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Nomos: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC 301 A CONSTRUÇÃO DO DIREITO À COMUNICAÇÃO NA AMÉRICA LATINA NA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XXI Renata Ribeiro Rolim Resumo Na primeira década do século XXI, a temática do direito à comunicação ganhou impulso na América Latina com a adoção de políticas públicas de comunicação e cultura tendentes a desconcentrar o espaço midiático e fomentar novas vozes. O exemplo mais emblemático ocorreu na Argentina, país pioneiro na formulação de novo marco regulatório que adotou as diretrizes do direito à comunicação como princípio organizativo de seu espaço midiático. Este trabalho analisa as alterações promovidas nessa legislação a partir do processo político que lhe deu causa com o objetivo de compreender as perspectivas, limites e desafios para a positivação do direito à comunicação. Palavras-chave Democracia. Liberdade de imprensa. Direito à comunicação. Resumen En la primera década del siglo XXI, el tema del derecho a la comunicación en América Latina cobró impulso con la adopción de políticas públicas de comunicación y cultura destinadas a descentralizar el espacio midiático y fomentar nuevas voces. El mejor ejemplo ocurrió en Argentina, país pionero en la formulación del nuevo marco regulador que ha adoptado las directrices del derecho a la comunicación como principio organizador de su espacio midiático. Este artículo analiza los cambios introducidos en la legislación desde el proceso político que le dio causa con el objetivo de comprender las perspectivas, desafíos y límites a la positivación del derecho a la comunicación. Palabras clave Democracia. Libertad de la prensa. Derecho a la comunicación. 1. INTRODUÇÃO Na primeira década do século XXI, a temática do direito à comunica- ção ganhou novo impulso na América Latina. Na Venezuela, depois do golpe Doutora em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide, Sevilha/Es; professora da graduação e da pós-graduação em Ciências Jurídicas da UFPB; coor- denadora do grupo de pesquisa Marxismo, Direito e Lutas Sociais; colaboradora do Núcleo de Documentação dos Movimentos Sociais (NUDOC) da UFPE.

A Construção Do Direito à Comunicação Na América. Latina na Primeira década do Século XXI - Renata Rolim

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Analisa as alterações promovidas na legislação que regulamenta as mídias em países latino-americanos a partir do processo político que lhe deu causacom o objetivo de compreender as perspectivas, limites e desafios para a positivação do direito àcomunicação.

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  • Nomos: Revista do Programa de Ps-Graduao em Direito da UFC 301

    A CONSTRUO DO DIREITO COMUNICAO NAAMRICA LATINA NA PRIMEIRA DCADA DO SCULO XXI

    Renata Ribeiro Rolim

    ResumoNa primeira dcada do sculo XXI, a temtica do direito comunicao ganhou impulso

    na Amrica Latina com a adoo de polticas pblicas de comunicao e cultura tendentes adesconcentrar o espao miditico e fomentar novas vozes. O exemplo mais emblemtico ocorreuna Argentina, pas pioneiro na formulao de novo marco regulatrio que adotou as diretrizesdo direito comunicao como princpio organizativo de seu espao miditico. Este trabalhoanalisa as alteraes promovidas nessa legislao a partir do processo poltico que lhe deu causacom o objetivo de compreender as perspectivas, limites e desafios para a positivao do direito comunicao.

    Palavras-chaveDemocracia. Liberdade de imprensa. Direito comunicao.ResumenEn la primera dcada del siglo XXI, el tema del derecho a la comunicacin en Amrica

    Latina cobr impulso con la adopcin de polticas pblicas de comunicacin y cultura destinadasa descentralizar el espacio miditico y fomentar nuevas voces. El mejor ejemplo ocurri enArgentina, pas pionero en la formulacin del nuevo marco regulador que ha adoptado lasdirectrices del derecho a la comunicacin como principio organizador de su espacio miditico.Este artculo analiza los cambios introducidos en la legislacin desde el proceso poltico que ledio causa con el objetivo de comprender las perspectivas, desafos y lmites a la positivacin delderecho a la comunicacin.

    Palabras claveDemocracia. Libertad de la prensa. Derecho a la comunicacin.

    1. INTRODUONa primeira dcada do sculo XXI, a temtica do direito comunica-

    o ganhou novo impulso na Amrica Latina. Na Venezuela, depois do golpe

    Doutora em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide,Sevilha/Es; professora da graduao e da ps-graduao em Cincias Jurdicas da UFPB; coor-denadora do grupo de pesquisa Marxismo, Direito e Lutas Sociais; colaboradora do Ncleo deDocumentao dos Movimentos Sociais (NUDOC) da UFPE.

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    de 2002, Hugo Chvez vem implementando programas de incentivo s r-dios e TVs comunitrias, que acabou se configurando no Sistema Nacional deMeios Alternativos e Comunitrios. Desde seu primeiro mandato (2005/2009),Evo Morales, presidente da Bolvia, fomenta rdios comunitrias com isenodo pagamento pelo licenciamento e uso das frequncias, doao de equipa-mentos para organizaes de camponeses e povos originrios e criao derede nacional. No Uruguai, em 2007, Tabar Vzquez conseguiu aprovar noSenado lei que retirou da definio de rdio comunitria a cobertura geogr-fica restrita.

    Em 2005, foi criada a TELESUR, empresa pblica multiestatal que con-ta com o apoio de Argentina, Bolvia, Cuba, Equador, Nicargua e Venezuela,com o objetivo de contribuir com o processo de integrao dos povos latino-americanos. Em 2008, o presidente do Equador, Rafael Correa, realizou audi-toria das licenas de rdio e TV com o objetivo de detectar presena de oli-goplios, diretos e indiretos, bem como averiguar investimentos de institui-es financeiras internacionais nesse setor, prticas pela nova Constituio.Um ano antes, Correa havia implantado o canal ECUADOR TV, a primeiraemissora estatal da histria do pas. Em 2007, Lus Incio Lula da Silva criou aEmpresa Brasileira de Comunicao (EBC), com a finalidade de fortalecer osistema pblico de comunicao a partir da gesto dos canais TV Brasil, TVBrasil Internacional, Agncia Brasil, Radioagncia Nacional e do sistema p-blico de rdio. Na Argentina, em 2007, Kirchner lanou o CANALENCUENTRO, emissora que veicula contedos pedaggicos e cientficosfeitos no pas, na regio e por outros canais pblicos europeus.

    Exemplos como esses podem ser multiplicados e no se restringem aoapoio aos meios sem fins lucrativos e reconfigurao do servio pblico deradiodifuso; abrangem tambm contedos, como o incentivo produocultural independente e estmulo indstria audiovisual nacional.1 As mu-danas convergentes nas polticas de comunicao e cultura se explicam porelemento comum que unem essas iniciativas: chegaram aos governos dessespases foras polticas que propuseram agenda oposta, de muitas maneiras eem graus diferentes,2 ao que vinha sendo adotado pelo menos desde meadosda dcada de 1970 no Chile e que, posteriormente, tomou o continente.

    1 MORAES, Dnis de. A batalha da mdia: governos progressistas e polticas de comunicaona Amrica Latina e outros ensaios. Rio de Janeiro: Po e Rosas, 2009, p. 98-229.

    2 Autores como Michel Lwy (2007) e Boaventura de Sousa Santos (2008) identificam trs blocosde governo na Amrica Latina, que se distinguem entre si em razo da estrutura socioecon-mica de cada pas e das alianas polticas que interferem na prtica governamental: o primeirobloco se articula em torno da Alternativa Bolivariana das Amricas (ALBA) e formado pelaVenezuela, Cuba, Bolvia e Nicargua; o segundo compe atualmente o MERCOSUR e contacom Brasil, Argentina e Chile e, por fim o que se perfila com a ALCA, hoje representada pelaColmbia.

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    certo que tal oposio fez com que os governos eleitos, a partir da ca-talisao do descontentamento popular, entrassem em choque com os setoresbeneficiados pelas polticas neoliberais que, entrincheirados nos meios decomunicao privados, passaram a invocar a liberdade de imprensa para secontrapor ao direito comunicao enquanto princpio organizativo do es-pao miditico. O caso da Argentina o mais emblemtico: ao ser o primeiropas a definir novo marco regulatrio da comunicao que incorporou muitasdiretrizes daquele princpio, acabou se definindo como referncia para odebate terico e para os que lutam pela democratizao da comunicao naregio.

