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A Corrupção No Estado Pos Colonial Duas Visões Lierarias

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o livro problematiza as questões de memória, tradição e cultura nas políticas de dominação e poder pós-colonial diante da formação dos estados emancipados cuja corrupção rompe com o ideal de resgate identitário.

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  • A Corrupo no EstAdo ps-ColoniAl Em friCA

    duas vises literrias

  • Ana Maria Duarte Frade

    A Corrupo no EstAdo ps-ColoniAl Em friCA

    duas vises literrias

  • A Corrupo no EstAdo ps-ColoniAl Em friCA DuAs vises literriAs

    Autor: Ana Maria Duarte FradeEditor: Centro de Estudos Africanos da Universidade do PortoColeco: e-booksEdio: 1 (Abril/2007). ISBN: 978-972-99727-6-8

    Localizao: http://www.africanos.eu

    Referncia bibliogrfica:FRADE, Ana Maria Duarte. 2007. A corrupo no Estado Ps-Colonial em frica. Duas Vises Literrias. ISBN: 978-972-99727-6-8. Porto: Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto. http://www.africanos.eu

    Observao: Dissertao de Mestrado em Estudos Africanos, orientada por Prof. Doutores Antnio Custdio Gonalves e Jos Carlos Venncio, 2004.

    Preo: gratuito na edio electrnica, acesso por download.Solicitao ao leitor: Transmita-nos ([email protected]) a sua opinio sobre este trabalho.

    : permitida a cpia de partes deste documento, sem qualquer modificao, para utilizao individual. A reproduo de partes do seu contedo permitida exclusivamente em documentos cientficos, com in-dicao expressa da fonte.

    No permitida qualquer utilizao comercial. No permitida a sua disponibilizao atravs de rede electrnica ou qualquer forma de partilha electrnica.

    Em caso de dvida ou pedido de autorizao, contactar directamente o CEAUP ([email protected]).

  • NDICE

    introduo 13 01. EnquAdrAmEnto tEriCo 19 1. O fenmeno da corrupo 19 1.1. A corrupo nos pases africanos: os casos de Angola

    e de Moambique 30 1.2. A Literatura e a denncia da corrupo 40 02. A Corrupo: duAs visEs litErriAs 50 2. A corrupo na literatura angolana e moambicana

    ps-colonial 50 2.1. O ltimo Voo do Flamingo 58 2.1.1. O Tradutor: um narrador incriminatrio 59 2.1.2. A corrupo em O ltimo Voo do Flamingo 63 2.2. Jaime Bunda, Agente Secreto 74 2.2.1. Quatro narradores: quatro testemunhas de acusao

    em Jaime Bunda, Agente Secreto 77 03. miA Couto E pEpEtElA: EnContros

    E dEsEnContros 97 3.1. Duas geraes: o contexto 97 3.2. Estrutura e estratgias adoptadas 113 ConCluso 119 BiBliogrAfiA 125 Activa 125 Geral 126

  • Quando um indivduo se decide a enfrentar o papel sujeita-se voluntariamente a tudo.

    Pepetela, O Co e Os Caluandas

  • Agradeo ao Professor Doutor Jos Carlos Venncio a disponibilida-de, a orientao e os incentivos desinteressados, que foram fundamen-tais para a elaborao deste estudo.

    Uma palavra, tambm, de apreo ao Professor Doutor Antnio Cus-tdio Gonalves que, sem hesitao, aceitou co-orientar esta tese.

    Agradeo ainda aos meus novos Amigos: Ana, Rosa Maria e ao Arlindo todo o apoio imprescindvel, quer nas sugestes, quer na contri-buio bibliogrfica. A eles, muito obrigada.

    Ao Joo, que me proibiu de fazer qualquer referncia, agradeo em privado. Sem ele, nada disto teria sido possvel!

    s minhas filhas, Mariana e Joana, que nasceram e cresceram du-rante a frequncia deste mestrado, pela ternura, pela inocncia e pela ingenuidade, que nos leva a lutar contra os predadores humanos. Que tambm as crianas de frica possam ter um mundo melhor!

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    INTRODUO

    A corrupo no conhece fronteiras geogrficas nem histricas. O fenmeno atinge todas as sociedades e poder pr em causa o prprio sistema democrtico. O sufrgio, mesmo quando, efectivamente, uni-versal e directo, pode no ter em conta certas realidades ocultas que contribuem para adulterar a justia dos seus resultados. O financiamen-to dos partidos polticos, os jobs for the boys, a promiscuidade entre o mundo do futebol e o poder local, o aparecimento de poderosas organi-zaes criminosas escala global geram outras formas de representao, mecanismos de poder e de contrapoder que se sobrepem ao modo nor-mal e legtimo do exerccio da soberania.

    As situaes em que um funcionrio (...) solicita ou aceita uma van-tagem patrimonial ou no patrimonial (ou a sua promessa) como con-trapartida de um acto (lcito ou ilcito, passado ou futuro) que traduz o exerccio efectivo do cargo em que se encontra investido (Costa, 2001: 655) so categoricamente condenadas no chamado mundo ocidental. O mesmo se passa porventura com muitas outras condutas que embora no caibam nos tipos legais de crime so reprovadas do ponto de vista social. Exige-se do funcionrio a persecuo do interesse pblico mediante uma actuao pautada pela observncia estrita da legalidade, da transparn-cia, da objectividade e da independncia. O particular no pode abusar das suas funes, substituindo-se ao Estado e invadindo a sua rea de actuao. No pode utilizar o Estado, o poder que o exerccio das suas funes lhe confere, para seu proveito pessoal.

    A corrupo (independentemente da sua tipificao ou no como crime) , todavia, de certa forma, legitimada nas sociedades africanas(1)

    1 Embora denunciem o fenmeno da corrupo, a maioria dos escritores desculpabiliza o crime num cenrio de fome e de misria, conforme se constatar no presente trabalho. Tahar Bem Jelloun chama- -lhe contribuio para a solidariedade nacional, em O Homem Quebrado (1995: 36).

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    desde que alimente uma rede de clientes (Chabal e Daloz, 2001: 157) e serve para a manuteno de uma economia informal, paralela, onde os vnculos familiares, os grupos, as cores polticas, o status, desempenham um papel muito importante. A racionalidade administrativa, com todos os princpios e deveres que lhe andam associados no mundo ocidental, d lugar a outras lgicas, a discursos alternativos, a linguagens diferen-tes, que s uma anlise global e socialmente inserida permite desvendar e compreender.

    A nossa anlise centra-se na corrupo, no Estado ps-colonial(2), atravs do testemunho de dois escritores paradigmticos. Mia Couto e Pepetela revelam em O ltimo Voo do Flamingo e Jaime Bunda, Agente Secreto, respectivamente, um mecanismo de funcionamento do prprio Estado. Com um Estado no institucionalizado, no burocrtico(3), neo-patrimonial e que no consegue afirmar-se como entidade abstracta, au-tnoma e diferente dos seus titulares, as formas de controlo no existem. Mesmo os rgos que, pretensamente, o deviam fazer esto contamina-dos. A infeco tambm os atingiu, impedindo-os de desempenharem, cabalmente, as suas funes. Utilizando a clarificadora sntese de uma personagem de Tahar Bem Jelloun, neste pas, os ladres so protegi-dos, os corruptos encorajados e as pessoas honestas perseguidas (1995: 141). A prpria sociedade civil, talvez por debilidade, no encontra meca-nismos de tutela, capazes de superar o problema ou, pelo menos, reduzir a sua frequncia a uma margem ainda aceitvel. No fundo ela tambm conivente, olhando esses comportamentos com muita indulgncia, na expectativa de um dia tambm gozar dos seus avultados benefcios.

    A independncia, que prometia melhores condies de vida para o povo colonizado, traduziu-se numa longa guerra civil motivada pelo egosmo de alguns, pela nsia de poder e de riqueza, ainda que por meios ilcitos, de outros. A falta de transparncia de uma Administrao P-blica, que perdeu os seus quadros mais qualificados, a fome e a misria

    2 Utilizamos o termo ps-colonial no seu sentido emprico. Colonialismo e ps-colonialismo devem ser entendidos nessa perspectiva, referindo-se os vocbulos a um determinado perodo histrico. Assim, por ps-colonialismo, deve entender-se, neste trabalho, o perodo que se inicia com a independncia de Angola e de Moambique.

