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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES INSTITUTO A VEZ DO MESTRE PÓS – GRADUAÇÃO “LATO SENSUA CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA NA GRÉCIA ANTIGA Uma Perspectiva Genealógica e a noção de Acontecimento Histórico. Millena Pereira Nunes Reis Orientada por: Maria Poppe Niterói 2010

A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA NA GRÉCIA ANTIGA … · Grécia Antiga através da noção da perspectiva histórica e da noção de acontecimento histórico, ou seja, ver

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

INSTITUTO A VEZ DO MESTRE

PÓS – GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA NA GRÉCIA

ANTIGA

Uma Perspectiva Genealógica e a noção de Acontecimento

Histórico.

Millena Pereira Nunes Reis

Orientada por: Maria Poppe

Niterói

2010

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

INSTITUTO A VEZ DO MESTRE

PÓS – GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA NA GRÉCIA

ANTIGA

Uma Perspectiva Genealógica e a noção de Acontecimento

Histórico

OBJETIVOS:

Monografia apresentada no curso de

Pós-graduação ‘lato sensu“ em Terapia

de Família da Universidade Cândido

Mendes, como requisito para obtenção

do título de especialista em Terapia de

família, autora Millena Pereira Nunes

reis

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AGRADECIMENTOS

A Deus,

a minha família,

aos meus amigos e

aos meus professores

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DEDICATÓRIA

A todos que amam o poder de afirmar e de

criar da vida.

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RESUMO

A história não é uma linearidade de fatos ideais que juntos trabalham para

compor sentidos universais. Esta é completamente o oposto disso. A história não

é uma evolução para um estado ideal: é feita de rupturas, descontinuidades,

desencontros de sentidos, de valores, de conceitos que são produzidos e

inventados. São efeitos das batalhas, das relações de poder, dos agenciamentos

entre múltiplas e diferentes forças que compõem um campo de possibilidades, um

campo problemático que reúnem as condições possíveis para que ocorra a

emergência de valores e significados em determinados contextos da história. A

história é assim composta por uma rede infinita de acontecimentos que produz o

movimento nunca ordenado da história, mas um devir de sentidos plurais e

singulares, sempre renovados. A proposta desta pesquisa é, portanto, permitirmos

olhar e analisar a família na Grécia Antiga através desta perspectiva genealógica e

da noção de acontecimento histórico. Um novo olhar, uma nova concepção da

história como produção de singularidades únicas, como produtora de sentidos e

que nos conduz a debruçarmos sobre esta, sem julgamentos, sem modelos, sem

certos e sem errados a priori, apenas compreendermos como foi possível a

construção dos modos de ser família no contexto da antiguidade grega. A partir

destas concepções, ao final desta pesquisa encontraremos reflexões de como

estes conceitos podem contribuir para o trabalho da terapia de família.

Palavras - chave: História – construção – relações de poder – sentidos – família na

Grécia Antiga – genealogia – acontecimento – terapia de família

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METODOLOGIA

A metodologia foi baseada na pesquisa bibliográfica da análise de livros de

autores que nos auxiliaram a pensar através da família na Grécia Antiga, um

recorte histórico, a perspectiva genealógica e a noção de acontecimento histórico.

Jean Paul Vernant e seus colegas (1994) reuniram um rico material referente a

Grécia Antiga. Deste nos interessou a estrutura daquela sociedade, o mundo dos

deuses, a vida doméstica, a diferenciação dos papéis masculinos, femininos, a

concepção de criança e as relações homoeróticas. De Friedrich Nietzsche

(1878;1885;1886;1887) tentamos extrair essência da criação do pensamento

genealógico e de sua base na teoria das forças. Com Michel Foucault (1973;

1979) nos aprofundamos mais no desenvolvimento do pensamento de Nietzsche e

em sua contribuição do que possa ser um acontecimento. Paul Veyne (1982;

1985) nos trouxe á luz uma nova concepção da história e de como ela é

produzida, além de contribuir para mais uma faceta do que possa ser o

acontecimento histórico. E finalmente através de Gilles Deleuze (1974; 1976)

fomos buscar nos filósofos Estóicos a fundamentação os primeiros pensamentos

da noção de acontecimento histórico, além da ampliação e complementação deste

conceito pelo autor. Através destes conceitos, criamos ferramentas para poder

refletir sobre o que pode vir a ser a terapia de família, o seu processo, a linha de

trabalho com as famílias e a percepção do terapeuta nesta dinâmica.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 9

CAPITULO I

O MODO SINGULAR DA ESTRUTURAÇÃO DA SOCIEDADE GREGA

ANTIGA 12

CAPÍTULO II

O MUNDO IMORTAL: O MUNDO GREGO ANTIGO GOVERNADO POR 25

DEUSES

CAPÍTULO III

A COMPLEXIDADE DO SER FAMÍLIA NA GRÉCIA ANTIGA 47

CAPÍTULO IV

A PESRPECTIVA GENEALÓGICA E A NOÇÃO DE ACONTECIMENTO

HISTÓRICO: 75

CAPÍTULO V

CONTRIBUIÇÕES DOS CONCEITOS DA PESRPECTIVA GENEALÓGICA E

ACONTECIMENTO HISTÓRICO Á TERAPIA DE FAMÍLIA 100

CONCLUSÃO 104

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BIBLIOGRAFIA 106

WEBGRAFIA 114

ANEXOS 115

ÍNDICE 118

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INTRODUÇÃO

Quando folheando um livro de história da antiguidade grega nos deparamos

com o termo “a família na Grécia Antiga”. A que idéia nos remetemos? Talvez a de

que a família desta época formaria uma unidade de características. Mas se

pensarmos hoje poderíamos dizer que há “uma família contemporânea” “uma

família da atualidade”? Acreditamos que é impossível e mesmo impensável ver,

sentir o no nosso quotidiano, seja, qual for, na observação de outras famílias, essa

unidade indivisível. Há tantas composições possíveis, quanto imaginamos. A

tradicional família nuclear burguesa, um casal, seja homossexual, ou

heterossexual, com ou sem filhos, apenas um dos pais com a guarda destes,

filhos adotivos, o convívio e a relação de amigos, sem laços consangüíneos

vivendo em uma mesma habitação ou não: todas estas são modos de ser família

possíveis em diversas classes socioeconômicas e culturais, espalhadas pelo

mundo. Como é possível dizer que no cipoal de diversidades, presentes em todos

os lados, para quem deseja e pode ver, haja um modelo único do que seja

família?

Agora pensemos: como podemos dizer que um território imenso como o

território grego, antes mesmo de ser unificado, antes de se tornar uma nação, um

pais, constituído por uma pluralidade de pequenos estados, para falar a verdade,

trinta estados, podemos nele falar de um modelo de família grega? E ainda por

cima grega? Não é possível dizer que haja uma figura unívoca de família perante

a uma diversidade de cidades, e conseqüentemente, de sistemas de vida, de

regimes políticos. A família na Grécia Antiga deve ser tomada como plural e

singular. Plural, pois a diversidade está espalhada em cada moradia, em cada

organização, e singular, pois em nenhuma encontraremos um modo de ser igual.

O lúcido historiador Jean- Pierre Vernant afirma que os historiadores colocam um

objeto de estudo, seja ela qual for da história e decompõem “...em uma

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multiplicidade de facetas, em cada uma das quais se reflete o ponto de vista que

os autores da obra preferiram privilegiar” (Vernant, p. 7). Desta maneira passam

para nós a idéia de um objeto histórico unívoco em toda e qualquer situação, sem

suas particularidades e interferências.

A reunião de diversos autores pesquisados tem como intuito sempre

ampliar cada vez mais a perspectiva do sentido da família na sociedade grega

antiga, nunca querermos encontrar uma comunhão e uniformidade de idéias entre

eles. Não acreditamos na justaposição e sim em um conjunto de aspectos que se

interceptam e sempre se complementam de algum modo nos fornecendo uma

imagem original sem equivalentes. A busca é sempre pela individualização,

pluralidade, multiplicidade e na singularidade deste pequeno grande mundo. Para

tanto é necessário nos desposarmos de qualquer modo de ser família a priori, de

enquadramento. Devemos fazer um movimento contínuo de vai e vem, de

proximidade e afastamento, pois este permite segundo Vernant “... nos

aproximarmos mais sem o perigo de nos confundirmos e aproximando-os para

melhor captar as diferenças e ao mesmo tempo, as afinidades”(ibid, p. 10) para

que não bloqueemos a profundidade deste mundo.

Desta forma, a nossa pesquisa terá como fundamento pensar a família na

Grécia Antiga através da noção da perspectiva histórica e da noção de

acontecimento histórico, ou seja, ver a família na Grécia Antiga não como uma

unidade imutável, mas como uma produção, fruto de relações de força marcadas

pela época, pelos agenciamentos, pelos campos de problematização que a

envolvem, por exemplo, a estruturação da sociedade grega antiga, o império dos

deuses, o ser criança, o ser mulher, o ser homem, as relações homoeróticas, o

casamento, dentre outros: todos acontecimentos, agenciados uns aos outros e

que, atendendo ao nosso enfoque de pesquisa, produzem sem cessar o

acontecimento família na Grécia Antiga.

Também, seguindo o caminho traçado pela perspectiva genealógica e pela

noção de acontecimento histórico, pensaremos como uma terapia de família

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poderia ser estruturada nestes parâmetros. A percepção do terapeuta, a sua

prática, as intervenções, como ele pode conceber a família que se apresenta para

este profissional demandando cuidado, bem como a sua idéia do processo

terapêutico.

Pesquisar sobre o tema família na Grécia antiga é sem dúvida um grande

desafio, devido à escassa informação acerca deste tema. Os próprios

historiadores deste período Grego Antigo afirmam que muitos documentos foram

perdidos e, portanto a pesquisa desta literatura se encontra em grande dificuldade.

Mas o nosso trabalho foi sem dúvida reunir os diversos sentidos, as diversas

interpretações acerca do tema para termos um campo rico e o mais heterogêneo

para trabalháramos, mesmo sabemos que nunca apreenderemos a totalidade,

pois há um limite inevitável no conhecimento. O maior número de informações

acerca da Grécia Antiga se encontra através de documentos dos períodos

Homérico, Clássico e Helenístico. Assim, grande parte de nossa pesquisa virá de

informações acerca destes períodos. Mas como concebemos que o ser família na

Grécia Antiga envolve muitos outros aspectos da época tentaremos ao máximo

reunir todos estes e assim, poder tecer os diversos fios que constroem o ser

família na Grécia Antiga.

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CAPÍTULO I – O MODO SINGULAR DA ESTRUTURAÇÃO

DA SOCIEDADE GREGA ANTIGA

A sociedade grega antiga, na concepção de um dos filósofos gregos mais

renomados, Aristóteles, em “A política” (Aristóteles apud Glotz, 1988, p.2 ), teve

em sua formação primária o desenvolvimento de três estágios: a família, a aldeia e

o Estado.

A família seria o primeiro estágio de formação do mundo grego. Sua formação

é dada como natural. Tudo o que é natural para os gregos é sinônimo de eterno. A

estrutura da família é feita através da associação do casal marido e mulher, do

senhor e do escravo: Estes são “(...) todos que comem na mesma mesa e

respiram a mesma fumaça da mesma” (ibid). Como a família é colocada no

primeiro estágio do desenvolvimento da sociedade, logo é concebida como a base

ramificadora. É da família que se criaria o segundo estágio: a aldeia ou a kômê, ou

seja, lugar onde moram tantos os filhos, como os netos da família, obedecendo a

um único rei, que exerce na família de forma mais ampliada o poder que a figura

mais velha exerceria na família primitiva. (ibid.,p.2). O Estado ou a pólis seria o

último estágio de desenvolvimento da formação da sociedade grega. É percebida

como a resultante, a conjunção das múltiplas aldeias existentes. Sendo assim, a

família seria a criadora natural de outros dois elementos de formação da

sociedade grega: a aldeia e a cidade; conseqüentemente estes seriam também

criações naturais.

Como a família seria a base e origem da formação dos outros estágios da

sociedade é nesta que o homem pode se tornar um ser político, ou seja, o

desenvolvimento deste naquela seria mais do que uma opção, passa pelo sentido

de um dever. A cidade é apenas um veículo para este desenvolvimento completo.

A história não é um continuum de eventos que seguem uma seqüência lógica e

estruturada. Ela é marcada de encontros e desencontros em sua trajetória. Isto

possibilita para os pesquisadores um espectro amplo de concepções e pontos de

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vista de um recorte histórico. Desta forma podemos dizer que Glotz contrapõe

Aristóteles e apresenta outra hipótese para a formação inicial da Grécia. Também

como o filósofo ele divide a formação da Grécia em três períodos (ibid., p.4):

1º A cidade seria composta por famílias que cuidadosamente protegem o seu

direito primitivo e por este submete todos os seus membros ao interesse da

coletividade.

2º A cidade colocaria as famílias em dependência, contando com o auxilio dos

indivíduos libertos.

3º Os excessos do individualismo destruiriam a cidade a ponto de se tornar

necessário à constituição dos Estados mais extensos.

Após estas duas principais hipóteses acerca do processo de formação inicial

da sociedade grega, veremos os elementos principais que compõem e se

relacionam para a complexidade do modo de ser grego antigo.

1.1- Os primeiros gregos

A maior fonte de informação deste povo está contida na poesia e nos contos

heróicos que narram as lendas tradicionais intercalando-as com as versões

familiares dos feitos dos Deuses.

Os primeiros homens – Civilização Minóica 2200 a 1400 a.c – surgiram na ilha

do Mar Egeu por meio da fusão de habitantes de Creta com povos que emigraram

para esta ilha vindos de ilhas da Ásia Menor. A principal atividade econômica era o

comércio e sua grande obra foi a construção de belos palácios altamente

estruturados, onde se localizava o centro administrativo de sua civilização, e

envolta destes havia casas. Não há um consenso forte sobre o desaparecimento

desta civilização, mas há a hipótese de que a origem teria sido devido às invasões

bárbaras da Civilização Micênica (Wikipédia).

A Civilização Micênica – 1600 a 1200 a.c – já falava o idioma grego. Não

possuíam uma unidade política, caracterizada pela existência de diversos

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reinados. Mas o centro administrativo se encontrava também no interior de

palácios. Adotavam o comércio, a caça e a guerra como fonte econômica. O

declínio desta civilização está associado à queda das rotas comercias e á guerras

internas (ibid).

A história da Grécia é marcada por um período denominado pelos historiadores

como a Idade das Trevas – 1200 e 800 a.c – denominados assim, pois todas

fontes de informação possíveis, como a escrita e os objetos de arte foram

perdidos. Outro fator apontado como hipótese teria sido a diminuição populacional

e a imigração dos habitantes que procuravam locais mais seguros para se fixarem

(ibid).

No Período Homérico – aproximadamente 750 a. c – tem-se a formação da

comunidade gentílica – dos gènos – formada pelos povos invasores, mas também

foi a época de transição para o desaparecimento das antigas realezas religiosas e

patriarcais. A pátria para este povo era o clã ou os gênós, ou seja, a reunião de

membros que descendiam do mesmo antepassado e saudavam ao mesmo deus:

“Debaixo do mesmo teto mamavam o mesmo leite, respiravam a mesma fumaça,

comiam o pão da mesma casa” (Finley, 1963, p.5). A classificação dos vínculos de

parentesco, sem eles hoje talvez perderíamos o referencial de proximidade

consangüínea na nossa organização familiar, para este povo não era necessário,

pois todos viviam como irmãos ou gennêtai – aparentamento. Este grupo gozava

de independência e soberania ilimitadas. A única obrigação era com a sua religião.

Suas virtudes e valores eram definidos segundo o que favorecia sua honra e

prosperidade. Tudo neste grupo sejam indivíduos, coisas e animais eram

vinculados pelo “laço de solidariedade absoluta” (ibid., p. 5) chamada philótês –

aproximadamente significa amizade – entretanto em um sentido mais próximo da

relação jurídica do que da sentimental. Esta amizade direciona a aidôs –

consciência do dever. Logo podemos entender que o dever era recíproco como o

laço de amizade e somente entre os parentes, não importavam quais (Homero,

apud Glotz, 1988, p.5). Assim como todos os outros pertences do clã, a

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propriedade era também comum a todos e indivisível. Para ser merecedor desta

todos deveriam, trabalhar em favor dela.

O chefe dos génôs era aquele do sexo masculino que tinha descendência mais

direta com o antepassado divino, ou seja, o de sangue mais puro dentre todos do

clã. Este homem possuía poder e mérito absoluto sobre muitas coisas do seu

pequeno mundo como sua mulher e demais membros do grupo. Em relação a sua

mulher esta poderia ser repudiada, rendida ou morta sem nenhuma justificação. O

título de chefe dos génôs permitia ser merecedor de toda a sabedoria ou do

conhecimento dos thémistes – sentenças indefectíveis reveladas por sonhos ou

oráculos, ou ainda por sugestão divina. Estas thémistes eram transmitidas a cada

geração bem como a thémis – o código sagrado e culto da justiça familiar (ibid., p.

6). Já que o chefe possuía a justiça este era quem concedia a sentença

condenatória ou inocente a um membro que atentasse contra o seu clã, cumprindo

assim, além de “juiz”, a função de protetor social.

As reuniões dos clãs formavam as fratrias que poderíamos entender como

uma corporação de guerra, sociedades fechadas. Era bastante comum a guerra

entre os génôs por terras, armas e rebanhos. Qualquer membro ofendido poderia

se vingar. Era permitida a reconciliação através da piedade ou pela compaixão. O

assassino deveria ocupar o lugar daquele que matou no clã através da adoção ou

do casamento seguido de um tratado de amizade simbolizado a aliança pelo

sacrifício aos deuses – mistura do seu sangue com os outros integrantes do clã

oposto (Homero, apud, Glotz, 1988, p. 7).

Impulsionadas pelas diversas convocações de necessidades econômicas,

militares e de subsistência, as fratrias foram se desenvolvendo

administrativamente e conseqüentemente dissolvendo a vida comunitária dos

gènôs, preparando o terreno para a formação da pólis Grega.

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1.2 - A pólis Grega1

A pólis Grega merece um destaque especial assim como a comunidade dos

gènos, pois enquanto a última conta com as especificidades de uma organização

social e preparação para a pólis, a primeira se destacou pela sua grandiosa

organização e dinâmica, além de produzir um forte sentido singular de

pertencimento a um coletivo social, criando assim modos de ser que influenciaram

todos os ramos da vida dos gregos antigos.

A dinâmica e estrutura da pólis, tendo sido iniciado o seu projeto já no período

Arcaico – 750 a 500 a.c –, mesmo alterada ao longo da história da Grécia,

permaneceu como modelo de cidadão, de social e de democracia na Grécia

Clássica – 500 a 323 a.c – ,Helenística – 323 a 146 a.c – e nos influencia até hoje

na administração política dos países.

Como o território grego não era unificado, havia diversas Cidades. Cada qual

com sua peculiaridade de administração. Todavia a diversidade do território grego

não superava os elementos comuns entre as cidades. Estas formavam um

conjunto, não só pela organização de uma comunidade política, ou seja,

pertencentes todos a uma mesma pátria, mas pelo sentimento de união comum

através da tradição vinculada à natureza mítica e histórica.

A pólis também conhecida como Cidade-Estado é definida por Redfield (1994,

p. 155) como um corpo político baseado na idéia de cidadania – uma comunidade

de pessoas juridicamente iguais. A autoridade era concedida aos indivíduos

através do seu cargo em relação à pólis. Os cidadãos podiam governar e serem

governados, ocupando um cargo e cedê-lo a outro sem perder sua condição de

cidadão. A pólis também podia ser vista como um conjunto de famílias ligadas por

laços de hospitalidade mútua, de casamento dentre outros. Uma sociedade

privada cuja riqueza se encontrava espalhada em muitos indivíduos, mas estes

deviam pagar impostos sobre o patrimônio em casos de necessidade pública.

1 Ver as ilustrações em anexo 1 de quadros que retratavam a pólis grega.

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O conjunto de cidadãos formava um público e a vida civil significava

basicamente ser digno de freqüentar as reuniões públicas – a time – como as

assembléias, o teatro, os jogos e os rituais. A atimia era uma punição jurídica que

consistia na perda deste direito. Porém, nem todos os indivíduos eram cidadãos,

ou seja, homens de pleno direito. As mulheres, as crianças e os escravos não

faziam parte deste enquadramento de cidadania. Eram considerados pertencentes

a uma família e, portanto indiretamente faziam parte da cidade. Embora a cidade

fosse sua pátria, não faziam parte do público (ibid., p.155-156).

Dentre o corpo de cidadãos da pólis, nem todos possuíam igualdade neste

direito. A regra geral era que todos os cidadãos tinham o direito de aparecer em

público, entretanto, esta aparição se tornava uma forma de competição entre eles,

e esta era melhor representada através da própria guerra, ou através de duelos,

ou de um conjunto de provas e desafios: o vencedor ganhava uma superioridade e

um reconhecimento como cidadão, ou seja, sua honra e glória acima dos demais.2

Por esta razão, o território grego provocava tanto o desenvolvimento de

treinamentos militares, quanto dos jovens guerreiros (ibid).

Esparta foi considerada a forma mais representativa do modelo da Cidade-

Estado. Talvez por ter sido uma comunidade fechada de homens unidos por uma

educação centrada intensamente no exército, na competição e na honra. A

competição era uma condição que devia ser mantida através dos laços de

parentesco. Mas a perda da condição de cidadão em Esparta era diferente das

outras cidades gregas: aquele espartano que não possuísse o patrimônio

suficiente para quitar os tributos da pólis perdia automaticamente o direito de

cidadão. O número de cidadãos em Esparta diminuía vertiginosamente, pois a

esfera econômica e a acumulação de riquezas se situavam abaixo da esfera

política (ibid., 161-162;164).

2 Ver mais detalhadamente o sistema de desafios e provas na 1ª e 2ª conferências no livro de Michel Foucault A verdade e as formas jurídicas, Tradução de Roberto Cabral de melo Machado e Eduardo Jardim Morais Título original La vérité et les formes juridiques Rio de Janeiro, 3ª edição, Editora Nau, 2005. 158 p

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Assim, o espaço público era o criador de possibilidades para um cidadão se

tornar mais respeitável do que os outros (ibid., 155-156). Podemos resumir o

sentido de cidadão e de pertencimento a uma comunidade política, através da

seguinte frase de Redfield: “Os Gregos pensavam que só participando nessa

comunidade de pares em competição se podiam tornar seres humanos no

verdadeiro sentido da palavra” (ibid, . p;. 156).

1.3 - A distribuição das classes sociais

A concentração das forças e interesses do povo grego antigo estava situada na

polis. Ali era o caldeirão da administração política. Em volta da pólis havia outros

lugarejos, aldeias, pequenos burgos onde habitavam as famílias mais humildes. A

cidade era composta por quatro classes sociais que englobavam diversos tipos de

indivíduos: os nobres, os especialistas, os demiurgos, thêtes e os excluídos da

sociedade, os escravos. Os nobres eram aqueles provindos de descendência

direta dos deuses – filhos deles, o que era motivo de muito orgulho. Mas sua

riqueza era mais importante do que seu sangue, assim escrevia Homero quando

na Ilíada ao expor sua descendência, faz uma listagem de seus bens.

Participavam diretamente dos conselhos e festas na companhia do rei, de

sacrifícios, jogos danças e contos em lugar privilegiado. Em resumo, sua vida era

bela, rica e repleta de honra. Os especialistas em atividades intelectuais e

religiosas são trazidos por Mireaux (1954) como classes distintas, enquanto Glotz

(1988) concebe estes especialistas e demiurgos em uma só classe. Estes

especialistas se encontravam na fronteira da nobreza segundo Mireaux, na

maioria das vezes intimamente ligados à vida religiosa, considerados

presenteados pelos próprios deuses com suas faculdades e aptidões. Estavam

compreendidos nesta classe os médicos, adivinhos, poetas e conselheiros –

aedos. Geralmente seus talentos eram hereditários e seu exercício um privilégio

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familiar (Mireaux, p.73). Estes guardavam os mistérios dos ritos, das cerimônias,

eram os intérpretes dos sinais divinos.

Um “pedaço de terra” era referência de prestígio social. Para Glotz, os

demiurgos tinham mais dificuldade de conquistá-la. Todavia poderiam ter êxito e

viver do fruto dado por esta. Aqueles que não conseguiam ter sorte com o seu

plantio ainda sim poderiam levar uma vida digna trabalhando para o público,

significado do nome de sua classe, seja como médicos, poetas trovadores,

adivinhos, carpinteiros, artesãos, oleiros dentre outros. Apesar de suas conquistas

não perdiam a consciência de sua inferioridade social em relação a aqueles que

eram proprietários de terra. Os Thêtes eram homens livres que não tinham

profissão e nem terras. Eram mendigos ou mercenários alugados para prestarem

serviços. Podiam ser subdivididos em três classes – anéstios, athémistos e

aphrêtor. Nenhum destes possuíam valor social e direito na cidade (ibid., Glotz,

p.29-31). Todavia Mireaux diz que a estrutura social era dotada de uma

plasticidade e flexibilidade que permitia ao indivíduo Grego Antigo atravessar

diversas classes o que a autora justifica pela dificuldade de defini-las.“No entanto

o conjunto destas profissões representa uma individualidade social e um mundo

particular cuja existência é caracterizada assaz nitidamente” (Mireaux, p.75).

