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A CONTROVÉRSIA CTS DA GUERRA A PARTIR DE UMA HISTÓRIA EM
QUADRINHOS CRISTIANO DA SILVA VIDAL1
ALVARO CHRISPINO2
Resumo: Este trabalho apresenta os resultados de um estudo de caso de um ensaio de pesquisa
empírica em turmas de 1º e 2º anos do Ensino Médio utilizando a questão 20211 do formulário
PIEARCTS e um trecho de 7 páginas da história em quadrinhos do personagem Homem de
Ferro, intitulada Extremis, para motivar a discussão sobre a indústria da guerra em uma
atividade de controvérsia controlada. O ensaio consistiu na aplicação da referida questão para
seis turmas de uma escola técnica estadual no Rio de Janeiro, para servir como um pré-teste das
concepções dos alunos a respeito da influência das indústrias sobre o desenvolvimento
científico e tecnológico. O estudo continuou com uma atividade de controvérsia controlada
motivada pelo material em quadrinhos citado anteriormente, que traz provocações a respeito
dos impactos causados pelo desenvolvimento científico e tecnológico por parte das indústrias,
suas aplicações bélicas, os potenciais benefícios e prejuízos e os critérios utilizados pelas
indústrias ao pesquisar e desenvolver determinada tecnologia. A mesma questão do PIEARCTS
foi reaplicada posteriormente como pós-teste e usada para comparação. Com este estudo
analisamos as potenciais contribuições da atividade proposta na alfabetização científica dos
estudantes a partir de uma perspectiva ampliada.
Palavras-chave: CTS; Controvérsias; Educação; Quadrinhos; PIEARCTS.
INTRODUÇÃO
De acordo com a proposta curricular nacional para o Ensino Básico, teríamos como
objetivo principal a formação do cidadão. Esta é uma proposta que se adequa bem às ciências
humanas e às linguagens, porém ao pensarmos na formação do cidadão em ciências, geralmente
nossos horizontes ficam um tanto quanto nublados. Surge uma necessidade de discutir ciências
de um novo modo, diferente do que se está acostumado a fazer, sem a mecanização, que acaba
sendo quase um treinamento para a resolução de problemas matemáticos que não fazem sentido
para o aluno. A cultura CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade) surgiu nos últimos anos como
uma proposta atraente para transformar o trabalho dos professores de ciências nas salas de aula.
Hoje nos deparamos com uma realidade que nos mostra de maneira bem clara que é
muito mais interessante um cidadão que esteja preparado para participar em situações sociais
envolvendo questões científicas e tecnológicas, do que um aluno que saiba, por exemplo,
transformar uma temperatura da escala Celsius para a Fahrenheit. Ainda falando de
1CEFET-RJ, PPCTE, Brasil. E-mail: [email protected]. 2CEFET-RJ, PPCTE, Brasil. E-mail: [email protected].
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temperatura, mesmo que este aluno saiba fazer a referida transformação é indispensável que ele
saiba se posicionar, opinar e decidir nos assuntos que dizem respeito às alterações climáticas e
acabam envolvendo o mesmo conteúdo supracitado.
Para que um trabalho deste tipo possa ser bem executado com a intenção de desenvolver
o que hoje chamamos de alfabetização científica em uma perspectiva ampliada, que visa superar
uma visão reducionista da ciência e da tecnologia e seus efeitos na sociedade (AULER e
DELIZOICOV, 2001), é importante conhecer a forma como os alunos pensam a respeito dos
temas que serão trabalhados em sua formação básica em ciências. O PIEARCTS é uma
ferramenta que pode nos ajudar neste objetivo, pois é estudo de investigação cooperativa
internacional que trabalha com dois formulários contendo questões que envolvem a relação
ciência, tecnologia e sociedade que podem ser avaliadas de maneira estatística a partir de
critérios definidos por um grupo de peritos da área.
A partir do momento que se conhece bem o modo de pensar do grupo com o qual se
pretende trabalhar (suas concepções), o desafio sempre será descobrir boas metodologias de
ensino. A utilização de controvérsias controladas é interessante, pois cria situações que fazem
com que os participantes percebam que a ciência e a tecnologia são importantes para o cidadão
e tenham um aprendizado prático e social da participação pública nas decisões com respeito a
assuntos de ciência e tecnologia através de seu protagonismo na atividade.