    Nesse sentido, este trabalho analisa as principais alteraes realizadasna legislao argentina a partir de estudo da organizao de seu espao mi-ditico e da conjuntura poltica que possibilitou tal aprovao. Sem deixar deconsiderar as profundas diferenas que existem entre os pases latino-americanos no que diz respeito s estruturas socioeconmica e articulaesdas foras polticas, tal abordagem pretende compreender os desafios, pers-pectivas e limites que se colocam para a positivao do direito comunica-o. E, para contextualizar essa discusso, parte dos contornos conceituaisdesse direito que, pelo menos desde a dcada de 1960, vm se desenhandona Amrica Latina e em outras partes do mundo.

    2. CAMINHOS E ENCRUZILHADAS DA DEFINIO DO DIREITO COMUNICAO

    2.1. NOMIC: impasse na arena internacionalNa dcada de 1970, em meio Guerra Fria, era difcil romper com a vi-

    so geopoltica que dividia o globo em duas ideologias inconciliveis, pormo debate sobre o fluxo transfronteiras de informao conseguiu revelar apresena de um grupo de pases chamados No Alinhados3 que, apesarde heterogneos, tinham interesses e preocupaes no redutveis aos dosdois grandes blocos em disputa. O desenvolvimento e o controle dos satlitesde difuso direta nas mos dos Estados Unidos fizeram aumentar os temoresda influncia econmica, poltica e cultural sobre a antiga Unio Sovitica,que passou a se apoiar no princpio da soberania nacional para tentar barraresse processo, e sobre os Pases No Alinhados, que, na esteira da Nova

    3 O Movimento dos Pases No Alinhados (MPNA) uma associao de pases que se originouna Conferncia sia/frica, realizada em Bandung, Indonsia, em 1955. Seus principais temasso as lutas nacionais pela independncia e combate pobreza, alm de se oporem ao imperi-alismo e ao neocolonialismo. Entre os pases da Amrica Latina que compem o MPNA estoCuba e Colmbia. O Brasil no integra essa associao, mas participa como observador.

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    Ordem Econmica Internacional, se apressaram em se organizar em tornoda Nova Ordem Mundial da Informao e da Comunicao (NOMIC).4

    poca ficava cada vez mais claro que a informao5 participa decisi-vamente do processo de produo da riqueza, cuja insuficincia poderiatanto comprometer o desenvolvimento econmico como tornar vulnerveispoltica e militarmente os pases que se descuidassem dos investimentos nasinfraestruturas de telecomunicao. De fato, Estados Unidos, Japo e Alema-nha, mas sobretudo o primeiro, no s fabricavam os dispositivos tcnicoscomo tambm os alimentavam e os controlavam amparados no modelo dofree flow of information, verso informacional da livre circulao de capitais.Alm disso, as estratgias de desenvolvimento estimuladas pela lgica deindustrializao internacional e incorporadas por parte desses pases nosanos 1950 e 1960 revelavam que a noo de progresso que a embasavam, as-sentada no binmio tradicional/moderno, negava a mudana social por meiode processo endgeno e autodependente.6

    Na esteira dessas constataes e crticas, os Pases No Alinhados for-mularam o modelo da self realiance que, por definio, atribui informaopapel que transborda a rea estritamente econmica, demonstrando a neces-sidade de mobilizar todos os aspectos da vida social. Diferentemente do freeflow of information, o campo cultural no mais considerado setor onde seaplicam tcnicas para a conquista e ampliao de mercados, mas terreno departicipao poltica. Por isso, aos meios de comunicao no caberia serpropagadores da boa nova, de um padro de consumo assimilvel pelas tcni-cas de publicidade, mas canais de expresso que favorecem a participao dapopulao nos esforos de mudana social. E, a partir dessas diretrizes, afuno do Estado definida pela adoo e aplicao de polticas pblicas decomunicao e de cultura que propiciem tal participao com aes que con-cretizem desde a universalizao da educao e da cultura repartio de-mocrtica das frequncias radioeltricas.

    No difcil localizar as fontes do modelo da self realiance. Durante asdcadas de 1960 e 1970, em vrios pases africanos, asiticos e latino-americanos, vicejavam experincias de comunicao popular, que tinhamimportante referncia terico-poltica nas contribuies do pedagogo brasi- 4 SCHMUCLER, Hctor.Memoria de la comunicacin. Buenos Aires: Biblos, 1997, p. 257-265.5 A construo poltica da sada da crise estrutural da dcada de 1970 elegeu a informao comopiv. Considerada matria prima essencial da indstria, deveria tambm preparar mentes eespritos para a reestruturao produtiva que possibilitaria a continuidade da acumulao ca-pitalista em escala mais ampliada. Da que palavras como cultura, educao, informao factual,conhecimento, saber, saber-fazer, etc. foram arrastadas para o domnio da informao, dificultandomuitas vezes a identificao dos temas tratados. Rtulos, como Sociedade da Informao e Socie-dade do Conhecimento, corroboram a diluio dos sentidos daquelas palavras e no contribuempara o avano das investigaes e dos debates.

    6 MATTELART, Armand. Comunicao-mundo: histria das ideias e das estratgias. 3. ed.Petrpolis: Vozes, 1999, p. 170-175.

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    leiro Paulo Freire. Em texto no qual contrape explicitamente comunicao eextenso, Freire7 insistia na necessidade de resgate do dilogo relao noautoritria na qual os sujeitos intercambiam os papeis de educador e edu-cando para verdadeira prtica social libertadora. Demais disso, a self realian-ce tambm pde se apropriar da contribuio das rdios livres europeias quequestionavam o centralismo e a ausncia de pluralidade engendrados peloento anacrnico monoplio estatal da radiodifuso.

    Assim, apesar de compreender que, tanto no espao nacional quantono internacional, os fluxos de informao so de mo nica, a self realiance nose limitou a reivindicar nova repartio da ordem estabelecida, baseada emndices quantitativos de circulao de mensagens. O conceito de direito comunicao que emerge desse modelo se debrua sobre aspectos qualitativos,evidenciando a necessidade da emergncia de novos protagonistas, cujasdemandas, coletivas e individuais, foram historicamente interditadas pelossistemas de comunicao que se orientam pelas lgicas mercantil e instituci-onal dominantes.

    Coube UNESCO tentar dissipar os choques entre o princpio da so-berania nacional, o free flow of information e a self realiance. No entanto, a Co-misso MacBride, na qual foi elaborada o famoso relatrio Un slo mundo,voces multiples: comunicacin e informacin en nuestro tiempo,8 no s revelou afratura intransponvel entre os Pases No Alinhados e os centrais, comodeixou claro que certos pases do ento chamado Terceiro Mundo, como oBrasil, estavam mais interessados em proteger e garantir posio privilegiadana diviso internacional do trabalho nos mercados militar e cultural9 quefundar nova ordem internacional. Diante do impasse, e com o relatrio apon-tando a necessidade de democratizao do processo comunicacional intra eextra muros, Estados Unidos e Reino Unido se retiraram da UNESCO sobprotestos de desrespeito liberdade de informao e politizao dos debates,enquanto a Unio Sovitica manteve-se fiel ao princpio da soberania nacio-nal como recusa implcita para enfrentar a questo da censura poltica.

    No entanto, a NOMIC foi mesmo gradualmente abandonada medi-da que as polticas neoliberais foram ganhando espao nas agendas polticasdos pases e nos organismos internacionais mais tcnicos, como a Unio Inter-nacional das Telecomunicaes (UIT) e a Organizao Mundial do Comrcio 7 FREIRE, Paulo. Extenso ou comunicao? 10. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.8 MACBRIDE, Sean. Un slo mundo, voces multiples: comunicacin e informacin en nuestrotiempo. 2. ed. Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1988.

    9 Fazia parte das pretenses dos governos do perodo da ditadura brasileira (1964/1985) cons-truir computador nacional para fins militares e, futuramente, econmicos. Demais disso, adoutrina da Segurana Nacional no s se adaptou ao regime privado de produo cultural,como tambm o incentivou: o padro Globo de novelas e sries televisivas tambm era difundi-do por outros meios de comunicao, perifricos e centrais, ajudando a diminuir as chancesde expresso verdadeiramente autctone.

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    (OMC), principal organizao internacional encarregada de concretizar omodelo do free flow of information ao propor e, de certa forma tentar impor aospases perifricos, a desregulao dos meios de comunicao e do mercadode bens culturais.

