presente que dana

    e canta vestido de ndio do tempo passado (primitivo, da origem da

    humanidade). Mas como relata Barbosa, se a imagem na televiso figura o

    real, tambm figura o ficcional, materializando o prprio imaginrio social

    (BARBOSA, 2007, p.135). E para se estudar as imagens na televiso, teremos,

    ento, que enfocar as representaes do pblico, coletivas, em relao

    ordem social.

    Fechando com Halbwachs: as nossas lembranas so coletivas e elas

    nos so lembradas pelos outros, mesmo no presentes fisicamente. Podemos

    entender, assim, que as pessoas precisam da memria de outras pessoas de

    um mesmo grupo social para reafirmar suas prprias imagens do passado.

    Nesse sentido, a televiso cumpre o papel de comemorar o Dia do ndio ao

    utilizar imagens do passado, reafirmando as lembranas de seu pblico. E a

    imagem do ndio selecionada para ser exibida, em sua tela, vai se cristalizando

    a cada ano como real, silenciando tantas outras representaes.

  • 49

    1.5 Os conceitos de cultura e identidade

    Cultura um conceito ligado antropologia desde o seu surgimento. Em

    1871, Edward Tylor assim definia pela primeira vez o termo:

    tomado em seu amplo sentido etnogrfico este todo complexo que inclui conhecimentos, crenas, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hbitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade. (TYLOR, 1871, p.1)

    Nessa poca, a nascente antropologia era dominada pela perspectiva do

    evolucionismo unilinear, onde era possvel situar cada sociedade humana

    dentro de uma escala que ia da menos a mais desenvolvida atravs de trs

    estgios: selvageria, barbarismo e civilizao.

    A principal reao ao evolucionismo iniciou-se com o alemo Franz Boas

    (1858-1949), em 1896, com o seu artigo The Limitation of the Comparative

    Method of Anthropology, no qual atribuiu antropologia a comparao da vida

    social de diferentes povos, cujo desenvolvimento segue as mesmas leis. Boas,

    ao desenvolver o particularismo histrico (ou a chamada Escola Cultural

    Americana), fez surgir a ideia de que cada grupo humano desenvolve-se

    atravs de caminho prprio, uma abordagem multilinear.

    Alfred Kroeber (1876-1960), antroplogo americano, em seu artigo O

    Superorgnico (1949) contribuiu para a ampliao do conceito de cultura,

    preocupando-se em evitar a confuso entre o orgnico e o cultural, isto , a

    cultura, mais do que a herana gentica, determina o comportamento do

    homem e justifica as suas realizaes.

    Em relao ideia sobre a origem da cultura, Roque de Barros Laraia,

    em seu livro Cultura Um conceito Antropolgico (1986), destaca o

    pensamento de dois importantes antroplogos sociais. Para o francs Claude

    Lvi-Strauss, a cultura surgiu quando o homem convencionou a primeira regra,

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    norma, que seria a proibio do incesto um padro de comportamento

    comum a todas as sociedades humanas. E Leslie White (1955), antroplogo

    norte-americano, explicou que a passagem do estado animal para o humano

    ocorreu quando o crebro do homem foi capaz de gerar smbolos.

    Direcionando o assunto para a temtica indgena, falaremos agora sobre

    as mudanas nas sociedades, o carter dinmico da cultura. Pelo Manifesto

    sobre aculturao, resultado de um seminrio realizado na Universidade de

    Stanford em 1953,

    qualquer sistema cultural est num contnuo processo de modificao. Assim sendo, a mudana que inculcada pelo contato no representa um salto de um estado esttico para um dinmico mas, antes, a passagem de uma espcie de mudana para outra. O contato, muitas vezes, estimula a mudana mais brusca, geral e rpida do que as foras internas (LARAIA, 1986, p.100)

    Laraia ressalta que, no caso dos ndios brasileiros, o resultado do

    contato de um sistema cultural com um outro representou uma verdadeira

    catstrofe. Surge, ento, o conceito de aculturao. No Brasil, este passa a ser

    utilizado a partir dos anos 50 com a apresentao de Estudo de Aculturao

    dos Grupos Indgenas Brasileiros, na I Reunio Brasileira de Antropologia em

    1953, por Eduardo Galvo. O conceito era usado para anlise das situaes de

    contato, principalmente entre brancos e ndios, e para entender as

    consequncias deste processo, isto , a perda dos traos culturais originrios

    como perda de sua substncia.

    Para Laraia, cada sistema cultural est sempre em mudana. Entender

    esta dinmica importante para atenuar o choque entre as geraes e evitar

    comportamentos preconceituosos (IDEM, p.105), conclui.

    Em seu livro Patrimnio cultural imaterial e povos indgenas, a

    antroploga Dominique Tilkin Gallois diz que indispensvel o processo de

    reviso do conceito de cultura, j que este no consegue superar uma

    definio datada dos anos 1950, que a Antropologia da poca definia a partir

    dos conhecimentos, crenas, arte, leis, costumes, capacidades e hbitos que

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    constituiriam o conjunto dos traos distintivos de um grupo social, no plano

    espiritual, material, intelectual, emocional e incluindo, alm das artes e da

    literatura, os estilos de vida, os modo de vida em comum, os sistemas de

    valores, as tradies e as crenas (GALLOIS, 2006, p. 18). Um dos principais

    empecilhos dessa reviso a viso esttica que embasa a ideia de cultura,

    profundamente arraigada no senso comum e que se manifesta frequentemente

    na busca de autenticidade. Essa abordagem de traos culturais continua

    orientando a apreciao das culturas indgenas.

    a idia de cultura delimitada apenas por meio de traos que seriam produtos caractersticos de um povo, grupo ou comunidade localizada sem considerar a troca de conhecimentos e experincias que, necessariamente, um grupo mantm com outros. (GALLOIS, 2006, p. 20)

    Segundo a autora, h muito ainda a fazer para promover uma noo de

    cultura que integre a dinmica e a criatividade. E superar a ideia segundo a

    qual cultura remete a coisas do passado e a fragilidade das culturas. E

    particularmente preocupante o fato de tal fragilidade ser sempre atribuda aos

    setores menos favorecidos, ou minoritrios como so os povos indgenas

    (Idem, p.21). Por isso, quase sempre descritos como grupos em vias de

    extino atravs de uma viso que interpreta as mudanas nos padres da

    cultura original como perda. Em relao a essas mudanas, a antroploga

    Manuela Carneiro da Cunha9 afirma que os regimes culturais so passveis de

    mudanas que no so apenas induzidas externamente: elas seguem tambm

    uma dinmica interna.

    Afinado com a abordagem da anlise de discurso, recorri leitura de

    trabalhos de antroplogos que tratam dos discursos da indianidade no mbito

    de novos fluxos de identidade e cultura. Destaco aqui o autor Marshall Sahlins

    9 Patrimnio imaterial e biodiversidade. Revista do IPHAN. Nmero32, 2005.

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    com sua afirmao de que a cultura no um objeto em via de extino ao

    falar dos fluxos globais:

    No plano mundial, a humanidade, unificada pelos fluxos culturais globais que correm pelos canais da integrao econmica, est comeando a coincidir efetivamente com a espcie humana. Mas, ao mesmo tempo, ao se infletirem localmente, os fluxos globais diversificam-se de acordo com esquemas culturais particulares. (SAHLINS, 1997, p. 133.)

    Em resumo, as culturas no esto desap