Um dos pontos importantes da utilização de controvérsias controladas é que os
participantes da controvérsia devem ser motivados e alimentados com material a respeito do
tema em torno do qual a atividade irá se desenvolver. Para alunos do Ensino Médio, as histórias
em quadrinhos (HQs) são uma mídia muito atraente e leve, de fácil compreensão. Quando
falamos sobre ciência e tecnologia e seus impactos na sociedade, com uma boa pesquisa é
possível encontrar material muito rico já publicado que pode se relacionar com vários temas da
área.
Este trabalho se apresenta como um estudo de caso que tem como objetivo analisar as
possíveis contribuições de discussões de cunho CTS sobre a NdC&T (Natureza da Ciência e da
Tecnologia) em uma atividade de controvérsia controlada motivada por um trecho de histórias
em quadrinhos para a alfabetização científica dos alunos de turmas do Ensino Médio. Os
resultados serão analisados qualitativamente a partir das respostas da questão 20211 do
PIEARCTS aplicada como pré-teste e pós-teste e através de falas dos alunos durante a atividade
de controvérsia controlada.
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REFERENCIAL TEÓRICO
O PIEARCTS
O Proyecto Iberoamericano de Evaluación de Actitudes Relacionadas com la Ciencia,
la Tecnología y la Sociedad (PIEARCTS) surgiu em 2007 e se baseia em um estudo de
investigação cooperativa internacional com a participação de diversos grupos de investigação
de vários países, instituições e regiões de línguas ibéricas (espanhol e português). Seu objetivo
é de avaliar as crenças e atitudes dos estudantes e professores sobre as questões de NdC&T. O
diagnóstico conseguido a partir da utilização desta metodologia de estudo tem como intenção
ser de valiosa utilidade na elaboração de propostas educacionais a respeito das questões
levantadas. Seus resultados podem apontar para necessárias alterações do conteúdo curricular
e ajudar os professores a melhorarem sua maneira de ensinar de forma que torne a aprendizagem
dos alunos cada vez mais efetiva.
A metodologia do projeto se baseia na aplicação de questões do Questionário de
Opiniões sobre a Ciência, a Tecnologia e a Sociedade (COCTS), que é aceito como um dos
melhores instrumentos que faz uso de lápis e papel para avaliar as concepções e atitudes sobre
NDC&T.
O COCTS é composto por 100 questões relacionadas a temas que envolvem ciência,
tecnologia e sociedade e suas relações. Os investigadores do PIEARCTS, após estudos e
discussões nos quais chegaram a um acordo, selecionaram 30 questões que foram articuladas
em dois questionários com 15 questões cada, com a intenção de adaptar o estudo às
necessidades dos países participantes do projeto.
As respostas diretas dos participantes que respondem o questionário de maneira objetiva
permitem gerar resultados quantitativos que podem ser analisados e comparados entre os grupos
participantes da pesquisa. Em cada questão aplicada é possível avaliar o índice atitudinal de
cada frase, o índice atitudinal de categoria (adequada, plausível ou ingênua), o índice atitudinal
da questão e o índice atitudinal pessoal.
Cada questão possui frases que devem ser classificadas com um valor de numeração de
1 a 9, indicando o grau de acordo do participante com aquela frase, sendo 1 referente ao menor
grau de acordo (total desacordo) e 9 referente ao maior grau de acordo. Ainda é possível
classificar cada frase com as letras E, que significa que o participante não entendeu a frase, ou
S, que significa que o participante não sabe o suficiente para opinar no assunto ao qual a frase
se relaciona.
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As frases presentes em cada questão já são previamente classificadas por um grupo de
peritos como adequadas, plausíveis e ingênuas, que significariam respectivamente uma maneira
correta de pensar, uma maneira aceitável de pensar e uma maneira equivocada de pensar. A
observância destas classificações é de suma importância na transformação da numeração
atribuída pelo participante em um índice atitudinal da frase para sua posterior avaliação.