    2.2. Direito comunicao e direitos comunicaoOs resultados na adoo do modelo do free flow of information foram

    devastadores. No comeo dos anos 1980, cinquenta corporaes globais do-minavam quase todos os meios de comunicao, mas hoje esse nmero foireduzido para menos de oito que, no por causalidade, representam os prin-cipais blocos de poder no mundo.10 Esse processo se iniciou com a desregula-o do setor nos Estados Unidos e se expandiu via OMC, consolidando estra-tgia de concentrao e expanso global dos grupos de mdia que, depois desucessivas modificaes nas legislaes, desestatizou as telecomunicaes,liberou a propriedade dos meios audiovisuais e habilitou investimento es-trangeiro nessas indstrias na maioria dos pases e regies.

    Nenhuma das global players de primeiro escalo, como News Corpora-tion, Viacom, Sony, Time Warner, Bertelsmann e Disney, so de origem lati-no-americana. No entanto, a integrao horizontal e vertical dos meios den-tro das fronteiras nacionais gerou conglomerados regionais que trataram deestender continuamente sua presena territorial mediante relaes estreitascom governos e vnculos com empresas transnacionais e grupos financeiros.Televisa do Mxico, Globo do Brasil, Clarn da Argentina e Cisneros da Ve-nezuela, por exemplo, no se opem expanso do mercado de mdia global,mas esto coordenados por intricados acordos societrios para minimizar osefeitos da concorrncia que, de fato, est cada vez mais reduzida.11

    A integrao entre indstrias de contedo e de distribuio em umaeconomia de escala permite diminuir os custos e, assim, ultrapassar os con-correntes na programao e nos novos suportes tecnolgicos de distribuioque se pretenda adquirir. Assim as empresas globais e regionais controlamboa parte da mdia do mundo desde a edio de livros, revistas e jornais;gravao de msica e produo de TV; emisso de TV; canais a cabo e siste-mas de televiso por satlite produo de filmes e distribuio nas salas decinema. Contudo, no obstante essa articulao, a maioria dos dividendosno fica na regio: Estados Unidos concentra 55% dos lucros mundiais gera-

    10 O caso mais paradigmtico foi a fuso da AOL-Time Warner em 2001, negcio vinte vezessuperior s maiores fuses da dcada de 1980.

    11 MCCHESNEY, Robert W. Mdia global, neoliberalismo e imperialismo. In: MORAES, Dnis de(org.). Por uma outra comunicao: mdia, mundializao cultural e poder. Rio de Janeiro: Re-cord, 2003, p. 217-242.

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    dos pelos bens culturais e comunicacionais; Unio Europeia, 25%; Japo esia, 15% e Amrica Latina, apenas 5%.12

    A ferocidade com que as empresas transnacionais, apoiadas por seuspases de origem, se lanam no mercado cultural explicada pelas cifras en-volvidas. Em 2003, esse mercado respondeu por cerca de 7% do produtointerno bruto (PIB) mundial, com movimentao financeira de 1,3 trilho dedlares.13 Esse montante equipara-se s participaes das indstrias blica epetrolfera, no entanto as atividades de criao, produo, circulao, difusoe consumo de bens culturais representam o setor mais dinmico da economiamundial, crescendo em mdia, entre as dcadas de 1990 e 2000, o dobro daeconomia geral.14 Da a importncia econmica desse setor, cujas estimativasde crescimento no foram abaladas pela crise financeira e recesso mundial,para pases como Inglaterra e Estados Unidos. De fato, neste o mercado cul-tural responde por 6% do PIB e emprega 4% da fora de trabalho, enquantonaquele representa 8,2% do PIB e ocupa 6,4% dos trabalhadores no pas.15

    O crescimento e expanso mundial do mercado cultural, alm das dis-putas que ensejam, deram-se s custas do fechamento de espaos para pro-dues simblicas cuja lgica interna no se adequa ao retorno comercialmais imediato, o que acabou por imprimir novos desafios para os sujeitosque, a partir de suas prticas e lutas cotidianas, procuram influir na atualiza-o do direito comunicao como princpio de organizao do espao midi-tico.

    As experincias de comunicao popular das dcadas de 1960 e 1970na Amrica Latina colocavam como horizonte, e possibilidade, a concretiza-o do direito comunicao a partir da criao de dispositivos de comunica-o alternativos, considerados como tais aqueles em que, em grandes linhas, apropriedade e o controle so coletivos, orientam-se pelo princpio da amplaparticipao na escolha dos temas e elaborao da programao e emitemdiscurso antiautoritrio. certo que tais diretrizes deveriam ser ajustadasconforme as caractersticas do veculo imprensa, rdio, vdeo, super 8, tea-tro etc. mas o contedo das mensagens era considerado o elemento comumdessas prticas.16 No o caso aqui de proceder ao balano dessas alternativas,basta pontuar que seu objetivo primordial consistia em criar enclaves demo- 12 CANCLINI, Nestor Garca. Los pases latinos en la esfera pblica transnacional. Revista Ob-servatrio. Dossier Economa y cultura. Buenos Aires: Secretaria de Cultura, n. 1, novembro,p. 45, 2004.

    13 PORTA, Paula. Economia da cultura: um setor estrategico para o pais. Disponivel em:. Acesso em: 20 jul. 2012.

    14 UNCTAD. World Investment Report 2004. Disponivel em: , p. 5. Acesso em: 12 jul. 2012.

    15 PORTA, Paula. Op. cit.16 GRINBERG, Mximo. A comunicao alternativa na Amrica Latina. Petrpolis: Vozes, 1987,p. 25-30.

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    crticos, lugares de certa forma puros, fora da histria e ausentes de contradi-es, desprezando, assim, as relaes de fora e a orientao hegemnica queimprimem as prticas e as formas de organizao adotadas pelos veculosmassivos.17

    Dada a dimenso que as estratgias oligoplicas e descentralizadas daempresa-rede adquiriram no contexto atual, tal perspectiva foi amplamentedescartada. Para os mltiplos sujeitos que lutam pela democratizao dacomunicao no se trata de focalizar determinado segmento do sistema,mas reformular o conjunto do espao miditico sistemas privado, pblico ecomunitrio/alternativo com a perspectiva de garantir a diversidade qualita-tiva de vozes. Em outras palavras, reivindica-se espao para as rdios comu-nitrias, que em muitos pases esto criminalizadas; controle do setor priva-do, que faz uso socialmente indevido do bem comum que o espetro radioe-ltrico, e reformulao e/ou criao do servio pblico de radiodifuso, quemuitas vezes instrumentalizado pelos governos da ocasio.

    Em 2001, a Plataforma pelos Direitos da Comunicao, grupo queaglutina organizaes no governamentais (ONG) internacionais com ativi-dades em meios de comunicao e que tem entre suas principais impulsio-nadoras a Associao Mundial para a Comunicao Crist (WACC, em in-gls), lanou a Campanha pelos Direitos da Comunicao na Sociedade daInformao (CRIS, sigla em ingls). Essa campanha mundial direcionou-separa influir na Cpula da Sociedade da Informao (CSI),18 mas tambmcolocou-se a tarefa de transbordar seus limites a partir da divulgao da te-mtica do direito comunicao e dos parmetros para sua realizao. Nessesentido, CRIS lanou em 2005 o Manual para avaliao dos direitos comunica-o, buscando traduzir para a linguagem dos direitos humanos experinciasrealizadas em pases como Filipinas, Colmbia, Qunia e Brasil.19

    Com a perspectiva de romper com a tradicional diviso dos direitoshumanos em, por um lado, direitos civis e polticos e, por outro, direitoseconmicos, sociais e culturais, o Manual se refere aos direitos comunicao,no plural, articulando-os de forma interdependente em quatro pilares: esferapblica, conhecimento, direitos civis e direitos culturais. No pilar da esferapblica esto includos liberdade de expresso e diversidade e pluralidade demeios e contedos; no conhecimento, disponibilidade de conhecimento rele- 17 Em outro texto (ROLIM, Renata Ribeiro. Direito comunicao: possibilidades, limites econtradies pra a lgica dos movimentos sociais. Recife: 8 de Maro, 2011), tive oportunidadede discorrer sobre o alternativo em comunicao e as possibilidades de incorporao de suasdemandas pelo direito positivo.