    3 Entenda-se burocracia luz da teoria weberiana. Administrao burocrtica significa racionalida-de administrativa.

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    favoreceram a corrupo. Os novos detentores do poder aproveitaram todas as oportunidades proporcionadas pelos dois paradigmas polticos que marcaram o perodo que se seguiu independncia formal. Primeiro o marxismo, depois o liberalismo serviram para a concretizao dos in-teresses individuais. Duas conjunturas para os mesmos rostos. As elites recicladas no abdicaram de continuar a enriquecer de forma ilcita. S o povo continua a sofrer, esquecido. Mudaram-se apenas as etiquetas.

    Comeamos por abordar, no primeiro captulo, o conceito de cor-rupo e a sua legitimidade social nos pases subdesenvolvidos, parti-cularizando o caso de Angola e de Moambique. Estar em causa no o conceito jurdico, de contornos claramente definidos e limitados, mas o conceito corrente, tal como emerge nas representaes sincrticas do quotidiano. A anlise no ser, portanto, jurdica mas literria. Melhor: sero duas vises literrias da corrupo no Estado ps-colonial de An-gola e de Moambique.

    Os anos 90 do sculo passado, considerados como a dcada do vazio filosfico e do capitalismo selvagem, assistiram utilizao das lgicas e das potencialidades da globalizao para a organizao do crime (Ro-drigues, 1999: 12). O fenmeno da corrupo agravou-se. Os nmeros, na sua frieza habitual, so inequvocos. As estatsticas demonstram o seu peso crescente. A dcada de noventa, do sculo XX, a dcada da confirmao da morte de um sonho. Nem o projecto marxista, nem o neo-liberalismo contriburam para o concretizar da utopia. Os pases africanos esto cada vez mais marginalizados num mundo global, mas ao mesmo tempo alimentam o mundo dos ricos, dos poderosos, numa teia de corrupo, de trfico de armamento, de explorao humana, de branqueamento de capitais (complemento natural daqueles) que amea-a a sua prpria sobrevivncia.

    Esta situao calamitosa, principalmente quando observada pelos olhos de um ocidental, treinados para repudiarem esses comportamen-tos, tem certamente reflexos na narrativa literria ps-colonial, como demonstra uma simples abordagem sincrnica. O relacionamento da li-teratura com o tema da corrupo, acentuou-se no fechar do sculo XX, consistindo o tema central ou, pelo menos, lateral de muitas obras. As referncias multiplicaram-se e confirmam uma mudana de paradigma.

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    A independncia esgotou o anterior filo e, em consequncia, arrastou outras temticas mais ajustadas s novas realidades. Os temas em voga so agora outros. O combate muito diferente. A ameaa j no est no colonizador, na falta de afirmao de uma identidade nacional, mas na necessidade de criar uma nova utopia. Uma sociedade mais justa, baseada na igualdade de oportunidades e de direitos. A denncia da corrupo tornou-se uma necessidade imperiosa e foi ganhando expres-so crescente.

    Analisar de que forma o fenmeno ficcionado, atravs de dois escri-tores que estiveram comprometidos com o nacionalismo, abraando um projecto de modernidade, nem sempre consentneo com a tradio afri-cana, uma das intenes primordiais deste trabalho, a focar no segundo captulo, e tem como fontes as obras literrias j designadas. O ltimo Voo do Flamingo e Jaime Bunda, Agente Secreto so o ponto de partida para uma viagem por universos ficcionais diferentes, que partiram de matrizes, discursos e pressupostos diversos, mas que se unificam e complementam pela anlise do mesmo problema formando uma unidade substancial: um longo, coerente e contundente libelo anti-corrupo. Esta unidade subs-tancial ser, no entanto, obra de um feliz acaso ou corresponde ao pulsar profundo de duas sociedades marcadas pela corrupo? Nesse caso, mais do que duas vises literrias, teremos dois documentos sociolgicos, con-tributos para uma verdadeira anlise social. Em suma: duas vises cifra-das da realidade e que se corroboram mutuamente.

    Ao desmontarmos os universos narrativos, no pretendemos, toda-via, retirar o encanto das obras literrias. Tal com Pierre Bordieu afirma: O encanto da obra literria liga-se de certo em grande parte ao facto de ela falar das coisas mais srias, sem exigir, diferentemente da cincia segundo Searle, que a tomemos inteiramente a srio. A escrita oferece ao prprio autor e ao leitor a possibilidade de uma compreenso denegan-te, que no porm uma compreenso at meio (Bordieu, 1996: 55).

    Aps a anlise da representao da corrupo nestes dois escritores paradigmticos, importa apurar em que circunstncias a sua criao li-terria se processa, partindo das experincias quotidianas individuais e no esquecendo a gerao e o contexto ideolgico de ambos. Entramos, assim, no ltimo captulo, no mbito da literatura comparada, verifi-

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    cando as aproximaes e os afastamentos dos textos literrios dos dois escritores, enquanto instncias autorais que problematizam a realidade coeva. So apenas encontros e desencontros, pontes, vises convergen-tes e divergentes, contradies ...

    No obstante a importncia e a dimenso do fenmeno da corrup-o capaz de lhe conferir dignidade de assunto literrio , falta uma re-flexo crtica actual sobre a sua influncia na literatura. Esta influncia no foi ainda inventariada, nem discutida. As razes da sua existncia tambm ainda no foram apuradas, ponderadas e analisadas com rigor cientfico. Se os autores escolheram o fenmeno da corrupo para tema central das suas obras porque o consideram extremamente importante. No ser, certamente, apenas um mero exerccio egosta de puro virtu-osismo literrio! Talvez procurem, como bem dizia Cunha Rodrigues, difundir uma cultura cvica que recrie valores numa ptica de liberdade e de igualdade (1999: 29)(4).

    Pisamos, portanto, terreno virgem. No domnio penal, criminolgi-co e sociolgico h muitos companheiros de viagem. A sua leitura com-pleta praticamente impossvel. Faltariam sempre autores importantes, obras de referncia deste ou daquele canto do mundo. J no campo da crtica literria caminhamos quase sempre sozinhos. Os nossos acompa-nhantes ocasionais no partilham dos mesmos objectivos e, at quando nos cruzamos, por pouco tempo e para logo prosseguirmos por vere-das diferentes.

    Viajamos, assim, acompanhados apenas pelo Flamingo e pelo Jaime. Mas as personagens que eles convocam (na sua polifonia) so vozes suficientes para que no nos sintamos sozinhos. claro que, de vez em quando, socorremo-nos de outras testemunhas oculares, oriun-das da literatura, do direito, da sociologia, da antropologia. Nesses

    4 Anthony Giddens, para quem a democracia est em crise e necessita de ser democratizada, advoga, tambm, a necessidade de impulsionar uma cultura cvica. Na era da globalizao urgente deixar de pensar que a sociedade apenas composta por dois sectores: o Estado e o mercado, ou o sector pblico e o privado. Entre os dois encontra-se a rea da sociedade civil, que inclui a famlia e outras instituies de natureza no econmica. A construo da democracia das emoes um dos aspectos da cultura cvica progressiva. A sociedade civil o frum onde as atitudes democrticas, incluindo a tolerncia, tm de ser cultivadas. A componente civil pode ser estimulada pelos governos para, por seu turno, se tornar a base em que eles se apoiam (Giddens, 2001: 77).

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    casos, elas servem apenas para conferir maior expresso quele dueto. So a sua harmonia.

    No final, esperamos ter demonstrado que tambm a literatura um importante e imprescindvel instrumento de denncia da corrupo, contribuindo para a caracterizao do Estado ps-colonial.

  • 1. o fEnmEno dA Corrupo

    Largent apporte le pouvoir, le pouvoir apporte largent et, au nom de ce circle infernal, lhomme abandonne ses convictions, ses rves et sa crativit.