A TÉCNICA DE CONTROVÉRSIA CONTROLADA
A controvérsia controlada é uma metodologia didática que visa criar uma atividade de
debate com o objetivo de consenso (pelo menos no debate) (CHRISPINO, 2008). Ela deve ser
cuidadosamente preparada e se desenvolver a partir de regras prévias, objetivando:
1 – Identificação de problemas que possam motivar a controvérsia;
2 - Estabelecimento de padrões mutuamente aceitáveis para sustentar o debate;
3 - Busca de informações pertinentes à argumentação relativa ao tema definido;
4 - Preparação da argumentação para a defesa de posição;
5 - Capacidade de escuta racional das posições controversas apresentadas por outros grupos;
6 - Exercício da contra argumentação levando em conta os argumentos colocados por outros
grupos;
7 - Reavaliar as posições – a sua e as demais – a partir de novas informações.
Esta técnica vem a ser muito benéfica porque permite discutir de forma muito dinâmica
uma grande variedade de assuntos CTS que poderiam parecem complexos demais dependendo
da abordagem utilizada. Também é importante ressaltar que a controvérsia controlada exige dos
alunos uma infinidade de outras competências e habilidades que só atividades como esta
poderiam trabalhar: falar em público, ouvir sem intervir de maneira inadequada, levar em conta
opiniões referentes a outros pontos de vista, argumentar e tentar chegar à resolução de impasses,
entre outras.
O exercício da controvérsia controlada, mais do que um momento de discussão de
determinado tema que se relaciona a uma ou mais disciplinas, é uma oportunidade para
desenvolver nos alunos características que serão de grande valor para sua vida social e para o
mercado de trabalho.
AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
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As histórias em quadrinhos, mais conhecidas como HQs, representam um tipo de arte
sequencial muito utilizado para contar histórias e promover comunicação de massa, como os
jornais e revistas em geral. Hoje este tipo de material já atravessou bom nível de escrutínio
acadêmico e inclusive faz parte do Programa Nacional Biblioteca da Escola (BERENBLUM,
2006). É importante ressaltar que estamos falando aqui de HQs como as que encontramos em
revistas de histórias em quadrinhos e não das tirinhas tão usadas em uma infinidade de materiais
didáticos e muitas vezes chamadas de histórias em quadrinhos. A maior parte dos leitores deste
tipo de material é representada por jovens, entre eles muitos de nossos alunos de ensino
fundamental e médio. Mesmo os que não são leitores de quadrinhos, muito provavelmente já
leram ou tiveram contato com mídias muito parecidas, como o mangá, que difere das HQs
apenas por ser lido ao contrário. Lisingen (2007) nos apresenta uma análise da proposta de
trabalho sobre temas CTS fazendo uso de mangás.
Explicitamente, as HQs fazem uso de duas linguagens, as imagens e o texto, que
necessitam um do outro para fazer sentido e se complementam de uma maneira muito
interessante (RAMOS, 2014), funcionando de uma forma totalmente diferente dos materiais
encontrados em livros didáticos. Nos livros didáticos, o texto traz quase toda a informação e a
imagem dá certa contribuição. Se retirarmos a imagem, o texto ainda fará sentido e na maioria
das vezes será suficiente por si só, já a imagem, de maneira isolada, fora de contexto, poderá
não apresentar o mínimo significado.
Sua narrativa é elaborada com a intenção de entreter o leitor e não ser uma leitura
cansativa, pois de outra forma, não venderia. Algumas revistas de HQs possuem várias histórias
que começam e terminam na mesma edição, porém estas costumam ser voltadas principalmente
para o público infantil. As HQs que nos interessam são as que possuem temáticas mais adultas,
estas costumam possuir histórias que se desenvolvem ao longo de várias edições antes de
terminar. A cada grande história, chamamos saga ou arco. O arco é a sequência de edições que
traz a história completa.
METODOLOGIA
Esta proposta de trabalho se baseia na metodologia de um estudo de caso em tecnologia
de ensino (COUTINHO e CHAVES, 2002) e visa desenvolver uma atividade que nos permita
trabalhar conceitos de NdC&T a partir de uma controvérsia controlada motivada por uma
discussão presente em uma sequência de HQ do personagem Homem de Ferro. A forma como
a atividade exercerá ou não algum efeito sobre os alunos participantes será avaliada através de
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uma análise qualitativa das argumentações dos alunos durante uma atividade de controvérsia
CTS controlada, levando em conta as concepções de grupo percebidas através dos resultados
de um pré-teste e um pós-teste realizados utilizando-se a questão 20211 da Forma 2 do
PIEARCTS.