Os escravos não compunham as classes sociais, simplesmente pelo fato de

não serem concebidos como integrantes da sociedade. Podiam ser comprados,

vendidos ou emprestados como um bem móvel. A escravidão era uma prática

comum na Grécia Antiga e ao longo de sua história. A guerra era uma rica fonte

desta prática. Matavam-se os homens adultos e tornava mulheres e crianças

escravas. Há indícios de que Atenas era a região da Grécia com a maior

população de escravos. Cada cidadão teria no mínimo um escravo. Ser escravo

representava ser excluído da participação da vida política, de direitos civis, de

parte das festas religiosas da cidade, das palestras e dos ginásios. Um escravo

era sempre visto como um indivíduo de menor idade, ou seja, não alcançava, aos

olhos da sociedade, a vida adulta. Em Atenas, segundo nos conta Cambiano

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(1991, p.79) somente escravos e crianças poderiam receber castigos físicos. A

única forma de instrução de um escravo era associada ao tipo de trabalho e de

serviço que desempenhava na casa de seu senhor. Seu senhor poderia enviá-los

as oficinas artesanais com o objetivo de aprenderem algum ofício que traria lucros

para o patrão.

Importante ressaltarmos que não há um consenso sobre a composição e

nomenclatura de cada classe, podendo haver diversas outras pela a ampla

multiplicidade de figuras sociais. Por exemplo, enquanto que Mireaux diferencia os

especialistas intelectuais e religiosos dos demiurgos, Glotz concebe todos

pertencentes a uma só classe – os demiurgos, com diferentes características e

papéis sociais, como se houvesse algo que os igualassem nesta condição, talvez

a possibilidade de todos terem o direito perante a pólis, um valor social e

conseqüentemente uma terra.

1.4 - A concepção de mundo e a lei ordenadora da vida

A crença e a mitologia grega nos contam, no que diz respeito à formação do

mundo, segundo Brandão, (1987, p 183-193) para a existência do Káo ou Caos –

abrir-se, entreabrir-se, um abismo (Frisk 1958 op. Cit Brandão 1987 p. 184) ou a

presença do vazio fundamental, anterior a criação, antes a imposição da ordem

aos elementos do mundo (Chevlier et Gheerbrant 1982 p.206 op. Cit Brandão

1987 p. 184). No princípio tudo era o caos. A desorientação é o caos. Somente se

sai dele pela intervenção de um pensamento ativo que interfere fortemente nos

elementos constitutivos do universo. Do Caos, surgiram Gaia, Tártaro e Eros.

Gaia tem em seu significado a denominação de Terra, porém ainda se é muito

discutido entre os conhecedores do idioma Grego Arcaico. Ela é o elemento

principal e deusa cósmica. Ela tem em si a vivência da ambigüidade. Dela nascem

tudo e todos. É a mulher, a mãe. Portadora da doçura, da submissão, da firmeza e

da humildade, palavra que é proveniente de húmus – terra. É a semente do céu na

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terra. Símbolo da fecundidade e da regeneração, a grande mãe. Uma de suas

características é a partogênese, que resulta na geração independente. Tártaro é o

local abaixo do Hades – Inferno, o mais profundo dos locais. Mais tarde Tártaro se

tornou um local de suplício contínuo dos criminosos mortais e imortais. Neste

local, diversos deuses jogavam seus inimigos como os ciclopes e os titãs (ibid).

Eros é o desejo dos sentidos. Sua personificação é o deus do amor. O deus

mais belo. O mito de Eros é metamorfoseado durante toda a história da Grécia. É

uma energia sempre em busca da plenitude. Foi descrito como um garotinho loiro

com asas e que por de trás de sua fisionomia doce está disposto há lançar suas

flechas de amor e paixão, no fígado e no coração de suas vítimas (ibid).

O Caos gerou as trevas profundas – Érebo e Nix. Érebo é as trevas infernais.

Nix – Nýks é a personificação da deusa da noite e representa as trevas

superiores. Esta percorre o céu com seu manto sombrio num carro puxado por

cavalos negros. Simboliza o tempo das germinações e das conspirações que

surgem na luz do dia como manifestação da vida. Traz consigo potencialidades de

existência, mas também é o espaço do indeterminado, dos pesadelos e dos

monstros (ibid).

O Éter – Aithér, criação de Nix, se origina do verbo brilhar, que é a camada

superior do cosmo localizada entre Urano e o Ar. Nesse espaço a luz é radiante e

mais pura.

Hemera que pode ser traduzida por quente, também se originou de Nix. É a

personificação do dia, uma divindade feminina (ibid).

Gaia, sem a intervenção de nenhum deus, gerou Urano, Montes e Pontos.

Urano – Uranos, personificação do céu. Montes ou Montanhas – Úrea, são os

filhos de Gaia. Tem um simbolismo muito significativo, pois na medida em que a

montanha é alta aproximando-se do céu representa a transcendência e como o

centro é a manifestação do sagrado – hierofanias, e dos deuses – teofanias. Úrea

é a intercessão entre o céu e a terra, moradia dos deuses e o termo da ascensão

humana, pois ao escalar a montanha sagrada, se caminha para o céu, entrando

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assim em contato com o divino, retorno ao princípio de tudo. Vide como exemplo,

o Monte Olimpo, como local de morada dos deuses gregos. Pontos é a ação de

caminhar, o caminho. Sua personificação é a representação masculina do mar.

Simboliza a dinâmica da vida, pois tudo sai de lá e para este retorna –

nascimentos, transformações e renascimentos (ibid).

A concepção de mundo dos Gregos Antigos tinha em sua característica a

contribuição de uma visão e sensibilidade estética em sua construção,

ordenamento e funcionamento. A physis – cujo sentido mais próximo de nossa

língua poderia ser natureza é um poder animado e vivo. Esta força era o que

permitia, por exemplo, desenvolver as plantas, dar vida aos homens e mover os

astros em suas órbitas. De acordo com Vernant (1993 p. 14- 15), a phyis estava

próxima do divino e do homem, através do seu dinamismo. Com o advento do

século VI criou-se um termo para nomear o universo em seu conjunto, o nome

grego Kósmos. Este termo na literatura Grega Antiga era tudo o que era ordenado,

regulado, belo, uniforme e harmônico, por esta razão o mundo para os Gregos

Antigos era belo, perfeito, uma arte preciosa.

Esta concepção de mundo criava toda uma concepção do modo de ser homem

neste mundo, inteiramente diversa da concepção de mundo e ser no mundo do

homem contemporâneo. O homem era um admirador deste mundo no qual ele

fazia parte. Este mundo era um dado primário, revelava ao homem uma realidade

que era anterior a qualquer experiência possível deste no mundo. Para que o

homem pudesse desvendar este mundo, ele nunca poderia ser o ponto de partida,

a condição do conhecimento, assim como da experiência. Modo de percepção

totalmente diversa da que nos possibilitou Descartes no século VII com o cogito. O

mundo, não podia sofrer uma modificação para que pudesse ser captado por uma

consciência. A imaginação do mundo não permitia que este se tornasse presente

em nossa consciência. O pensamento fazia parte deste mundo e era presente

neste mundo. Uma concepção de mundo que fazia com que o homem e o seu

pensamento pertencessem ao mundo e não o contrário. Vernant define

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claramente a idéia de ser do homem neste mundo como sendo uma “relação de

comunhão íntima” (ibid., p.15). Era necessário haver uma relação de reciprocidade

e de afinidade entre o que era visto e aquele que via, entre o ver e o ser. – “O

nosso olhar opera no mundo, onde tem o seu lugar como fragmento desse mundo”

(ibid., p.17).

Todos os Gregos tinham o profundo sentimento de que a lei que governava e

ordenava permanentemente o mundo era o Destino, a sorte ou a Moira. A Moira

era um conjunto de regras que determinavam todo o desenvolvimento da

existência dos homens, das coisas e dos deuses. Essas regras garantiam o

equilíbrio e a estabilidade do mundo através da distribuição dos seus lugares e

funções no mundo: como servos, senhores, lavradores e guerreiros. A Moira tinha

a capacidade de fixar o ritmo da vida humana, guiar sua evolução, tempo e

qualidade até a morte. O Destino também governava a Natureza, ele impunha os

fenômenos da natureza, como os cataclismos, mas também a regularidade do Sol,

da sucessão dos dias e das noites, as estações, os rios e os ventos. Portanto

desenhava o panorama da vida no mundo grego antigo (Mireaux, 1954; p. 24-26).

Todavia, o poder do Destino não era infinito, pois permitia um grau de

liberdade aos homens e aos deuses. No mundo em que os Deuses tinham

privilégios sobre os homens, a liberdade maior era justamente a dos primeiros. A

liberdade dos deuses dependia dos homens, pois sem eles o Destino não se

cumpriria. Essa ordem do mundo grego não dependia somente do Destino, mas

também da contínua troca de necessidades entre homens e deuses, um contrato

infinito.

A importância deste capítulo é fundamental para compreendermos os sentidos

do modo de ser família na Grécia Antiga, termos, minimamente, um panorama de

elementos essenciais que compõem este contexto na qual foram produzidos.

Temos a clareza de que há uma infinidade de outros aspectos poderiam ser

abordados, mas como a pesquisa é sempre um recorte da história, foram

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escolhidos estes elementos como suficientes para compreendermos a proposta

deste trabalho.

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CAPÍTULO II - O MUNDO IMORTAL: O MUNDO GREGO

ANTIGO GOVERNADO POR DEUSES

Não é necessário um grande conhecimento do mundo grego para

imaginarmos o grande valor que os Gregos Antigos atribuíam as divindades. Basta

lermos alguns trechos da poesia épica de Homero – A ílíada e de Hesíodo-

Teogonia ou Os trabalhos e os dias para termos acesso a uma rica descrição e

dinâmica dos deuses e homens no mundo grego. Neste capítulo debruçaremos

mais cuidadosamente acerca da grandiosa influência do sagrado, do mito, dos

profissionais destinados ao cuidado do divino, dos mistérios e das seitas marginais

e do modo de funcionamento deste mundo permanentemente em inter-relação

com homens e deuses.

Para que possamos compreender o mundo governado pelos deuses na

Grécia Antiga, devemos primeiramente nos desligar da nossa concepção cristã

tradicional acerca do conceito do que seja o divino. A palavra Deus, ou deus, no

nosso imaginário coletivo expressa, de acordo com Vernant, uma série de outras

palavras como: um ser único, absoluto, eterno, criador do mundo, perfeito,

transcendente, onipresente, onisciente e ainda associadas à palavras como fé,

sagrado, religião (Vernant, 1993; p. 10). As divindades gregas não pertenciam a

este sistema de sentidos contemporâneos. Não eram perfeitas, não criaram o

mundo, nasceram dele, dos poderes fundamentais e criadores do universo e nele

habitaram. Assim como os homens, os deuses eram integrantes do cosmos, mas

em uma hierarquia acima dos primeiros. Entre os homens e os deuses não existia

uma diferenciação ou uma separação radical, eram habitantes de um mesmo

mundo, mas organizados e distribuídos em patamares diferentes e profundamente

hierarquizados. Os homens nunca poderiam tornar-se deuses e sentir a sensação

de plenitude e de eternidade.

Os homens dependiam dos deuses. Por exemplo, quando estes nasciam já

entendiam que para que isso pudesse ter acontecido, algum pai, antepassado,

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deus, deveria ter permitido assim como tantos outros acontecimentos. Sem esse

consentimento nada poderia ter sido feito. Assim, os homens, até o fim de suas

vidas seriam gratos e segundo a leitura de Vernant “devedores” (ibid.,p.12). Suas

dívidas seriam pagas através de infinitos rituais tradicionais de celebração e

comunhão por meio de danças, cânticos, jogos, torneios, banquetes dentre outros

que expressassem uma espécie de homenagem a aqueles que concederam tanto

o seu nascimento quanto a outras ações em suas vidas, mas também uma forma

de comunhão permanente com estes, pois era uma forma de introduzir e tentar

garantir ao mundo dos homens e as suas vidas a beleza e a harmonia peculiar

dos deuses.

Entretanto apesar da dependência das divindades, havia a necessidade dos

homens estarem sempre em paz com os deuses para que seus pedidos fossem

concedidos. Vernant faz a leitura de que não é possível dizer que os homens não

eram seres livres. Cada homem tinha em mente que em qualquer ramo de suas

vidas deveriam se esforçar, fazer o que deviam, se empenhar para que pudessem

conseguir a proteção dos deuses. Todos e qualquer um que fizesse isso poderia

conquistar os olhos dos deuses. Vegetti (1993, p.234) atenta brilhantemente que a

credulidade e incredulidade, temor ao divino e desenvoltura para com ele,

estavam estreitamente ligados. Darmos ênfase excessiva a qualquer um desses

aspectos significaria compreender mal a singularidade do comportamento

relacional entre homens e deuses.

2.1 -A dimensão do sagrado e o culto aos deuses

Não podemos dizer que a Grécia Antiga possuía uma religião ou uma fé e sim

um culto: diferença fundamental para que possamos compreender este tema.

O significado de religião abarca dentre outros sentidos segundo o dicionário

“um conjunto de práticas e dogmas próprios de uma confissão religiosa” e ainda a

“crença de um ente supremo como causa, fim ou lei universal”. A impossibilidade

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de afirmarmos a existência de uma religião ocorre, primeiramente, devido à

inexistência de:

• uma instituição religiosa unificada que permitisse haver uma organização

com características amplamente distintas das demais práticas sociais e

com legitimidade para interpretar as verdades religiosas e oficializar

práticas e cultos;

• um profeta fundador de uma doutrina que organizasse um sistema

teológico;

• um livro sagrado que contivesse as verdades e os dogmas a serem

rigidamente seguidos que impusesse e vigiasse aqueles que não os

seguissem a serem condenados como hereges;

• uma casta sacerdotal permanente e profissional de intérpretes

especializados e uma igreja unificada .

Para termos uma idéia do distanciamento que provocaríamos de uma

compreensão mais legítima entre homens e deuses ao acreditar que a Grécia

Antiga tinha uma religião é o fato de que nem na língua grega exista uma palavra

que traduzisse “religião”. As palavras eusebèia e therapeia – os cuidados devido

aos deuses encontrado em Platão (ibid.; p. 232), talvez fossem as que mais se

aproximassem do compromisso com os deuses e com o sagrado simbolizado

através do cumprimento dos ritos cultuais que atestavam o respeito, a veneração

e a condescendência dos homens por estes, materializados por meio de

oferendas, sacrifícios e promessas. O mesmo ocorre com a palavra “fé”. Não

havia equivalente na língua grega antiga. Todavia o crer simbolizava o respeitar,

honrar as divindades por meio de cultos e ritos prescritos pela tradição mais do

que acreditar de modo racional em sua existência.

Mas, como nasceu essa experiência com o sagrado? A hipótese é que ela

tenha vindo da sensação da presença de poderes sobrenaturais em florestas,

nascentes, grutas e montanhas, em fenômenos naturais misteriosos ou em

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momentos significativos da existência. Porém Vegetti (ibid.; p.234) nos diz que a

experiência com o sagrado pode ser atribuída a duas direções complementares. O

sagrado primeiramente assumiu uma dimensão de localização geográfica, ou seja,

a locais fortes – tradução da palavra sagrado – hièros. Nestes locais era dedicado

ao culto dos poderes e posteriormente se transformava em santuários – tèmenoi,

que podiam ceder a templos dedicados às divindades. Todos os homens

honravam Zeus, o deus supremo, mas cada cidade tinha um deus um protetor.

Cada qual com suas afinidades e singularidades bem como um santuário próprio.

As origens do templo grego ficaram perdidas no período denominado pelos

historiadores de Idade das Trevas, período não acessível pelos pesquisadores.

Mas sabemos que os primeiro templos de pedra datam do sétimo século. Embora

tentemos traçar um pensamento paralelo ao templo religioso da

contemporaneidade, local onde se pratica culto ao deus, para o grego um templo

era apenas a casa de um deus. O Altar era o local para se realizar os rituais, as

súplicas aos deuses do Olimpo. Logo os altares eram em número significativo,

diversos espalhados pelas cidades: lares, campos, nas assembléias, qualquer

lugar que não fosse o templo. O templo era um monumento que representava para

a comunidade, sua força, grandeza e autoconsciência, ou como resume Finley “a

força vital” a imortalização coletiva do homem através destes edifícios públicos

(1963, p. 41). Posteriormente o sagrado será considerado tudo o que está contido

nos locais de culto como as vítimas dos sacrifícios, os ritos e os seus oficiantes.

Outro sentido do sagrado para os Gregos Antigos é considerá-lo como tudo o que

advinha dos poderes sobrenaturais. Portanto, o sagrado também era o

ordenamento de toda a natureza, como o dia e a noite, mas também, o

ordenamento da vida social como os casamentos e nascimentos, os sistemas de

poder, dentre outros.

Vegetti atenta que o próprio calendário Grego Antigo era repleto de rituais.

Cada mês era associado a um culto, obrigatoriamente ocorrido neste período do

ano, o que indica mais uma vez a convivência diária entre homens e o sagrado. O

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ritual poderia ser individual ou coletivo efetuado de acordo com uma seqüência de

procedimentos segundo a tradição mítica, uma oferta votiva, com invocação do

deus e uma prece. A oferta podia incluir presentes, fumo, aroma, monumentos,

mas o elemento essencial era a oferta de alimento animal, ou seja, o sacrifício de

animais. Cada sacrifício acompanhava características específicas de acordo com

a divindade ofertada e sua participação. Sempre implicava um sentido de renúncia

do homem a uma parcela de seus recursos alimentícios mais preciosos e que

devido a este sacrifício, deveriam e acreditavam os homens que os deuses seriam

sempre bons com estes, não permitindo ocorrer nenhuma tragédia ou caos.

Todavia cada sacrifício era seguido de um banquete. O homem era autorizado a

comer a carne animal-símbolo associado à mortalidade. Mas o ato de comer não

era tão simples: havia uma repartição das carnes de forma assemelhada as

hierarquias sociais, as melhores partes sempre eram destinadas aos magistrados,

aos sacerdotes e aos cidadãos mais eminentes (ibid.; p. 243), enquanto que para

os deuses, fumos e aromas. O culto aos deuses do homem grego antigo tinha

como alvo, também, e de acordo com Vernnat (1993; p. 13) a busca da

estetização, a beleza e não a renúncia a este mundo, aos pecados, como concebe

a tradição cristã. O homem grego buscava cada vez mais se aprofundar na beleza

da vida. Por este motivo é impossível concebermos o mundo grego antigo sem o

convívio de deuses e homens, sem a dimensão e a presença do poder divino.

O ritual além de servir de adoração, de tentativa de manutenção da ordem

natural do mundo, era uma forma de ampliar a convivência entre os homens ao

exaltar suas comunidades. Por este motivo os rituais sempre eram realizados em

clima festivo e associados a eventos como banquetes, jogos, danças, cânticos,

procissões e representações teatrais (Vegetti, 1993; p. 235).

Porém, nem tudo podia ser perfeito. Nem sempre os rituais ocorriam como

o prescrito pela tradição. Alguns homens podiam invadir o espaço sagrado e violar

algumas de suas normas divinas que regulavam a ordem social. Quando isto

acontecia, aquele que cometeu era um homem contaminado, impuro e os deuses

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jogavam sobre este suas vinganças que não só recaiam sobre o culpado, mas

também sobre sua comunidade e mesmo sobre seus descendentes. O culpado

era excluído de freqüentar os rituais e deveria ser banido da comunidade para que

esta se livrasse da vingança divina. A tradição grega antiga orientava para que

todos os anos a comunidade elegesse dentre os homens portadores de

deformações físicas ou psíquicas, ou seja, os marginais, a expulsão destes da

comunidade como uma maneira de expurgar do local todas as contaminações

impostas à comunidade (ibid.; p.236).

Assim chegamos à conclusão de que a presença do sagrado permanecia

na Grécia Antiga intensamente diluída e misturada em todas as manifestações da

vida quotidiana. Em toda a vida privada e social, em todo o espaço, encontramos

por meio de imagens, de rituais e narrativas míticas que reafirmavam a

experiência do sagrado e o significado das divindades na existência do mundo e

dos homens. Esta familiaridade se traduzia pela proximidade entre deuses e

homens ou utilizando a expressão de Vernant “(...) estando presente em todos os

lugares e em todas as ocasiões, o elemento religioso arrisca-se a deixar de

possuir em espaço e um modo de se manifestar totalmente seus” (1993; p. 13).

Por este motivo, qualquer estudo acerca deste mundo que não aborde de alguma

forma este aspecto da experiência com o sagrado na realidade grega antiga seria

o mesmo que “matar” o coração desta civilização e conseqüentemente toda e

qualquer compreensão desta singular realidade.

2.2 - O mito e a mitologia 3

O mito é uma narrativa, uma história, de origem popular, uma

representação coletiva transmitida de geração a geração que em muitas antigas

civilizações funcionava como um sistema que tentava de maneira mais ou menos

coerente com a realidade, ou seja, pouco racional, explicar o mecanismo e

3 Ver ilustrações em anexo 2 de alguns deuses da mitologia grega.

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essência de um mundo, de seu povo, do homem ou de algum acontecimento

através da interferência de entes sobrenaturais. O mito é uma forma de linguagem

estruturada por meio de símbolos, cada um com o seu sentido e interpretações

variadas na consciência cultural de um povo. No mito não há limites, segundo

Grimal (Grimal, 1952 p.8 apud, Brandão, p.14 1987) este estava em toda a parte

no mundo grego antigo e já possuía vida própria. Até mesmo os filósofos

recorriam ao mito como forma de explicar o que a razão não capturava, mas

também criavam outras versões deste. A Mitologia é o movimento ao conjunto de

transformações do material do mito ao longo da história de um povo (Brandão,

1987; p.38).

O mito é um elemento inseparável do poder divino na medida em que um

ritual é visto como a reatualização e reafirmação de um mito. O ritual é uma

maneira do homem reviver a energia e a força das origens de um acontecimento

narrado por um mito. Assim, o rito é o como se fosse o mito em ação no instante

em que se é realizado. Se “o mito rememora, o rito comemora” (ibid.; p.39) Por

meio dos rituais o homem se torna capaz de repetir as ações dos heróis e dos

deuses na própria origem, no passado cultural. Conhecer o mito é aprender sobre

a origem das coisas e do mundo. Todo o mundo grego antigo era estruturado

ordenado em torno dos mitos. Cada função na sociedade de um indivíduo,

homem, mulher, criança, cada acontecimento era delineado segundo determinado

mito que narra a história de um deus. Cada local e ato sagrado estabelecido

correspondiam a uma história, a um mito. O ritual capacita ao homem o poder

mágico sobre as coisas de maneira a dominá-las, multiplicá-las e reproduzi-las

quando se quer. O mito explicava e justificava o ritual. Por exemplo, os homens

gregos antigos comiam após o sacrifício de um animal a sua carne e os deuses

ficavam com os aromas, os fumos – o resultado da queima dos ossos e gorduras

– e isto não era por acaso. Tudo era explicado e ordenado por um mito: Prometeu

teria em um destes banquetes após o sacrifico e oferta aos deuses, dividido a

carne em porções desiguais. Em uma parte fruto da divisão, pegou na carne e

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pele e meteu-as no estômago do animal morto e em outra parcela fez um

amontoado de ossos cobertos com a gordura do animal. Zeus que tudo sabe,

sabia que a divisão estava injusta. Prometeu pediu que o deus escolhesse.

Mesmo sabendo que estava sendo enganado pegou o monte maior de ossos e

gordura. Por este motivo os ossos e gorduras são queimados e a parte comestível

fica com os homens. Mas, com isso firmou-se a absoluta separação entre deuses

e homens. (Redfield, 1993; p. 167).

Uma característica singular da mitologia grega antiga é o seu acesso

através da forma escrita e pela arte figurada, freqüentemente comum nas

mitologias antigas. Sem estas fontes seria praticamente impossível, termos

conhecimento desta rica tradição cultural. As poesias épicas de Homero e de

Hesíodo e suas diversas versões nasceram a partir dos relatos míticos tradicionais

das divindades e dos poderes sobrenaturais. Isto permitiu a geração de um saber

social acerca dos deuses, do mundo e dos homens. Encontramos diversos

elementos na poesia épica referente à mitologia grega. O politeísmo

antropomórfico, ou seja, a presença de deuses sob forma humana foi ordenada

segundo a ordem de gerações divinas, disputas e alternância de poderes. Os

deuses têm um poder que se manifesta através de diferentes formas, atingindo

muitos setores e se entrecruzando, formando uma rede de ação. São narrados

como heróis, cujo poder e valor que os diferencia radicalmente dos humanos são

sua beleza, inteligência, força, imortalidade e amplitude de seu domínio: todos

atributos naturais. A possibilidade dos autores épicos colocarem os deuses como

heróis é segundo Vegetti a tentativa de mesmo ao nível da fantasia, igualar

deuses e homens (Vegetti 1993 p. 238). Mesmo porque os heróis podiam possuir

atributos divinos devido a sua ascendência e, portanto parentesco de um deus,

pois eram frutos da união de deuses e deusas com os homens circunscritos aos

membros da aristocracia grega. A familiaridade e o contato com os deuses

também podem ser encontrados através deste aspecto.