    18 A Cpula da Sociedade da Informao foi evento internacional organizado pela UIT com oobjetivo de discutir as tecnologias de informao e comunicao. Houve duas etapas: a pri-meira em 2003 em Genebra e a segunda em 2005 na Tunsia.

    19 CRIS. Manual para la evaluacin de los derechos a la comunicacin. 2005. Disponvel em:. Acesso em: 22 jun. 2012, p. 9-10.

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    vante e regime equilibrado de intercmbio com medidas e prticas de apoio;no direito civil, direito honra e privacidade e, por fim, no direitos culturais,a possibilidade de se comunicar na lngua materna e estmulo ao intercmbioe identidade cultural. O Manual ainda ressalta o direito de participar ativa-mente, em nvel nacional e internacional, da formulao e implementaodas polticas pblicas de comunicao, conhecimento e cultura como direitotransversal a todos os pilares, diferenciando os direitos comunicao domero acesso informao e comunicao.20

    Desde 2006, o direito comunicao ganhou espao privilegiado noFrum Social Mundial, no entanto as ONGs no tiveram fora suficiente parainserir o termo como parmetro da discusso na CSI, muito em razo darecordao do debate ocorrido na NOMIC e na UNESCO, que tambm dei-xou de adot-lo. Ainda assim, a partir das diretrizes colocadas pelo Manual daCRIS, possvel vislumbrar os desafios que se colocam para a democratiza-o do espao miditico latino-americano. Historicamente, esse espao confi-gurou-se mediante processos de concentrao econmica que resultaram nacriao de um reduzido nmero de grupos de mdia nacionais detentores deposies de mercado privilegiadas quanto produo e distribuio de in-formaes e contedos culturais. Em geral, governos autoritrios, a despeitode exercerem controle poltico sobre os contedos, respaldaram a lgica docapital no desenvolvimento do rdio e da televiso criando infraestruturaadequada sua expanso, em detrimento de investimentos no setor do servi-o pblico e reprimindo o acesso das organizaes de trabalhadores e demovimentos populares. A redemocratizao do continente, sobretudo a par-tir da dcada de 1980, bem como a convergncia tecnolgica dos ltimosanos no alteraram esse panorama; ao contrrio, a adoo de polticas neoli-berais no campo da comunicao social intensificou as economias de escala, aconcentrao horizontal e vertical e a maior integrao e dependncia dosetor no sistema global comercial.

    3. ESPAO MIDITICO E CONJUNTURA POLTICA NA ARGENTINA

    3.1. Pouco regulado e fortemente controladoEm busca por reverter o processo inflacionrio, a dvida externa e o d-

    ficit fiscal que perdurava desde os anos 1980, a Argentina talvez tenha sido opas latino-americano que adotou a verso mais rgida das polticas neolibe-rais dirigidas abertura da economia aos grupos transnacionais, valoriza-o da renda financista, privatizao do patrimnio estatal e remoo dedireitos trabalhistas e sociais. O Plano de Convertibilidade estabeleceu a pa-ridade um a um do dlar com o peso e o processo de privatizao, cujo pice 20 CRIS. Op. cit., p. 45-50.

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    se deu entre os anos de 1990 e 1994 e que resultou em vantagens financeirasduvidosas para o setor pblico, transferiu para grupos econmicos locais,bancos estrangeiros e nacionais e certas empresas transnacionais setores es-tratgicos da economia, como telefonia, aeroportos, eletricidade, petrleo,gs, siderurgia entre outros.

    Da mesma forma, possvel que tenha sido o pas da regio onde, emtermos relativos, mais avanaram os processos de concentrao econmica edesnacionalizao do espao miditico. Tais processos so perceptveis natrajetria recente dos dois maiores grupos de mdia do pas, ADMIRA e Cla-rn, que na televiso aberta so responsveis pela retransmisso de 81% doscontedos e programas, todos de origem estadunidense, para cerca de 60%da populao nacional.21

    O grupo ADMIRA, controlado pela empresa espanhola Telefnica, foiconstitudo pela aquisio da maior parte das aes do grupo financeiro Citi-corp Equity Investments (CEI),22 que na dcada de 1990 possua vrios canaisde TV a cabo e de televiso aberta, alm de emissoras de rdio e da casa edi-torial Atlntida.23 Clarn, por sua vez, iniciou atividades no campo da comu-nicao social com a criao de jornal em 1945 e desde 1960 scio da PapelPrensa,24 empresa que produz e distribui papel e que atualmente controlamais de 90% do mercado. Ingressou no setor de radiodifuso na dcada de1980 e em 2000, quando j estava estruturado como grupo multimdia, ven-deu 18% de seu capital ao grupo financeiro estadunidense Goldman Sachs.25Esse foi o incio de uma srie de operaes que diversificou os negcios einverses do grupo, transbordando as fronteiras do setor estritamente co-municacional mediante fuses com empresas transnacionais, entre elas mon-tadoras de carros e empresas que exploram gs e petrleo no pas.26

    21 ARGENTINA. Autoridad Federal de Servicios de Comunicacin Audiovisual. 5to. Informe deContenidos de la Televisin Abierta Argentina. 2010. Disponvel em:. Acesso em: 20 jun. 2012.

    22 Boa parte dos veculos de comunicao no absorvidos pela Telefnica acabaram formandoparte do Grupo Hicks, Muse, Tate & Furst Incorporated (HMT&F), de capital estadunidense(GINIGER, Luis Pablo. Legislacin y concentracin meditica en la Argentina. Revista delCCC, an. 1, n. 1, set./dez., 2007. Disponvel em: , p. 3. Acesso em: 20 jun. 2011).

    23 GINIGER, Luis Pablo. Op. cit., p. 3.24 A histria da criao do grupo Clarn cercada por polmicas. Atribui-se compra da PapelPrensa, por exemplo, ingerncia de governos da ditadura militar, aps sequestro e julga-mento da famlia Graiver que detinha 75% do capital da empresa.

    25 interessante observar que o Goldman Sachs o grupo financeiro que est por trs da falsifi-cao da dvida externa grega que deflagrou o processo de desestabilizao monetria na Eu-ropa, como recentemente revelou o EUROSTAT, instituto europeu que controla os dados fi-nanceiros de Estados membros da Unio Europeia.

    26 MASTRINI, Guillermo e BECERRA, Martn. 50 aos de concentracin de medios em AmricaLatina: del patriarcado artesanal a la valorizacin en escala. Material de la Ctedra de Polticasy Planificacin de Comunicacin. Universidad de Buenos Aires. Disponvel em:, p. 13. Acesso em: 20 jun. 2012.

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    Essas posies privilegiadas no mercado miditico foram conquistadasora em desrespeito lei ora mediante uso poltico do vcuo legislativo sobrea disciplina das novas tecnologias de informao e comunicao. Ainda sob oregime autoritrio, a Lei n. 22.285, inspirada na doutrina da segurana nacio-nal, estabelecia repartio equitativa de emissoras de rdio e TV entre as trsForas Armadas; proibia expressamente a presena de cooperativas ou orga-nizaes sociais sem fins lucrativos e impunha severos limites ao ingresso decapital estrangeiro nas empresas do setor. Apenas em 1999, com o Decreto n.1005 do governo Carlos Menem, foram regularizados as inverses desse capi-tal, bem como a ampliao da acumulao do nmero de licenas em radio-difuso e a permisso da atuao de cadeias, o que acabou tambm por lega-lizar a transmisso permanente de uma mesma programao para todo opas.

    Estudiosos do mercado de mdia na Amrica Latina alinham-se naconcluso de que os processos monoplicos se beneficiaram historicamentede legislaes permissivas adotadas para ajustar situaes de fato definidasantecipadamente pelas estratgias de mercado dos grandes grupos de m-dia.27 Na Argentina, porm, desde a redemocratizao em 1983 no forampoucas as tentativas que buscaram alargar as margens da diversidade noespao miditico. No Congresso da Nao tramitaram vrios projetos de leide iniciativa pessoal ou de grupos, mas a sorte de cada um deles foi definidapor relaes obscuras e alianas no explicitadas entre Executivo, parlamen-tares e conglomerados de telefonia e mdia. Da mesma forma, com a tecnolo-gia cada vez mais acessvel, inmeros indivduos, grupos, movimentos soci-ais e populares, das mais diversas orientaes e projetos polticos, passaram atransmitir sem autorizao por emissoras que no tinham fins lucrativos aschamadas rdios truchas.28

    Contando com legislao benevolente e governos generosos, os inte-resses dos grupos de mdia estavam amplamente satisfeitos, porm no finalda primeira dcada do sculo XXI essa situao se modificou. Como foi pos-svel a aprovao de lei com clara orientao antimonoplica e que abre es-pao para vozes contrrias ao neoliberalismo?