A amostra será composta de alunos do 1º e do 2º anos do Ensino Médio de seis diferentes
turmas de uma escola técnica no Rio de Janeiro, com idades entre 14 e 17 anos, pertencentes a
diferentes cursos técnicos (duas turmas de mecânica, uma de edificações, uma de eletrônica,
uma de eletrotécnica e uma de telecomunicações) e totalizando 104 alunos (no momento da
atividade com maior participação). Em cada uma das turmas a atividade foi desenvolvida da
mesma forma, que será descrita a seguir.
A questão 20211 da Forma 2 do questionário PIEARCTS foi aplicada para o grupo de
alunos sem a necessidade da explicação de que haveria outras etapas na atividade, este pré-teste
foi conduzido desta forma por ter a única intenção de fazer uma análise preliminar das atitudes
dos alunos quanto à influência das indústrias sobre a regulação do desenvolvimento científico
e tecnológico. Eles responderam à pergunta como se fosse uma simples pesquisa de opinião,
desconexa de qualquer outra atividade.
Figura 1: Questão 20211 da Forma 2 do questionário PIEARCTS
Fonte: Editada pelo autor com base em na questão presente no material utilizado na pesquisa (2016).
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Na aula seguinte a atividade de controvérsia foi explicada e os alunos foram distribuídos
em grupos escolhidos pelo professor, buscando a separação de grupos de afinidade formados
pelos próprios alunos e a maior diversidade possível de pensamento em cada grupo da atividade.
Detalhes da atividade de controvérsia utilizada neste trabalho serão explicados mais
detalhadamente no próximo item deste trabalho.
A questão 20211 da Forma 2 do questionário PIEARCTS foi aplicada ainda outra vez
depois da atividade de controvérsia, como pós-teste, para avaliar se houve mudanças na maneira
de pensar dos alunos dois meses após a aplicação da atividade de controvérsia controlada.
A CONTROVÉRSIA DA INDÚSTRIA DA GUERRA
Na controvérsia proposta, o material motivador para discutir a influência e participação
da indústria no desenvolvimento da ciência e da tecnologia foram sete páginas do arco de
histórias Extremis do personagem Homem de Ferro. Entre muitas críticas – sempre ligadas à
indústria da guerra – a história mostra uma imprensa que aborda temas polêmicos demonizando
os envolvidos na questão armamentista e usando as Indústrias Stark como exemplo de conduta
errada. É bastante interessante ver como o Homem de Ferro é visto como uma figura que gera
admiração e Tony Stark é visto como um bilionário alvo de manifestações e associado a
assassinatos e crimes de guerra, através da indústria que representa. É uma visão bem dual da
tecnologia que depende da forma como ela é empregada.
Em cada uma das seis turmas onde a controvérsia foi trabalhada, os alunos receberam
as páginas da história que foram utilizadas como motivadoras do debate. Cada turma foi
dividida em 4 grupos de alunos, da seguinte forma:
1- Donos de indústrias
2 - Líderes militares
3 - Pessoas nas regiões de conflito
4 - Pessoas fora das regiões de conflito
Os grupos foram orientados individualmente sobre qual deveria ser a linha de pesquisa
para o estabelecimento de uma posição para defesa e os alunos tiveram o tempo de uma semana
para ler os quadrinhos, discutir suas concepções, pesquisar material e montar sua argumentação.
Cada atividade durou em média uma hora e quarenta minutos (2 tempos de aula) e
ocorreu da seguinte forma:
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- Primeiramente cada grupo expôs seus argumentos e defendeu sua postura dentro da
controvérsia.
- Na segunda etapa os argumentos de um grupo eram comentados pelos outros três grupos.
Após os comentários, o grupo podia fazer uma réplica enriquecendo, explicando ou mudando
seus argumentos. Cada um dos 4 grupos passou por esta etapa.
- O fim da atividade foi um momento muito rico, pois na terceira etapa os alunos foram livres
para abandonar suas visões preestabelecidas para os grupos e poder argumentar utilizando suas
posições pessoais construídas ao longo das etapas anteriores.
RESULTADOS
As respostas do pré-teste e do pós-teste com a questão 20211 da Forma 2 do PIEARCTS
não apresentaram variações consideráveis que levassem à necessidade de uma análise, por este
motivo fizemos aqui a opção por enfatizar a análise da argumentação dos alunos na atividade
de controvérsia.