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A quantidade de poderes e funções que os deuses podiam exercer estava

relacionada com o número de divindades. Cada divindade tinha um domínio de

poder, uma função específica no mundo imortal e mortal, segundo a poesia épica,

e todas faziam parte do convívio diário dos homens. Todavia, apesar de haver

muitas divindades, a concentração máxima do poder e do domínio do mundo

estava nas mãos de um só deus: Zeus. A figura de Zeus representava a soberania

da justiça e da força. Ele garantia a ordem do mundo e da sociedade, do céu e da

terra. Como dito anteriormente, Zeus não teria sido escolhido pelo acaso dentre

tantas divindades: somente conquistou este posto devido a diversas guerras e

feitos heróicos. Segundo conta Vegetti (ibid.; p.239), Zeus conseguiu destruir a

dinastia divina de origem noturna e caótica, de Cronos, seu pai, que devorou seus

cinco filhos, Hades, Poséidon, Deméter, Hera e Héstia com receio da maldição de

Urano, seu irmão, que afirmava que um de seus filhos iria lhe tomar o poder. Com

a ajuda de Réia, sua mãe e de Métis, a prudência, Zeus fabricou um veneno e

misturou a bebida de Cronos. Os cinco filhos retornaram a vida. Zeus se tornou rei

da dinastia celeste e olímpica, dando origem primeiramente a sociedade dos

heróis e posteriormente a sociedade política. A partir deste feito tudo se

encontrava em ordem e harmonia.

O Panteão Olímpico era a casa das doze principais divindades gregas

antigas. Hera, mulher de Zeus, responsável pela manutenção do matrimônio, da

geração de descendentes legítimos e, portanto ligada à existência da sociedade

humana e da civilização. Seu dever era lutar para impedir a volta do caos.

Poseídon dominava os abismos marinhos, lagos, rios e o subsolo. Senhor da

tempestade, do terremoto e protetor dos navegantes. Zeus teve diversos filhos

espalhados pelo mundo grego antigo, dentre eles, Atena, Apolo, Ártemis, Ares.

Atena era filha de Zeus com Métis. Quando foi revelado a Zeus por Geia e Urano

que sua esposa teria uma filha e em seguida um filho que lhe tomaria o poder,

Zeus engoliu a esposa grávida. Após um tempo, Zeus sentiu uma terrível dor de

cabeça, chamando em seu socorro Héfeso, o ferreiro do Inferno, para lhe

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arrebentar a cabeça. Quando Héfeso iniciou seu trabalho, saiu da cabeça Atena

vestida e armada dançando uma dança guerreira. Atena simbolizava o poder

patriarcal. Depositária da inteligência prática dos artesãos, também era guia

protetora da pólis ateniense e dos seus destinos (Guimarães, 1995; p. 80). Apolo

era uma divindade solar vindo da Ásia. Jovem, guerreiro, purificador e curandeiro.

Deus da inspiração, da sabedoria, da premonição e da Medicina (ibid.; p. 52-53)

Por esta razão, se encontrava em santuários e oráculos como em Delfos. Também

era a divindade filosófica ligada à música e a poesia – elemento cultural da

civilização grega. Ártemis era irmã gêmea de Apolo, virgem, ligada aos bosques e

aos cultos femininos de passagem de virgem para mulheres casadas além de

protetora dos partos. Deusa da caça e das florestas. Atribuíam-lhe as mortes

súbitas, sem dores e vinganças terríveis (ibid.; p.74). Ares foi o deus da guerra, da

batalha, ligado a coragem e do impulso homicida. Dionísio esta em oposição a

Apolo.Também chamado de Baco. Era o deus do vinho, do delírio, da loucura, do

teatro. Tinha o poder de transformar aparências. Seu culto se encontrava nas

montanhas e nas florestas, e era visto como perturbador da ordem da pólis.

Possuía um lugar específico nas festas onde se tentou incorporar na cidade e na

ordem social esta outra dimensão da experiência. Afrodite, deusa do sexo e da

geração, estava associada ao desejo erótico, figura distante do espaço familiar e

conjugal, pois em muitos aspectos se opunha a reprodução e manutenção

matrimonial. Deméter estava ligada à fertilidade da terra e aos ciclos da natureza,

ao cultivo dos cereais – fonte importante da economia grega antiga.Também

conhecida com a Grande –Mãe. Teve uma filha com Zeus, Perséfone, raptada por

Hades (ibid., p.121). Hermes era o mensageiro, o viajante, ligado aos espaços

abertos, condutor das almas ao Além, tinha grande capacidade de fazer trocas e

contatos, e por isto foi fundador do comércio, da cultura e da comunicação entre

os homens. Héfesto filho de hera e Zeus e o deus do fogo. Quando Hera olhou

para o filho recém –nascido e viu sua face feia, jogo-o das alturas do Olimpo,

devido a isto ficou coxo pelo resto da eternidade. Deus ligado ao artesanato, as

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oficinas, ao ferreiro, criador e transformador da técnica. (Ibid.; p. 166). Além das

principais divindades do Olimpo existiram outras como Hades, o deus dos mortos

e do mundo subterrâneo e Héstia, eterna virgem e protetora dos lares. (Vegetti et

Redfield, passim)

As divindades Olímpicas assim eram integradas ao organismo social e

político, pertencentes a cada experiência individual e coletiva da vida grega antiga.

Como todos os outros homens da pólis, também deviam cumprir seus trabalhos

como proteger, prosperar a pólis, aconselhar os reis, ajudar e garantir as

atividades da cidade. Qualquer ação que dissesse respeito a qualquer âmbito da

existência era requerida à presença e proteção de uma divindade. O cumprimento

dos deveres das divindades era retribuído através de práticas cultuais firmemente

sujeita as regras e participação de toda a comunidade.

Ao longo da história da Grécia Antiga a crença mítica enfrentou algumas

crises. A chegada do pensamento racional- político- filosófico invadiu o espaço da

crença e portanto a vida social dos homens. A critica filosófica conseguiu

inicialmente criar argumentos para destruir a crença em deuses antropomórficos,

por argumentarem, por exemplo, que as explicações míticas eram baseadas em

regras automáticas tradicionais (Finhley, 1963, p.121). Aristóteles defendia que a

criação destes deuses poderosos foi elaborada para expor as suas possibilidades

de punição e impor: a obediência, o respeito pela lei e pelos valores sociais

àqueles transgressores; além de dizer que todo mito trazia consigo a simbologia

de verdades filosóficas ocultas, de domínio das “mentes simples”. Já Platão

acreditava que este tipo de crença traria conseqüências maléficas à educação

(Vegetti, 1993, p.250). Todas estas críticas produziram um projeto de uma nova

teologia filosófica, pois:

“relacionava-se com a melhor maneira do homem enfrentar as

condições imutáveis que delimitam a vida humana, não apenas

com o sobrenatural, mas também com a existência em

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comunidade (...) como determinar normas e valores certos e

como pô-los depois em prática” (Finley,1963, p. 121).

Entretanto, a polis reagiu em defesa de sua tradição cultural mitológica, embora

não tenha excluído a possibilidade e futura vitória do pensamento filosófico em

outro segmento da vida do homem grego antigo. Eliminar totalmente a tradição

mítica do mundo grego antigo seria arrancar-lhes suas profundas convicções

históricas de pertencimento a uma comunidade política cujo sentido era de

grandioso valor para época.

2.3 - A Comunicação entre homens e deuses

O pensamento do homem grego antigo era estabelecido pela lógica do

mundo divino ou quase divino. Tudo era interpretado segundo os olhos dos

deuses. Todo aquele desconhecido que traçasse o seu caminho poderia ser a

visita de algum deus. Manifestavam-se sob formas extremamente imprevisíveis:

como homem, como mulher ou como animal. Uma comunicação poderia ter o

objetivo de guiar, avisar, aconselhar ou também enganar. Não importava como

eles se apresentassem, todo o grego antigo era dotado para reconhecer quando

uma divindade se encontrava diante dele em qualquer lugar, podendo lhe fazer um

pedido seguido da promessa de uma oferenda ou sacrifício. A paisagem da época

estava repleta de altares familiares onde os homens podiam invocar os deuses.

Mireaux (1954 p.) acredita que havia uma “confusão” entre o divino e as coisas

que faziam parte do cotidiano dos gregos antigos. Talvez a autora utilizasse esta

palavra como uma forma de confirmar nosso pensamento de que os dois mundos

se misturassem e se complementassem. E diz que “todos os seus elementos

materiais tinham uma face viva perceptível ou misteriosa. (...)” (ibid., p. 19-20).

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Entretanto os homens deviam tomar uma série de cuidados, pois alguns

gestos simples poderiam irritar os deuses. Hesíodo descreveu uma lista de

recomendações para evitar a ira dos deuses. Além desta lista havia o que era

considerado por crime contra a religião como os atos de profanação de santuários,

roubos em templos, participação ilícita em um rito ou revelação de segredos aos

não iniciados ( Finley 1963, p. 121) que dentre outros despertava a revolta dos

deuses contra os homens.

Assim, a comunicação era possível a todos, visto que qualquer um teria a

capacidade de observar os fenômenos da natureza: linguagem mais utilizada

pelos deuses. Mas outro meio de comunicação muito utilizado era o sonho. No

sonho o mensageiro divino podia ser a figura de um homem familiar ou animal.

Nos casos graves ou decisivos os deuses se manifestavam pela evolução das

aves (Mireaux, 1954. p. 22).

Todavia, observar não era tudo. Era preciso saber interpretá-los

corretamente, pois os deuses escolhiam aqueles que seriam dignos de uma fiel

interpretação de suas comunicações: adivinhos ou aqueles dotados de inspiração

permanente ou momentânea. Dentre os interpretes divinos, muitos homens

poderiam recorrer ao oráculo de Apolo em Delfos como forma de consulta aos

deuses. O oráculo respondia às perguntas através de uma mulher chamada

Pitonisa – médium. Um exemplo era a consulta ao oráculo para saber se o

momento era interessante para o início de uma batalha. Todavia, Finley (1963,

p.122) aponta que não há registros de que Apolo nunca teria aconselhado a paz,

apenas os alertavam para algo durante a batalha.

Podemos resumir a influência dos deuses nas decisões significativas do

homem grego antigo com a seguinte frase: “Neste mundo de dois rostos

desenrola-se uma dupla tragédia, uma humana e outra divina, ambas intimamente

misturadas, onde os acontecimentos mais simples, os fatos mais vulgares podem

tomar o sentido de figuras premonitórias, de sinais reveladores e de inesperadas

vinganças” (Mireaux, 1954, p.23).

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2.3.1 - Os sacerdotes

Como havíamos expressado nos itens deste capítulo, o sentimento do sagrado

no mundo antigo não estava diretamente associado à fé, mas sim a um

pertencimento ao ordenamento da pólis, ou seja, de uma comunidade política.

Através de Finley (1963, p.42-43), podemos apresentar um outro parâmetro que

pode ser integrado a está informação. Ao analisar a raiz etimológica da palavra

sacerdote em grego – Hiereús – o autor observa que esta significa funcionário do

estado. Pela etimologia já podemos mais uma vez verificar que o culto aos deuses

se associava também a uma conjuntura política. Os sacerdotes eram funcionários

do estado como outro qualquer, ou seja, dotados das mesmas origens familiares e

experiência dos outros cargos de funcionários do estado grego antigo.

A função de um sacerdote não era celebrar um culto a uma divindade. As

cerimônias eram realizadas pela própria cidade, por grupos e por particulares ou

chefes do grupo. O sacerdote ocupava a posição de mero assistente. Fiscalizava

se os ritos estavam sendo executados de forma correta segundo descrevia a

tradição. Algumas ações eram feitas pelo próprio sacerdote como degolar a vítima,

separar suas entranhas, cortar as carnes, dentre outras. Todavia estas ações

poderiam ser feitas pelos mageiroi – cozinheiros do santuário (Mireaux, 1954, p.

75). Há três ritos essenciais que eles deveriam cumprir: destinar a vítima à morte,

iniciar a oferenda e fazer a prece que acompanha o sacrifício.

Homero, na Ilíada, se dirige ao sacerdote como hiereus – aquele que

transmite o sacrifício à divindade e areter – aquele que o deus ouve sua súplica –

o que significa e circunscreve perfeitamente o papel do sacerdote na época.

Apesar desta função geral do sacerdote, há funções específicas existentes em

cada cidade do mundo antigo. Por exemplo: Em Elêusis é o sacerdote que revela

aos iniciados os objetos sagrados durante a cerimônia da epoptia – iniciação de

segundo grau –. Em Éfeso, é encarregado de representar a deusa Ártemis nas

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festas e nos jogos e em Claros o sacerdote de Apolo podia ser o profeta (ibid., p.

77).

Também podia o sacerdote dirigir as construções das divindades, conservá-

las, repará-las e embelezá-las. Não era de se surpreender que o sacerdote

destinado a conservar também pudesse ser o administrador dos bens dos deuses.

Cada divindade poderia ser a patrona de uma cidade ou de um grupo e figura

central do culto oficial da cidade. Ser aquela ou esta divindade a protetora de uma

cidade ocorria graças a um contrato cujo acordo consistia em trocas contínuas e

mútuas entre o grupo e a divindade. Estava incluso neste contrato que a divindade

detinha o direito de uma parte dos bens do grupo, concretizado por uma

propriedade que poderia ser expandida através de dons públicos ou particulares,

por compras, confiscações ou multas caso os homens cometessem uma ofensa

contra um deus.

Apesar do sacerdote cumprir funções religiosas e administrativas, este também

era auxiliado por um número de membros subordinados ao sacerdócio, como por

exemplo, os cozinheiros da vítima do sacrifício. Importante registrar que cada culto

e santuário tinham suas especialidades, e logo nunca poderíamos nós basear em

apenas um exemplo para generalizar toda esta complexidade que se articula

nesta dimensão sagrada na qual não poderemos nos aprofundar.

Dentro do sacerdócio, como em toda a estrutura social grega antiga havia

hierarquias. Portanto existem os sacerdotes superiores e os subalternos, que

eram numerosos e diversificados. Em sua maioria o sacerdócio era

desempenhado por homens, mas até na classe superior do clero podia encontrar

mulheres. Os grandes sacerdócios pertenciam a uma família que devido ao valor

de suas funções sacerdotais acabava por ganhar espaço na aristocracia.

De maneira geral, as funções sacerdotais eram realizadas por famílias de

alta estirpe social de vocação hereditária para a função religiosa. Todos viviam no

altar e desfrutavam dos bens do templo e de uma parte do domínio público. Na

verdade, segundo Mireaux, eram sustentados pela sociedade. Um santuário

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quando bem freqüentado simbolizava muita riqueza. Esta riqueza material também

era um meio de contribuir para a influência e a importância da classe sacerdotal

(ibid.; p. 77-81).

2.3.2 - Os adivinhos

A classe dos adivinhos, como falamos, estabelecia uma estreita relação com

as divindades e, portanto figuras de grande prestígio na sociedade grega antiga,

pois eram capazes de interpretar os sinais dos deuses. Eram escolhidos ou

inspirados pelos últimos. Sua vocação era hereditária e tão cuidada que parecia

um bem. Todavia Mieraux diz que na verdade se utilizavam deste “dom” para

transformarem em um grande comércio (ibid.; p. 82).

Os sinais dos deuses eram múltiplos e na maioria das vezes relacionados

com fenômenos da natureza, mas também poderiam ser através de sonhos, o que

levantava grande suspeita entre o povo, pois o sonho era o meio mais fácil de

armadilha dos deuses. Ulisses dizia que os sonhos verídicos eram somente

aqueles que chegavam pela porta de marfim, enquanto os que vinham de outros

materiais eram falsos. Existia até peritos para testar a veracidade, bem como para

aconselhar aquele que sonhou os oniropolos. Cada sonho continha um

mensageiro do sinal divino. Cada deus portava mensageiros específicos, como

por exemplo, uma ave. Os sinais mais reveladores chegavam de forma mais

rápida, ou seja, através das aves de rapina, com as águias e os falcões. Para que

cada manifestação do mensageiro divino através do sonho pudesse tomar um

significado era preciso que coincidissem com um acontecimento muito importante:

uma assembléia ou um episódio dramático num combate, por exemplo. Qualquer

coincidência podia ser objeto de premonição, mas não mais do que as palavras

pronunciadas por um ser humano contendo um presságio – clédon – ou de um

ruído desagradável ao ouvido, como um espirro (ibid.; p.83).

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Além da interpretação de sinais divinos por meio de fenômenos da natureza ou

de sonhos, os adivinhos podiam fazer evocações para consultar os mortos e

receber revelações diretamente das divindades. Às vezes o papel do adivinho

também se encontrava nos sacerdotes. Todavia esta capacidade do adivinho

poderia ser achada em outras pessoas como mais uma ferramenta de

comunicação ou por acidente sem que tivessem uma vocação especial. Na grande

maioria dos casos os adivinhos eram profissionais independentes. Mas existiam

muitas formas de se vincular a um adivinho para que prestassem algum serviço:

podiam ser consultados nos seus lugares próprios ou perto de seus locais de

inspiração, havia os oficiais de um determinado grupo ou chefe e os itinerantes

que circulavam a cidade (ibid.; p. 84).

Sua profissão poderia ser perigosa como revelação de mensagens

desagradáveis gerando até mesmo fortes inimigos. Porém apesar disto, era uma

profissão que guardava um grande prestígio e gratidão, principalmente daqueles

para qual o destino da premonição se realizava. Podiam ter influência política e

sempre recebiam uma boa retribuição pelos seus serviços.

2.3.4 -Os Médicos

Os médicos mantinham na sociedade uma relação muito semelhante a dos

adivinhos: relacionavam-se com as divindades. Sua função também era a

revelação, se aproximando da bruxaria e a magia através da formulação de

remédios, mas também de atividades semelhantes a dos médicos atuais, como

limpar feridas, ligar um membro, estancar a hemorragia, ou seja, práticas

cirúrgicas. Seu papel não era tão valorizado quanto dos adivinhos, talvez porque

muitos homens, como os militares, sabiam os segredos dos medicamentos usados

por esses profissionais (ibid.; p. 87).

Havia um local chamado asclépeia que em parte era santuários e em outra

hospitais onde os adivinhos, os médicos e os sacerdotes que se diziam

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descendentes de Asclépios – patrono mítico da tradição médica grega –, e

portanto recebiam a transmissão de seus dons naturais, das tradições e de sua

clientela. As asclépias eram muito numerosas em toda a Grécia e se instalavam

em grutas de bosques ou de uma nascente sagrada. Nelas, o deus e os

sacerdotes só eram consultados depois de rituais como os jejuns, os banhos e

demais formas de purificação. Em seguida o doente oferecia um sacrifício e pronto

para a incubação que consistia na passagem de uma noite sob um pórtico, deitado

sobre a pele da vítima que acabara de sacrificar. Durante este período as

serpentes familiares e sagradas percorriam o corpo do doente que recebia as

visões, os sonhos e as palavras divinas. No dia seguinte os Asclépiadas

interpretavam seus sinais divinos da noite anterior para receitar medicamentos

que ninguém mais conseguia decifrar. Quando um doente se sentia satisfeito os

presenteava com presentes valiosos. Cada sucesso era arquivado nas Asclépeias

descrevendo os sintomas e os remédios com eficácia comprovada (ibid.; p.88).

O mais curioso é que a própria divindade concedia a cura, mas também era ela

que produzia os males motivados pela cólera e pela inveja dos deuses. Dentre as

doenças que os deuses podiam amaldiçoar, em especial destacamos a doença da

alma, a mais freqüente de todas. Podem se encaixar nos delírios, na “loucura”, na

vertigem, que eram divindades que se apoderavam do coração da alma dos

homens. Vejamos como a loucura era tratada pelos gregos antigos: Primeiramente

precisava-se saber qual a divindade que havia se apoderado do homem. Cada

sintoma correspondia a um deus, por exemplo, sons comparáveis ao canto das

aves eram creditados a Apolo, enquanto os gritos semelhantes a um relinchar,

correspondiam à ação de Poseidon. Depois de diagnosticado era necessário se

reconciliar o doente com a divindade causadora e também acalmá-la. A cura era

fruto de um conjunto de purificações, encantamentos, restrições alimentares, ritos

de iniciação, dente outros. Mireaux diz que o objetivo era muito evidente: a

transformação da personalidade do doente; e a autora também afirma que se

substituía uma possessão dos deuses pela possessão dos rituais (ibid.; p. 90-91).

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Antes da existência destes médicos a prática era cultivada e exercida por

pregadores, mendigos e exorcistas, cujas posições sociais, econômicas e

profissionais se situavam abaixo dos médicos. Este conjunto de curandeiros

continuou agindo mesmo após a conquista do espaço pelos médicos. Desta forma

suas figuras não deixaram de representar um lugar singularizado ao longo da

história no mundo grego antigo.

2.4 -Os mistérios e as seitas de caráter “marginal”

Os mistérios surgiram da necessidade de uma experiência sagrada diversa

da conhecida como oficial. Hades é a divindade que rege esta forma marginal de

culto. Uma divindade sem templo e sem cultos oficiais. Como lidava com o mundo

invisível, surgiu a necessidade de ser cultuada em espaços distantes das formas

públicas e diurnas. Os participantes destas seitas deviam prometer sigilo das

informações do que acontecia nestes espaços. O ritual possibilitava visões

capazes de evocar o sexo, a morte, a ressurreição e uma sensação de terror. Mas

em seguida era sentida a sensação de salvação, de renascimento e de purificação

profunda de todos aqueles que desta seita participam (Vegetti, 1993, p.244).

Existiam diversas seitas e mistérios, dentre estas citaremos, com escassas

informações devido ao segredo iniciático, os mistérios de Elêusis e o movimento

órfico ou orfismo.

Os mistérios de Elêusis eram realizados na pólis ateniense. As principais

divindades homenageadas eram: Deméter e Perséfone. Estas eram divindades

que podiam ser comparadas a Dionísio no que diz respeito ao domínio de uma

especialidade alimentícia. Como é de comum conhecimento que Dionísio estava

ligado ao vinho, estas divindades femininas estariam ligadas à fertilidade da terra

e aos ciclos da natureza, elementos preponderantes ao cultivo dos cereais que era

a principal fonte econômica e de subsistência do mundo grego antigo. O ponto

essencial deste mistério era a alternância entre Deméter e Perséfone. Perséfone,

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a filha de Deméter, foi raptada por Hades para o reino da morte. Quando a filha foi

levada, esta gritou tanto, que a mãe, desde então se pôs a sua procura. Durante

nove dias e nove noites procurou pela filha, sem se alimentar, beber, enfeitar-se

ou banhar-se. O Sol apontou o nome do seqüestrador da filha. Assim, tomou o

aspecto de uma velha e foi a Elêusis. Na cidade foi confiada a tutela de um

pequeno príncipe a que lhe foi confiado a expansão da cultura do trigo pelo

mundo. Durante a procura de sua filha a fome se alastrou pelo mundo, pois a terra

estava estéril sem a sua guarda. Zeus ordenou a Hades a devolução de

Perséfone, mas já não era mais possível. Perséfone tinha comido três grãos de

romã que a ligara definitivamente ao mundo das sombras. Deméter voltou ao

Olimpo com a promessa de que a cada primavera Perséfone voltaria á luz ,

retornando as sombras somente na época da semeadura (Guimarães, 1995, p.

121). Portanto, os mistérios celebram as alternâncias das colheitas e mais

profundamente e simbolicamente a geração sexual, a esperança de uma salvação

e o ciclo dos nascimentos e das mortes (Vegetti, 1993, p.241; 245).

O orfismo vem do poeta, cantor e teólogo Orfeu a quem era atribuído à descida

aos infernos. Em primeiro lugar, este movimento surgiu como uma forma de vida

diversa ao do cidadão da pólis. Havia uma lista de obrigações e proibições capaz

de produzir um alto grau de disciplina nos iniciados, pois era justamente esta que

permitia a pureza dos membros deste movimento e os diferia dos impuros, ou

seja, dos profanos. Na verdade o orfismo recusava toda forma de vida da cidade

incluindo sua tradicional forma de se ligar ao sagrado e aos deuses. Para esta

seita, havia muita violência na forma como a vida da pólis fora organizada:

exclusão e opressão de grupos sociais, a guerra, o assassínio e o sacrifício e

morte cruel do animal. Há um desencadeamento infinito de homicídios no modo de

ser da pólis. Vegetti denomina como “culpa de sangue” (ibid., p.246) o que

caracterizava e impregnava a vida social da cidade segundo os órficos. Era uma

culpa que marcava tanto o indivíduo, quando a própria humanidade. Esta culpa

era baseada em um mito órfico em que os titãs teriam armado uma emboscada

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para o deus-criança Dionísio, que o teriam assassinado, cozinhado e devorado.

Das cinzas dos titãs atingidos pelo raio de Zeus como castigo deste ato cruel,

teriam nascido os primeiros homens e, portanto, contaminados desde o início de

sua existência por esta culpa originária. Assim, para os seguidores do orfismo era

imperioso libertar a alma da culpa. Mas não só a alma, mas o corpo também, pois

este era um instrumento necessário para expiar a culpa através do castigo

corporal. A maneira mais eficaz para estas purificações era através do sacrifício,

renúncia e ascese, dentre elas, não comer a carne animal, como recusa a

violência e o controle da sexualidade como maneira de evitar a mistura do corpo

com a alma. Por todos estes fundamentos do orfismo, o deus deste movimento foi

Apolo. Vegetti coloca em última análise o objetivo final dos órficos a “recuperação

de uma condição divina por parte da alma” (ibid.; p.248).

A importância de dedicarmos um item deste capítulo a estas formas de

relação com o sagrado é que apesar de haver fortemente uma relação tradicional,

ou melhor, oficial, legal com sagrado, não poderíamos afirmar que esta era a única

e possível forma de culto, ritual, concepção de existência no mundo grego antigo.