    Brigitte Henri, La corruption: un mal endemique

    A corrupo no um fenmeno da vida moderna(5). Mas, s a partir dos anos noventa, do sculo XX, a sua denncia passou a ser uma preo-cupao dos investigadores, dos escritores, dos jornalistas, de alguns po-lticos e das instituies internacionais(6). De certa forma, podemos dizer que um dos temas da moda. Um pouco por todo o lado, mesmo nos mais importantes arepagos mundiais, no faltam conferncias, debates, arti-gos, propostas... O habitual circo dos polticos e da comunicao social, a que se juntam outras intervenes, porventura cientificamente mais fundadas e com propsitos mais srios, mas com muito menos impac-to. Muitas destas ltimas contribuies situam-se, sem dvida, na rea privilegiada da literatura. Voluntria ou involuntariamente, os autores inserem-se no seu tempo, reflectindo as suas virtudes e os seus defeitos. E, como advoga o narrador de O Co e os Caluandas, um escritor no deve ter escrpulos, caso contrrio no poderia escrever sobre pessoas

    5 Por vida moderna deve entender-se um modo de organizao social, que na perspectiva de Gid-dens assenta em quatro dimenses institucionais fundamentais que se inter-relacionam: industrialismo, capitalismo, vigilncia e poder militar (Giddens, 2002: 42).

    6 Um dos objectivos do Comit de Ajuda ao Desenvolvimento, da OCDE, traados e no traados (no documento Cooperao para o Desenvolvimento no limiar do sculo XXI) para 2015 o combate cor-rupo. J em 1997, foi assinada a Conveno Internacional contra a corrupo, pelos pases da OCDE.

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    ENqUADRAmENTO TERICO .01

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    reais. O escritor deve ser cruel e desumano, essa a sua humanidade (Pepetela, 1995: 92).

    Embora se assista a uma crescente cultura de denncia, o flagelo continua, no entanto, sem cura. O avolumar da denncia ainda no con-tribuiu, decisivamente, para a sua diminuio. Pelo contrrio, parece fonte de inspirao para novos corruptos, vidos, tambm eles, do enri-quecimento fcil e a todo o custo.

    A corrupo uma realidade transnacional que abrange todas as so-ciedades, sejam do norte ou sejam do sul. Nos pases subdesenvolvidos, ao nvel cultural e econmico, esta realidade atinge, contudo, propor-es mais alarmantes, gerando verdadeiras oligarquias, Estados dentro do Estado, originando para alguns (poucos) a acumulao de fortunas colossais e para outros (muitos) a mais ignbil misria. A desinforma-lizao da economia e do prprio Estado solo frtil para o seu germi-nar. mais fcil manipular (para proveito pessoal claro) um Estado debilitado do que um Estado forte(7), sobretudo quando a sociedade civil no ajuda, no exercendo uma imprescindvel funo de controlo, por absoluta incapacidade.

    O fenmeno da corrupo pode ser abordado sob vrias perspecti-vas, desde a sociolgica jurdica. Numa perspectiva jurdica, teremos, por fora da fragmentariedade, subsidariedade e ultima ratio do direito penal, um conceito tcnico recortado e restritivo. Assim, resume-se a comportamentos activos ou passivos previstos nos respectivos tipos le-gais de crime, sendo, devido aos princpios da legalidade e da tipicidade, inimaginvel qualquer tentativa de extenso analgica daquelas condu-tas. Pelo menos, num Estado de direito democrtico. S as condutas pre-vistas como crimes podero ser consideradas. Os tipos legais funcionam

    7 O princpio nullum crime sine lege pode, em Estados menos fortalecidos ou onde a separao de poderes no to ntida, ser habilmente manobrado para a concretizao de interesses individuais. A existncia de lacunas premeditadas, de leis individuais e concretas (aprovadas anteriormente conduta e, sob o manto legitimador da generalidade, dirigidas para esse caso concreto) ou mesmo de amnistias e de perdes (posteriores) permite aos seus feitores uma impunidade indesejada e, muitas vezes, incompre-ensvel aos olhos da sociedade civil. Ainda recentemente Berlusconi, primeiro-ministro italiano, tentou utilizar este expediente para fugir s malhas da justia. Aquilo que uma garantia sagrada do direito penal converte-se, assim, num obstculo inultrapassvel realizao do direito, realizao da justia. Alis, na lcida anlise de Luigi Ferrajoli, um dos maiores penalistas europeus vivos, a criminalidade do poder caracteriza-se por uma pretenso impunidade (2003: 12).

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    como um culo que apenas permite visionar aquilo que no legal. O resto, por mais injusto que possa parecer, irrelevante. Do ponto de vista normativo, a corrupo consiste, pois, num desvio. o desrespeito por um procedimento regular, devido, legal, uma violao da imparcialida-de, da independncia, da objectividade e da legalidade que num Estado de direito devem comandar o exerccio da funo pblica.

    Numa perspectiva scio-cultural, atentas as representaes sintti-cas do quotidiano, temos um conceito fludo, que se expande ou retrai, consoante as valoraes e preocupaes de cada poca. J no se trata de um modelo jurdico-cientfico, mas de um modelo scio-cultural, onde se cruzam realidades to distintas como: a corrupo; o trfico de influncias; o abuso de poder; o peculato; os modernos: branqueamen-to de capitais; trfico de estupefacientes ou de armas e, o ainda mais recente, trfico de pessoas/orgos e de espcies em vias de extino. , tambm, tendo presente estas representaes quotidianas, que partimos para a anlise deste comportamento desviante.

    Na linguagem comum we call corrupt a public servant who accepts gifts bestowed by a private person with the object of inducing him to give special consideration to the interests of de donor. Para Syed Hussein Ala-tas, a corrupo abrange, no entanto, trs contedos: suborno, extoro e nepotismo (1999: 6, 7). Na Conveno Internacional contra a Corrup-o, assinada pelos pases da OCDE, em 1997, esta definida, em termos amplos, como de use of public office for private gains. Alexandra Mills defende que in this sense corruption can be seen as a failure of the ethics of public administration, with the result that, in remedial terms, many of the same measures to prevent corruption can be applied to promote ethics (2001: 142).

    A corrupo marca presena em todas as sociedades(8). Cada vez mais a populao de todos os cantos do mundo vai tomando conscincia da sua presena insidiosa. Mesmo no ocidente, que se pensava imune, que julgava t-la erradicado ou, pelo menos, remetido para valores social-mente suportveis, descobre-se, agora, com surpresa, que a corrupo

    8 Sobre a corrupo na sia, nomeadamente na Indonsia, ver o interessante estudo de Syed Hus-sein Alatas (1999).

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    continua a subsistir, inclusivamente ao mais alto nvel(9). No continen-te africano, todavia, la corruption nest pas une drive de ltat mais un mode de fonctionnement de ltat(10) (Henri, 2002: 111) e afecta de forma mais incisiva a sociedade civil do que no norte.

    Analisar as causas e os efeitos da corrupo uma tarefa gigantesca, complicada a que, no entender de Syed H. Alatas, a prpria sociologia no tem dado a devida ateno e abrange realidades to distintas quanto o ngulo de anlise. Contudo, os dicionrios do passado e os de hoje in-cidem no mesmo tpico, s que hoje, os polticos, os homens do futebol, juntam-se aos advogados no ponto de mira da CORRUPO (Vilela, 2002: 299. Maisculas no original).