    3.2. Contexto poltico: clivagens e acomodaesEssa no uma questo fcil de ser respondida nem seria este o lugar

    adequado para se debruar sobre os mltiplos fatores e contradies muitomenos o peso de cada um deles que atuaram para essa soluo. No entan- 27 MASTRINI; BECERRA. Op. cit., p. 2.28 SEL, Susana. Actores sociales y espacio pblico. Disputas por la ley de servicios de comunica-cin audiovisual en Argentina In: SEL, Susana (coord.). Polticas de comunicacin en el capi-talismo contemporaneo. Amrica Latina y sus encrucijadas. Buenos Aires: CLACSO, 2010, p.193.

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    to, possvel explicitar os contornos gerais da conjuntura poltica desse mo-mento a partir da compreenso da ampliao do espao de disputa pela he-gemonia que foi possvel graas, dentre outros, crise econmica, crise dapoltica da classe dominante e presso, a partir de certo grau de organiza-o e unidade poltica, de sindicatos, movimentos sociais, grupos culturais ediversos atores ligados direta ou indiretamente s lutas pela democratizaoda comunicao social. E para isso preciso voltar a 2001.

    No incio da dcada, o fracasso das polticas neoliberais era evidente.O pas havia mergulhado em profunda crise econmica que se expressou nadesestruturao do mercado de trabalho e na deteriorao nos padres dedistribuio renda, com mais da metade da populao abaixo da linha dapobreza.29 A proximidade dos parmetros estruturais do subdesenvolvimen-to latino-americano, sem precedentes em sua histria, propiciou intensa crisepoltica que culminou com a renncia do governo de Fernando De la Ra(1999/2001), seguida por sucesso de governos provisrios quatro presiden-tes em pouco mais de uma semana , em um contexto de saques e protestos.Que se vayan todos! Essa era a frase da insurreio espontnea da populao, dorechao generalizado, mas politicamente inoperante, atirada aos governan-tes.

    Somente em 2003 comeou a se definir as foras que seriam capazes derecompor, ainda que com fragilidade, a institucionalidade poltica. NstorKirchner assumiu a presidncia da repblica com discurso que articulavarecuperao da soberania e das funes do Estado ao desenvolvimento comdistribuio de renda. Isso o aproximava do perfil progressista construdo napoca de sua militncia juvenil no peronismo de esquerda, mas sua prticapoltica no se ops ao neoliberalismo nem rompeu com os agentes que lu-craram com o governo Menem, entre eles oligoplios estrangeiros que explo-ram setores estratgicos da economia e a oligarquia financeira e rentista. Kir-chner manteve-se fiel ao perfil poltico dos mais de dez anos que ocupou ogoverno de Santa Cruz, provncia petroleira do sul do pas. essa a avaliaode Atilio Born,30 cientista poltico argentino que acompanha de perto o ce-nrio poltico de seu pas e da Amrica Latina, e que compartilhada poroutros cientistas polticos e socilogos, ainda que com diferenas de enfo-que.31

    29 CEPAL. Panorama social de Amrica Latina 2006. Santiago, Chile: Comisin para AmricaLatina y Caribe, 2006.

    30 BORN, Atlio. La izquierda latino-americana a comienzos del siglo XXI. In: GRAVITO, CsarRodrguez, BARRETT, Patrick e CHVEZ, Daniel (orgs.). La nueva izquierda en Amrica La-tina: sus orgenes y trayectoria futura. Buenos Aires: Norma, 2005, p. 11-17.

    31 LWY, Michel. A esquerda na Frana e na Amrica Latina. Esquerda.Net, Lisboa, 20 de de-zembro de 2007. Disponvel em: . Acesso em: 12 jun. 2012. SANTOS,Boaventura de Sousa. Conocer desde el Sur. Para una cultura poltica emancipatria. La Paz:CLACSO, 2008.

  • Nomos: Revista do Programa de Ps-Graduao em Direito da UFC 313

    A retomada da direo poltica e a recuperao econmica da Argenti-na permitiram, de fato, certos avanos, como a diminuio da pobreza e dodesemprego e a ampliao do sistema de proteo social e previdenciria,mas no foram suficientes para modificar de forma significativa os nveis dedesigualdade social nem transformar as instituies sociais e polticas. Nosetor da indstria cultural, o compromisso do governo Kirchner com a estru-tura herdada se evidenciou em pelo menos trs medidas.32 A Lei n. 25.750,sancionada em julho de 2003, excluiu as empresas que exploram o espectroradioeltrico do mecanismo previsto na lei de falncia que possibilita a apro-priao da empresa devedora at o montante da dvida; essa lei tambmincluiu controvertido artigo que, a partir das demandas do Grupo Clarn,limitou em 30% o capital estrangeiro nas empresas de comunicao e o De-creto n. 52712, de dezembro de 2004, suspendeu o prazo de contagem darenovao das licenas, o que se deu aps os canais 11 e 13 da televiso aber-ta (Telefnica e Clarn, respectivamente) terem suas licenas renovadas pormais dez anos.

    Ainda assim, nessa conjuntura desenvolveu-se renovao parcial dealgumas instituies, como a Corte Suprema e as Foras Armadas, adoo depoltica internacional que fortaleceu autonomia regional, alm de avanosobre algumas questes pendentes da agenda democrtica, como a promo-o de processos de crimes ocorridos na ditadura militar.

    Uma das expresses dessa renovao institucional e do avano daagenda democrtica ocorreu em 2003 quando a Corte Suprema, com base noart. 13 da Conveno Americana sobre Direitos Humanos de 1969, declarou ainconstitucionalidade do art. 45, da Lei n. 22.285, que proibia as cooperativassem fins lucrativos de serem concessionrias de radiodifuso. Em agosto de2005, tal deciso consolidou-se com a alterao desse dispositivo legal graas,em parte, presso do campo popular e de seus aliados, que um ano anteshaviam se reunido em torno da Coalizo por uma Radiodifuso Democrtica(CRD), organizao que congrega mais de 300 organizaes sociais, entre elassindicatos, federaes e associaes empresariais, cooperativas, universida-des, organismos de direitos humanos, meios comunitrios e comerciais epovos originrios.33

    A partir de grande esforo de mobilizao nacional, a CDR elaborou os21 Pontos Bsicos para o Direito Comunicao,34 que previa o controledos oligoplios, a reformulao do sistema pblico de radiodifuso e a inclu-

    32 MARINO, Santiago. Estudio de caso. Argentina. In: AMARC. Las mordazas invisibles. Nue-vas e viejas barreras a la diversidade en la radiodifusin, 2009. Disponvel em:, p. 58. Acesso em: 10 jun. 2012.

    33 SEL, Susana. Op. cit., p. 197-198.34 Essa proposta se chamou Iniciativa Cidad por uma Radiodifuso Democrtica: 21 PontosBsicos para o Direito Comunicao, que est disponvel no stio www.coalicion.org.ar.

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    so de setor no comercial no espao miditico. Em 2008, essa proposta rece-beu forte impulso com o novo governo de Cristina Fernndez que, em con-junto com a CDR, realizou por todo pas fruns participativos de consultaspblicas, alm de inmeras assembleias e atos pblicos destinados a divulgare discutir aqueles 21 pontos, posteriormente incorporados em larga medidaao projeto de lei que foi enviado ao Congresso da Nao pelo Poder Executi-vo em agosto de 2009.

    A deciso de Cristina Fernndez de apoiar essa iniciativa democrticadeu-se em novo contexto de crise na poltica da classe dominante que, emno encontrando soluo nos canais institucionais convencionais, acabouresvalando em conflito atravs dos meios de comunicao, sobretudo a im-prensa escrita que se desvencilhou dos ltimos pudores de imparcialidade.

    Antnio Gramsci,35 ao analisar a imprensa italiana do incio do sculoXX, referiu-se aos jornais como partidos polticos, rgos que aliavam a fun-o de informao de direo poltica geral na falta de partidos organizadose centralizados. Fenmeno semelhante foi detectado em pases da AmricaLatina que elegeram governos progressistas e adotaram medidas que no eramconsenso entre os setores da classe dominante.36 At mesmo Barack Obama,presidente dos Estados Unidos, decidiu tratar publicamente o conglomeradode comunicao FOX como extenso do partido Republicano, em razo daoposio s diversas reformas propostas no incio de seu mandato.