No caso dos mistérios de Elêusis pode-se dizer que havia uma complementação

da relação oficial com o sagrado no sentido de que não havia a negação em

nenhuma esfera desta, pois a pólis até mesmo tutelava o mistério, porque não

produziam nenhum modo de ser diverso dos cidadãos da comunidade política, o

objetivo estava longe de ser este. Algo de peculiar era que qualquer homem podia

ser admitido, mesmo aqueles considerados como excluídos dos cultos olímpicos

da polis, como os estrangeiros, os escravos e em alguns casos as mulheres. Os

mistérios existiam, pois os cultos oficiais não conseguiam oferecer respostas e

nem espaço acessível a discussões de experiências a nível psicológico.

Entretanto as duas formas de culto não geravam nenhum conflito entre os seus

membros, tanto a nível publico, quanto a nível privado. Já o orfismo se localizava

em posição totalmente oposta ao culto oficial. Era uma forma de protesto não só

as formas de culto, mas também ao modo de vida citadino. Poderia ser uma forma

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de reação aos extratos marginalizados da sociedade ateniense devido às regras

impostas pela sociedade aos indivíduos excluindo aqueles que não se adequavam

a elas, fazendo surgir uma alternativa radical ao culto oficial (idid.; p.245).

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CAPÍTULO III - A COMPLEXIDADE DO MODO DE SER FAMÍLIA NA GRÉCIA ANTIGA

Poderíamos acreditar que encontraríamos uma variedade de documentos

que nos proporcionasse conhecimentos acerca do modo de ser família na Grécia

antiga. Todavia Finley (1963) nos atenta que há uma grande instabilidade de

informações não somente sobre a família, mas também, sobre o trabalho, o lazer

e a aldeia, bem como toda a moralidade privada. Isto já nos apontaria de antemão

um grande desafio de trabalho. Entretanto Redfield (1993, p. 147) afirma que

realmente há uma escassa rede de testemunhos informais como cartas pessoais,

materiais de arquivo e depoimentos de processos judiciais. Todavia a quantidade

de documentos formais artísticos como as esculturas, os quadros, as descrições

literárias, as peças teatrais, os relatos históricos e míticos, as análises filosóficas e

os discursos públicos são suficientemente ricos para que possamos compreender

o sentido de ser família na Grécia Antiga e será através destes canais que

contribuiremos para esta pesquisa.

Finley levanta algumas hipóteses que pudessem nos ajudar a entender a

dificuldade de acesso aos documentos informais e desde modo, poder ser um

primeiro passo para começarmos a nos situar perante a questão do sentido da

família na Grécia Antiga. Uma de suas hipóteses seria a questão da classe social,

bem como, e por que não a condição de pertencer ao sexo masculino: Platão e

Aristóteles tentaram explicar o lugar da família no mundo grego utilizando a

perspectiva proporcionada pela classe social privilegiada que pertenciam na pólis

grega. Por exemplo: Platão escreveu que a família deveria ser excluída entre os

governantes filósofos, pois esta era um impedimento para a ação moral perfeita

daqueles. Ou mesmo Aristóteles que dizia que a amizade só era possível entre

iguais, chegando com essa afirmação a dizer que a relação entre homem e mulher

era de um grau inferior. Amparando-se nesta hipótese, já poderíamos buscar uma

diferenciação da concepção do sentido de família nas diferentes classes e por que

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não nos gêneros. Na nobreza aristocrática a família não era entendida como

companheira, ou seja, “não se vivia na família” (Finley p. 125 Grifo do autor). Por

esta razão buscava - se tão intensamente por outros indivíduos fora da família

com o intuito de proporcionarem a companhia física e espiritual: “vive no meio dos

seus companheiros, dos quais está sentimentalmente e humanamente mais

próximo do que dos numerosos parentes(...) não há, não pode haver rivalidade ou

verdadeiro dissentimento entre companheiros (...)” (Homero apud Mireaux 1954,

p.61). Isto porque o primeiro dever de um companheiro era ser fiel. Homero diz em

“Odisséia” que o companheiro fiel era tão amado quanto os parentes. Este era o

sentimento mais forte que unia os homens nesta sociedade (ibid).

3.1 -A vida doméstica nas artes

O drama era o gênero do teatro que por excelência tentava representar a

vida e o cotidiano das relações domésticas e privadas, freqüentemente em

momentos de crise das relações familiares. Por esta razão é que Redfield afirma

que o drama é acima de tudo um escândalo da vida doméstica que revelava o que

deveria estar oculto (1993, p. 148). Todavia, tanto na comédia, pela suspensão do

espaço tempo e da causa-efeito, quanto na tragédia, as cenas nunca se

passavam no interior das casas e sim no espaço público, como na rua ou ao ar

livre.

A falta de produção de narrativas do tipo naturalista por escritores gregos

contribuiu para manter-se oculta a vida doméstica. Assim, através da produção

teatral, mantemos um rico conjunto de informações, como por exemplo, o

elemento comum neste tipo de gênero teatral: a presença de um mensageiro que

chega em cena contando algum aspecto deste mundo aparentemente invisível

(ibid).

Outra informação obtida através de Redfield foi que os Gregos da época

clássica, antes de 316 a.c, não deixaram nenhuma história propriamente de amor,

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no sentido como conhecemos costumeiramente. A história de Jasão e Medeia

trazia consigo a intenção dele. Este personagem se tornou fascinado e seduziu

Medeia, pois esta era o instrumento que o permitiria conquistar um bem que

retornaria todo o seu patrimônio. Logo, os problemas da narrativa clássica acerca

da vida doméstica era fundamentalmente o da sucessão de herdeiros e

conseqüentemente, a manutenção e multiplicação de seu patrimônio. O tema do

incesto, logo, estaria presente neste modelo de narrativa. Era visto, então, como

uma recusa do pai ou da mãe a dar espaço à geração seguinte e miticamente este

comportamento estaria contra o curso de ordem do universo, comprometendo

assim seu funcionamento natural. Um exemplo muito conhecido é a tragédia de

Édipo-Rei e as conseqüências que isto trouxe principalmente para o protagonista

da história (ibid., p. 148-149).

A ausência de histórias de amor, por outro lado, apresentava a ausência de

uma descrição positiva do casamento, positiva não no sentido moral, mas como

fator de valorização deste estado. Não era idealizada a felicidade conjugal.

Redfield aponta que exceto na tragédia de Eurípedes cujos personagens

principais são Alcestes e Helena, talvez tenha sido a única obra literária

considerada como relativa a um casamento no sentido positivo, pois o

personagem lamentava a sua falência na conquista da felicidade conjugal. Porém,

a poesia épica de Homero também valorizava este aspecto, ainda que de forma

latente, através de temas que contassem a reconstrução de um casamento.

Na tragédia, os temas domésticos se inscreviam em uma sociedade

heróica, parte imaginária, parte baseada na época anterior a criação da pólis, um

exemplo era a freqüência de aparição das mulheres e sua independência frente à

vida. Nesta sociedade, como o governo se centrava nos monarcas, as famílias

representadas nesta forma de literatura eram as dos reis e dos príncipes. As

tragédias também simbolizavam e anunciavam em seus temas as dificuldades

entre a esfera pública e doméstica, bem como as implicações de uma postura

política nesta segunda esfera, como se o mundo doméstico pudesse prejudicar as

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iniciativas da construção do sentido da pólis no mundo grego antigo. Assim, um

dos temas mais recorrentes era a ameaça do poder feminino sobre o poder

masculino. O poder feminino sempre foi tratado nesta época como uma forma de

caos devido à loucura e a fraqueza dos homens (Aristófanes, apud Rdfiled, 1993,

p.153). Apesar do poder da pólis tivesse sido criado para estar centrado sob o

poder masculino, isto não era o mesmo que afirmar que este estava assegurado a

eles. Outro tema freqüente, representado através de diversas obras literárias de

autores como Hesíodo e Eurípedes, era sobre as mulheres loucas que

perambulavam pela cidade brincando com animais perigosos, matando-os e até

mesmo enfrentando os homens; e o menadismo: uma forma de negação da

maternidade e da sucessão da herança, que traria segundo as lendas, um castigo

divino sobre as comunidades, podendo ser remediada após o cumprimento de

acerto de contas com uma divindade. (ibid., p.154-155)

Após Homero, este aspecto positivo do casamento desaparece na

produção literária. Certamente isto não se deu por acaso. Após Homero, como

vimos em capítulos anteriores, seguiu-se a construção do sentido da polis e é

nesta época que se estruturou toda a forma de representação da vida doméstica

em público, por homens, e para eles, situada na rua o que apontava a

necessidade de proteger o público de qualquer forma de invasão e intromissão da

realidade doméstica, esta, como se fosse um empecilho para o prosseguimento do

projeto do poder político. Assim, falar da vida doméstica na Grécia Antiga, sem

falar da influência da construção do sentido político nesta é tornar este tema

incompleto e isolado.

3.2 - Ser criança

Nascer representava dentro da estrutura da Grécia Antiga, vencer todo um

processo de dificuldades como: escapar à mortalidade em decorrência de partos

prematuros, de irregulares, de doenças originadas da alimentação, das condições

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de higiene da medicina antiga, bem como a incidência de alguma deformidade do

recém-nascido. Detenhamo-nos mais profundamente neste último aspecto e

vejamos o porquê.

Aquele recém-nascido disforme ou débil podia ser abandonado pelos seus

pais, através do método de exposição em um vaso de barro ou qualquer local

alhures da cidade onde poderia morrer de fome, tornar-se alimento de animais

selvagens ou se tivesse “sorte”, ser recolhido por alguém, pois para a comunidade

esta condição de nascimento representava um castigo divino de mau presságio.

Não importava o modo da exposição, a decisão de vida da criança estava sob o

poder do membro mais velho da tribo a que o pai pertencia – phylè. Lembremos o

que ocorreu a Édipo, quando sua mãe soube por meio do oráculo que este

mataria o pai e a desposaria. Entretanto Édipo não era disforme, mas em todo

caso, seu nascimento indicava um mau presságio para a condição de

sustentabilidade da família. Aquela criança exposta, quando recolhida, poderia ser

tratada como livre, diferentemente quando adotada4 ou escravizada, sem direito a

um parentesco reconhecido. Freqüentemente o exposto se tornava escravo, no

caso dos meninos, para ajudar no serviço e no caso das meninas, para iniciá-las a

prostituição ou até mesmo vendê-las. O sentimento contra a criança disforme era

tão intenso que Aristóteles chegou a defender o aborto a exposição assim como a

criação de uma lei que proibisse a educação destas crianças (Cambriano, 1993, p.

77 -78).

Em Atenas a decisão de expor a criança competia ao pai, mas em Gortina,

uma mulher de condição livre que tivesse um filho após o divórcio, deveria levá-lo

diante de testemunhas à casa de seu ex-marido e caso este recusasse a criança,

caberia a mãe a decisão de expor ou educá-lo. Era costume em Atenas o pai ter o

direito de vender seus filhos para quitar dívidas que posteriormente passou a ser

válido, através da legalização do Sólon, somente para as famílias mais pobres. Há

4 A adoção era um acordo entre o adotante e o pai ou tutor como o objetivo de assegurar a existência de um herdeiro do sexo masculino (ibid., p.78).

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indícios de que a maioria das crianças expostas era ilegítima e bastarda, ou seja,

de nacionalidade mista ou nascida fora do casamento, principalmente da união

com um escravo. O primeiro filho dificilmente era exposto. A incidência maior era

nas filhas. Cambiano diz que em Atenas os pais decidiam admitir seus filhos ou

não na família e tinham ainda o direito de colocá-los em adoção á outra família, ou

a um tutor em caso de morte até a maioridade da criança, que variava entre

homens e mulheres. Órfão era considerado somente aquele que tivesse perdido o

pai. A mãe não entra como valor neste sentido (ibid., p. 88).

Apesar dos casos de exposição, a chegada de uma criança “sadia” era

seguida de um número de rituais – Amphidromia, que asseguravam a

incorporação deste novo membro na ordem familiar e o seu acesso ao culto

doméstico. Com as mãos purificadas, pois o parto era uma mácula para a mulher

mortal que teria que se libertar através do sacrifício aos deuses banhava-se a

criança imediatamente e a envolvia em um pano branco. A partir do quinto dia do

nascimento o pai carregava a criança até a lareira da casa, sempre na presença

de testemunhas, como sinal de submissão desta a ele. No décimo dia, havia um

banquete antecedido de um sacrifício. Parentes e aliados traziam presentes e

nomeava-se a criança e se dava a real incorporação desta na família. Inicialmente

os cuidados eram entregues a mãe ou a uma ama escrava, enquanto o pai

passava a maior parte do dia fora de casa (Cambriano, 1993, p. 88 e Vernant,

1993 p..17-16).

O cotidiano das crianças envolvia jogos e narrativas míticas, principalmente

nas Antestérias – festas em honra a Dionísio. Estas festas traziam um grande

significado para os gregos antigos: as crianças acima de três anos participavam

de competições de bebida e no segundo dia – dia das canecas – recebiam de

presente carrinhos ou figurinhas de animais feitas de barro juntamente com uma

caneca, na qual crianças acima de três anos poderiam participar de competições

de bebidas. O simbolismo destas festas através do primeiro acesso das crianças

ao vinho representava a sua primeira iniciação no mundo dos adultos. Além da

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competição de bebidas, outro elemento essencial das festas era a competição de

ginástica e os concursos musicais. Estes eventos cumpriam tanto a função de

demonstrar as habilidades desenvolvidas para os adultos, como também uma

fonte de instrumento para avaliar condições de sobrevivência e reprodução para

grupos de famílias da cidade. Estas produziam tanto furor pela vitória que estava

aberta a outras cidades e a todas as classes de famílias gregas. Seu objetivo era

a vitória individual e o compartilhamento da glória e da honra com a família e a

cidade (Cambriano, 1993, p. 88-89).

A Educação na Grécia Antiga das crianças era variável segundo a condição

social, a cidade a que estas pertenciam e o sexo5. Os filhos das famílias da

aristocracia permaneciam mais tempo sob condição de aprendizagem pois,

segundo Aristóteles, como as famílias pobres não tinham escravos, as suas

mulheres e filhos deviam se oferecer nesta condição para ajudar no sustento da

família, diminuindo assim o tempo de aprendizagem de suas crianças. Logo, a

aprendizagem tanto dos escravos, como das crianças de famílias pobres consistia

basicamente no artesanato e no trabalho campestre, sem retirar-lhes, com

exceção do escravo, o acesso à vida política. Apesar destas singularidades de

classes a aprendizagem envolvia alguns elementos fundamentais: os

ensinamentos de um ofício deveriam ser passados de geração a geração, mesmo

se as crianças não fossem filhos legítimos – início da paideia6. Era possível a

adoção de filhos de parentes e amigos transformando-os em herdeiros deste

ensinamento, ou ainda de filhos de cidadãos livres que não tinham meios de

sobrevivência suficientes ou ainda a compra de escravos para transmitir este

saber (ibid., p. 80). Vejam que havia uma grande ampliação e valorização de que

os ensinamentos de uma família continuassem vivos na pólis. Esta espécie de

aprendizagem precoce criava uma separação das crianças e a inserção imediata

5 As diferenças de educação em relação ao sexo será minuciosamente dedicada aos subitens deste capítulo referentes à condição das mulheres e dos homens. 6 A Paideia podia ter diversos significados, como a criação das crianças, ou em um sentido mais amplo, a própria cultura e modo de ser homem grego antigo construídos a partir da educação (Wikipédia)

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num mundo adulto apesar destas não serem consideradas pelos gregos antigos

como parte propriamente do processo da paideia e da condução da vida adulta.

O didaskaleion era uma escola obrigatória, surgida já no início do século V

a.c. onde se podia ler, escrever e aprender música - significativo para o culto e

adoração da cidade – com o objetivo único de tornar cidadãos os filhos dos

cidadãos livres atenienses. Entretanto fazia parte de uma tradição mítica e

heróica, destinar o jovem a casa de um mestre, que nada tinha a ver com

competência de diplomas, acompanhado de um escravo de seu pai e o pedagogo

era quem tinha a função de vigiar e de castigar o seu aprendiz (ibid., p. 92). Após

esta escola criaram-se os ginásios, as palestras, as academias – prédios públicos

dedicados também ao ensino da ginástica, da música e das danças. O modelo de

homem consistia basicamente na formação da ginástica e da música e para os

homens também a formação de soldado. Os órfãos que possuíssem bens tinham

o direito de serem educados pelos tutores. Entretanto, no grupo de órfãos de

Atenas havia um privilégio: somente aqueles em que os pais tivessem morrido na

guerra poderiam ser educados por conta de despesas pagas pela cidade até a sua

idade adulta Isto ocorria, pois morrer na guerra representava a honra por todos da

pólis além de ser uma maneira de garantir a coesão social, alguns filhos da classe

pobre teriam acesso à educação dos ricos, além do incentivo a dedicação ao

treino militar (ibid., p.91-92).

Em Esparta, como em outros campos da vida de um grego, tudo era um

pouco diferente das demais cidades gregas. A educação também não fugiria deste

aspecto singular. Como em Esparta os homens eram fortemente preparados para

o adestramento físico, modelo ideal de preparação para guerras, dentre as

cidades gregas, os recém-nascidos eram desde pequenos postos a prova pelas

amas. Estas os educavam, habituando-os a uma severa alimentação, sem

caprichos e sem terem medo da escuridão e da solidão (Cambriano, 1993, p. 85).

No que diz respeito ao núcleo do sagrado, as crianças podiam participar

dos Mistérios de Elêusis e da Oscoforias em honra de Dionísio. Nos mistérios, o

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filho pertencente a uma nobre família ateniense era eleito a cada ano para ser

iniciado nos mistérios e obter para a cidade os cuidados de Deméter. No outro a

Dionísio, representavam-se dois jovens trajando roupas femininas simbolizando o

rompimento do laço da condição da infância, em uma casa cuidada por mulheres,

e conseqüentemente o acesso à virilidade. Outra função semelhante era o corte

de cabelos aos dezesseis anos ofertados a Ártemis e o juramento do pai perante

sua fatria acerca da legitimidade do filho.

A partir do século V a.c, os sofistas contribuem para a modificação deste

modelo político do homem grego. A meta era deste então saber dominar a palavra

como instrumento para impor pontos de vista em relação aos outros em quaisquer

ramos da vida da pólis. Os sofistas percorriam as cidades para ensinar aos jovens

o uso do estilo da retórica e da oratória com o objetivo de convencer o publico e

reunir discípulos. Seu ensino era privado e pago, e, portanto, acessível somente

as elites, principalmente governamentais, devido ao objetivo de conquista de

poder (ibid., p. 94-95). Este tipo de educação foi alvo de muitas criticas e

polêmicas da época, pois o uso da palavra era sinônimo de um homem completo,

que no decorrer do processo natural, somente os anciões poderiam já ter

conquistado. Antes do saber falar, os jovens deveriam saber combater. O ensino

dos sofistas era visto como prejudicial a formação do homem, pois pulava-se

etapas fundamentais para o sentido do cidadão integral grego, além de questionar

valores tradicionais.

A figura do filósofo, surgida entre os séculos IV a.c e III a.c, modificou toda

a idéia relativa ao modelo de ser homem grego e conseqüentemente o sentido de

criança. Antes dos Cínicos e dos Estóicos, a criança era vista em seu aspecto

negativo, sem valor, como um ser sem razão e sem palavra, mesmo encontrando

indícios em Homero de deuses-criança. Devido a este modo de ver a criança,

devia-se desde tenra idade interferir na condição infantil para que atingisse a

condição de ser homem, que segundo Platão, somente através da paideia teria

acesso a uma educação pública. Dentro da literatura médica a criança corria o

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risco de se tornar um animal devido a sua falta de condição postural ereta como a

dos adultos, além da diferença de desenvolvimento dos membros superiores e

inferiores que as forçava a se locomoverem sob quatro patas. Todavia, assim que

conseguisse manter o equilibro de seu corpo, conseguiria então articular as suas

faculdades psíquicas, dando início ao seu processo de desenvolvimento do ser

político por meio da atividade educativa. Para os Cínicos a criança se

transformava, além dos animais modelo de homem capaz de ensinar ao adulto,

cambaleado e corrompido pela vida citadina, a voltar a ser criança, a ser bom,

baseadas em histórias de um cínico Diógenes. Foi destas histórias que

começaram a surgir os conceitos de inocência, espontaneidade e simplicidade

infantil. Os Estóicos acreditavam que as mães e as amas, no inicio da vida de

seus filhos já corrompiam crianças através de banhos quentes que eliminavam o

tonos característico de toda a vida moral do futuro adulto. O efeito da filosofia foi

tão forte no modo de ser criança da Grécia Antiga que o ensino da filosofia tornou

parte integrante importante da paideia juvenil (ibid., p. 98-100).

3.3 -Ser homem: uma questão de cidadania

Para os homens, varões, ser homem significa ser um conjunto de funções

na pólis: ser marido, ser pai, mas principalmente ser cidadão, ou seja, defender

sua cidade e desenvolvê-la politicamente. Assim, desde muito novos os meninos

já eram iniciados, na competição nos diversos campos, como na música, na

ginástica, na dança e no próprio combate. Entretanto, ser homem passou por um

processo de transformações de sentido, principalmente pela interferência da

própria filosofia.

A formação dos rapazes no início da história da Grécia Antiga foi destinada

à formação basicamente de soldados. Era necessário produzir rapazes capazes

de defender o território das invasões de bárbaros.

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Em Esparta, bem como em Creta não se sabe se “a idade adulta é uma

infância prolongada ou se a infância não é uma preparação prematura para a vida

do adulto e do soldado” (Vidal-Naquet, 1981 apud Cambriano 1993, p. 86). A

iniciação da adolescência dos rapazes, principalmente em Esparta, ocorria por

volta dos quatorze anos denominada efebia – jovem – período de segregação do

resto da família, constituído inicialmente, pelo conjunto de atividades para se

adquirir disciplina, obediência e combatividade e que lhes permitiria a longo prazo,

tornar-se hòmoioi – semelhantes, ou seja, cidadãos de pleno direito. A primeira

fase do processo consistia a na formação da agelai – conjunto de jovens que eram

orientados pelo pai do jovem formador do grupo para aprenderem a caçar seus

alimentos e a se exercitarem. Cada efebo vivia individualmente em condições

difíceis ao ar livre, destituído de roupas e de moradia: apenas armados com uma

faca. Esta fase representava o momento de abandono da infância e a preparação

para a guerra. Por esta razão se desenvolvia entre os rapazes de todas as

cidades: os treinos gímnicos e as competições. Recebiam apenas uma quantidade

de alimentos precária para que aprendessem a roubá-los sem serem descobertos,

senão poderiam ser chicoteados. Após dez anos na agelai antes de entrar para o

grupo adulto – heteria – companheiro de armas – fazer refeições comuns e dormir

na casa dos homens – deveriam ser orientados por um mestre sempre mais velho

e de condição mais livre7 (ibid., p. 85;87). O matrimônio era obrigatório para os

futuros soldados e eram previstas punições para os solteiros. Isto permitia fortificar

o sistema de herança e de cidadãos, bem como o corpo militar da cidade.

O período da efebia era comum em todas as cidades gregas. Mas em cada

cidade havia uma peculiaridade neste processo. Em Esparta vimos que o

processo era praticamente a formação do corpo militar por meio de adestramentos

e a conquista futura da condição do homem adulto e cidadão-soldado. Em Atenas,

inicialmente o objetivo de efebia era o mesmo do que em Esparta, só que Esparta

7 Falaremos no próximo subitem deste capítulo a importância das relações homoeróticas para a formação do homem político grego antigo e sua iniciação á vida adulta.

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era o modelo de cidadão-soldado grego. Posteriormente a efebia teria para a

aristocracia ateniense além do caráter militar, também, moral, cívico e religioso

aos deveres e direitos do cidadão. Em Atenas, a assembléia elegia dois

pedótribes, um mestre de armas, um de tiro ao arco, um de lançamento de dardo

e um de catapulta que eram encarregados de instruir os efebos. Na festa de

Ártemis os efebos deveriam jurar no santuário defender a pátria, as suas

fronteiras, suas instituições e seu grupo de companheiros de armas. Após este

ritual deveriam ser dirigidos ao serviço de guarda de fortalezas. Após o longo

tempo de efebia, variável entre as cidades gregas, demonstrava-se publicamente

suas capacidades adquiridas durante sua instrução. Em uma nova assembléia

entregavam-se suas armas que representava sua condição adulta, mas ainda não

a de pleno cidadão, somente o término do serviço de patrulha nas fronteiras da

cidade. Após aprovação em assembléia, o adulto, com cerca de dezoito anos, era

inscrito no demo, ou seja, na circunscrição territorial a que pertencia o seu pai, e

conseqüentemente o ingresso de pleno direito na cidadania. O jovem recusado

voltava a condição de paides – criança (ibid.; p 85;86;93;94).

A partir do século III a.c, o processo da efebia em Atenas foi sendo

complementado por uma instituição de ensino superior: o ginásio, motivo de

distinção social inigualável, dentre este temos como exemplo: o Liceu, a

Academia, o Cinosacro, o Ptolomeu e o Diogéneo – este passou a ser o núcleo de

vida dos efebos. Nestes ginásios, não só eram instruídos os treinos militares e a

ginástica, como também fora incorporada as aulas com filósofos, mestres de

retórica e as vezes médicos. Cada vez mais o ginásio se tornava um centro

atraído por diversos jovens de todos os lugares, criando espaço, não só para a

difusão da filosofia, mas também para publicação de livros (ibid.,;94).