    Em pleno sculo XXI, a corrupo tornou-se notcia, invadiu os meios de comunicao social e desde polticos a homens do futebol muitos so alvo de investigaes criminais. O Estado moderno no conseguiu erra-dic-la. O racionalismo burocrtico, a transparncia da Administrao Pblica, a imposio de exigncias de legalidade, objectividade e inde-pendncia, no exerccio de cargos pblicos no foram suficientes para a afastar. Ao mesmo tempo, cresceram tambm o hedonismo, o sucesso a todo o custo e, sobretudo, o materialismo. Para alguns, todas as vias so possveis para ascender socialmente, para obter riqueza, para con-seguir o sucesso. A criminalidade que hoje ameaa maioritariamente os direitos, a democracia, a paz e o prprio futuro do nosso planeta antes de tudo uma criminalidade do poder: um fenmeno j no marginal nem excepcional, como a criminalidade tradicional, mas sim inserido no funcionamento normal da sociedade (Ferrajoli, 2003: 9). Isto : as ofertas, as comisses, a peita, o suborno, tornam-se decorrncias nor-mais do exerccio de funes pblicas, transformando-se numa espcie de retribuio suplementar, que todos olham com indulgncia e muitos almejam mesmo tambm alcanar. O desvio converte-se em norma, ins-

    9 Os exemplos das americanas Enron e World.com, e mais recentemente da italiana Parmalat, reve-lam, com clareza, essa realidade. A falsificao dos balanos, das contas, dos resultados, consequncia de uma concorrncia feroz, selvagem, que no olha a meios e que imune a quaisquer valores. Vale tudo. Ao ponto de j se falar nas mais prestigiadas universidades americanas na introduo de cadeiras de tica nos cursos de gesto.

    10 Alis, em frica o Estado no existe como uma entidade abstracta. O Estado a pessoa que con-trola os recursos, como salienta Mrard (apud Henri, 2002: 111).

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    titucionaliza-se, quase que ganha legitimidade oficial. Os seus custos podem ser calculados e podem at ser repercutidos. H algum que no lhe paga a renda. Mete-lhe um processo. Se seguir as vias normais, isso poder demorar quatro a cinco anos. Se seguir as vias paralelas, o seu assunto poder ficar arrumado em alguns meses. E s essa via que re-sulta. Acredite, no nem m nem desonesta. razovel, realista. Voc sofre as falhas do Estado. Eu sou pela justia e pelo Direito. Mas quando toda a gente entra pela porta das traseiras e tudo tratado nos corredo-res, seria um suicdio agir de outra forma. O pas funciona bem assim. H maneira de renunciar a este sistema? No creio. E depois, as pessoas j se habituaram. Antes mesmo de fazer as diligncias normais, como, por exemplo, ir buscar um documento o que simples comeam por procurar quem possa intervir... a contribuio para a solidariedade na-cional. A corrupo uma forma disfarada de imposto complementar (Jelloun, 1995: 36).

    O problema agudiza-se quando o Estado nem sequer est institucio-nalizado. Em frica, o Estado moderno no conseguiu implementar-se(11). Os preceitos da modernidade (racionalidade econmica e inovao tec-nolgica) no foram concretizados. Embora os dirigentes africanos preco-nizem o Estado Moderno, na prtica reivindicam valores tradicionais(12).

    11 Doravante sempre que nos referirmos a frica, continente africano ou outras expresses anlogas, estamos a centrar-nos, obviamente, na frica subsariana, particularizando, no decorrer da anlise, os casos de Angola e de Moambique.

    12 Chabal e Daloz salientam que o que se verifica em frica paradoxal. A tradio e a religio so instrumentalizadas pelos polticos (2001: 190-202). Na verdade, o Estado moderno laico. Existe uma separao ntida entre o religioso e o poltico. A religio limita-se esfera privada, o que no se verifica nas sociedades africanas. O mesmo sucede com as crenas ou bruxarias! Tanto se utiliza um telemvel de ltima gerao (smbolo da modernidade tecnolgica) como se recorre a um curandeiro.

    Maurice Godelier, em O Enigma da Ddiva, ao analisar a essncia divina do Fara (2000: 246), salienta que a religio oferece modelos de poder aos homens. A religio forneceu a ideia de relaes hierrquicas, assimtricas, origem simultaneamente de obrigaes recprocas e de relaes de obedincia situadas para alm de qualquer reciprocidade. No preciso recuar to longe para encontrar resqu-cios da legitimao teocrtica do poder. Lus XIV, por exemplo, que pelo menos encontrou na frmula de divinizao do Estado essa legitimao. Cfr. Eduardo Loureno, O Esplendor do Caos, (2002: 109). O jusnaturalismo jurdico tambm contm exemplos claros duma tentativa de fundamentao divina do direito. Cfr. Wieacker, Franz, Histria do direito privado moderno (1980: 279 e ss.)

    Ainda recentemente na Guerra do Iraque, Saddam Hussein, no seu discurso ao mundo, de 24/03/03, falava de Guerra Santa, na necessidade de combater o Mal. Enquanto que o presidente George W. Buch invocava sempre a palavra Deus. A poltica instrumentaliza a religio. Balandier diz mesmo que o sagrado uma das dimenses do campo poltico; a religio pode ser um instrumento do poder, uma garantia da sua legitimidade, um dos meios utilizado no quadro das competies polticas... A estratgia do sagrado,

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    Para MAPPA (que efectuou uma srie de entrevistas a lderes africanos), os polticos entrevistados no destinguem o Estado enquanto instituio e os homens que o ocupam (1998: 169)(13). No existe uma administrao burocrtica. Ou seja uma administrao por fora do saber: esse carcter fundamental, especificamente racional do Estado Moderno (Weber, in Cruz, 2001: 689). No se observa uma dominao de carcter racional, a ordem no impessoal, objectiva, independente, abstracta, legalmen-te estatuda, mas sim ordem pessoal e no h separao de poderes. O Estado surge personalizado. A sua no institucionalizao relativamente populao no legitima uma efectiva representao poltica nacional. Em suma, no se pode afirmar uma verdadeira autonomia intencional do prprio Estado, dirigida realizao das necessidades mais essenciais ao funcionamento de uma sociedade organizada. O Estado no se conseguiu afirmar como entidade abstracta, que afirma e prossegue finalidades pr-prias e independentes das razes individuais.

    Trata-se de um Estado onde o poder pessoal, onde as dicotomias Estado/Sociedade Civil, pblico/privado, formal/informal, fundamen-tos do Estado Moderno, no existem. A fronteira entre o social, o poltico e o econmico terica. Na prtica, assiste-se (transpondo a observao de Boaventura Sousa Santos do caso portugus para alguns pases da frica subsariana) a um processo de Privatizao do Estado (recursos

    desenvolvida com fins polticos, apresenta-se sob dois aspectos aparentemente contraditrios; pode ser posta ao servio da ordem social existente e das posies adquiridas, ou servir a ambio daqueles que pretendem conquistar a autoridade e legitim-la (1987: 121, 122). A relao da poltica com o sagrado importante para compreendermos certos aspectos do poder poltico nas sociedades focadas nas obras literrias em anlise, nomeadamente angolana e moambicana. O poder nunca completamente dessa-cralizado e, como constata Balandier, nas sociedades ditas tradicionais essa relao impe-se como uma espcie de evidncia. Discreto ou aparente, o sagrado est sempre presente no seio do poder (1987: 48). Mesmo nas sociedades modernas laicizadas continua aparente: nelas o poder nunca est inteiramente esvaziado do seu contedo religioso, que se mantm presente reduzido e discreto. Se o Estado e a Igreja so um s na origem, quando a sociedade civil instaurada assim o constata Herbert Spencer nos seus Principles of Sociology -, o Estado conserva sempre parcialmente um carcter de Igreja, mesmo quando se situa no termo de um longo processo de laicizao(106).

    13 Este um tema muitas vezes abordado na literatura. A obra O Ministro, de Uanhenga Xitu para-digmtica. Um bom ministro tem de ser corrupto. Tem de confundir o exerccio do seu cargo e a persecu-o do interesse pblico com a realizao dos seus prprios interesses pessoais. Tem de saber redistribuir pelos seus familiares e amigos. esta a imagem que os polticos tm socialmente. Quando no sabes roubar como ministro porque no aprendeste bem o significado do ministro. No serves, ouviste, hein, rapaz? (1990: 112). Cabrito come onde est agarrado, provrbio africano, citado em O ltimo Voo do Flamingo, de Mia Couto, tambm ilustrativo de um suposto beneplcito social.