    Na Argentina, aps o governo anunciar, em maro de 2008, a elevaoda reteno compulsria dos impostos de exportao de diversos produtosagrcolas, contrariando interesses de distintos estratos da propriedade rural ede setores urbanos das classes dominantes, a reao de certos jornais, especi-almente os do Grupo Clarn, foi de confronto aberto. O conflito do campo, co-mo foram chamados os trs meses de protestos, bloqueios de estradas e boi-cotes comercializao de certas exportaes, selou o rompimento do acordode respeito mtuo que durava desde o primeiro mandado de Kirchner em2003, segundo o Diario sobre Diarios,37 portal dedicado a observar os noveprincipais jornais portenhos. A cobertura miditica desse conflito chegou areceber crticas do Conselho Diretivo da Faculdade de Cincias Sociais daUniversidade de Buenos Aires que, em resoluo, convidou as organizaes

    35 GRAMSCI, Antnio. Cadernos do crcere. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2010. v.2, p. 218.

    36 FONTES, Virginia. Intelectuais e mdia quem dita a pauta?. In: COUTINHO, EduardoGranja (Org.). Comunicao e contra-hegemonia: processos culturais e comunicacionais decontestao, presso e resistncia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008. MORAES, Dnis de. Abatalha da mdia: governos progressistas e polticas de comunicao na Amrica Latina e ou-tros ensaios. Rio de Janeiro: Po e Rosas, 2009.

    37 DIARIO SOBRE DIARIOS. Ocho aos de kirchnerismo: el comportamiento de los dirios. 21de diciembre de 2011. Disponvel em: . Acesso em:22 jul. 2012.

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    de jornalistas a chamar a ateno de seus filiados para as faltas ticas gravescometidas. Paralelamente, o governo partiu para o contra-ataque com o Cla-rn: anunciou veto fuso de Cablevisin e Multicanal, revisou contratos deexclusividade para a transmisso de jogos de futebol e pressionou para mu-dana de controle acionrio do Papel Prensa.

    Se essas medidas serviram para os oligoplios miditicos e para a So-ciedade Interamericana de Imprensa (SIP), associao que congrega os prin-cipais grupos de mdia do continente, acusar Fernandz de atentar contra aliberdade de expresso e de imprensa, para o campo popular e seus aliadosfoi o sinal de alerta para, na falta de fora poltica autnoma capaz de dispu-tar a direo do pas, reforar aes de demonstrao de apoio continuida-de do governo. Assim, aps descenso entre os anos de 2003 a 2007, voltaram cena os atos pblicos, passeatas e protestos, que foram tambm cruciaispara aprovao da Ley de Medios tanto na Cmara dos Deputados como noSenado da Nao.

    Essa foi a segunda vez na histria do pas que a principal instituio dademocracia representativa sancionou lei sobre a organizao do espao midi-tico; a primeira foi aprovada pelo Congresso da Nao em 1953 e desde quea ditadura militar foi instaurada, em 1973, o setor foi regulado por atos doPoder Executivo.

    4. LEI DE MEIOS: FALEMOS TODOS38

    4.1. Complementariedade e disposies antimonoplicasA amplitude do debate entre os mais variados setores da sociedade ar-

    gentina acerca de nova regulamentao para os meios audiovisuais reflete-seno alcance normativo da Lei n. 26.522/2009. Sem romper com o mercado co-mo principal eixo de direo e organizao da comunicao social, essa leidisciplina o espao miditico atravs de mecanismos de promoo, descon-centrao e fomento da concorrncia com o objetivo de democratizar e uni-versalizar o uso e a fruio da palavra pblica e dos produtos audiovisuais.Da porque sua abrangncia vai alm da regulao do uso desta ou daquelatecnologia, mas adota o critrio da influncia39 que os rgos de produo edistribuio exercem sobre a audincia nas fronteiras do Estado Nacional.

    38 Hablemos todos foi o mote da campanha realizada pelo governo para divulgar as audinciaspblicas e seminrios onde se discutiam os parmetros do novo marco regulatrio.

    39 A nota ao art. 1o da Lei n. 26.522/2009, que trata do seu objeto, esclarece que tal critrio sebaseou na diretiva da Comisso Europeia para a televiso sem fronteiras (TVSF) de dezembrode 2007, para quem a regulao da TV deve depender apenas da influncia que se exerce so-bre a opinio pblica e no da tecnologia de transmisso. A mesma orientao repetida nanota 33 ao art. 3o, dessa vez embasado na Resoluo do Parlamento Europeu 2003/2237 (INI).

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    A Ley de Medios , sem sombra de dvida, contribuio original da so-ciedade argentina para a democratizao da comunicao social, mas aomesmo tempo teve o cuidado de se amparar nas tendncias legais e juris-prudenciais observadas em outros pases e regies, notadamente EstadosUnidos e Unio Europeia, assim como em organismos internacionais.40 E,como convm a uma regulao dessa natureza, trata de maneira detalhada em seus 166 artigos, subdivididos em incisos, alneas e pargrafos das maisdiversas questes que influem na configurao do espao miditico. No objeto do presente estudo abordar, diretamente, os aspectos tcnico-jurdicosdessa lei, mas discutir as solues normativas encontradas para tentar com-patibilizar democratizao do espao miditico com os mecanismos de pro-duo e distribuio de informao e bens simblicos no bojo do modo deproduo capitalista, tal como se configura atualmente na Argentina.

    Nesse sentido, as caractersticas tcnicas da transmisso de contedospor meios audiovisuais, diferentemente da imprensa escrita e da internet,propiciam maior protagonismo ao Estado e exigem, por isso, regras clarasque concretizem os princpios de sua atuao bem como as condies para osque pretendem ser concessionrios desse servio pblico. Da que, na Ley deMedios, a considerao da comunicao audiovisual como atividade de inte-resse pblico fundamental para o desenvolvimento sociocultural ganha con-tornos precisos com a delimitao do papel do Estado na organizao e fo-mento dessa atividade, assim como na definio dos indivduos e gruposaptos a explor-la.

    Enfatizando o papel do Estado como garantidor da liberdade de ex-presso, do pluralismo informativo, da participao e do acesso universal, alei inovou ao erigir tratamento equitativo entre os meios de gesto estatal ede gesto privada sem e com fins lucrativos (arts. 2o e 21),41 dando-lhes regrasespecficas conforme as caractersticas de cada regime e a capacidade de in-fluncia. Assim, pretendeu-se que o espao para a diversidade de vozes fosseassegurado, de um lado, pelo incentivo criao de veculos por organismosda sociedade civil42 e pela reformulao do servio de radiodifuso pblico e,

    40 A Lei n. 26.522 traz, por meio de notas maioria dos artigos, referncias expressas contribui-o dos vrios setores da sociedade argentina, assim como legislao comparada, sobretudodos Estados Unidos e da Unio Europeia, tratados internacionais de que o Estado parte, de-claraes internacionais e decises de vrias cortes internacionais, como a Comisso Interame-ricana de Direitos Humanos (CIDH).

    41 A complementariedade entre os sistemas pblico, privado e estatal de radiodifuso respal-dada por vrios documentos internacionais, como a Declarao Conjunta sobre a Diversidadena Radiodifuso, firmada em 2007, pelos relatores da Liberdade de Expresso da ONU, OEA,OSCE e CADPH.

    42 A expresso sociedade civil geralmente utilizada como conjunto de instituies que se dife-renciam do mercado e do Estado. Do ponto de vista terico-poltico, essa posio guarda rela-o com as correntes liberais e marcam seu distanciamento com a tradio materialista dialti-ca. Neste trabalho, o termo empregado em sua forma usual, mas com a ressalva de que no

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    de outro, pela inibio da concentrao empresarial dos meios de comunica-o.