Não podemos deixar novamente de dizer acerca da importância da filosofia

para a formação do ser homem grego. A institucionalização da filosofia nos

ginásios fazendo parte do processo de formação dos efebos produziu um novo

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sentido de homem, pois ser homem não significava mais ser somente cidadão-

soldado na Grécia Antiga, também estava associado à produção de pensadores.

3.4 - As relações homoeróticas: uma dimensão pedagógica

As relações homoeróticas e a convivência praticamente integral por longo

período com homens desempenhavam um papel pedagógico fundamental na vida

adulta dos rapazes gregos, principalmente em Esparta, Tebas e Creta.

A prática das relações homoeróticas era específica da elite militar destas

cidades e de outras comunidades nobres bem como da elite intelectual (Finley

p,125-126). Em Creta e em Tebas a relação entre um jovem e um amante mais

velho era uma etapa essencial para se tornar homem e esse assemelhava a um

ritual de rapto: Três dias antes do rapto o amante deveria informar sobre a ação

aos amigos do jovem. Estes, dependendo da classe do amante, que em geral era

igual ou superior a do jovem a ser raptado, decidiriam a permissão do rapto. Caso

fosse permitido, o amante levava o jovem e os amigos para fora da cidade durante

o tempo máximo de dois meses onde se organizavam a caça e os banquetes –

esportes típicos dos heróis e modelo dos efebos. Quando o jovem regressava a

cidade, recuperava a sua liberdade e era recebido com o equipamento militar, um

boi e uma taça, representando a conquista da efebia. O boi devia ser sacrificado a

Zeus festejando com o grupo e manifestando o gosto ou o desgosto do período de

intimidade com o amante. Curioso que para os jovens nobres não se envolver

intimamente com o amante era motivo de vergonha, pois significava que no jovem

não tinham sido reconhecidas qualidades que o ingressariam ao mundo adulto dos

guerreiros. Os jovens raptados eram honrados e em vários espaços da pólis grega

fazendo parte da elite dos Kleinòi – insignes (Cambriano, 1993, p. 87).

Em Atenas, as relações homoeróticas também desempenhavam um papel

valorizado na pólis. Depois de deixar a casa de sua família, também nomeada

como casa das mulheres, o rapaz passava a maior parte do dia no ginásio onde o

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jovem participava do treino da ginástica, das palestras, mas também era o início

do seu desenvolvimento sexual. Mas nem todos podiam ter acesso ao ginásio. Os

escravos, os homens libertos, os seus filhos, deficientes, aqueles que se

prostituíam ou exerciam atividades comerciais, os bêbados e os loucos eram

proibidos de freqüentar estes espaços, pois não deveriam manter relações

homossexuais com jovens livres, impedindo assim relações indignas. Por incrível

que pareça era dificultado os encontros sexuais cotidianos com moças de

condição livre ou de família nobre. Entretanto a facilidade de relações com

escravas diminuía consideravelmente o potencial e o significado destes encontros

(ibid., p.90).

Outra condição para que as relações homoeróticas não perdessem seu

significado era o jovem se relacionar com um amante de idade diversa da dele, de

preferência mais velho, o que não podemos afirmar que não houvesse jovens se

relacionando com amantes de mesma idade. A diferença de idade permitia a

distinção do papel entre ativo e passivo na dimensão física e mais importante, na

dimensão pedagógica. Quando se fala que aqueles que poderiam participar do

ginásio pertenciam à aristocracia, era porque neste local devia os homens adultos

estar com um tempo suficiente para poder admirar o treino e a conversa com

jovens a fim de vir a ter uma relação (ibid).

A passividade e a atividade diziam respeito à capacidade de mandar e ser

mandado. Aquele jovem – geralmente escravo, estrangeiro ou até mesmo de

condição livre – que se prostituía era excluído da sociedade, pois se submetia a

posição de passivo, de ser penetrado, típica do prostituto. A passividade era

vergonhosa e motivo de desonra para um cidadão. A prostituição era tão grave

que em Atenas havia penas para aqueles, como pais e tutores, que por dinheiro

prostituíam uma criança do sexo masculino em troca de dinheiro, bem como para

aquele adulto que aceitava a prática da prostituição (ibid).

Assim que o rapaz retirava sua barba se tornava adulto e perdia também a

condição de amado, podendo assumir a posição de amante na relação. Como

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vimos isto era uma prática natural, ou seja, de acordo com as regras sociais na

Grécia Antiga, pois a natureza ou era a própria sociedade ou um ideal ecológico.

As relações naturais eram com a esposa, com um amante homem ou mulher,

(Apuleio, apud Veyne, 1985, p. 40) logo o casamento e a relação heterossexual,

não eram impedidos pelas relações homoeróticas, não era vista como um

problema: enquanto o casamento fornecia a propagação da herança através do

nascimento de filhos, as relações homoeróticas forneciam a formação moral e

intelectual.

Entretanto, alguns pensadores da Grécia Antiga como Platão, diziam que

qualquer tipo de paixão amorosa incontrolável sendo homossexual ou

heterossexual poderia prejudicar o cidadão-soldado. O importante era a vitória

sobre o prazer. E ainda afirmava que a homossexualidade não era natural, pois os

animais não se uniam com o mesmo sexo. A idéia de Platão, não era nem tanto

estar contra a homossexualidade, mas diminuir a paixão, de modo a canalizar a

sexualidade para fins reprodutivos. O prazer nestas relações como em outras é

que era abusivo e não necessariamente um erro. A palavra natureza era muito

utilizada nos textos filosóficos. Platão não acreditava que o homossexual era

contra a natureza, mas sim o gesto que ele realizava: era um libertino movido

unicamente pelo prazer, a ponto de fazer a sodomia. Não havendo, porém um

horror, nem a nível moral, nem ao nível do sagrado do homossexual ou pederasta,

palavra também utilizada com freqüência (Veyne., p. 40-41).

A própria pederastia estava claramente presente nos textos gregos. De

acordo com seu gosto cada um podia optar pela sua parceria homossexual,

heterossexual ou bissexual, mas a preferência homossexual dos homens,

segundo Veyne e textos de escritores gregos era maior do que a

heterossexualidade:

Nesta sociedade onde, os censores mais severos viam a sodomia

somente um gesto libertino, não se ocultava a homofilia ativa e os

que eram propensos aos rapazes eram tão numerosos quanto os

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apreciadores de mulheres, o que diz muito sobre natureza pouco...

natural da sexualidade humana (Veyne, 1993, p. 41).

O importante a pensar em termos da sexualidade na Grécia Antiga, como

também se encontrava em Roma, é que as condutas sexuais eram classificadas

mais em termos de passividade e atividade do que preferência por mulheres ou

por homens: ter prazer viril ou dar prazer servilmente. Pois ser ativo não importa a

opção é o mesmo do que ser viril, ser forte, honroso, glorioso: era uma qualidade

do ser político. Ser passivo era uma falta moral e política menosprezada pela

sociedade, como era fortemente o caso dos escravos Um comportamento que

denotava a passividade muito criticada pelos gregos antigos era a felação. Esta

era uma conduta extremamente vergonhosa e degradante: a felação constituía em

ter passivamente seu prazer ao dar prazer para o outro, e não recusar servilmente

dar prazer ao outro (ibid., p.43-45).

Seria errado encararmos, de acordo com Veyne, que a Antigüidade fosse

livre da repressão e imaginar que a mesma não tivesse princípios. O fato de a

mulher ser por definição passiva já denotava que os problemas de ordem sexual,

bem como os demais, eram tratados sob o ponto de vista masculino. Era sabido

da existência de ligações ilegítimas, notório e principalmente por parte dos

homens, mas que eram moralmente aceitas nesta sociedade (ibid., p.46).

Entretanto apesar de haver gostos e preferências sexuais homoafetivas, esta se

relacionava como um critério obrigatório dos valores políticos desta sociedade e

que sob nenhuma forma, poderíamos deixar de descrevê-las para que possamos

compreender mais profundamente a família nesta sociedade.

3.5-Ser mulher: a condição para a propagação dos herdeiros

da pólis

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A figura da mulher na Grécia Antiga ocupava uma posição, que hoje em dia

poderia causar certo repúdio as nossas mulheres. Entretanto, a mulher grega

antiga era sabedora de sua importante função na sociedade. Mireaux através de

confissões de poetas da época acredita que a mulher não era considerada como

um elemento indiferente na vida do mundo grego antigo, ela ocupava um lugar

específico (Mireaux 1954, p.201). Certamente apresentaremos singularidades que

fogem a “regra” do comportamento feminino da época, mas que todas estas

formam, o modo de ser mulher na Grécia Antiga.

Para iniciar nosso item, de uma maneira, bem simples, e natural da época,

podemos dizer o seguinte e resumir desta forma como a mulher era vista: a

mulher não era uma cidadã, somente filha de um cidadão. Portanto, não pertencia,

no sentido integral, a pólis. Isto significa que há toda uma presença na diferença

do modo de ser homem, do modo de ser mulher da época, e conseqüentemente

criou-se um desenho bastante peculiar tanto do casamento quando do ser família

na Grécia Antiga.

Desde nova, a mulher era educada de uma forma bastante diversa do

homem. Ela passava, desde o seu nascimento, a maior parte de sua vida em casa

sob os cuidados da mãe e das escravas. No lar, as jovens aprendiam desde muito

cedo a fiar e cozinhar. As festas religiosas eram muitas das vezes as únicas

formas de irem ao espaço público que devido a classes sociais de moças, a

maioria era espectadora e não participante das festas, principalmente na Atenas

clássica. Neste mesmo período da história da Grécia Antiga, ainda não existiam

escolas para crianças ou adolescentes do sexo feminino. Quem as educavam,

eram as mães, parentes ou escravas que através de contos de histórias míticas

ligadas principalmente aos ritos religiosos da cidade. Algumas vezes estas

mulheres a ensinavam a ler e a escrever, mas este ato segundo alguns escritores

da época era o mesmo que fornecer instrumentos para que as jovens se

voltassem contra os homens. Por este motivo o número de mulheres analfabetas

era tão grande e contínuo. Havia exceções, como por exemplo, em Teos e em

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Pérgamo, onde na primeira cidade havia escola para ambos os sexos e na

segunda, concursos de recitação de poesia e leitura para as meninas. Sem

sombra de dúvida o caso da instrução das mulheres foi mais conhecido na cidade

de Esparta, onde as crianças do sexo feminino eram acostumadas desde novas a

se exercitarem nuas e na presença dos homens, nas modalidades de corrida, luta,

arremesso de disco e dardo. Nesta cidade, diferentemente de Atenas, as mulheres

não faziam os ofícios domésticos como tecer e cozinhar, pois estes eram de

qualidade exclusiva das escravas (Cambriano, 1993, p. 81-83).

As jovens se casavam muito cedo, antes dos dezesseis anos e geralmente,

pelo menos, com homens dez anos mais velhos que elas. Para a maioria das

jovens livres, o casamento era a passagem à condição de adulta, deixar de ser

parthenos – virgem –, relacionada primeiramente a condição de esposa e mãe de

potenciais futuros cidadãos da pólis, A jovem se preparava para as núpcias

oferecendo a Ártemis os seus brinquedos infantis e cortando o cabelo como

símbolo de finalização da adolescência. Havia todo um ritual ligado às festas

religiosas que antecediam e preparavam-na para o casamento: as Arreforias –

momento de passagem e iniciação. Nele duas meninas de família nobre, de sete e

onze anos, começavam aos nove meses, antes da Panateneias, a tecer o peplo,

que seria oferecido a Atena, ou a Hera, em outras cidades, como a de Argos. Em

Esparta, o chíton era oferecido a Apolo. Nas Arreforias aprendiam a fiar, a tecer e

se preparavam para serem esposas e mães. Levavam na cabeça um cesto

contendo, o simulacro de Eritónio, filho de Atenas, e a serpente, símbolos da

sexualidade e da gestação, entretanto as moças não sabiam o conteúdo do cesto,

e mesmo assim iam até a acrópole à noite num jardim dedicado a Afrodite. O

cesto deveria ser posto em um local subterrâneo de onde retiravam outros objetos

envolvidos num pano (ibid., p.82)

As mulheres de Atenas, como na maioria das outras cidades gregas, além

de cuidar da casa e de cozinhar, também se dedicavam à tecelagem, como vimos

anteriormente. Esta era a única forma de atividade produtiva delas em relação a

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pólis. Entretanto as mulheres de Esparta, assim como os homens, não

trabalhavam. Todas as suas atividades convergiam para grandes rituais, que em

sua expressão exibia seus corpos atléticos, no entanto, elas eram as únicas que

podiam herdar e possuir bens, mas ao contrário das outras cidades gregas que

avaliavam tal direito como sendo um conceito de cidadã, para os homens

espartanos, esta condição peculiar às suas mulheres, denotava inferioridade, pois

eles teriam deixado aos seus cuidados a casa e a família, por julgar que as

mulheres seriam “emocionalmente instáveis” e fracas para um convívio social mais

intenso (Redfield, 1993, p.163-164).

Apesar da mulher não ser considerada cidadã, ela não deixava de ter

opiniões políticas e mesmo que sua instrução também não fosse encorajada, em

decorrência de exibições públicas, esta não era necessariamente proibida. Há

diversas fontes que documentam a existência de grupos femininos com diversos

objetivos. Dentre eles havia o circulo de Safos em Lesbos, no início do século VI

a.c, que era uma espécie de associação cultural, onde as moças desta cidade,

mas também de cidades da costa jônica, se exercitavam, dançavam, cantavam,

prendiam a tocar lira, se dedicavam à poesia lírica e participavam de festas

nupciais e religiosas, e até em concursos de beleza, como forma de desenvolver,

adquirir qualidades e com sorte, serem admiradas por homens, principalmente

nobres, almejando um futuro casamento. Em Esparta havia competições atléticas

femininas que se comparavam a dos homens. Neste grupo também se criavam

laços homoeróticos, que em Esparta no século VII a. c. se chamavam parténias de

Álcman (Cambriano,1993, p.83). As mulheres também participavam de

sociedades religiosas como os mistérios de Elêusis, mas também relativas a

outras divindades Hera, Ártemis e Atena. Estas iniciações eram acompanhadas de

danças ritmadas pela flauta cujas bailarinas entravam em estados de transe e

êxtase que poderiam e poderiam evocar tais divindades (Mireaux, 1954, p.218-

219).

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Para Hesíodo, a mulher era um “presente” dos deuses aos homens para

causar-lhe grandes tormentos. Sua esbanjadora sedução era o que havia de mais

perigoso. O autor se baseava no mito de Pandora: Zeus moldou com terra uma

linda mulher com a ajuda dos deuses. Como tinha sido produzida por todos, deu o

nome de Pandora – todos os dons. Foi mandada como presente para Epimeteu,

irmão de Prometeu, cujo homem teria zombado de Zeus durante um banquete

sacrifical. Epimeteu tinha sido avisado pelo seu irmão, para não receber nenhum

presente de Zeus, mas fascinado por Pandora ficou com ela e com um vaso que a

jovem trazia. Quando Pandora abriu o vaso, todo o mal foi liberto. Esta

personagem seria a origem de toda a raça feminina e ainda aponta segundo

Hesíodo, a alta futilidade da mulher que era evidenciada pela atração de provocar

despesas ao marido (Redfield, 1993, p. 167).

Os atrativos de uma mulher eram julgados pelos gregos como: enganosos,

perigosos e envolventes; pois assumiam a característica de serem multiformes e

mutáveis, objetivados principalmente através das jóias e do cinto de uma mulher

que, tomado como referência o mito do cinto de Afrodite, eram tidos como

símbolos do poder sexual. O termo “desatar o cinto” significava que o casamento

estava consumado. Os adornos de uma mulher seriam para apenas seduzir os

maridos no casamento para a relação sexual e assim, roubar a razão destes. A

sexualidade da mulher poderia destruir o poder feminino, pois apesar desta

conquistar o marido, poderia também fazer com que ela perdesse a sua função de

esposa e o cumprimento do acordo de casamento, cujo pai realizara com o marido

(ibid., p. 169-170).

Apesar de parecer que havia uma uniformidade no comportamento das

mulheres, não podemos esquecer, além das diferenças regionais, da existência

das diversidades de classes. Há algumas informações sobre este tema. Na

aristocracia as mulheres se dedicavam minuciosamente aos seus banhos e toda à

parte de higiene e cuidado pessoal. Tudo era feito na intimidade dos aposentos

femininos. Ostentavam muitas jóias de ouro e seus vestidos eram compridos,

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denominados eanos – utilizados em festas ou cerimônias por mulheres de

condição social elevada. O tarje cotidiano era mais simples, uma túnica que em

seu comprimento se diferenciava de acordo com a idade e com a condição social.

Sobre os ombros um tecido fino – pharos – franzido na cintura e atado com um

cinto servindo de casaco. A cabeça era envolvida por um véu. Nos pés calçavam

sandálias com fivelas de couro presas nas canelas. Somente as mulheres de

condição elevada socialmente saiam acompanhadas por suas servas. As servas

eram ajudadas por governantas que as ajudavam na fabricação e conservação

das roupas da família além de cuidarem de uma boa recepção dos hóspedes.

Devemos chamar a atenção para uma característica singular da mulher no espaço

da cozinha que diferente do padrão moderno, cuja mulher encontrou um espaço

fiel na cozinha pela sociedade, a preparação dos alimentos era feita em sua

maioria pelos homens, tendo como exemplo: o preparo das carnes. Enquanto para

as mulheres, a cozinha era somente utilizada para a preparação das farinhas, dos

pães, dos bolos e das papas, e talvez da preparação dos legumes (Mireaux, 1954,

p.203-206). Todas as mulheres exerciam suas atividades laborais em suas casas,

mas as mulheres de classes mais pobres estendiam seus trabalhos fora de casa,

apesar de também serem consideradas como a extensão das mesmas atividades

exercidas em seus aposentos domésticos (Vilar, 2009, p.1). Também, naquela

época havia a prostituição feminina – pórne –, realizada nos santuários de Afrodite

e reconhecida como um comércio (Mireaux, p.220).

Cambriano aponta que as diferenças radicais de funções e ensino do sexo

masculino e feminino foram modificadas a partir da República e das Leis de

Platão. Estas foram compartilhadas entre ambos como: a música, a ginástica, o

treino militar e a preparação filosófica, apesar desta última, na visão de alguns

filósofos, ser uma função unicamente masculina. Na realidade há uma escassez

de documentos que comprovem o acesso efetivo das mulheres nestes espaços,

podendo haver somente casos raros (1993, p.97).Não sabemos se de fato houve

uma tentativa de igualdade de funções e de educação, todavia a relação delas

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com a sociedade não mudara em um aspecto: no padrão de moralidade sexual.

Podemos facilmente constatar isto através da definição unilateral do adultério que

dizia que este era caracterizado somente quando uma mulher casada mantivera

relações sexuais com um homem que não era o seu marido. Logo a ofensa era

contra o marido. Da mesma forma que o rapto e a sedução de uma filha era

direcionada ao pai da mulher e não a ela própria que sofria o ato pelas mãos do

homem (Finley, 1963, p. 126).

Não há como significar o papel da figura feminina nesta sociedade, pois

apesar de serem vistas por muitos como maliciosas, perigosas, elas são a

condição de criação da vida e manutenção das instituições, como por exemplo, a

pólis. A seguinte frase resume poeticamente, mas expressa verdadeiramente a

realidade do papel da mulher na Grécia Antiga: “elas (...) têm o poder de sentir e

inspirar amor, que, na Cidade-Estado, se converte no poder de transferir esse

amor e dar vida a novas casas” (Redfield, 1993,p.171).

3.6 - O Casamento e os relacionamentos extraconjugais

Nas cidades gregas um cidadão só poderia ser chefe de família, se fosse

de condição livre, portanto se tivesse uma origem legítima, ou seja, sua mãe teria

que ser de condição livre: aquela cujo pai era de condição também livre. Assim, o

critério de legitimidade se baseava pelo avô materno da criança, não importando o

sexo. Uma família era construída e mantida através da geração de futuros

herdeiros e movimentação de bens que ampliava sua condição de cidadão da

pólis, segundo o mecanismo de matrimônio-troca (ibid., p. 164).

Existiam duas espécies de matrimônio-troca: a engye – a transação entre o

genro e o sogro – era o casamento em relação à legitimidade da pólis, a formação

de vínculo entre cidadãos. A engye era propriamente o casamento, a felicitação do

sogro ao genro e vice versa, ambos felizes por poderem propagar sua geração e

dar cidadãos a pólis e aumentar seu patrimônio. Só bastava a consumação com a

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noite de núpcias. O gamos era o casamento sob o ponto de vista familiar: a

iniciação da mulher na sua nova casa, que também era um renovação para a

família. Celebrava e ritualizava a iniciação sexual da mulher, fase mais

significativa para o começo da fase adulta. Na véspera o casal ou somente a

esposa podia visitar um templo, geralmente de Afrodite, para se despedir de sua

virgindade e pedir proteção para sua nova vida. No gamos, só participavam as

mulheres e era principalmente um ritual cuja protagonista era a noiva, assim

como as suas roupas. Não havia um ritual específico para o noivo, pois a vida

mudaria mais para a mulher: ela que seria transferida da casa de seu pai ou tutor

para a casa do noivo, ganharia um novo estatuto e obrigações como a guarda da

casa e da intimidade do lar. Por este conjunto de características o casamento na

Grécia Antiga oferecia as características da supremacia masculina, o casamento

virilocal, a sucessão patrilinear e a autoridade patriarcal (ibid, p. 164-166).

A promessa, ou o contrato de casamento era feito, o gamos: O pai ou o

tutor e o futuro esposo selavam um acordo do qual a filha não participava em

hipótese nenhuma, até por que não era uma cidadã. 8 A entrega da jovem firmava

um compromisso entre dois homens: o pai dava a filha como condição para que o

futuro esposo pudesse e prometesse gerar herdeiros legítimos e cidadãos para

pólis, além do dote que o jovem recebia. Na realidade o dote não era de

propriedade do marido, mesmo que pudesse administrá-lo, pois deveria ser

guardado para os filhos e caso o casamento não vingasse, deveria devolvê-lo ao

sogro. Em contrapartida o genro não dava nada para o sogro, a não ser seus

netos. Mas o dote também materializava o constante interesse do pai pela filha, a

manutenção de algum vínculo entre eles, segundo dizia o mito de Deméter e

Perséfone (ibid., p. 158). Logo a função do casamento era nada mais, nada

menos, do que produzir herdeiros, manter e prosperar a herança através da

mulher: ”casar era uma forma de aquisição” de bens-herdeiros (ibid, 1993, p. 150). 8 Na época helenística havia informações de que as próprias moças já participavam, elas mesmas, do contrato de matrimônio como seu futuro esposo (ibid., p.81) através das promnèstriai- as agentes de matrimônio – mulheres que se encarregavam de arranjar uniões(ibid.,169-170).

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Na véspera das núpcias os dois futuros esposos se purificavam através de um

banho com cânticos que prometiam uma rica prole, enquanto que o pai da jovem

oferecia um sacrifício a Zeus, Hera, Ártemis, Afrodite e Apolo.

Mireaux relata um outro modo de iniciação ao casamento, principalmente

dado no período Homérico. Quando o pai desejava o casamento de sua filha,

devia o fazer publicamente através do convite dos possíveis pretendentes. Estes

eram recebidos pelo futuro sogro que os hospedava e dava-lhes um banquete. Os

candidatos chegavam com presentes para a futura noiva como véus, vestidos e

jóias, bem como para o chefe da família. A riqueza dos presentes e das festas que

acompanhavam o processo de noivado dependia da condição social dos

envolvidos. Estas comemorações não era apenas uma maneira da futura noiva

conhecer seus candidatos, mas também propiciavam um clima de competição

entre os pretendentes que discursavam, cantavam, dançavam e se submetiam em

desafios, através de jogos, ou provas de força e habilidade. Assim que o pai da

noiva exercesse o direito de escolha do seu futuro genro, este o presentearia –

hedna. O sogro devolvia o presente através de um dote – meilia – próximo do

casamento e que em caso de repúdio pelo noivo deveria ser devolvido. Mireaux

faz uma observação interessante dizendo que é esta troca de presentes,

característica em muitas civilizações primitivas que nos levou a julgar e interpretar

como sendo a compra da mulher pelo homem (Mireaux, 1954, p.201;212).

A cerimônia do matrimônio como vimos não era obrigatória e apenas as

famílias de condição mais nobre podiam realizar. Ela consistia principalmente e

era a representação, o que de fato ocorria com a mulher, do caminho da jovem da

casa de seu pai até a de seu marido: isto significava, em primeiro lugar, que o

matrimônio para a mulher era apenas “a transferência da casa do pai para a do

marido, da segregação sofrida da primeira para com a segunda, da tutela de um

para a de outro em todas as transações políticas” (ibid., p. 148) e em segundo

lugar a protagonista deste ato e da sua mudança de estado, principalmente de

tutela, de moradia, de hábitos, dentre outros, era a mulher: A tutela era transferida

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do pai ou tutor para o marido. Mas, antes do caminho da jovem, o pai fornecia um

banquete na casa dele – eilapiné – onde as crianças passavam entre os

convidados com pães e pronunciando: “Escaparam ao mal; encontraram o melhor”

(ibid), isto porque o pão simbolizava a passagem de um regime selvagem, para

um outro civilizado. A jovem assistia o banquete na companhia das amigas e no

término deste, uma mulher encarregada da preparação da noiva – nymphèutria –

tirava o véu à noiva e era apresentada ao noivo e aos convidados – anakalyptèria.