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    estatais postos ao servio de grupos de indivduos e para persecuo dos seus interesses particulares) e que em perodos democrticos transforma os partidos sobretudo o governante, em mecanismos privilegiados de mobilidade social (1999: 62). Jos Diquissoned Tole defende, tambm, a mesma tese para o caso de Moambique o comportamento da classe-Estado constitui uma das explicaes do estado de crise em que o pas se encontra. A classe-Estado utilizou os recursos em benefcio prprio, em consumo ostentatrio manifesto na compra de automveis de luxo, no consumo de bens importados, viagens, frias, reproduzindo as desi-gualdades sociais j existentes (1995: 257). Mais curioso o caso de Angola, onde o altamente personalizado Estado Presidencial consegue promover o seu prprio empreendimento filantrpico privado em nome de causas sociais quando o seu prprio Governo, a que presidiu durante mais de duas dcadas, falhou de forma to lamentvel (Hodges, 2002: 92). Tony Hodges refere-se criao da Fundao Jos Eduardo dos Santos, concluindo que a criao da FESA tem como verdadeiro objec-tivo promover a boa reputao pblica do chefe do Estado de forma a garantir-lhe um crdito pessoal por aces que deviam ser, de facto fi-nanciadas e implementadas atravs das instituies e dos programas do prprio governo. Para alm de usar o nome do presidente, o que cria uma aura de preocupao e generosidade presidenciais (aparentemente em contradio com a verdadeira origem dos fundos), a FESA abre uma nova via ao clientelismo, ao atrair para o seu ciclo ONG, intelectuais e outros que procuram garantir o seu prprio financiamento. Nas pala-vras de Messiant, a FESA coroa o processo de privatizao do Estado (2002: 92, 93). Ser a FESA uma forma de comprar a sociedade civil?

    Carlos Pacheco fala de um determinado ncleo de pessoas perten-centes classe burocrtica que ter desviado recursos para enriqueci-mento ilcito de elites entre 600 a 800 milhes de dlares. O historiador angolano advoga que se assiste ao colapso do Estado que apenas existe enquanto instrumento ao servio dessa classe predadora (2000: 101, 102). O farol que o norteia no aponta a realizao do interesse pblico, a satisfao das necessidades comunitrias bsicas mas um mesquinho e encapuzado interesse privado. O Estado moldou-se aos interesses dos detentores do poder.

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    Em frica, o Estado est ao servio da classe dominante e esta asse-gura o seu poder atravs de relaes verticais de clientelismo. O cliente-lismo altera a lgica de aco do Estado. No se procura a deciso mais racional, mais justa, mas aquela que melhor promove os interesses pes-soais. A lgica viver da poltica e no para a poltica. Como salientou Weber h dois tipos de polticos os que vivem para ou da poltica (s.d.: 20), e aqui so estes que pontificam.

    A caracterizao do Estado ps-colonial(14) assenta na teoria neo-patrimonialista, alicerada na tradio weberiana. O grau de patri-monializao dependeu de factores como o investimento das antigas metrpoles nos sectores econmico e educacional e, sobretudo, da pre-sena ou ausncia de matrias-primas ou formas de energia procuradas pela economia mundial (Venncio, 2002a: 26).

    No importa tanto apurar as causas (divergentes), mas fazer o diag-nstico actual onde todas as teorias convergem num ponto: a excessiva personalizao do poder poltico e a monopolizao burocrtica da vida civil (Venncio, 2000: 89-96) que apenas traz riqueza para os actores polticos. Segundo Chabal e Daloz, a desordem actual proveitosa para os detentores do poder(15), que a souberam instrumentalizar de acordo com a sua prpria ordem racional.

    Em frica, existe um Estado(16) que serve para enriquecer a classe poltica, a qual tem legitimidade para o fazer desde que saiba redistri-buir pelos seus clientes. O conceito de legitimidade no pode, pois, ser encarado luz da cultura ocidental, mas convoca a especificidade cultu-

    14 Curiosa a comparao que o investigador e escritor angolano, Arlindo Barbeitos, faz a propsito do Estado Ps-colonial. No seu livro A sociedade Civil, Estado, Cidado, Identidade em Angola, compara os regimes totalitrios ps-coloniais Alemanha nazi e escreve: O paralelismo entre poderes e situaes to dspares quanto os da Alemanha facista e os da Angola ps-colonial perder a estranheza se olharmos para cada constelao a partir do ngulo da arbitrariedade, da violncia e das respectivas consequncias sobre a vida poltica e social dos dois pases. Como a nossa experincia da ps-independncia sobejamen-te o demonstra, a veracidade das palavras mencionadas acima no se resume Alemanha hitleriana (2003: 6).

    15 Convm ter presente que o poder em frica sempre o produto de um confronto entre faces ri-vais, o que tem tambm um peso significativo na instabilidade institucional do continente (Bayard, 1991: 213-228).

    16 No esquecer que, mesmo no estabelecendo um novo paradigma, Chabal, em The Power in Africa, aborda a natureza do poder do Estado. Segundo este africanista, a natureza do poder do Estado mudou aps a independncia em trs aspectos: 1) a noo de legitimidade do Estado; 2) a relao entre o indiv-duo e o Estado e 3) a relao entre recursos e a aco do Estado (1994: 78-80).

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    ral africana. Esta rede de redistribuio, ou a denominada redistribuio clientelar justificada, por alguns, como o retorno ao pr-colonialismo!

    Mas a crise estatal(17), que fundamentalmente a causa da crise afri-cana, deve-se, em boa parte, segundo Jos Carlos Venncio (2000: 95 e 2002a: 22), ao Estado colonial que no soube fundamentar as estruturas necessrias transio(18), bem como falta de vontade ou incapacidade dos governantes e das elites africanas para alterar a ordem das coisas. O mesmo defendido por Tony Hodges. A fraqueza da capacidade institu-cional e dos recursos humanos no , no entanto, a principal causa dos problemas de Angola (2002: 259). Como veremos mais frente, para este autor, o problema de Angola reside na m gesto de um Estado pre-dador, alimentado pelos recursos petro-diamantferos (2002: 17). Ar-lindo Barbeitos corrobora esta ideia ao defender que os colonizadores mesmo que guardem uma responsabilidade histrica que quantas vezes sacodem de si obscenamente, no podem continuar a abarcar bastante das culturas que nos incubem entretanto. De facto, no fomos capazes e no s ns, angolanos de conceber uma alternativa sociedade co-lonial, autnoma, virada para si, sem ser angolanocntrica, aberta e vi-vel, pois apenas pusemos do avesso ou arrummos de esguelha o padro social que antes havia torcido a alma e o corpo (2003: 34, 35).

    Em Moambique, o diagnstico no muito diferente. A dcada de noventa, do sculo passado, considerada por Jos Diquissoned Tole a era por excelncia do clientelismo (1995: 257). O Estado moam-bicano actual tem caractersticas de corrupo que, para o antroplogo Joo Pina Cabral, esto a ser altamente deletrias para a sociedade. As razes dos problemas com que actualmente se debate aquele pas foram plantadas logo aps a independncia quando no houve por parte dos governantes ps-independncia capacidade de constituir uma verdadei-ra democracia em Moambique, isto , de alargar o Estado s populaes que j tinham sido profundamente marginalizadas no Estado Colonial, ou seja: todos os que no estavam no sul (Cabral, 2003).

    17 Ildio do Amaral, j em 1985, observa que o problema do Estado Moderno africano reside no facto de no ter surgido das tradies africanas (1985:66).

    18 Neste sentido, Newitt (1997: 473, 474). Os acordos de Lusaca pecaram por no acautelarem o esvaziamento das estruturas, conduzindo a uma verdadeira imploso da mquina administrativa. De um momento para o outro o Estado ruiu e no foi substitudo.

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    Qualquer anlise histrica, por mais superficial que seja, demonstra que a corrupo sempre existiu. um mal endmico, que infecta o Esta-do, corroendo as suas entranhas, em maior ou menor grau. A infeco ja-mais terminar. O perigo de recidiva estar sempre presente, mesmo que se utilizem fortes antibiticos e vacinas polivalentes. A corrupo no acabar. Erradic-la um lirismo. Seria necessrio mudar primeiro a so-ciedade e, sobretudo, os interesses, a conduta e os anseios individuais.