    Na Ley de Medios inegvel o reconhecimento da importncia dasemissoras comunitrias para o conjunto do espao miditico. Definidas comoveculos independentes e no governamentais, geridos por organizaessociais sem fins lucrativos (art. 4o), no lhes imposto restrio geogrfica dealcance ou de temtica; ao contrrio, no s podem constituir-se em rede,respeitadas as cotas de programao prpria e local (art. 64), como lhes soreservados 33% das frequncias de radiodifuso sonora e televisiva terrestres(art. 89, f). Alm disso, foram contempladas na incorporao de novas tecno-logias e servios, como a transio do sistema analgico para a digital (art. 92,b), e est previsto o repasse de 10% do tributo cobrado pela utilizao dasfrequncias, que deve ser dividido com outros servios de comunicao au-diovisual sem fins lucrativos, entre eles os dos Povos Originrios (art. 97, f).43

    Os meios de gesto estatal podem ser titularizados pelos Estados Pro-vinciais, Municpios, Cidade Autnoma de Buenos Aires, Universidades Na-cionais, Povos Originrios e Igreja Catlica, sendo a todos reservadas as fre-quncias necessrias para que cumpram com seus objetivos institucionais(arts. 89 e 121). Os veculos de radiodifuso dirigidos pelo Estado Nacionalforam agrupados na Radio y Televisin Argentina Sociedad del Estado (RTA S.E.)que sofreu modificaes estruturais inspiradas no modelo participativo dastelevises pblicas alems e francesas. A RTA passou a contar com um Dire-trio executivo, cujos membros so escolhidos pelo Poder Executivo Nacionale pela Comisso Bicameral da Comunicao Audiovisual do Congresso daNao (art. 132), e com um Conselho Consultivo que, formado por pessoasindicadas pelas faculdades nacionais de jornalismo, sindicatos do setor daradiodifuso, organizaes no governamentais entre outros. O ConselhoConsultivo tem por competncia exercer o controle social sobre o cumpri-mento dos objetivos e obrigaes da RTA (arts. 124 a 130), dentre os quaisesto o respeito e a promoo ao pluralismo poltico, social e cultural; a ga-rantia do direito informao e a difuso das atividades dos poderes do Es-tado a nvel nacional e provincial (arts. 121 e 122).44

    compartilha a viso de que existam setores da sociedade que atuem politicamente desligadosda base produtiva.

    43 Dado o status constitucional do reconhecimento da personalidade jurdica das comunidadesindgenas argentinas (art. 75, inciso 17, da Constituio Nacional), os Povos Originrios, aolado da Igreja Catlica, Universidades Nacionais e Institutos Universitrios, fazem parte dosmeios audiovisuais pblicos, em oposio aos meios privados e estatais. Da receberem trata-mento diferenciado pela Ley de Medios, especialmente nos arts. 4o, 22, 30, 64, 89 e 145 a 152.

    44 Observe-se que os dispositivos que fazem da RTA uma instituio de servio pblico e estatalesto em discordncia com o princpio 12 dos 21 Pontos Bsicos para o Direito Comunica-o proposto pela Coalizo por uma Radiodifuso Democrtica.

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    No entanto, em razo da saturao fsica do espectro radioeltrico ar-gentino, as disposies da Ley de Medios favorveis diversidade de vozesseriam esvaziadas caso no houvesse previso de limites concesso de li-cenas a grupos empresariais, seguida da redistribuio desse direito a fim deconform-lo aos novos parmetros estabelecidos. disso que tratam os arts.45 a 48 e 161, sem dvida os mais polmicos e que geraram as mais contun-dentes objees do setor empresarial.

    Para coibir prticas monoplicas e/ou oligoplicas, o art. 45, amparadono princpio 12 da Declarao de Princpios sobre a Liberdade de Expressoda CIDH, utilizou a combinao de dois critrios o nmero de licenas e acota de mercado a serem averiguados nos nveis nacional e local. Assim, noplano nacional, um mesmo concessionrio s pode ter: a) uma licena decomunicao audiovisual por satlite, excluda a possibilidade de prestarquaisquer outros servios no setor; b) at dez licenas de radiodifuso sono-ra, televiso aberta e/ou por assinatura; c) at vinte quatro licenas de radio-difuso por assinatura. E, ainda que preveja multiplicidade das licenas, a leilimita a prestao do servio a 35% da audincia nacional. Da mesma forma,na ordem local, s possvel titularizar uma licena de radiodifuso AM eFM e uma de televiso aberta e paga, no cumulativamente.

    Seguindo disposies semelhantes em pases como Inglaterra, Frana,Itlia e Estados Unidos, a lei tambm exige como pr-requisito para adjudica-o das licenas a inexistncia de processos de integrao vertical ou horizon-tal de atividades relacionadas ou no com a comunicao social (art. 48), oque no permitiria, por exemplo, a coexistncia de vnculos societrios entreempresas de radiodifuso, agncias de publicidade e meios impressos.

    J o art. 161 prev como regra de transio a devoluo, em um prazode um ano, de licenas radiofnicas dos grupos de mdia que no se ade-quam aos limites da multiplicidade de concesses (art. 45). Essa disposio,to indita no continente quanto necessria para a desconcentrao do espa-o miditico,45 tem por fim compatibilizar o princpio da pluralidade de vozes inerente a qualquer servio de radiodifuso que se pretenda democrtico com o direito de propriedade, no mais considerado irrestrito ou intocvel.No entanto, como era de se esperar de qualquer tentativa que busque reor-ganizar atividade concentrada e predatria, esse dispositivo transformou-seno principal campo de batalhas judiciais. At o momento o art. 161 encontra-se com a eficcia suspensa em razo de inmeras medidas cautelares ajuiza-das na primeira instncia em um primeiro momento propostas por parla-mentares da oposio que invocavam desrespeito ao trmite legislativo e,posteriormente, por grupos de mdia que sustentam o desrespeito proprie-

    45 Observe-se que esse dispositivo encontra-se previsto no princpio 21 dos 21 Pontos Bsicospara o Direito Comunicao proposto pela Coalizo por uma Radiodifuso Democrtica.

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    dade privada e confirmadas em sede recursal pela Corte Suprema que,porm, se pronunciou no sentido de que as liminares concedidas no pode-riam ter efeito definitivo.

    4.2. Reforma institucional e controle socialOs dispositivos legais destinados a garantir o pluralismo e a diversida-

    de de vozes esto estreitamente vinculados a um certo tipo de arranjo insti-tucional capaz de efetiv-los. Estrutura organizacional prevista para acolhermecanismos de representao formal e de participao direta, lastreados namais ampla transparncia e pautados por critrios republicanos, respondemmelhor a esses objetivos ao marcar distncia tanto de processos decisriosverticais como, do ponto de vista tico-poltico, da apropriao privada debens pblicos. No se pode deixar de reconhecer que em vrios pases daAmrica Latina, nos quais a gnese dos espaos miditicos se respaldaramem normas e estruturas institucionais de governos autoritrios e se desen-volveram no bojo da adoo de polticas neoliberais, tal configurao repre-senta um grande desafio que, no entanto, pode ser enfrentado pela incorpo-rao da experincia acumulada a partir das presses do campo popular que,desde a dcada de 1990, como resposta crise da representao parlamentar,tem aberto novas vias para a participao cidad direta e para a renovaoinstitucional.46

    Nesse aspecto particular, a ruptura que a Ley de Medios promoveu comrelao legislao anterior comparvel ao significado da adoo de nor-mas antimonoplicas, com a peculiaridade de apresentar desenho institucio-nal originrio e inovador. De acordo com os arts. 10 a 20, a Autoridade Fede-ral de Servios de Comunicao Audiovisual, rgo que tem a funo deaplicar a lei com independncia oramentria e administrativa do governonacional (art. 13), conformada pelo Diretrio (art. 14), pelo Conselho Fede-ral de Comunicao Audiovisual CFCA (art. 15) e pelo Conselho Assessorda Comunicao Audiovisual e Infncia CACAI (art. 17), perante os quaisainda atua a Defensoria do Pbico de Servios de Comunicao Audiovisual(art. 19).

    46 Na dcada de 1990, em um contexto de crise econmica e de instabilidade poltica, movimen-tos contestatrios passaram a reivindicar uma refundao do Estado democrtico com vistas agarantir maior controle social e participao popular. Tais processos foram particularmentevigorosos no Equador, Bolvia e Venezuela que, mediante reformas constitucionais, incorpora-ram mecanismos de participao direta, tais como revogao de mandatos eletivos e leis, con-trole popular sobre atos e contas pblicas, cogesto administrativa com organismos da socie-dade civil e autonomia indgena (FLORES, Fidel Prez, CUNHA FILHO, Clayton Mendona eCOELHO, Andr Luiz. Participacin ampliada y reforma del Estado. Mecanismos constitu-cionales de democracia participativa en Bolivia, Ecuador y Venezuela. Revista ObservatorioSocial de Amrica Latina. Estado, cooperacin e integracin en Amrica Latina. Buenos Aires:CLACSO, ano XI, n. 27, abr., 2010).