Gráfico 1: Índices atitudinais por frase da questão 20211 dos alunos participantes da
atividade.
A análise dos resultados da atividade de controvérsia controlada será feita levando em
conta as falas dos alunos durante a argumentação no que se refere à presença e à superação dos
mitos referentes à ciência e à tecnologia, citados por Auler e Delizoicov (2001) como os mais
importantes a serem superados quando temos por objetivo uma alfabetização científica a partir
de uma perspectiva ampliada.
-0,4-0,3-0,2-0,1
00,10,20,30,4
Co
efi
cie
nte
s
20211 - Índices atitudinais por frase
pré-teste
pós-teste
9
O mito da superioridade do modelo de decisões tecnocráticas carrega a interpretação
de uma ciência quase religiosa, que seria resposta incontestável a qualquer questionamento,
sem uma necessidade de argumentação, pois estaria sempre certa e com garantia de sucesso em
si mesma. Por este ponto de vista, não há necessidade de democracia nas decisões, já que os
tecnocratas estariam mais capacitados para tomar todas as decisões envolvendo ciência e
tecnologia do que o cidadão comum.
Apesar do pré-teste com o PIEARCTS ter apresentado um comportamento um tanto
ingênuo em relação a este primeiro mito por parte dos alunos, seu discurso durante as
argumentações na atividade de controvérsia trouxe interessantes surpresas. A maior parte dos
grupos de alunos nas diferentes turmas defendia que os donos de indústrias (tecnocratas) não
deveriam ter o controle do desenvolvimento científico e tecnológico porque:
Existem interesses envolvidos.
Eles não teriam uma séria preocupação com os usos.
O principal interesse das indústrias seria o lucro.
A posição que os técnicos ocupam é dual, antes de serem técnicos são cidadãos, como as outras
pessoas.
Em três das turmas, os grupos que representavam os líderes militares usaram como
argumento que as forças armadas deveriam controlar o desenvolvimento e aplicação da ciência
e da tecnologia, pois estariam mais qualificados para tomar estas decisões do que as empresas
que buscam lucro ou os cidadãos normais. Esta postura se explica pelo fato da discussão
envolver o tema da tecnologia armamentista, porém é importante ressaltar que na terceira etapa
da atividade os alunos apresentaram a opinião hegemônica de que é importante que a sociedade
como um todo participe das decisões relativas ao desenvolvimento e ao uso das tecnologias que
a afetam como um todo (PRAIA, GIL-PÉREZ e VILCHES, 2007).
O segundo mito apresentado é o da perspectiva salvacionista da CT (ciência e
tecnologia), que carrega a ideia de que mais ciência significa mais tecnologia, que significa
mais progresso, que significa mais bem-estar social, o que chamamos de modelo de progresso
linear. Também carrega fortemente a ideia de que a ciência e a tecnologia são desenvolvidas
sempre para solucionar problemas da humanidade. Os argumentos apresentados neste ponto da
atividade por alguns grupos apresentam uma visão predominante que se encontra de acordo
com o este mito:
É importante que haja crescimento econômico e a economia se aquece com a produção e venda
de armamento, que faz com que a produção deste tipo de tecnologia se justifique.
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Os países desenvolvidos são potências mundiais através do crescimento da economia, que se
dá a partir do domínio da tecnologia.
Para ter segurança, é necessário ter tecnologia. A tecnologia faz as pessoas se sentirem
seguras.
As pessoas em regiões de conflito se encontram em desvantagem tecnológica, por isso não
possuem condições de bem-estar social.
Por outro lado, já na fase inicial da atividade, alguns grupos que desempenhavam o papel das
pessoas em regiões de conflito combateram a visão de neutralidade da tecnologia ou um papel
puramente progressista desta. O argumento principal usado por estes grupos foi o de que para
as regiões de conflito só chega a tecnologia bélica, que traz morte e destruição. Um dos grupos
ainda terminou argumentando que “quando a tecnologia causa mortes, ela deixa de ser evolução
e passa a ser retrocesso”.
O terceiro mito, o determinismo tecnológico, remete à ideia de que a tecnologia é
autônoma e tanto a sociedade como o próprio ser humano são produtos do avanço tecnológico.