    A doena agrava-se (tornando-se crnica e epidmica) quando, como acontece em frica, o Estado fraco, confundindo-se, muitas vezes, com as oligarquias dominantes. Nestes casos, a profilaxia e o tra-tamento da epidemia pressupem que o Estado(19) se institucionalize, fortifique e abranja a globalidade do territrio; que a actividade poltica encontre a estabilidade necessria para o lanamento de programas de desenvolvimento sustentado, a mdio e a longo prazo; que os polticos abandonem a miopia e a gesto egosta e prossigam finalmente o alme-jado bem comum. Enfim: que se criem condies endgenas propcias ao investimento estrangeiro. Caso contrrio, a corrupo continuar a ser um instrumento de enriquecimento dos lderes polticos e o to desejado desenvolvimento africano continuar a ser uma miragem. , portanto, imprescindvel que os polticos africanos adoptem boas prticas governa-tivas(20). S assim podero gozar de credibilidade junto da comunidade internacional e, em consequncia, obter os instrumentos financeiros ne-

    19 Em vez de um Estado predatrio e impotente que no resolve os problemas e que em vez de criar e redistribuir riqueza a consome, tero de surgir formas de governo escala nacional ou supra-nacional, capazes de superar a crise africana, como defende Chabal (1999, 67-84). No mesmo sentido, j se tinha pronunciado Davidson (2000: 311-312). Talvez, a recm criada Unio Africana possa constituir uma sa-da, uma fora africana contra a marginalizao do continente. Os africanistas mostram-se optimistas, mas ao mesmo tempo desconfiados.

    20 Um bom exemplo da ausncia dessas boas prticas governativas o caso do Zimbabwe, onde j so milhares os que abandonam as suas casas em busca de comida ... Roberto Mugabe continua obstinado na sua parania de fazer uma pretensa reforma agrria custa do futuro do seu prprio povo. Depois de umas eleies viciadas, onde reforou o seu poder autocrtico, Mugabe desvia agora, com a priso dos fazendeiros brancos que se recusam a entregar-lhe as terras, as atenes da catstrofe que h-de vir: Em Dezembro, a fome poder atingir o seu auge. A juntar seca, a desactivao e desmantelamento das quin-tas (para uma demaggica entrega a pequenos agricultores negros) far cair a pique a j depauperada produo agrcola ... o fim das exploraes agrcolas ainda em funcionamento (fenmeno para o qual alertaram, sem nenhum efeito, vrias organizaes humanitrias) pode lanar o pas no descalabro. Para Mugabe, porm, o que conta a sobrevivncia poltica por mais uns anos. Nem que para isso tenham de morrer mais uns largos milhares de compatriotas seus. Cfr. Pacheco (2002).

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    cessrios ao lanamento de polticas de desenvolvimento sustentvel. Os fluxos financeiros da cooperao, bilateral ou multilateral, no podem continuar a alimentar a economia paralela, a clientela, a corrupo. O investimento tem que ser multiplicador, reprodutivo e no predatrio. O cansao da Ajuda, que caracterizou o final dos anos noventa, do sculo passado, um sintoma claro deste circunstancialismo.

    A globalizao, tambm, j chegou a frica, mas parece ser mais um entrave ao desenvolvimento: quem ganha so as multinacionais e assiste-se a uma recolonisation clandestine et collective, mais cette fois sans conqute territoriale; ceci pour assurer son intgration plus complte lconomie mondiale (Diouf, 2002: 206). Uma recolonizao que conta com a passividade dos governantes e das elites africanas, dont lattitude est de considrer la mondialisation comme un phnomne tout fait na-turel, auquel il faut chercher sadapter. Alors quelle est conue dans des officines o les Africains ne sont pas convis. Il tarde se dvelopper sur le continent des mouvements dobservation et de rsistance aux aspects ngati-fs de la mondialisation (2002 : 207, 208).

    Os grandes poderes econmicos transnacionais, resultantes ou maximizados pela globalizao, so, eles prprios, muitas vezes, ver-dadeiras organizaes criminosas, que vem no lucro e na acumulao de riqueza a nica regra de funcionamento. Uma nova forma de coloni-zao invisvel com efeitos ainda mais drsticos, seja porque os novos colonos no tm rosto, seja porque vm disfarados de progresso, de ajuda, de cooperao, seja porque gozam do beneplcito dos poderes estabelecidos. Muitas vezes j no so os estados a pr em concorrn-cia as empresas, so estas que pem em concorrncia os estados, deci-dindo fazer investimentos nos pases que, pelo seu estado de indigncia ou pela corrupo das elites dirigentes, esto dispostos a permitir im-punemente destruies ambientais, danos para a sade da populao, explorao dos trabalhadores e dos recursos naturais, negao dos di-reitos e de garantias em matria de trabalho e de ambiente (Ferrajo-li, 2003: 11). Infelizmente, a realidade prdiga nesses exemplos. De forma superficial, muitas vezes, chama-se-lhes apenas: deslocalizao. Localizam-se nos Estados onde esperam obter mais lucros e onde a pers-pectiva de impunidade maior.

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    Uma globalizao essencialmente econmico-financeira, que pro-cura explorar a mo-de-obra barata para maximizar os seus lucros, no poder deixar de ter reflexos negativos. A concorrncia est, partida, viciada. Os pases do sul nunca podero competir com os pases do norte. Os seus produtos acabam por no se impor nos mercados internacionais ou vem os seus preos arbitrariamente fixados, sem qualquer relao com os custos de produo(21). O dumpping e a concorrncia desleal so factores desta marginalizao.

    Na verdade, as regras do comrcio mundial no esto adaptadas realidade, pouco competitiva, dos pases menos desenvolvidos (Fernan-des, 2002: 15,16 ). Em suma, s uma globalizao social poder ser o verdadeiro factor de desenvolvimento. A modernizao ter de fazer-se escala global e no excluindo as tradies, por forma a alcanar um destino especificamente humano (Appiah, 1997: 150).

    1.1. A corrupo nos pases africanos: os casos de Angola e de moambique

    Na era da globalizao, os pases africanos ainda no conseguiram encontrar uma sada para o estado a que foram votados pelo Estado ps-colonial. Nem o Estado Providncia, nem o Estado Minimalista, conse-guiram ser o ambicionado motor do desenvolvimento. O que ainda hoje persiste em frica um Estado neo-patrimonial, onde o egosmo, a in-justia e a corrupo acabaram por se tornar virtudes (Eyene Mba, 2001: 11). O Bem prprio est acima do Bem comum, constituindo um entrave ao desenvolvimento. O africano no consegue caracterizar-se como um ser com uma dimenso tica e jurdica. Para Eyene Mba Cette errance (ou brisure) de la conscience thique et juridique se manifeste travers lgoisme des classes politique et de certains intelectuels... (2001: 10).

    Se, por um lado, a crise africana tem contornos endgenos comple-xos, por outro lado, existem factores exgenos que asfixiam frica. O modelo de desenvolvimento ocidental no se enraza, seguindo aquele

    21 Da o aparecimento das Lojas de Preo Justo.

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    continente um caminho muito prprio. Com a desculpa da globalizao, os pases do norte criam, ainda, mais desigualdades: Ce phnomene conomique entrave le dvellopement des pays du sud. Sous le vocable de mondialisation se cache un systme conomique qui engendre dnormes disparits entre nations (2001: 179). Os detentores do poder criam fron-teiras econmicas para, simplesmente, reforarem as suas economias. A total liberdade de mercado no existe(22), continuando a verificar-se medidas proteccionistas(23), no que toca ao comrcio internacional.

    A frica subsariana atravessa um processo de marginalizao (Ve-nncio, 2002a: 21) e depende cada vez mais da vontade poltico-econ-mica dos pases do norte(24). E se antes os pases africanos tinham dvidas agora tm dvidas(25).