Uma procissão pela noite acompanhava a jovem que era levada à casa do marido

de carro, munida de uma peneira para cevada, simbolizando uma de suas funções

na nova casa: a de cozinheira; mas também a criação de um laço entre as duas

famílias. Na lareira da casa se ofereciam doces e figos secos, representando sua

integração neste lar. Após este ritual, os esposos entravam no quarto, cuja porta

era guardada por um amigo do marido e lá o casamento deveria estar consumado.

Não havia nenhuma promessa de felicidade entre o casal (ibid., p.166).

Em Esparta o afastamento dos homens de suas casas não significava a

priori segundo Redfield, que estes passavam a ignorar suas famílias, por não mais

representar nada para eles. Com a morte do pai, o homem espartano ficava

responsável pelas suas irmãs. Chegando a uma certa idade, este deveria se

casar: era obrigatório em Esparta o casamento, devido ao grande número de

mortes de cidadãos em decorrência de inúmeras guerras. Para um espartano, a

troca matrimonial representava, além de uma oportunidade de adquirir bens, a sua

vitória e sucesso dentro de uma competição masculina, que devido à

característica da cidade, deveria permanecer ao longo das gerações (ibid., p. 163)

.

A mulher desposada não era propriedade do seu marido. O seu marido era

o seu senhor, ou seja, ele tinha o pleno direito de puni-la, repudiá-la caso

atrapalhasse seus interesses e até mesmo matá-la em caso de adultério, mas

evitava-se para não provocar vingança que era obrigatória por parte da família da

esposa. Apesar de todo este poder e direitos do homem sobre a mulher, esta

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guardava alguns direitos que lhe são incontestáveis segundo Mireaux, mas que a

autora não nos esclarece (1954, p. 206).

As infidelidades eram freqüentes. A própria localização dos quartos

facilitava. Homens e mulheres tinham quartos separados. O quarto do senhor,

chefe da família, ficava entre os aposentos das mulheres e o quarto da esposa em

outro lado da casa. Mireux acredita que essa infelicidade devia fazer parte da

“política familiar” (ibid., p.207) visto que segundo nos informa a autora, diferente

do que nos informa Redfield (1993), não era produtivo financeiramente ter muitos

filhos legítimos, afim de evitar as divisões do patrimônio. Prefiria-se ter bastardos

sem dom para administração de terras, mas que podiam substituir o herdeiro

legítimo caso este desaparecesse. Outro caso “permitido” de infidelidade era

quando a esposa não podia conceder-lhe um filho. A autora deixa claro que não

era fácil a permissão de algumas mulheres em deixar os seus homens terem seus

casos amorosos. O homem podia ter concubinas, prostitutas ou cortesãs

prisioneiras de guerra. Todavia só era possível uma mulher levar o título de

esposa, ou seja, aquela de legítimo contrato de casamento com o seu pai (ibid). O

divórcio já era realizado nesta época. Em Atenas era mais fácil ser conseguido do

que em outras cidades e era mais difícil quando se tratava dos casos em que o

divórcio era pedido pela mulher. Quando ocorria, deveria ser feito por uma figura

mediadora plena de direitos, ou seja, algum homem, por exemplo, o pai da esposa

(Vilar, 2009, p. 1).

Havia alguns casos incontroláveis que poderiam acontecer e que a tradição

grega antiga já destinava um fim, como era o caso das viúvas: A viúva, mãe de um

filho menor e senhora da casa, era em certos casos destinada a assumir a posição

de filha e encarregada de transmitir o domínio familiar ao próximo herdeiro

homem, assumido assim o lugar do pai. Em Esparta, por exemplo, onde durou

por muito tempo a situação de indivisibilidade absoluta do patrimônio, criou-se o

costume da mulher do primogênito também ser a mulher dos seus irmãos. Desta

forma, a posição de esposa e senhora da família era fortalecida, pois a

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transformava em senhora do patrimônio e em um chefe de família. Logo nesta

cidade a maior parte da riqueza passava para as mãos femininas (Mireaux, 1954,

p. 207; 209-210).

O sexo e a fecundidade era um mistério para os gregos antigos, vide o mito

de Édipo-Rei. São poucos os escritores gregos que falavam sobre o sexo. Aos

pesquisarmos diversos autores encontraremos o sexo associado às crenças e

práticas destinadas a religião, como práticas transvestidas, feiticistas, virgindade

sagrada, tabus sexuais impostos pelos sacerdotes e sacerdotisas dentre outros. O

sexo e a fecundidade era um poder poderoso e perigoso que ultrapassava os

poderes e a compreensão humana, a exemplo Hermes de Atenas em 415 com o

falo mutilado. O sexo podia ser manipulado para controlar as forças da natureza,

evitar os males e assegurar a fartura das colheitas. Estas crenças eram aceitas

em todas as classes (Finley, 1963,p. 126-127).

No que diz respeito à homossexualidade no campo da família, do

matrimônio Finley tem a visão de que a homossexualidade era um “objeto de

desprezo e de ditos maliciosos” (ibid,p.125), pois o modelo concebido como

normal e sadio era o da bissexualidade. Assim, podemos dizer que na Grécia

Antiga, havia duas instituições complementares: enquanto que a relação com os

homens tinha um caráter pedagógico, o envolvimento com mulheres permitia a

criação da família, a produção de herdeiros e o cuidado do patrimônio.

Mas Finley acredita que havia todo um processo que ia se desenrolado com

a história da Grécia Antiga: na medida em que a sociedade como um todo se

transformava em classe média, ou seja, com suas dificuldades econômicas e de

posição social, as formas de relacionamento extraconjugal, até então

institucionalizada, iria desaparecendo ao longo dos tempos. O contexto de

dificuldades tanto econômicas quanto sociais levou os homens a permanecerem

mais no convívio com a família devido ao comportamento forçado de diminuição

de gastos e ao aumento de proteção dos bens que ainda restara. Isto levou a

diminuição do tempo livre para os homens que tinham que trabalhar ainda mais,

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permitindo a perda do campo do relacionamento extraconjugal. Com isso as

mulheres começavam a tentar conquistar um certo grau de igualdade perante os

homens no trabalho do campo e no comércio (ibid.,1963,p.126).

O casamento e a família era um meio, principalmente de ampliar o

patrimônio por meio do dote, de produzir herdeiros cidadãos e assim, acirrar a tão

valorosa competição pela honra no mundo masculino, ou seja, era muito mais uma

questão pública do que privada. Entretanto, não podemos descartar a

possibilidade de afetos e conflitos neste campo, como alguns autores épicos

demonstraram, entretanto, isto se apresentava em segundo plano, à vida

pertencia principalmente à esfera pública.

O modo de ser família está aliado a uma complexidade de sentidos, de

formas de ser, de estar, de sentir e de agir que esta para além, pois as

informações, fontes e as perspectivas dos itens que abordamos neste capítulo são

infinitas como: ser homem, ser mulher, as relações homoeróticas e o casamento;

mas que neste modo de ser se integram ao modo singular de ser família na Grécia

Antiga.

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CAPÍTULO IV - A PERSPECTIVA GENEALÓGICA E A

NOÇÃO DE ACONTECIMENTO HISTÓRICO

Neste último capítulo apresentaremos a base de fundamentação para o

problema-hipótese da presente pesquisa: ser possível pensar a família da Grécia

Antiga através da perspectiva genealógica e da noção de acontecimento histórico.

Perceberemos ao longo do capítulo que a genealogia e a noção de

acontecimento se complementam e se misturam: não há como uma não estar

integrada na outra. Entretanto, para uma compreensão didática faremos a

separação sistemática destes conceitos nos subitens que se seguem, apesar de

ser impossível a retirada integral do conceito de acontecimento da perspectiva

genealógica e vice versa.

Para compreendermos em que se baseia a genealogia é fundamental que

entendamos a que modo de concepção de mundo esta se contrapõe e critica

ferozmente.

4.1 - A doutrina das Idéias e das Cópias de Platão

A doutrina das idéias e das formas do filósofo Platão, desenvolvida nas

alegorias de Fedro e da República, foi e ainda é o modelo mais utilizado de

concepção de mundo, de conhecimento, de verdade e de se fazer ciência,

incluindo-se, a que nos interessa, a ciência histórica.

Platão disse que existem dois mundos: o mundo ou céu das Idéias Eternas

que também seria denominado de mundo das Essências ou das Alturas e o

mundo das Cópias ou dos Simulacros.

O mundo das Idéias, segundo Platão seria o mundo das verdades supremas,

do conhecimento puro, da unidade racional. Este mundo seria habitado pelos

deuses e por tudo o que fosse divino, conseqüentemente, por tudo o que fosse

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belo, sábio e bom. Logo neste mundo tudo seria perfeito e verdadeiro: a felicidade

absoluta. A alma antes de tomar a forma humana – conjunto da alma com o corpo

– deveria acompanhar a alma divina nas suas evoluções. A forma humana

habitaria o mundo das cópias ou dos simulacros. Neste mundo nada seria

verdadeiro, era meramente uma tentativa ineficaz de se fazer uma cópia do que

existe no mundo das idéias. O modelo só se encontraria nas Idéias. As idéias

seriam indiscutíveis, elas simplesmente são. Neste mundo, a alma só conseguiria

ter acesso novamente ao mundo das idéias através da inteligência – o que Platão

entendia como sendo a própria memória ou reminiscência das verdades eternas

que contemplava quando estava na sua evolução com os deuses. A inteligência

seria, portanto o guia da alma, no mundo das formas, teria acesso novamente ao

mundo das Idéias para se chegar as Idéias. Mas para que isso ocorresse a alma

deveria, primeiramente já ter evoluído e alcançado o mundo das idéias e

posteriormente, conseguir vencer e dominar as paixões ou sensações, formas

próprias do corpo, para se chegar a inteligência (Platão, p. 83-86). Platão salienta

que eram poucos aqueles que conseguiam isto. Talvez, apenas o homem que

conseguisse isso, segundo o autor, seria, é claro, o filósofo. Não é a toa que a

tradução de filósofo no idioma grego é amigo da sabedoria.

4.2 - A concepção da metafísica9

Desta doutrina Platônica surgiu o que conhecemos como metafísica ou o

princípio da filosofia. A metafísica se tornou a base de todas as ciências. Todo o

conhecimento para esta perspectiva de concepção do mundo é uníssono: busca-

se unicamente a verdade. É uma busca enlouquecida sobre um saber verdadeiro.

Ou a busca de um saber que seja mais verdadeiro que o outro, pois o objetivo é

chegar a um conhecimento perfeito. E quando falamos de perfeito, falamos de um

9 A metafísica também é conhecida como o ponto de vista supra-histórico, meta-histórico, história dos historiadores ou a história tradicional (Foucault, 1979).

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conhecimento que seja imutável ao longo da história. Este conhecimento absoluto

só poderia vir de um sujeito, aquele que porta, que é a condição e fundamento de

todo o conhecimento. Mas para que isso ocorresse este sujeito deveria controlar

dominar suas paixões seus instintos para que a razão viesse a tona. A partir dele

a verdade se revelaria.

O mundo é composto pelas leis da natureza, diz a metafísica, leis

imutáveis, perfeitas, ordenadas, harmônicas, sábias. Todo o conhecimento

seguiria esta relação natural com as coisas do mundo. Este seria o princípio, a

natureza e a essência do conhecimento. Assim há uma continuidade natural entre

o sujeito, o conhecimento e o mundo a conhecer (Foucault, 1973, p.18-19;24) . Há

um conhecimento em si. Um objeto a conhecer em si. Só haveria conceitos

imutáveis, universais e ponto final.

Por conta da perspectiva metafísica. A história seria vista em um sentido

teleológico, como um desenvolvimento, uma evolução linear e contínua a partir de

origens que se perdem no tempo (Foucault, 1979, p. VII), sempre buscando um

estado melhor, ou superior. Um objeto a ser estudado pela história, assim como

por outras ciências, seria um objeto natural, uma realidade que se busca as

essências ou significações ideais, pouco importa o contexto no qual ela está, pois

se é natural, é imutável, certo? Reduz-se tudo o que há no mundo, suas

multiplicidades e se fecha em uma teoria global, a um conceito universal

preocupado, principalmente, com a utilidade deste conceito, este é o princípio do

conhecimento para a metafísica. Busca-se acima de tudo uma identidade. Uma

forma imóvel ao longo do tempo. Deste pensamento também se acredita que há

uma neutralidade, uma vitória da inteligência, sobre os afetos do sujeito, suas

“condições particulares de existência” (ibid., p. XXI), que obscureceria e impediria

assim o encontro do conhecimento universal. Desta concepção viria a

fundamentação de toda a dedicação á verdade e ao rigor dos métodos científicos.

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4.3 - A Teoria das forças de Nietzsche

Friedrich Nietzche (1844 a 1900) brilhante filósofo alemão que criticou todo

o pensamento tradicional do conhecimento, a metafísica, foi chamado de o

“filósofo do martelo”, produziu diversos pensamentos, principalmente o

pensamento genealógico, a teoria das forças, a vontade de poder, a vontade de

saber, a genealogia do conhecimento, dentre outros. Escreveu muitos livros e em

todos eles encontramos os pensamentos centrais de sua filosofia.

Em sua teoria das forças, Nietzsche demonstra como qualquer

conhecimento é produzido. O conhecimento não é o refinamento dos instintos

humanos, não é uma derivação natural, pois não existe uma relação de

continuidade e sim de descontinuidade. Mais ainda, o conhecimento não é

humano, não é um instinto do homem, pois o homem não é a condição do

conhecimento. Conhecimento e natureza humana são duas coisas completamente

diferentes. O conhecimento tem em sua base, o confronto, a batalha, o combate, a

luta, o estado de tensão ou apaziguamento de instintos ou de forças como ponto

de partida. Todo conhecimento é o efeito ou o resultado do combate de

determinadas forças que compõem um campo, um contexto, um conjunto de

possibilidades (Foucault, 1973,p.16-18).

Para que possamos compreender melhor a teoria de Nietzsche acerca do

conhecimento, ou das verdades, vamos compreender melhor o que é a natureza

das forças e o que é um corpo, dois pensamentos intimamente relacionados

segundo o filósofo.

Um corpo seja este de qualquer espécie, seja biológico, social, político, ou

qualquer objeto a ser estudado, é sempre uma realidade, e esta é para o filósofo

sempre a produção de um fenômeno múltiplo, pois é composta por uma

pluralidade de forças. Podemos dizer assim, que um corpo é um campo de forças,

uma batalha um combate onde as forças estão em tensão, em uma relação de

poder, dependendo da qualidade e da quantidade de cada força: umas obedecem,

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outras dominam. Portanto há uma relação de domínio-submissão. A condição,

para que um copo seja produzido, deve ser composta por forças diferentes em

qualidade e quantidade postas em relação. Por esta razão um corpo é sempre

fruto do acaso da relação de poder destas forças. O acaso também seria a

essência da força. Assim é posta a impossibilidade de se perguntar como nasce

um corpo, pois este é fruto da relação arbitrária das forças (Deleuze, 1976, p. 32-

33). Entretanto é necessário apontarmos que, apesar de Nietzsche falar do corpo

e da qualidade e quantidade das forças que o compõe, o mundo ou as coisas,

também são compostas pelas mesmas qualidades de forças que organizam um

corpo. Corpo e mundo são apenas espaços diferentes da atuação das mesmas

qualidades de forças sempre em combate entre si (Fornazari, 2003 p. 115).

O conceito de força, por natureza, já é vitoriosa, porque se estabelece a

relação de uma força com outra, ou seja, a de dominação-submissão: enquanto

uma é dominante, a outra é dominada. Precisamos entender que obedecer e

comandar são qualidades, visto que “nenhuma força renuncia a seu próprio poder

(...) o comando supõe uma concessão (...) obedecer e comandar são duas formas

de torneio” (Nietzsche, vontade de potência II 91, op cit. Deleuze, 1976, p. 33). As

forças em sua qualidade podem ser reativas – forças inferiores, ou seja, as

dominadas e que nada perdem de sua quantidade de força, como por exemplo

aquelas que tem a tarefa de conservar, de adaptar, são forças de utilidade,

mecânica; e as forças ativas – forças superiores, ou seja, as comandantes, por

exemplo, a tendência em se apoderar, subjugar, dominar, oprimir, explorar,

apropriar, no sentido de impor formas, que para o filósofo é propriamente a função

orgânica do ser vivo, é a sua essência, é a vontade de vida (Nietzsche, 1886,

parágrafo 259).

Mas a qualidade de uma força não é separável de sua quantidade. É

impossível reduzir uma a outra, da mesma forma que uma força não pode ser

separada da outra quando se está em relação com esta. Segundo a expressão do

filósofo seria uma loucura. Nietzsche condena a determinação das forças somente

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em sua quantidade como afirma os mecanicistas, pois trabalhar com quantidades,

sempre se tende a uma anulação das diferenças e a buscar as identificações e a

unidade. O filósofo entenderá que a qualidade nada mais é do que a diferença de

quantidade que cada força possui quando em relação. A quantidade de uma força

quando relacionada a outra, ou seja, a sua diferença, nunca será anulada,

igualada ou compensada – discurso determinista. Assim a qualidade nada mais é

do que a diferença de quantidade de uma força quando em relação (Deleuze,

1976, p. 36).

O filósofo coloca o acaso em uma posição, em um sentido totalmente

diverso da idéia mecanicista vigente. Pois o acaso é a condição para se afirmar a

relação de todas as forças. Tanto é que Nietzsche cria o pensamento do eterno

retorno, que fundamenta o valor do acaso. Mas cada força entra em relação em

tempos diversos. O poder de cada força é conseguido por meio de uma relação

com um pequeno número de forças. Os encontros das forças seriam a parte

concreta e afirmativa do acaso. No encontro de uma força com a outra, na relação

é que cada força é afetada, recebendo a qualidade que corresponde a sua

quantidade (ibid).

A força não seria vitoriosa se não houvesse um querer interno e

complementar que o filósofo denomina como a vontade de poder. A vontade de

poder, foi um pensamento tão importante para Nietzsche que lhe rendeu um livro.

A vontade de poder é um elemento genealógico da força, isto é diferencial e

genético. É um elemento complementar e interno á esta. É o elemento que

diferencia a quantidade e a qualidade das forças postas em relação. A vontade de

poder é o princípio para síntese das forças, ou seja, é a partir dela que as forças

se relacionam, que lidam com as suas diferenças ao longo do tempo. Vontade foi

a palavra utilizada, pois se refere ao principio para que tudo possa ser produzido.

Mas a vontade é plástica, pois “a cada caso se determina com o que determina”

(ibid;.p.41), a cada relação a cada afetação das forças entre si, estas se

modificam. O acaso também faz parte desta vontade de poder, pois segundo

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conta Deleuze sobre a vontade de poder, sem o acaso, a possibilidade, a

virtualidade, a vontade não teria nem plasticidade nem a capacidade de se

transformar e de entrar em relação. O acaso é o que permite o relacionamento das

forças e a vontade de poder é o princípio que determina esta relação. Somente

está implícita nas forças relacionadas ao acaso. As forças permanecem

indeterminadas sem a vontade de poder. Por esta razão é que dizemos que esta

vontade é um elemento diferencial, complementar e interno das forças. É a

vontade de poder que faz com que uma força obedeça em uma relação. A

essência da força é a sua diferença de quantidade em relação às outras forças e

que esta se exprime como qualidade da força. A vontade de poder, portanto,

existirá sempre tanto nas forças ativas, quanto nas forças reativas. Deleuze

salienta que apesar da força estar contida na vontade e vice-versa, são duas

coisas diferentes: “a força é quem pode, a vontade de poder é quem quer” (Ibid.;

p. 42).

Desta forma é a vontade de poder quem interpreta. Mas para que isso

ocorra a vontade de poder deve ter particularidades ou qualidades mais sutis e

momentâneas da forças que não devem ser confundidas com as qualidades

destas. Assim, as qualidades de uma força nos termos de Nietzsche são ativas e

reativas, enquanto as qualidades da vontade de poder podem ser afirmativas ou

negativas. Se a vontade de poder está presente nas forças ativas e reativas, a

vontade de negar, por mais que pareça estranho á nós, também é uma vontade de

poder. O filósofo falava muito em seus livros, na crítica do niilismo e do ideal

ascético como uma vontade de poder, uma vontade de nada:

“ O homem, o animal mais corajoso e habituado ao sofrimento, não nega em si o sofrer, ele o deseja, ele o procura inclusive, desde que lhe seja mostrado um sentido, um para quê no sofrimento (...) mas a pesar de tudo – o homem estava a salvo, ele possuía um sentido (...) a vontade mesma estava salva (..) esse horror aos sentidos, á razão mesma, o medo da felicidade e da beleza, o anseio de afastar-se do eu seja aparência, mudança,

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morte, devir, desejo, anseio – tudo isso significa, ousemos compreendê-lo, uma vontade de nada, uma aversão a vida, uma revolta contra os mais fundamentais pressupostos da vida, mas é e continua sendo uma vontade(...)” (Nietzsche, 1887 II, parágrafo 28).

As duas distinções das qualidades, a afirmação, e a negação, o ativo e o

reativo são o centro de toda a filosofia de Nietzsche. Entre estas qualidades há

uma afinidade profunda, uma cumplicidade como afirma Deleuze (1976, p.44) e o

que faz da filosofia uma arte. Em toda ação há uma reação, em toda a negação há

a afirmação de algo. Ma a ação e reação são os meios para a vontade de poder

que afirma e nega. A reação e ação precisam também da negação e da afirmação

para que alcancem os seus objetivos. Em uma análise mais profunda, a afirmação

e a negação são as qualidades do devir: ”a afirmação não é ação, mas sim o

poder de se tornar ativo, o devir ativo em pessoa; a negação não é a simples

reação, mas um devir reativo (...) elas constituem a corrente do devir com a trama

das forças” (ibid.; p. 44).

Ainda sobre a vontade de poder devemos apontar que não é esta que

somente interpreta, mas também avalia, na medida em que é esta que determina

a força, qual o tipo de qualidade da força, ou seja, que dá sentido a uma coisa,

que dá valor a algo. Avaliar é determinar a vontade de poder, é dar o valor a algo.

Logo entendemos porque é esta vontade que é o elemento genealógico da força,

pois dela derivam a significação, o sentido e o valor dos valores. Através deste

pensamento Nietzsche também ficou conhecido como criador da filosofia dos

valores. Ele utilizava a figura do senhor e do escravo. O senhor – nobre e alto –

ora é a força ativa, ora a vontade afirmativa; o escravo – baixo e vil - ora é força

reativa, ora a vontade negativa. Assim, o filósofo falará que um valor compreende

sempre uma genealogia formada pela baixeza e pela nobreza. Assim, somente um

genealogista conseguiria descobrir que a baixeza também pode criar um valor,

assim como a nobreza através do manejo da vontade de poder (ibid;. 45).

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Vamos voltar à compreensão do que é o conhecimento, nos apoiando na

Gaia Ciência. Nietzsche ao retomar o texto de Spinoza, reformula o pensamento

deste último. Spinoza acreditava que para que conseguíssemos apreender a

essência, a verdade de algo, deveríamos nunca rir, deplorar ou detestar o objeto a

conhecer, pois estas paixões ou instintos atrapalhariam a apreensão da

verdadeira natureza do objeto. Entretanto Nietzsche assume um posicionamento

totalmente contrário baseado no pensamento das relações de força. Para que um

conhecimento fosse possível cada uma destas paixões deveria dar sua opinião

sobre o acontecimento, ou a coisa a conhecer. Após suas manifestações, um

combate haveria entre estas e o resultado deste combate sairia o apaziguamento,

o acordo, ou um equilíbrio destas paixões. Todavia a nossa consciência não

registra o combate, só temos acesso imediato a reconciliação o resultado: o

conhecimento. Logo, baseado somente no que temos consciência, acreditamos

que todo o conhecimento é em sua essência, bom, justo, entretanto é totalmente o

oposto: só compreendemos algo, pois há por debaixo do véu, uma trama, uma luta

destes três instintos, ou mecanismos. O rir, o deplorar e o detestar são assim uma

maneira não de se aproximar do objeto a conhecer, ou de se identificar com ele,

mas sim de mantê-lo à distância, de se diferenciar dele, de romper com ele, de se

proteger dele. Logo, os instintos que estariam na raiz do conhecimento teriam a

vontade de se afastar dele e de destruí-lo. A essa vontade que Nietzsche chama

de vontade de poder (Nietzsche, 1882, Parágrafo 333 et Foucault, 1973, p.20-21).

Se aplicarmos este pensamento do Nietzsche a sua idéia de conhecimento

veremos que nunca o conhecimento é um instinto que faz parte da natureza

humana. O conhecimento está acima e no meio deles. As forças só produzirão

conhecimento, pois estas se relacionam entre si numa relação de poder, ou seja,

de dominação-submissão. O conhecimento só é produzido após o término da

batalha das forças. É o risco e o acaso que darão lugar ao conhecimento. Não

sabemos qual será o resultado, mas só haverá conhecimento se as forças se

arriscarem a se enfrentar. Assim, toda a realidade já é em si uma quantidade de

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forças, em relação de tensão umas com as outras. Só haveria conhecimento sob a

forma de uma multiplicidade de atos diferentes entre si em sua essência cujos

atos o ser humano se apoderaria violentamente, reagindo a um certo número de

situações e lhe impondo relações de força. O conhecimento seria fruto de uma

relação estratégica onde o homem está presente. Esta relação que definirá o

efeito de um conhecimento. Por esta razão todo conhecimento é perspectivo e

parcial, devido a sua natureza estratégica, de batalha e como efeito desta (

Foucault, 1973, p. 25).