Os avanços tecnológicos definiriam os limites de uma sociedade e não dependeriam de
influência social alguma. Este foi o ponto menos presente no discurso dos alunos, porém ainda
é possível encontrar traços desta forma de pensar quando os argumentos usados são que:
O desenvolvimento se baseia na tecnologia.
A responsabilidade do uso não é dos desenvolvedores.
A tecnologia é usada para a destruição porque ela está disponível para este fim.
Alguns grupos ainda defenderam que o caminho do desenvolvimento tecnológico inicial para
fins armamentistas com posterior desenvolvimento para aplicações civis benéficas à população
em geral seria o caminho natural da tecnologia, que isso seria perceptível através de um simples
estudo dos desenvolvimentos posteriores aos grandes conflitos armados ao longo da história da
humanidade. Esta é uma visão que nos deixa um bom indicador dos rumos que poderiam ser
definidos para um trabalho continuado de alfabetização científica com uma perspectiva
ampliada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A aplicação da questão 20211 do questionário PIEARCTS nos deu resultados
suficientes para uma primeira análise das concepções do grupo de alunos a respeito da
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influência das empresas e indústrias sobre o desenvolvimento de ciência e tecnologia. A análise
destas respostas permitiu a elaboração da atividade de controvérsia controlada proposta neste
trabalho.
A atividade de controvérsia controlada foi extremamente satisfatória por si só. Uma boa
parte dos alunos mostrou satisfação em participar de uma atividade na disciplina de Física que
não tratava apenas de cálculos e conceitos isolados, mas da discussão sobre o desenvolvimento
da ciência e da tecnologia e a forma como estas duas influenciam a sociedade como um todo.
Foi percebida no debate uma noção por parte dos alunos de que a própria sociedade pode
influenciar também os rumos da aplicação da ciência e da tecnologia, desde que perceba e possa
avaliar de maneira clara os impactos que estas aplicações causarão (PRAIA, GIL-PÉREZ e
VILCHES, 2007).
O pós-teste com a mesma questão do PIEARCTS não apresentou uma melhora nos
índices atitudinais dos alunos, porém isto não representa uma preocupação e nem invalida a
atividade. Até mesmo os índices de frases que apresentaram uma piora são indicadores de uma
mudança de pensamento e reavaliação da situação por parte do grupo. É importante lembrar
que a atividade de controvérsia não visa modelar opiniões ou definir um certo ou errado, mas
oportunizar a discussão no grupo de alunos, permitindo a análise de variados pontos de vista.
A HQ utilizada como material motivador da discussão desempenhou o papel esperado
e permitiu aos alunos uma clara visão dos temas a respeito dos quais eles deveriam argumentar.
Os resultados da atividade até este ponto nos permitem acreditar que esta foi muito válida para
contribuir para o processo de alfabetização científica dos alunos a partir de uma perspectiva
ampliada ao trabalhar temas que fogem ao currículo tradicional, mas permitem discussões
valiosas sobre a NdC&T.
REFERÊNCIAS
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ENSAIO – Pesquisa em Educação em Ciências, v.3, n.1, 2001.
BENNÀSSAR-ROIG, Antoni et al. (Org.). Ciencia, Tecnología y Sociedad en
Iberoamérica: uma evaluación de la comprensión de la naturaliza de ciência y tecnología.
Madrid: gráfica futura, 2007.
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BERENBLUM, Andréa. Por uma política de formação de leitores. Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006.
CHRISPINO, Alvaro. Ciência, Tecnologia e Sociedade. Módulo do Curso de Especialização
em Educação Tecnológica, UAB/CEFET-RJ, aula 11. Mimeo, 2008.
COUTINHO, Clara Pereira; CHAVES, José Henrique. O estudo de caso na investigação em
Tecnologia Educativa em Portugal. Revista Portuguesa de Educação, v.15, n. 1, 2002, p.
221-243.
LISINGEN, Luana von. Mangás e sua utilização pedagógica no ensino de ciências sob a
perspectiva CTS. Ciência & Ensino, v.1, n. especial, 2007.
PRAIA, João; GIL-PÉREZ, Daniel; VILCHES, Amparo. O papel da natureza da ciência na
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RAMOS, Paulo. A leitura dos quadrinhos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2014.
REIS, Pedro. A escola e as controvérsias sociocientíficas. Perspectivas de alunos e
professores. Lisboa: Escolar Editora, 2008.