    Para reduzir os efeitos perversos desta globalizao, Antnio Custdio Gonalves advoga que necessrio e urgente a integrao e a adequao da racionalidade econmica e da inovao tecnolgica com a criatividade do desenvolvimento, os sistemas normativos de valores africanos, numa

    22 Acresce que, apesar de alguns benefcios, o capitalismo neo-liberal tambm quer abolir meti-culosamente o Estado democrtico, enfraquecendo-o, marginalizando-o e substituindo-o por uma plu-tocracia que exerce o seu poder em nome daquilo que alguns designam por monarquia do dinheiro. A plutocracia considera-se legitimada por essa mo supostamente invisvel que controla o mercado, pela concentrao das empresas que domina e pela dimenso dos lucros obtidos atravs da especulao financeira Barroso (2002). No ser, portanto, este modelo a chave para os problemas da humanidade. Segundo Bernard Founou-Tchuigoua est ainda por inventar a forma de democracia que seja comple-mentar de um desenvolvimento socio-econmico em benefcio das classes populares e no apenas para sair do quarto-mundismo (1997: 9).

    23 No s as medidas proteccionistas mas tambm o dumpping deixa os pases menos competitivos, sem capacidade concorrencial.

    24 Acontecimentos recentes como o 11 de Setembro (2001) e agora o 11 de Maro (2004) devem contribuir para o repensar de toda a poltica/cooperao mundial. O terrorismo no se combate com armas, exrcitos poderosos, ou restries ainda mais severas dos direitos fundamentais, mas com a elimi-nao das condies que propiciam o seu aparecimento. Da mesma forma, tambm, os fluxos migratrios devem ser combatidos atravs da erradicao das suas causas (por demais conhecidas, como a pobreza e a excluso social) e no mediante polticas repressivas, como, por exemplo, sanes, muros e arame far-pado. Na verdade, cada dlar e cada euro aplicados criao de factores de desenvolvimento sustentvel em frica, sia, ou Amrica Latina, produzem mais resultados positivos, pela mobilizao social pacfica que induzem, do que mil dlares ou euros gastos no combate militar directo ao terrorismo (Marques, 2002). Apesar disso, o 11 de Setembro conduziu recente guerra do Iraque. No vamos analisar as moti-vaes, pois, o facto complexo (ou nem tanto, podia resumir-se ambio do homem pelo poder), mas apenas constatar que est imposta uma nova ordem mundial.

    25 A converso ao capitalismo selvagem no resolveu os problemas de frica. De socialistas aldra-bes passaram a capitalistas aldrabados (Couto, 2000: 98).

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    interaco construcionista e complementada da tradio e da moderni-dade (2002a: 9). No se pode continuar a alimentar a subjugao das identidades e dos direitos humanos s leis do mercado (2002a: 9). As premissas da modernidade, racionalidade econmica e inovao tecnol-gica, no podem estar s ao servio do capitalismo, ou melhor, do ultra-liberalismo (terminologia escolhida por Adelino Torres para denominar a era actual). Adelino Torres preconiza a morte do ultra-liberalismo que s conduz ao caos. O tempo encarregou-se de demonstrar o carcter ilusrio e apressado do ultra-liberalismo mais extremo, o qual repousa sobre uma amlgama de correntes, contradies lgicas e postulados no demonstrados (1998: 188). Provavelmente, como defende Boaventura Sousa Santos, ser necessrio uma nova utopia (1999: 278-279).

    Cada vez mais dependentes da Ajuda Pblica ao Desenvolvimento (APD), os pases africanos teimam em no sair da crise. Uma profunda crise caracterizada por uma economia muito dbil, por uma forte ins-tabilidade poltica e consequentemente pela marginalizao na cena poltica internacional, onde a incerteza e a instabilidade constituem obs-tculos ao desenvolvimento e criam um basto campo de manobra ape-tecvel para aventureiros oportunistas e marginais. Alguns africanistas acreditam que para este diagnstico no existe um receiturio imedia-to. Depende da vontade poltica quer dos dirigentes africanos quer da comunidade internacional. O motor externo do crescimento de frica est avariado por muitos anos. Mas o debate sobre o continente pode fechar-se no economismo quando ronda o caos? Nuns quarenta pases da regio subsariana, a crise econmica e a poltica do Estado pem em perigo a prpria noo de progresso (Founou-Tchuigoua, 1997: 66).

    A independncia formal e os milhes investidos no se traduziram em progresso, nem em qualidade de vida para os seus cidados. O pseu-do Estado Minimalista no permitiu a emancipao dos pases do sul, porque os actores polticos estiveram sempre mais preocupados com o enriquecimento pessoal do que com o bem comum (Eyene Mba, 2002: 9 e ss). O Estado , desde logo, o primeiro obstculo ao desenvolvimento, e onde reinar a arbitrariedade e a desordem(26), a prpria corrupo ser

    26 Segundo Patrick Chabal e Jean Pascal Daloz, frica vive o paradigma da instrumentalizao pol-tica da desordem. Estes africanistas analisam o desenvolvimento africano luz deste paradigma na obra

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    o motor de funcionamento do Estado. Como salienta o escritor angolano Ruy Duarte de Carvalho, em Actas da Maianga, o Estado o factor maior da crise africana. ... a nossa crise, tal como a que assiste grande maio-ria dos pases africanos, para no dizer do terceiro mundo, um elemen-to concomitante prpria formao do Estado do pas independente que passmos a ser porque fundamentalmente uma crise de Estado, quer dizer, o prprio Estado o cerne da crise, o factor maior da crise o prprio Estado (2003: 141). A corrupo ao mesmo tempo a causa e o efeito. Ela s existe porque as desigualdades sociais so cada vez mais fomentadas pelos mecanismos econmico-sociais.

    Em frica, a corrupo(27) o selo de muitas transaes comerciais, tendo como remetentes e destinatrios os elementos de toda a sociedade. o mundo informal que faz caminhar o formal. Para Christine Messiant a prtica do informal e da corrupo reflectem a gesto administrativa da Poltica, que chega a estimular a economia informal como meio de subsistncia daqueles que no tm acesso corrupo, praticada pelos funcionrios do Estado. Esta foi a soluo encontrada para o Estado so-lucionar alguns aspectos que no consegue resolver (1999: 78, 79). Mais uma vez, as classes dirigentes esto apenas preocupadas com o seu en-riquecimento pessoal em transaces comerciais de sentido duvidoso e em volumosas remessas de dinheiro para fora dos seus pases... Angola um exemplo provado de corrupo desenfreada (Pacheco, 2000: 100).

    Para alimentar o sector informal e por consequncia, tambm, o mundo da corrupo (sobretudo a grande corrupo ligada aos negcios internacionais), tem de haver financiadores. Segundo George Moody-Stuart (para quem este tipo de corrupo um dos factores que incidem mais negativamente no desenvolvimento do chamado terceiro mundo) os pagadores so os pases do norte. Assim, a iniciativa de reduzir o fenmeno deveria partir destes. Moody-Stuart constata que no existe

    Africa Camina a desorden como instrumento poltico, Barcelona: Edicions Bellaterra (2001). 27 A corrupo considerada, pela maioria dos especialistas, como um factor devastador do desen-

    volvimento econmico e, logicamente, democrtico, mesmo nos pases desenvolvidos. A mensagem da Transparency Internacional comea por afirmar: Corruption is present in almost any country, but has the most devastating effects in developing economies, because it hinders any advance in economie growth and in democracy, in Corruption Integrity Improvement Initiatives In Developing Countries, www.undp.org/dpa/publications/corruption/index.html (2002).

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    vontade, nem determinao para isso, caso contrrio, em trs anos con-seguiriam resultados extraordinrios, bastaria, apenas, seguir algumas das solues que aponta em La Gran Corrupcin(28) (1994: 49 e ss). S que a grande corrupo, tambm, ultrapassa a fronteira africana. Desde a Europa de Leste America Latina, o fenmeno uma teia complexa, impossvel de destruir e difcil de controlar.