Nietzsche acrescenta também que o conhecimento é um desconhecimento,

na medida em que ele é ao mesmo tempo generalizante e particular. Ele

sistematiza, ignora as diferenças sem nenhum fundamento de verdade, mas

também só há conhecimento no combate entre o homem e o que ele conhece, se

configurando como uma luta singular e é este o ponto que cria em todo o

conhecimento o seu caráter particular ou singular (Ibid., p. 26).

Portanto, Nietzsche fala que a relação entre o conhecimento e o instinto é

uma relação de descontinuidade, pois há um rompimento, luta, relação de

violência, de força, de poder, de dominação:“o conhecimento só pode ser uma

violação das coisas a conhecer e não a percepção, reconhecimento, identificação

delas ou com elas.” (Foucault, 1973, p.18) Por esta razão Foucault disse que o

conhecimento não era instintivo, mas contra-instintivo, não era natural, mas

contra-natural (Ibid.;.17)e a natureza humana e conseqüentemente do

conhecimento, não seria a pureza, mas sim a expansão da potência dos instintos

e das forças envolvendo hierarquia, desigualdade e domínio.

4.4 - A perspectiva genealógica

A genealogia foi um método adotado e criado por Nietzsche para analisar a

história, e os acontecimentos que são produzidos por ela. A historicidade não é

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tácita, é belicosa, fruto das relações de poder e de domínio. Foucault chamará de

genealogia

“ uma forma de história que dê conta da constituição de saberes, dos discursos, dos domínios de objeto, etc, sem ter que se referir a um sujeito, seja ele transcendente como relação ao campo de acontecimentos, seja perseguindo sua identidade vazia ao longo da história” (Focault, 1979,p. 7).

A genealogia se interessa sobre a história efetiva ou o sentido histórico,

sobre aquilo que os historiadores da história tradicional, ou seguidores da

metafísica, acreditam onde não existe história, nas pequenas verdades: nas cenas

da história onde se encontram diferentes papéis atuando, vários elementos

relacionados – por isso a “genealogia é cinza” (p.15) – e mesmo no ponto onde

nada ocorreu – pois para a genealogia sempre acontece algo. Por esta razão a

genealogia é meticulosa, cuidadosa, pois se quer marcar a singularidade de cada

acontecimento histórico, ela exige uma minúcia do saber. Todo o cenário seja

nobre ou baixo, como se deu a construção das suas escalas de valores através

dos tempos e dos povos deve ser trazido a luz pelo filósofo histórico. Todo este

trabalho é para Nietzsche um sinal de uma cultura superior, de espíritos livres, que

sabem apreciar as formas mais simples e talvez feias e as pequenas verdades

(1882, parágrafo 7;16 et 1878, parágrafo 3 e 2).

A perspectiva genealógica assim se opõe ao modo de olhar sobre a história

da metafísica ou do filósofo metafísico, da busca de formas eternas, que

refletiriam as verdades e realidades imutáveis e absolutas para que se possa

reproduzir, sem refletir, continuamente velhas formas. Nietzsche se perguntava:

quando desdivinizaremos a cultura?”(Foucault, 1973 p. 19) Este modo

caracterizaria o espírito científico, a história tradicional que são para o filósofo uma

característica da cultura inferior (1878, parágrafo 3).

Parece que está claro que o trabalho da genealogia se opõe ao trabalho

pela busca de uma origem – Ursprung – de uma causa, de um fundamento

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originário, do lugar da verdade. Pois a pesquisa da origem se fundamenta na

busca de um substrato de uma forma em si, imóvel e anterior a tudo, o que é

acidental, ou seja, ela nega os acontecimentos, as condições de possibilidade, a

potência de um corpo. Todos os conflitos, os disparates, os disfarces, os enganos,

são máscaras e segredos essenciais que devem ser subtraídas e nunca

consideradas na gênese de sua construção, pois o que importa é o que está por

detrás delas, o objetivo original, o resultado final, a identidade primeira e anterior.

Este modo de ver a história, através da sua origem, foi inventado segundo o

filósofo pelas classes dominantes (Foucault, 1979, p. 16-17-18 et Nietzsche,1978,

parágrafo 92). É exatamente o termo que a genealogia irá se opor a origem:

invenção – Erfindung. Nietzsche dirá que entender a história como uma invenção,

ou seja, como uma construção, como uma produção, como uma grande usina que

produz o ideal, significa dizer que qualquer objeto a ser estudado não existia

desde sempre, não é imortal, este é vazio de sentido. Em um dado momento, algo

aconteceu, possibilitou, fazendo a aparecer este objeto. E o que possibilitou isto

foram as relações de poder, a batalha entre determinadas forças do contexto de

possibilidades, um começo “baixo” de pequenos acontecimentos e não da “alta

nobreza”. Posto isso, o ideal não tem uma origem, não é universal, não está a

priori do mundo e do homem. A verdade é uma construção, onde por de trás dela,

há um conjunto de erros. Utilizar o método histórico, o sentido histórico, é ter

acesso a todos os episódios da história, a todos os acasos do começo, desde os

mais nobres, até os mais servis, é produzir a gênese de um determinado

pensamento “é preciso reconhecer os acontecimentos da história”, pois a história

(...) é o próprio corpo do devir” é o vir a ser e nunca o sentido absoluto do

“é”(Foucault, 1973, p. 14-15 et 1979, p. 19-20).

Se a genealogia se opõe a origem – Ursprung – ela baseará o seu método

do sentido histórico na proveniência – Herkunft – e na emergência – Entestehung.

A proveniência é o começo, o tronco comum do entrecruzamento de forças,

de uma rede de mil acontecimentos, difíceis de se separar, que caracterizam o

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aspecto único de um conceito pelo qual se formou. A pesquisa da proveniência

permite ver de onde se começou um conceito e o percurso que este fez para

chegar até onde chegou. O que difere da pesquisa da origem, pois nesta é o geral

que define as particularidades. A genealogia não pretende mostrar o passado,

apesar de não o negar, ela não pretende trazer uma continuidade, uma evolução

entre o passado e o presente. Pensar na proveniência é justamente, marcar, os

acidentes, os desvios, os erros, as falhas, que permitiram fazer com que algo

tivesse hoje um valor para nós. É mostrar que no interior de um valor reinou a

batalha, o conflito de erros e acertos, e não a suprema verdade. Um valor é feito

de acidentes. Assim, a proveniência é composta por um conjunto de falhas, de

características múltiplas e diversas entre si, mostrando a diversidade que constrói

um conceito em um determinado contexto plural (Foucault, 1979, p. 20-21).

Foucault ainda dirá que o corpo é a superfície de inscrição dos

acontecimentos da história, lembrando Nietzsche, que afirma que o corpo é a

potência dos acontecimentos, pois é nele que ocorrem as batalhas, os conflitos de

forças, nascendo também os desejos, as vontades e não somente, como descreve

Platão, o receptáculo da alma. Desta forma a genealogia também permitiria a

articulação, a construção da relação entre o corpo e a história, demonstrando que

o corpo está impregnado de história, mas a história também arruinando cada

corpo, cada conceito (ibid., p. 22) Assim, já dizia Foucault que a proveniência

“agita o que se percebia imóvel, fragmenta o que se pensava unido; ela mostra a

heterogeneidade do que se imaginava em conformidade consigo mesmo”

(ibid.,p.21).

A emergência é o ponto de surgimento, é como se produz singularmente

um acontecimento. Para a genealogia a emergência é sempre uma série de jogos

casuais, de acasos de submissões e dominações, de luta das forças ativas e

reativas. A emergência sempre acontece em um determinado estado destas

forças. Estas forças, ou lutam umas contra outras, ou frente a circunstâncias

variáveis, ou tentam se dividir para escapar do desaparecimento, no momento em

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que se enfraquecem e em seguida retornam com sua potência, com um alto valor,

novamente ao campo de batalha. A emergência assim é a entrada das forças no

campo de batalha, cada qual com sua qualidade e quantidade. É produzida pela

relação das forças dominantes e dominadas. Ninguém é responsável por ela, ela é

produzida em uma relação. A emergência reativa o jogo de dominação pela a

história dos acontecimentos. As diversas emergências não são fruto de uma

mesma significação, de um mesmo sentido, elas não tem uma mesma origem

universal, e sim são efeitos de substituição, reposição e deslocamento de diversas

conquistas das batalhas das forças (ibid.;24-25).

Assim, Foucault e Nietzsche dirão que interpretar é se apoderar com

violência de um sistema de regras ou uma cadeia de signos sem significação

absoluta, impondo-lhe uma direção, construindo outro sentido, por um poder e

vontade que lhe são superiores. Estas regras entram noutro jogo e são

submetidas pela relação subjugação e assenhoramento a outro tipo de regras, a

novos ajustes e novas interpretações, sendo transformada e redirecionada a outra

regra. Uma interpretação existe, pois uma vontade superior que se assenhora de

outra interpretação. Todo o conhecimento é deste modo interpretação de diversos

olhares dirigidos sobre aquilo que se quer dominar ou defender. Logo “o devir da

humanidade é uma série de interpretações” e a genealogia teria a função de ser a

história destas, fazendo-as aparecer como acontecimentos em um palco, em um

capo de batalha das condições do acaso (ibid.; 26 et Nietzsche, 1887 II

parágrafo.66).

Desta forma, de uma maneira mais didática, diremos que enquanto a

proveniência é a qualidade das forças, a marca que deixa em um corpo,

emergência fala do lugar de afrontamento, do combate de forças desiguais, do

nascimento de um valor, de um sentido, de uma verdade, de um saber.

A genealogia, ou o sentido histórico, ou a história efetiva, portanto critica a

perspectiva da metafísica, ou da meta-história, ou supra- história, que reduz toda a

história em uma teoria geral da origem das coisas, dos fatos históricos, fora do

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tempo, de condições de possibilidades. Julga o que é verdadeiro ou falso,

segundo uma pretensão de objetividade, pois se baseia em uma suposta imagem

ideal, eterna e universal do passado, da origem do mundo. O sentido histórico é

assim um instrumento da genealogia para ver a história. Este olhar distingue a

pluralidade de sentidos, a sua construção, apagando o sentido absoluto e a

unidade das coisas. Para metafísica o passado, a origem é soberana a tudo e,

portanto absoluta. A metafísica acredita reconhecer ou reencontrar no presente os

traços de uma imagem universal e eterna do passado, da origem do mundo. A

genealogia nega a imortalidade do sentido, reinserindo este como mais um

possível que foi construído dentro da história, introduz este sentido, assim, no

corpo do devir, da possibilidade de transformação deste como acontecimento

(ibid.; p. 26).

A genealogia dirá que um saber foi feito para cortar, muito mais do que para

ser compreendido. Busca-se as descontinuidades da história que nos atravessam,

dissipando raízes que deveriam, pela metafísica ser reencontradas.Quebra-se em

pedaços um objeto, para poder visualizar como ele foi inventado, sua emergência

e sua proveniência, como está inserido em uma hierarquia de valorizações.

Rompem-se os sentidos absolutos e descobre-se que são compostos por uma

trama batalha de outros sentidos, de outros valores que dominam e são

dominados. Por esta razão a genealogia seguirá as paisagens mais simples, mais

baixas, mais feias da história, pois é nestes locais onde se encontrará a

construção dos sentidos e das verdades (ibid.; p. 28-29;33).

Chamamos também a genealogia de um saber perspectivo, pois acredita

que não há uma neutralidade na formação de um saber, sempre um saber é

construído por um lugar, um conjunto complexo de acontecimentos entrelaçados,

mas não uma anarquia destes. Na busca destes saberes deve-se observar de

onde se olha, bem como o que se olha. Todo saber ganha um movimento do seu

conhecimento, ganha uma gênese: a construção de sua genealogia (ibid.; p. 30).

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Nietzsche, no aforismo “o que é o conhecer”, dirá que olhamos o mundo

com pretensões. O mundo seria desde sempre colorido, mas na realidade somos

nós que o colorimos com nossas idéias, como o intelecto humano, que transfere

para o mundo suas pretensões e fundamentos os mais errôneos possíveis. A vida

e a experiência foram inseridas no mundo dos fenômenos pelos filósofos

metafísicos. Este mundo deveria ser corretamente interpretado para conseguirmos

apreender o sentido exato das coisas em si. As buscas por uma verdade e pelo

conhecimento são situadas dentro da natureza humana e da essência a vida. A fé

e a convicção deixaram de ser as únicas forças da vida. Todas as paixões foram

postas a serviço do conhecimento. O combate da razão se tornou motivo de

dignidade, patrimônio da espécie humana. Mas o filósofo dirá que esses espíritos

aprisionados se enganam. O conhecimento é a forma mais fraca da verdade. Ele é

posta como condição de verdade e princípio da própria vida. A partir daí

inventaram o sábio, como homem da intuição, impessoal, detentor da concepção

universal (Nietzsche, 1882, parágrafo 16).

A genealogia considera todo o saber como materialidade, como prática,

como acontecimento. Esta faz um uso antiplatônico da história. A história é a

história efetiva da construção de sentidos. O sentido histórico utilizado pela

genealogia irá permitir a possibilidade de reconstrução dos sistemas de idéias e

de sentimentos de uma dada época, em um conjunto de condições que

produziram estes sistemas. Os estudos do sentido histórico nos convidam a entrar

em uma determinada época da história de um povo, e nos permites imaginar uma

cadeia de pensamentos, o predomínio de alguns e o retrocesso de outros,

apontando-nos as condições que produziram isto (Nietzsche, 1878, parágrafo

274). Assim esta perspectiva entende que os conceitos, as idéias, os saberes, a

verdade são inventados, produzidos a cada contexto, a cada batalha de forças e

cada um destes saberes é mutável, pois a cada combate uma força superior se

apodera do domínio criando outro conceito. Para a genealogia, o conhecimento

não é o resultado da vitória das paixões do sujeito, para conseguir descobrir. Toda

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a regra, todo o conceito, toda verdade é fruto desta dominação e nunca de uma

aceitação pacífica de uma lei, não há nada de moral nisto. A verdade, o

conhecimento é assim, instalado em cada outro conhecimento, em cada outra

verdade, em cada outra regra, através da violência, e de dominação em

dominação, sempre se produz, se inventam outras seguintes.

4.5 - A noção de acontecimento histórico

Durante muito tempo, os estruturalistas, lê-se pensadores da perspectiva

metafísica, tentaram combater duramente a noção de acontecimento, criando

assim uma dicotomia entre esta e as estruturas. Os Etnólogos, principalmente,

defendiam que somente as estruturas poderiam alcançar o nível da razão, do

pensamento. O acontecimento, em contra partida era o lugar“ do irracional, do

impensável, daquilo que não entra e não pode entrar na mecânica e no jogo o da

análise” (Foucault, 1979, p. 4). Só que os estruturalistas não conseguiram tão

facilmente retirar da etnologia, principalmente, da história, o conceito de

acontecimento. Havia certos pontos que a noção de estrutura era muito simples

para descrever e compreender um fenômeno tão complexo quanto o

acontecimento.

Da mesma forma, como os estruturalistas, a dialética e a semiótica não

deram conta para explicar o que ocorre nos confrontos das forças que produzem

como efeito o acontecimento. A dialética evita a todo custo a realidade plural e

conseqüentemente a possibilidade das diversas interpretações sobre esta.

Enquanto que a semiótica nega o caráter do confronto da batalha das forças,

acreditando que um saber é fruto de um apaziguamento, de uma relação pacífica

dos instintos, aliando-se assim a concepção platônica (ibid., p.5). A história

tradicional também não se dedica ao acontecimento, talvez nem saibam que este

existe ou sejam contra este, pois “dissolve o acontecimento singular em uma

continuidade ideal – encadeamento natural” (ibid.,20).

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Foucault utiliza várias vezes em suas pesquisas a idéia de que a história é

a mais perfeita forma de devir, pois esta é “a condição e a superfície dos

acontecimentos” (ibid.,p.20), “(...) é uma miríade de acontecimentos

entrelaçados(...)” (ibid.,29) A alma não pode ser marcada pela história, pois esta

está relacionada com os conceitos eternos, com o Mundo das Idéias e, portanto

nunca será afetada pela história, ela é imutável. Somente o corpo, mas o corpo

abstrato, este como potência do acontecimento, da produção e transformação de

sentidos ao logo da história é que pode ser a inscrição dos acontecimentos. Logo,

os estes são produzidos, são efeitos da relação das forças, da batalhas entre

estas “que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado

contra seus utilizadores, uma dominação que se enfraquece, se distende, se

envenena e uma outra que faz sua entrada mascarada” (ibid.,20).

Todavia, Foucault deixa claro que a noção de acontecimento implica

diversas outras espécies de acontecimento, com diversos alcances, diversas

cronologias e diversas potências de produção de efeitos. Não podemos inserir

todos os efeitos da história em uma mesma palavra “acontecimento”, caso

façamos isto estaríamos generalizando propriedades singulares de cada

acontecimento. É trabalho dos genealogistas distinguir as espécies de

acontecimentos para reencontrar quais relações foram estabelecidas e em quais

condições isto foi permitido e produzido, uns a partir de outros – emergência e

proveniência. A história para os estruturalistas é tão absurda, sem sentido,

impossível de ser entendida, justamente porque esta só pode ser compreendida

pela relação, pelo combate, pela estratégia das forças, e estes teóricos não

alcançam este método.

Canguilhem (1986) escreveu um artigo em uma revista em homenagem a

Foucault. Neste artigo conseguimos apreender o que Foucault entendia como um

acontecimento, utilizando a história da loucura como um exemplo. O conceito de

loucura foi criado a partir de inúmeras condições de possibilidades da época 10.

10 Ver A história da Loucura , de Michel Foucault.

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Assim, a loucura é vista por Foucault como um acontecimento, na medida em que

esta é repleta de singularidades e de relações de poder, de forças da época onde

a loucura é produzida gerando modos de pensar, de agir e de viver. Isto só é

possível, pois houve a produção de um acontecimento, do conceito de loucura,

que é sempre um dado novo em relação ao que já existia. Um conhecimento

assim é um acontecimento, pois é fruto do combate das forças.

Veyne, em diversos trechos do seu livro cita a palavra acontecimento. O

autor adota na concepção de como se faz a história a perspectiva genealógica,

utilizando freqüentemente os estudos de Foucault como referência. Podemos

entender que o que Veyne entende sob acontecimento assume também a forma

da palavra evento. A história para ele assim, é a narrativa ou a série de eventos

que se multiplicam: “um acontecimento só tem sentido dentro de uma série”

(ibid.,p.36). Cada evento é diferença é individualidade, é singularidade, é

especificidade. O caráter desta diferença dos eventos não são puramente os

detalhes, ou o seu conteúdo, mas sim o fato de que eles acontecem em um dado

momento, reunindo condições de possibilidade para sua emergência, assim “ a

história nunca se repetiria, mesmo que viesse a contar a mesma coisa” (Veyne,

1982, p. 22).

Estes eventos ou acontecimentos não podem ser postos numa mesma

escala. Existem, e é o que nos interessa para o sentido histórico, os eventos não-

factuais, ou seja, aqueles que ainda não foram consagrados como tais, que estão

ainda em construção e que em muitas das vezes não temos consciência disto.

São sentidos construídos infinitamente que não se esgotam com o tempo. Um dos

exemplos citados pelo autor é a história da loucura (ibid.,p.29). Cada série de

acontecimentos produzirá um valor relativo a determinados contextos, sejam

sociais, pessoais, econômicos, culturais. Portanto, os acontecimentos assumirão

sentidos diversos dependendo destes contextos. Estes acontecimentos somente

serão conhecidos a partir de pistas de fatos do quotidiano. Daí penetrarmos nas

mais “simples” realidades, pois um acontecimento não começa como algo

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grandioso, cuja primeira percepção nos ofusca. Ele é produzido sob uma trama. A

história é assim, uma trama e um entrecruzamento de uma série de

acontecimentos. A todo o momento se produzem acontecimentos com múltiplas

singularidades e especificidades. Desta forma, Veyne conclui que o mundo, a

humanidade é um vir- a- ser, um devir constante de liberdade e de acaso também:

“ (...) um acontecimento (...) é um corte que realizamos livremente na realidade”

(ibid., p. 48). Como Nietzsche, Veyne coloca que os acontecimentos não são

totalidades, mas núcleos, efeitos de relações. Portanto é errôneo pensamos em

uma organização natural do mundo, uma verdade universal e em um sentido único

das coisas do mundo, ou dos próprios acontecimentos da história, visto que tudo

está em movimento e produção de sentido. A história se interessaria pelas

especificidades dos acontecimentos (Ibid., p. 37;47;85).

Mas como foi produzida a noção de acontecimento histórico? Os filósofos

Estóicos foram os pensadores, pesquisados e estudados por Nietzsche, Foucault,

Deleuze, Veyne, dentre outros como sendo os primeiros a pensarem algo como

sendo o princípio, a base da formulação da noção de acontecimento. Um

acontecimento para o Estoicismo, segundo nos informa Deleuze (1969), é,

primeiramente, algo de incorporal, ou seja, possível de construção de um sentido.

Deleuze utiliza como exemplo, a morfologia das palavras para mostrar de

que espécie pode ser um acontecimento. Este não é um substantivo, aquilo que é,

uma identidade e nem um adjetivo, uma qualidade que se refere a um substantivo

e que assim, não deixa também de ser relativa a uma identidade. Os

acontecimentos, pelo contrário, são verbos, são puras ações ou estados, nos

tempos infinitivos e gerúndio, ou seja, são ações abertas ao passado e ao futuro,

nunca no presente. O gerúndio marca um “sendo”, o que se passa entre duas

ações, passado e futuro, ou sendo fruto da relação de dois acontecimentos

diversos. São simultaneamente os dois tempos verbais (ibid., p.6).

Logo, Deleuze afirma que o acontecimento é um devir, ou seja, é “um vir a

ser”, um “sendo”. Assim, um acontecimento é sempre infinito, nunca acaba a

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produção do acontecimento, nunca cessa a relação dos acontecimentos entre si

para produzir outros. Sempre se afasta do presente, pois o presente o fixaria em

um determinado tempo, mas o acontecimento sempre está em transmutação ou

“são presentes vivos, mas infinitos” (ibid). Por esta razão dizemos que um

acontecimento não é uma coisa e nem outra, pois ele é construído em um campo

de imanência, como denomina Deleuze, ou em condições de possibilidades, como

chama Foucault, ou seja, o campo de batalha, de confronto das forças ativas e

reativas, referente a emergência, como denomina Nietzsche. Portanto o

acontecimento não é nem a força ativa, nem a força reativa, nem o passado, nem

o futuro, este é o efeito, é a relação das forças, o que Deleuze denomina em

diversos livros como agenciamentos dos corpos ou das forças que compõe um

corpo. Posto isso, dizemos também que um acontecimento implica um devir

ilimitado que sempre se afasta do presente. É sempre os dois tempos, passado e

futuro, mas nunca o presente. Ele é “eternamente o que vai se passar, mas nunca

o que se passa” (ibid., p.9).

A imagem da personagem e protagonista Alice, do livro Alice no país das

maravilhas do autor Lewis Carroll, baseada na história de Charles Lutwidge

Dodson em 1862, cuja história pode ser interpretada de múltiplas formas, foi um

recuso utilizado por Deleuze para ilustrar o que seria um acontecimento puro ou

um puro devir, termo utilizado também por Nietzsche. Quando o autor de Alice fala

“Alice cresce”, quer dizer que ela é maior do que era antes e menor do que será

depois. É ao mesmo tempo um e outro. Isto é o puro devir: é a propriedade da

simultaneidade de furtar-se ao presente é a sua essência (ibid.,p.1). Isto permite

que o devir não possa ser dividido, distinguido entre isto ou aquilo, passado e

futuro, por exemplo.

Deleuze faz um paralelo ao que ele entende como sendo o pensamento

principal do bom senso e do senso comum. O bom senso e o senso comum

julgam as coisas com um determinismo, o que é certo, o que é algo e não o que

algo pode ser. Também acreditam que existe um saber geral, universal, imutável,

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verdadeiro que todos deveriam alcançar, ou seja, a melhor opção que se poderia

escolher. Este pensamento é baseado na dimensão do mundo das Idéias de

Platão: da limitação, das qualidades permanentes, estabelecimento do presente,

do que é, da identificação. Já o puro devir, ou o acontecimento puro se relaciona

mais com o mundo das Cópias ou dos Simulacros, o que também pode ser

denominado de “o devir - louco” (ibid.,p.1), nunca pode ser detido por nada é uma

“matéria indócil”(ibid.,p.2). Se o devir fosse finalizado não mais seria o “vir a ser”,

apenas seriam (Platão, Fiebo, Parmênides, op. cit Deleuze, p.1-2). O puro devir

seria assim, a matéria do Simulacro, do ilimitado, da produção, na medida em que

se furta a ação da Idéia, do presente, pois idéias são as coisas medidas, mas

também o puro devir contesta ao mesmo tempo tanto o modelo da Idéia, quanto

da cópia do Simulacro. A Idéias não conseguem comandar completamente as

coisas, pois o fluxo do devir, o seu elemento louco impede isso.