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    O Diretrio, que conduz e administra a Autoridade, composto porsete membros designados pelo Poder Executivo Nacional, pela ComissoBicameral de Promoo e Seguimento da Comunicao Audiovisual do Con-gresso Nacional (art. 18), respeitando a representatividade das maiorias eminorias parlamentares, e pelo CFCA, rgo que congrega representantesdos concessionrios pblicos e privados com e sem fins lucrativos, das uni-versidades, das entidades sindicais, dos povos originrios entre outros.

    Como o Diretrio tem a competncia de outorgar as licenas (art. 12,6), observa-se que a previso da participao direta do Poder Legislativo e,especialmente, de entidades da sociedade civil constitui um avano sem pre-cedentes no continente latino-americano. De fato, essa reformulao institu-cional, aliada a adoo de critrios mais democrticos para a avaliao dassolicitaes das frequncias (art. 34) e a proibio expressa da presena dejuzes, legisladores, servidores civis ou militares entre scios de empresasconcessionrias (art. 24, h), conferem radiodifuso a caracterstica de ativi-dade de interesse pblico fundamental para o desenvolvimento socioculturalda populao. Nesse sentido, e de acordo com os princpios 12 e 13 da Decla-rao de Princpios sobre a Liberdade de Expresso da CIDH, a capacidadede explorao econmica dos meios de comunicao deixa de ser o funda-mento da liberdade de expresso e do direito comunicao.

    O CFCA, rgo que como vimos incorpora entidades da sociedade civil,est dotado de amplas funes, entre elas assessorar no desenho da polticapblica de radiodifuso; propor medidas Autoridade e jurados para aslicitaes pblicas; elaborar informe anual sobre o cumprimento da lei a serapresentado Comisso Bicameral do Congresso da Nao e destituir osdiretores da Autoridade, mediante maioria qualificada de dois teros, assegu-rada a ampla defesa.

    Se o Diretrio e o CFCA so rgos que zelam prioritariamente pelaorganizao do espao miditico argentino, o CACAI e a Defensoria do P-blico de Servios de Comunicao Audiovisual exercem controle social sobreos contedos que vem a pblico. Esse tipo de controle bastante controver-tido para os grupos de mdia que, ao se orientarem pela busca de margens delucro cada vez mais ampliadas, preferem cham-lo de censura vincula-se aorespeito a parmetros ticos da programao que so estabelecidos em lei e,por vezes, como no caso do Brasil, nas constituies. Nesse sentido, a Ley deMedios, que considera objetivo dos meios de comunicao influir na formaode sujeitos e atores sociais respeitando os diferentes modos de compreensoda vida e do mundo (art. 3, i), estabelece a proibio de discriminaes base-adas na etnia, religio, origem nacional ou social, aspecto fsico, opiniespolticas, gnero ou orientao sexual e outras (art. 70), alm de ter sido espe-cialmente cuidadosa com os programas e a publicidade e destinados s crian-as por considerao a sua inexperincia e credulidade (arts. 68 e 81, h). Da

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    que entre as funes do CACAI esto a criao de critrios para contedosrecomendados s crianas e adolescentes, sempre com o aval de argumentostericos e anlises empricas; a elaborao de um Programa de Formao emRecepo Crtica dos Meios e Tecnologias da Informao e Comunicao, quealm de capacitar esse pblico na apreciao dos programas tem a misso deapoiar a criao e funcionamento de redes de informao entre crianas eadolescentes, e, ainda, monitorar o cumprimento da legislao que rege otrabalho infantil na televiso (art. 17).

    J a Defensoria do Pblico, por ter legitimao processual e adminis-trativa, exerce o controle social canalizando judicialmente as reclamaes edenncias do pblico, em carter de interesses coletivos e difusos, alm deter competncia para propor modificaes na legislao e formular recomen-daes s autoridades administrativas em consonncia com os debates e con-sensos estabelecidos a partir de audincias pblicas que pode convocar nasdiferentes regies do pas com o objetivo de avaliar o funcionamento dosmeios radiofnicos (art. 19). Seu titular indicado pelo Congresso da Nao apartir da indicao da Comisso Bicameral de Promoo e Seguimento daComunicao Audiovisual, devendo reunir os mesmos requisitos exigidosdos componentes da Autoridade (art. 20).

    5. CONCLUSESLiberdade de informao e direito comunicao, enquanto princpios

    organizativos do espao miditico, partem de perspectivas distintas acerca dosujeito de direito. Na liberdade de informao, tal como invocada pelos gru-pos de mdia na Amrica Latina, trata-se do sujeito de direito abstrato que, adespeito das desigualdades econmicas e culturais, troca informaes, comu-nica-se, de forma transparente e igual. No importa que a realidade apontepara as profundas transformaes na explorao e uso das tecnologias deinformao, segue-se pleiteando o artigo 11 da Declarao de Direitos doHomem e do Cidado de 1979 e apontando o Estado como principal agente aser contido. No direito comunicao ganha espao o sujeito de direito con-creto que, situado nas contradies que imprimem as prticas e formas deorganizao comunicacionais inauguradas pela sociabilidade capitalista,aponta para a necessidade de lev-las em considerao hora de definir asnormas.

    Historicamente, em larga medida, vem prevalecendo o sujeito de di-reito abstrato pois foi sobre ele que se constituiu o monoplio da comunica-o, do conhecimento e da cultura. Em certas ocasies muito especiais, con-tudo, o sujeito concreto reaparece graas intensidade e acmulo das lutassociais cujos resultados so impressos no direito positivo. Na Argentina issose mostrou possvel. Em julho de 2011, Bolvia tambm adotou novo marcoregulatrio cujo eixo se articula no princpio da diviso equitativa das fre-

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    quncias de rdio e TV, ao passo que no Equador projeto de lei no mesmosentido, e com grandes chances de ser aprovado, est em tramitao no Po-der Legislativo. No Brasil, contudo, as perspectivas no so alentadoras. De-pois da I Conferncia Nacional de Comunicao (CONFECOM), realizadaem dezembro de 2009 com a presena de setores da sociedade civil e que apon-tou amplas diretrizes para a reformulao do nosso espao miditico no sen-tido do direito comunicao, essa pauta saiu da agenda governamental.Certamente, o descompromisso com as foras sociais que lutam pela demo-cratizao da comunicao apenas pode ser compreendido em razo dasalianas polticas com setores da classe dominante. Aqui, diferena da Ar-gentina por exemplo, a continuidade do processo de acumulao do capitalno esteve sob risco.

    No entanto, como bem demonstra a experincia argentina, a adoodo direito comunicao como princpio do marco regulatrio no encerra aquesto. Por trs dela encontra-se a trincheira do Poder Judicirio. Poucoantes da I CONFECOM, o Supremo Tribunal Federal julgou Ao de Des-cumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 130/DF) no qual afirma textu-almente, logo na ementa, a inexistncia ftica de monoplios e/ou oligopliosno espao miditico brasileiro porque a Constituio probe tal prtica! Adoutrina, por sua vez, parece no conseguir se desvencilhar da dicotomialiberdade positiva/liberdade negativa, subscrevendo a lgica do sujeito dedireito abstrato. Na literatura jurdica, a discusso predominante acerca dacomunicao social centra-se na definio dos limites do poder do Estado ena extenso da atuao da imprensa quanto ao respeito aos direitos intimi-dade, privacidade, honra e, em casos mais raros, aos princpios constitu-cionais da programao da radiodifuso. Por mais que esses sejam temasimportantes, esto longe de esgotar a discusso; ou melhor, eles apenas po-dem ser definidos e compreendidos se contextualizados na realidade da or-ganizao do espao miditico.

    H alguns anos o direito comunicao vem ganhando mais espaonos cursos de Comunicao e Cincias Sociais. O acolhimento dessa temticapelos juristas e nas faculdades de Direito caminha a passos mais lentos, masj se demonstra algum interesse especialmente entre os que se aproximamdos mltiplos sujeitos que lutam pela democratizao da comunicao socialno pas.

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