A partir deste pensamento Deleuze analisa que o devir, o acontecimento

tem um paradoxo uma ambigüidade intrínseca, que juntos criam a noção de

acontecimento. O devir nega uma identidade, aquela identidade das Idéias, mas

paradoxalmente ele tem uma identidade infinita, ou seja, a capacidade de ser um

devir ilimitado, de ser sempre potência de criação, de ser duas coisas ao mesmo

tempo. Assim, este paradoxo, esta identidade infinita é o que permite que o

acontecimento seja singular, pois uma identificação garante a permanência de um

saber, o “é”. Mas o fluxo do acontecimento puro, do devir puro faz com que tudo o

que parecia identidade possa se perder. Isto produz em nós uma incerteza, que

não é uma dúvida externa, segundo Deleuze, mas sim a estrutura objetiva do

próprio acontecimento, na medida em que ele é sempre constituído por múltiplos

sentidos, no mínimo dois, todavia sempre queremos optar por um, daí nossa

incerteza. O acontecimento assim quebra o sujeito de um saber absoluto, pois é

impossível chegar eternamente a uma essência, a um saber único e uniforme das

coisas. O devir impede completamente isso. Tudo é fluxo, tudo é potência de

criação. E isso é vida. Por esta razão Nietzsche afirma que a genealogia está em

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nome da vida, do poder de afirmar e criar (Foucault, 1979, p.37). O paradoxo é

assim o que destrói o bom senso como posição absoluta de um sentido único

possível das coisas, o que é uma utopia para a noção de devir e acontecimento, e

também por destruir a posição do senso comum como portador de identidades

permanentes (Deleuze, 1969, p. 3).

As singularidades, quando se comunicam formam um acontecimento que

não pára de ser produzido e desta forma criam e transformam a história. Assim,

um acontecimento é por si só um campo problemático e problematizante, pois está

inscrito em um determinado território, formado por um conjunto de outros

acontecimentos, assim, Deleuze dirá que “não se pode falar dos acontecimentos

senão como singularidades que se desenrolam em um campo problemático e na

vizinhança das quais se organizam as soluções” (ibid., p. 59).

Um acontecimento tem uma dupla estrutura, ou seja, o momento presente

de sua efetuação, ou seja, aquele em que o acontecimento se integra a um estado

de coisas, o momento em que conseguimos apontar quando este se efetua –

campo de efetuação –; e os tempos futuro e passado do acontecimento e que

podemos somente julgá-los por meio deste presente, do ponto de vista daquele

indivíduo que o sente como acontecimento, como produtor de sentido, mas que

por outro lado estes tempos também afastam todo presente –campo de contra-

efetuação, pois se isto não ocorresse o acontecimento não seria livre produtor de

sentido, mas totalmente neutro, impessoal. Assim, podemos dizer que “(...) não há

outro presente além daquele do instante móvel que o represente, sempre

desdobrado em passado-futuro (...)” (Ibid., p. 154). Logo, por um lado um

acontecimento se cumpre, mas pelo outro ele não pode se realizar – efetuação e

contra-efetuação.

A partir desta dupla estrutura do acontecimento Deleuze estabelece duas

dimensões que afetariam o individuo: na primeira o indivíduo acreditaria que a sua

vida seria muito fraca por que escapa em um ponto presente; na segunda o

indivíduo acreditaria ser muito fraco para a vida, pois a vida seria muito grande

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para ele, repleta de múltiplos sentidos, de singularidades que pareceriam não ter

relação com ele, sem um momento determinável como presente (ibid)

Vamos voltar à base do pensamento do Estoicismo. Deleuze afirma que a

moral Estóica pertence ao acontecimento. Isto significa que os Estóicos queriam o

que acontecia enquanto acontecia, o que difere de querer no acontecer. Eles

defendiam as possibilidades que algo tinha para acontecer, o que se chamava de

presente cósmico. Uma vez que isto ocorria, deixava-se de lado tudo o que tinha

para acontecer, ou seja, a efetuação de algo limitava o não acontecer (ibid.,

p.145). Podemos ilustrar com a seguinte passagem: “Torna-te homem de tuas

próprias infelicidades, aprende a encarar tua perfeição e teu brilho” (Bousuet, 1950

p. 152 op cit. Nelli et Alquié et Deleuze, 1969 p. 151). Um acontecimento assim,

sempre teria uma quase causa. Desta forma os Estóicos afirmavam

incondicionalmente os acontecimentos, não era necessário um motivo para estes.

Por esta razão Nietsche chamava esta afirmação do acontecimento puro, aquele

ainda não efetuado, como vontade Estóica.

Deleuze se aprofunda nesta vontade Estóica do acontecimento afirmando

que esta é que nos transforma em acontecimentos. São os acontecimentos os

produtores das nossas superfícies e das nossas dobras com o coletivo. Desta

maneira o acontecimento se manifesta em nós como incorporal, ou seja, como

produtor de sentido, e é neste onde se encontra o seu encantamento. O

acontecimento não é o que acontece, ele é no que acontece, o seu sentido

singular. Deleuze apresenta três determinações em torno da vontade do

acontecimento: este deve ser o que deve ser compreendido, o que deve ser

querido e o que deve ser representado no que acontece, ou seja, se tornar corpo.

O acontecimento se situa numa dimensão que está muito além de qualquer

dicotomia. Não há assim, acontecimentos universais e particulares, tudo é

singular, portanto um acontecimento abrange ao mesmo tempo múltiplos

aspectos. Ele pertence ao mundo. O acontecimento está em um nível tão profundo

de nossa existência que Deleuze afirma que “(...) tudo estava no lugar nos

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acontecimentos de minha vida antes que eu os fizesse meus; e vivê-los é me ver

tentado a me igualar a eles como se eles não devessem ter senão de mim o que

eles tem de melhor e de perfeito” (ibid.,p.151).

A partir do exposto neste capítulo podemos concluir que a perspectiva

genealógica está aliada a noção de acontecimento e esta a primeira, na medida

em que a genealogia afirma a existência do acontecimento como efeito do

combate das forças, enquanto que a noção de acontecimento está inserida na

perspectiva genealógica, na medida em que o acontecimento é produtor de

sentidos múltiplos e transformáveis ao longo do tempo, sendo produzido em um

campo de emergência, em um campo problematizante, em um campo de

efetuação e contra efetuação, ou ainda, efeito do embate de forças produzido pelo

acaso. Assim, a noção de acontecimento e a perspectiva genealógica são

complementares, aliadas entre si, produzindo um novo ponto de vista de como a

história é produzida. As diversas formas de falar sobre a noção de acontecimento

citadas neste capítulo através dos autores referenciados ampliam o nosso campo

de sentido e pesquisa deste conceito. Deleuze foca o acontecimento em sua

essência como uma série de devires, modos que estão em constituição a partir do

agenciamento, das relações de acontecimentos; Foucault, a partir de Nietzsche

foca o acontecimento como o efeito de uma batalha, como a violência das forças

de qualidades e quantidades diferentes cujo acaso é a condição para possibilitar

este embate; e Veyne acredita que o acontecimento é uma série de eventos que

compõem o devir da humanidade, do mundo e da história. Deleuze assim, se

dedicará em suas pesquisas em como se agenciou os acontecimentos; Foucault

investigará como se formaram, como foi a emergência destes acontecimentos; e

Veyne, como Foucault, se deterá na especificidade de cada acontecimento e nos

diversos sentidos que podem ser produzidos. Desta forma, emergência,

agenciamentos e séries são idéias estreitamente ligadas, senão, formas diversas

de falar de um mesmo assunto: a construção do acontecimento histórico sempre

em uma perspectiva genealógica.

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CAPÍTULO V – CONTRIBUIÇÕES DOS CONCEITOS DA

PESPECTIVA GENEALÓGICA E ACONTECIMENTO

HISTÓRICO Á TERAPIA DE FAMÍLIA

O profissional que trabalha com terapia de família e que descobre a

possibilidade de atuar com a perspectiva genealógica, e conseqüentemente, com

a noção de acontecimento histórico, na medida em que se aprofunda nestes

estudos, apreciando estes pontos de vista, inevitavelmente leva para a sua prática

estes conceitos no trabalho com as famílias.

Este profissional se depara com o surgimento de mudanças complexas,

dentre elas: a necessidade de reformulação de sua percepção, de sua postura

como terapeuta, a reformulação do olhar sobre a família que está acolhendo, bem

como de sua prática e dos modos de intervenções possíveis; transformações

estas que se darão a partir da adoção do conteúdo do pensamento genealógico e

do conceito de acontecimento histórico, como linhas norteadoras de seu trabalho.

Nortear-se pelo pensamento genealógico exigirá que o profissional

abandone a idéia de que existem modelos universais, ou seja, de que só há uma

família real, enquadrada em um modelo ideal, um modelo acreditado como

absoluto, certo e verdadeiro do que seja a família. O modelo ideativado pode ser

baseado no que aprendemos como sujeitos, ou através de nossas vivências, ou

por meio de uma linha teórica. Tal pensamento seria reducionista diante da

riqueza das possibilidades de ser e estar no mundo. A idéia de família ideal

implica uma prática de enquadramento de uma dada família colocada sob esta

ótica. Adotando a perspectiva genealógica o terapeuta saberá que aquele grupo

de pessoas diante dele, demandando sua ajuda e seu cuidado é sim “uma família”

e não “a família”, á medida em que o profissional afirme uma positividade neste

modo de ser família, com suas singularidades, peculiaridades inerentes e próprias

daquele grupo. Interessar-se em saber como aquela família foi produzida, quais as

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condições que permitiram tal arranjo, além de todo o processo, ou de todas as

forças, ou de toda a rede de acontecimentos, o mais ínfimos que pareçam, que

destruíram e criaram sentidos no interior dela, é fundamental. É um trabalho de

dedicação, de se dispor a estar diante de algo totalmente novo e respeitá-lo em

sua vitalidade. Não há nenhuma família igual áquela e o terapeuta deverá lidar

com o modo de ser possível daquela família, sem preconceitos, sem técnicas

exteriores que estejam fora do contexto deles. Este é o primeiro ponto de partida

para que o profissional consiga trabalhar com a terapia de família no ponto de

vista genealógico e de acontecimento. Isto por si só já implica em uma completa

mudança teórica/técnica de seu posicionamento diante daquele que pede auxílio a

seu trabalho.

Outrossim, admitimos que não haja uma neutralidade total no trabalho com

as famílias. O terapeuta quanto mais ciente disto, mais poderá fazer um trabalho

que leve em conta esta singularidade família, de modo que deverá estar sempre

atento em relação, a suas ideativações, diante dos conceitos da família que se

apresenta. A neutralidade não existe, na medida em que o terapeuta não pode se

despojar totalmente do que lhe constitui como sujeito. Isto não o fará se aproximar

de uma verdade universal em questão, mas somente abolir as verdades

particulares desta família. Para tanto é necessário termos como ferramenta uma

sensibilidade que nos permita saber até que ponto repreendemos a família que

está diante de nós. Não o façamos sem estudarmos amiúde os pensadores que

conceitualizaram a genealogia e o acontecimento como perspectivas alternativas

de conceber a vida. Além do estudo, é muito importante e construtivo termos o

auxílio de uma supervisão para que possamos ampliar nossas mentes, nossos

sentidos, ou até mesmo um grupo de estudo com profissionais, grupo de pessoas,

que estejam afim de conhecer se aprofundar nestas questões ou até mesmo

observar no próprio coletivo a riqueza da vida diante de nós. Isto nos permitirá

construir e ampliar sempre novos sentidos possível de ser nesta vida, ou indo

mais além, afirmarmos a vida em sua total capacidade de ser, em suas

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multicoloridas formas, em suas facetas, em suas diversidades. Entrarmos em

contato com uma família que nunca vimos, que talvez não corresponda ao que

acreditávamos ser o único sentido possível de ser família não será um limite ou

um impedimento para o nosso trabalho, mas sim, um desafio, um convite a

desvendarmos as singularidades daquela família a ser acolhida e afirmar a

capacidade do devir dos sentidos no mundo.

O processo e a dinâmica da terapia também assumirão outro patamar. A

terapia não terá intrinsecamente um caráter evolutivo, um objetivo ideal

predeterminado pelo terapeuta. Pelo contrário, é a família que conduzirá o

processo como ela pode, é ela que dirá o que pode ser feito, os seus limites, as

suas construções de sentidos para seus conflitos na sua dinâmica interna.A

família não sai de um estágio “menor” para um estágio maior, mais evoluída, pois

quando falamos de evolução, entendemos que o que havia antes era inferior. O

terapeuta precisa respeitar o caminhar deste processo e estimular a construção de

novos sentidos e não para a família, levando em conta as particularidades desta.

Podemos apontar, mas especificamente, uma abordagem dentro da terapia

de família, que se assemelha, de certa maneira, a essas perspectivas,

principalmente, a genealógica: A Terapia Familiar Sistêmica. Esta abordagem no

trabalho com famílias está orientada pelo paradigma sistêmico, ou seja, uma nova

proposta de paradigma que critica radicalmente o paradigma tradicional da

ciência, ou a perspectiva metafísica.

O paradigma sistêmico se fundamenta em diversos acontecimentos da

história das ciências, dentre eles, a física quântica e a teoria da relatividade de

Einstein, que rompe com a idéia de uma única realidade absoluta, e por tanto

múltiplos sentidos possíveis, dependendo da natureza, de diversas condições

daquele que a observa. Conseqüentemente, nega a neutralidade da ciência

afirmando a intersubjetividade como condição de construção do conhecimento.

Além destas bases do pensamento sistêmico, há a crença na complexidade em

todos os níveis da natureza, ou seja, há uma rede de acontecimentos que se

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arranjam de determinadas formas para compor isto o que vemos como

aparentemente simples. Tudo é relação, nada é absoluto. A crença na

instabilidade do mundo, ou seja, o mundo sempre estando em processo de tornar-

se, ou seja, afirmando o devir deste, e conseqüentemente a impossibilidade de

prever e controlar são outras características marcantes deste paradigma. O

mundo não caminha para um sentido universal, eterno e absoluto: a sua dinâmica

se constrói a cada dia a cada contexto. O próprio paradigma sistêmico convoca

também para uma reformulação da ética do cientista, pois a proporção que ele

concebe estas crenças, inevitavelmente modifica todo o seu repertório destas, o

seu modo de estar e perceber o mundo: é uma mudança radical na percepção de

si, dos outros e do mundo.Logo a transformação sugerida no paradigma sistêmico

está muito além da prática profissional, ela passa pelo modo de estar diante da

própria existência.

Assim, é possível adotarmos no trabalho da terapia de família uma postura

genealógica que considere a noção do acontecimento, do devir e do tornar-se. Na

verdade ela já existe, já está inserida de certa forma, dentre outras contribuições,

na Terapia Familiar Sistêmica.

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CONCLUSÃO De acordo com a fundamentação teórica apresentada acerca da

perspectiva genealógica e da noção de acontecimento histórico, pontos de vista

sobre um novo modo de analisar a história e os próprios conceitos e valores como

portadores de sentido histórico, concluímos que o nosso problema, ou seja, ser

possível analisar a família na Grécia Antiga como a construção de um modo de

ser, de conceitos e de sentidos produzidos no contexto da época envolvendo

diversos eventos, foi conquistada.

É possível analisarmos a família na Grécia Antiga como a construção de um

sentido de família que envolve, e não poderia deixar de ser o contrário, uma série,

uma rede de acontecimentos, ou de eventos, como o próprio modo de

organização da sociedade em questão, o forte valor da influência dos deuses na

vida desta civilização, além de toda a rede de valores, que compõem o modo

singular de família da época, como o que os gregos entendiam como ser criança,

homem, mulher, as relações pedagógicas homoeróticas, o casamento e as

relações extraconjugais. Se analisarmos apenas um destes acontecimentos e nos

basearmos nele para afirmar deterministicamente como era “a” família na Grécia

Antiga, estaríamos caindo em um erro típico da história tradicional que se apega a

idéias únicas, modelos universais, extremamente reduzidos, que não obedecem a

organização e o devir dos acontecimentos das condições de possibilidades

formadas na época.

Assim, conceber a família na Grécia Antiga é antes de tudo, permitir

adentrarmos ao complexo quotidiano deste povo. Podemos até mesmo, e é

inevitável, compararmos com o nosso valor e sentido pessoal de família, mas

nunca reduzirmos o sentido de família na Grécia Antiga, ao encaixarmos o nosso

modo de ver ao deles. A História seria muito pobre se agíssemos desta

forma.Vamos retirar o lugar da evidência deste sentido/conceito e buscar como se

deu a sua singular construção, a emergência deste modo de ser, sendo ao mesmo

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105

tempo, produto e produtora de outros modos de viver, de agir, de pensar e de se

portar no mundo.

Entendemos também que são possíveis a perspectiva genealógica e a

noção de acontecimento histórico serem ferramentas para refletirmos a

prática/técnica da terapia de família. Estes conceitos podem ser integrantes da

prática em terapia de família, já havendo até algumas linhas deste trabalho que

adotam este pensamento.

Se seguirmos o pensamento oferecido pelas perspectivas teóricas

desenvolvidas neste trabalho, lembraremos que o nosso conhecimento é sempre

parcial, pois outras relações serão estabelecidas, e outras perspectivas e valores

nos serão apresentados. Não lidaremos com um conhecimento absoluto, mas

sempre com a relatividade dele e a possibilidade de vir-a-ser.

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_________Segunda série de paradoxos: dos efeitos de superfície In: A lógica do

sentido, tradução de Luiz Roberto Salinas Fontes, Título original: Logique du sens,

1969, Editora les Éditions de minuit, Editora Perspectiva e Editora Universidade de

São Paulo, 1974, 342p

________ Terceira série de paradoxos: da preposição In: A lógica do sentido,

tradução de Luiz Roberto Salinas Fontes, Título original: Logique du sens, 1969,

Editora les Éditions de minuit, Editora Perspectiva e Editora Universidade de São

Paulo, 1974, 342p

________Nona série de paradoxos: A problemática In: A lógica do sentido,

tradução de Luiz Roberto Salinas Fontes, Título original: Logique du sens, 1969,

Editora les Éditions de minuit, Editora Perspectiva e Editora Universidade de São

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_________Vigésima série de paradoxos: sobre o problema da moral Estóica In: A

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Logique du sens, 1969, Editora les Éditions de minuit, Editora Perspectiva e

Editora Universidade de São Paulo, 1974, 342p

__________Vigésima primeira série de paradoxos: do acontecimento In: : A lógica

do sentido, tradução de Luiz Roberto Salinas Fontes, Título original: Logique du

sens, 1969, Editora les Éditions de minuit, Editora Perspectiva e Editora

Universidade de São Paulo, 1974, 342p

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__________. Introdução In: _______ Os gregos Antigos, tradução de Artur

Mourão, Coleção Lugar na história, Título original Les Grecques Antiqués, Ed 70,

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_________. A Grécia Arcaica In: ________ Os gregos Antigos, tradução de Artur

Mourão, Coleção Lugar na história, Título original Les Grecques Antiqués, Ed 70,

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__________. A Cidade Estado Clássica In: _______ Os gregos Antigos, tradução

de Artur Mourão, Coleção Lugar na história, Título original Les Grecques Antiqués,

Ed 70, Portugal,2002, 178p Cap. 4 p. 47-63

________. Ciência, filosofia e moral populares In:_______ Os gregos Antigos,

tradução de Artur Mourão, Coleção Lugar na história, Título original Les Grecques

Antiqués, Ed 70, Portugal,2002, 178p Cap. 6 p. 120-139

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_________.Primeira Conferência, In:_________A verdade e as formas jurídicas

Tradução de Roberto Cabral de melo Machado e Eduardo Jardim Morais Título

original La vérité et les formes juridiques, 1973, Rio de Janeiro, 3ª edição, Editora

Nau, 2005. 158 p Cap.1 7-28

__________Segunda Conferência In:_________A verdade e as formas jurídicas

Tradução de Roberto Cabral de melo Machado e Eduardo Jardim Morais Título

original La vérité et les formes juridiques, 1973, Rio de Janeiro, 3ª edição, Editora

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_________Introdução: Por uma genealogia do poder In:_________ Microfísica do

poder, tradução de Roberto Machado,. Título original: Microfisique du pouvoir,

1979, Rio de Janeiro, Editora Graal, 2009, 295 p

________Nietzsche, a genealogia e a história In: :_________ Microfísica do poder,

tradução de Roberto Machado,. Título original: Microfisique du pouvoir, 1979, Rio

de Janeiro, Editora Graal, 2009, 295 p Cap.3 15-37

_______Verdade e poder In:_________ Microfísica do poder, tradução de Roberto

Machado,. Título original: Microfisique du pouvoir, 1979, Rio de Janeiro, Editora

Graal, 2009, 295 p Cap.1 1-14

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110

________Genealogia e poder In:_______ Microfísica do poder, tradução de

Roberto Machado,. Título original: Microfisique du pouvoir, 1979, Rio de Janeiro,

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_________. Introdução In: _________ A cidade Grega, tradução de Henrique de

Araújo Mesquita e Roberto Cortes Lacerda, Título Original La cite Grecque, Rio de

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Vilar de Figueiredo, Título original L´Uomo Greco Editorial Presença, Lisboa, 1994,

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VEYNE, P Como se escreve a história, Tradução de Alda Baltazar e Maria

Auxiliadora Kneipp, Título original: Comment on écrit l´histoire, 1982, Editora UNB,

Brasília, 2008, 285p

_______Apenas uma narrativa verídica. In:_______ Como se escreve a história,

Tradução de Alda Baltazar e Maria Auxiliadora Kneipp, Título original: Comment

on écrit l´histoire, 1982, Editora UNB, Brasília, 2008, 285p Cap.1 17-24

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________Tudo é histórico, logo a história não existe In:_______ Como se escreve

a história, Tradução de Alda Baltazar e Maria Auxiliadora Kneipp, Título original:

Comment on écrit l´histoire, 1982, Editora UNB, Brasília, 2008, 285p Cap.2 25-41

________Nem fatos, nem geometral, mas tramas In: Como se escreve a história,

Tradução de Alda Baltazar e Maria Auxiliadora Kneipp, Título original: Comment

on écrit l´histoire, 1982, Editora UNB, Brasília, 2008, 285p Cap. 3 41-50

_______ Compreender a trama In: _______Como se escreve a história, Tradução

de Alda Baltazar e Maria Auxiliadora Kneipp, Título original: Comment on écrit

l´histoire, 1982, Editora UNB, Brasília, 2008, 285p Cap 6 81-96

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WEBGRAFIA:

VILAR, L,V casamento e descendência na Grécia Antiga, encontrado no site

www.ampulhetta.org/textos/casamento_grecia.pdf , acessado em setembro de

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Wikipédia, a enciclopédia livre,

http://pt.wikipedia.org/wiki/Gr%C3%A9cia_Antiga, acessado em dezembro de

2009

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ANEXO 1

A pólis Grega

Fonte: http://www.dialogocomosfilosofos.com.br/

A pólis Grega

Fonte: http://roberas.blogspot.com/

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ANEXO 2

Zeus

Fonte:www.tawakan.com.

Deméter

Fonte:http://elore.com/Portugues/misterios.htm

Hera

Fonte: http://images.elfwood.com

Atena

Fonte:www.portalsaofrancisco.com.br

Poseidon

Fonte: http://www.mlahanas.de

Héstia

Fonte:artesanatoecozinha.blogspot.com.br

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Perséfone

Fonte: http://vidaliteraria.zip.net

Dionísio

Fonte: convesademenina.wordpress.com

Hermes

Fonte: www.filosofix.com.br

Apollo

Fonte:www.medilac.net

Hefeso

Fonte:esoterismo-kiber.blogs.sapo.pt

Artemis

Fonte: tirocomarcozalt.blogspot.com

Ares

Fonte: http://artesantigas.com

Hades

http://virtualiaomanifesto.blogspot.c

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO 9

CAPITULO I 12

O MODO SINGULAR DA ESTRUTURAÇÃO DA SOCIEDADE GREGA ANTIGA 1.1 Os primeiros gregos 13

1.2 A pólis Grega 16 1.3 A distribuição das classes sociais 18 1.4 A concepção de mundo e a lei ordenadora da vida 20

CAPÍTULO II 25

O MUNDO IMORTAL: O MUNDO GREGO ANTIGO GOVERNADO POR DEUSES

2.1 A dimensão do sagrado e o culto aos deuses 26

2.2 O mito e a mitologia 31

2.3 A Comunicação entre homens e deuses 36 2.3.1 Os sacerdotes 38 2.3.2 Os adivinhos 40 2.3.3 Os médicos 41

2.4 Os mistérios e as seitas de caráter “marginal” 43

CAPÍTULO III 47

A COMPLEXIDADE DO SER FAMÍLIA NA GRÉCIA ANTIGA

3.1 A vida doméstica nas artes 48 3.2 Ser criança 50 3.3 Ser homem: uma questão de cidadania 56

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3.4 As relações homoeróticas 59 3.5 Ser mulher: a condição para a propagação dos herdeiros da pólis 63 3.6 O casamento e a os relacionamentos extraconjugais 68

CAPÍTULO IV 75

A PESRPECTIVA GENEALÓGICA E A NOÇÃO DE ACONTECIMENTO

HISTÓRICO

4.1 A doutrina das idéias e das Cópias 75

4.2 A concepção metafísica 76

4.3 A teoria das forças de Nietzsche 78

4.4 A perspectiva genealógica 85

4.5 A noção de acontecimento histórico 91

CAPÍTULO V 100

CONTRIBUIÇÕES DOS CONCEITOS DA PERSPECTIVA GENEALÓGICA E

ACONTECIMENTO HISTÓRICO Á TERAPIA DE FAMÍLIA

CONCLUSÃO 104

BIBLIOGRAFIA 106

WEBGRAFIA 114

ANEXOS 115

ÍNDICE 118