    O conceito de corrupo, entendido como no ocidente, pode ser at socialmente legtimo em frica, dadas as suas especificidades cul-turais, ... en cual hay muy poca institucionalization significativa, la no-cin de corrupcin, tal como se entende habitualmente en las sociedades occidentales, tiene pouco significado (Chabal e Daloz, 2001: 157). Em frica, este tipo de crime no est confinado s elites polticas e eco-nmicas. Todo el mundo, en todas partes, trata de obtener benefcios (2001: 132), operando essencialmente de acordo com as relaes ver-ticais de desigualdade.

    A produtividade do fracasso econmico visvel em frica. Apesar de conter em si um paradoxo, esta ideia defendida pelos autores de Africa Camina, que advogam que os actores polticos e econmicos esto a tirar partido da crise. Instrumentalizaram a desordem, fazendo da cor-rupo a chave de funcionamento desse paradigma e so os nicos que tiram proveito disso. Preferem uma vida luxuosa e contas no exterior, ou seja, o enriquecimento pessoal, do que o enriquecimento colectivo, contrariamente ao que sucede na sia si la prosperidad material h sido sempre admirada en Asia, a menudo el exceso de opulencia se considera de mal gusto (2001: 153). A visibilidade da corrupo no constitui um problema srio para os africanos, da que, em certa medida, ela legiti-mada pela prpria sociedade, desde que todos beneficiem(29).

    28 Uma das solues passaria, segundo este investigador, pela criao de um Cdigo Voluntrio, onde ficaria estabelecida a percentagem a dar aos intermedirios nos negcios. Mas, no seria isto, de certa maneira, uma forma de legalizar este tipo de corrupo?

    29 Paradigmticos so os casos verificados na sociedade portuguesa, de Pimenta Machado (presi-dente do Vitria de Guimares) e de Ftima Felgueiras (presidente da Cmara de Felgueiras). Os alegados corruptos so aplaudidos pelo povo. Em regies mais pequenas, onde supostamente existem ligaes pe-rigosas entre o mundo do futebol, da poltica e da economia (v.g. construo civil), o povo aplaude mes-mo os que alegadamente cometeram actos ilcitos. Provavelmente, o receio de perderem o emprego f-los, a maioria das vezes, ter estes comportamentos injustificveis. O normal seria que esperassem o desfecho do processo judicial para, ento, vitoriarem, aplaudirem, ou condenarem os seus dolos.

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    Como foi referido anteriormente, h africanistas que dizem tratar-se de um retorno ao perodo pr-colonial. Sero reminiscncias da tradi-o? Ser possvel fazer alguma analogia com a legitimidade do chefe tradicional, figura de prestgio, referncia social, que podia usufruir dos melhores bens, das mais belas mulheres e a quem os membros da comu-nidade deveriam oferecer as suas ddivas e o seu trabalho? O chefe, por sua vez, para demonstrar o seu poder social e consequentemente para se fazer respeitar oferecia comunidade festas abundantes? No ser uma forma de redistribuio para continuar a ter a sua plataforma de apoio social(30)? No estaro aqui presentes caractersticas do potlach de Mar-cel Mauss, assente no dar, receber e retribuir o sistema de prestaes totais? (Mauss: 2001).

    Os polticos tm de obter benefcios e alimentar os seus clientes. No se trata de operar simplesmente no mbito da economia parale-la(31), mas o que se procura atingir a informalizao de todos os sec-tores econmicos. Se estas prticas so compatveis com o crescimento macro-econmico, com o desenvolvimento, so questes para as quais Chabal e Daloz ainda no tm resposta. Hodges afirma que a dcada de 90 revelou um claro aumento do fenmeno da corrupo e simultane-amente um progressivo diminuir do nvel mdio dos padres de vida, atirando com as classes mais pobres para situaes de pura sobrevivn-cia. Curiosamente, Angola um dos poucos pases que apresentam um contraste to acentuado entre o potencial econmico e a situao do seu povo (2002: 17). Hodges acrescenta que os motivos da luta pela manuteno ou conquista do poder, que se arrastou durante quatro d-cadas, foram o petrleo e os diamantes. Isto confirmado na dcada de 90, quando se assiste a um vazio filosfico, depois da morte do mar-xismo-leninismo. O factor econmico utilizado como meio de cons-truo de uma base de poder e um exemplo pragmtico a Fundao Jos Eduardo dos Santos. O etos do capitalismo selvagem criou formas extremas de venalidade no seio da elite contribuindo para um forte

    30 Quando o presidente da Repblica Democrtica de Angola, Jos Eduardo dos Santos, convida trs mil pessoas para o casamento da filha, no uma forma de alimentar a sua base de apoio?

    31 O crescimento do mercado paralelo desculpabilizado por alguns escritores, como Uanhenga Xitu, pela incompetncia do Estado. O mercado no era abastecido pelas vias competentes h muitas semanas e meses. Nada de nada. Passava-se fome (1991: 210).

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    sentimento de decadncia moral ou de crise de valores da sociedade (Hogdes, 2002: 71). Em Angola, parece ser a corrupo que faz fun-cionar a administrao pblica, como observa Tony Hodges: h quem diga que a prtica de pagar gasosas j se transformou num modo de vida nacional, com o beneplcito das prprias autoridades, embora a lei angolana sancione tal prtica com dois a oito anos de priso acresci-da de multa. Os professores, por exemplo, cobram por vezes propinas ilegais para matricular os alunos nas escolas pblicas... So comuns as prticas semelhantes no Servio Nacional de Sade... Os funcionrios de outros organismos que tm contacto com a populao tiram parti-do da autoridade que possuem para extorquir dinheiro pela emisso de documentos como o Bilhete de Identidade, passaportes, cartas de conduo, registos de automveis, alvars e licenas de actividades co-merciais que sem uma gasosa, podem levar meses, ou mais, a ser emi-tidos. Um outro aspecto deste estado de coisas a perseguio feita s pessoas pelos vrios ramos da Polcia, cujos membros complementam o seus ordenados miserveis com a imposio de multas privadas a mo-toristas, comerciantes e outros indivduos que no possuem documen-tos necessrios(32) (2002: 112). a luta pela sobrevivncia que leva ao crime de corrupo. Os baixos salrios da funo pblica podem at constituir um argumento, mas at quando? Questiona o escritor ango-lano Uanhenga Xitu: Mas at quando? Quanto ganha um agente da Polcia? E o enfermeiro? O mdico quantas vezes deram-nos com factos vergonhosos de ver mdicos a andarem a p do Musseque do Cazenga ao Prenda, com sapatos sem sola e camisa a pedir descanso, acontecen-do o mesmo com os professores que passam mal a ponto de se socorre-rem de boleias dos alunos e de vendas de notas dos exames? Quando que se pode esperar dar uma boa justia quando os seus agentes nem tm para uma refeio nem casa para dormir? Que prestgio se pode dar a um Juiz ou a um agente de Procurador da Repblica(33)? Claro, tem de utilizar os mtodos que se ouve falar de alterar o equilbrio da

    32 Todas estas formas de corrupo so tambm denunciadas em O Ministro, de Uanhenga Xitu.33 A corrupo invadiu tambm a prpria Justia. Em O Homem Quebrado, de Jelloun, afirma-se at

    que a justia est do lado dos poderosos. A justia tambm no gosta dos pobres, o poder no se encaixa nas pessoas honestas, e a Primavera quer l saber das andorinhas. J me vejo de algemas nos pulsos pe-rante um daqueles inspectores especializados em interrogatrios violentos... (1995: 123).

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    balana, recebendo desse e daquele a gorjeta ou a afamada squebra; (1997: 109). O escritor que fora da fico Mendes de Carvalho, depu-tado na Assembleia Nacional, defende que necessria uma reforma na Administrao Pblica que passa pela autoridade na gesto, controlo e fiscalizao (1997: 110).

    Mas no s de pequena corrupo que vive a sociedade angolana. Embora seja difcil de provar(34) e haja pouca informao documentada, socialmente a grande corrupo dada como certa, estando enraizada num sistema de Administrao Pblica caracterizada pela arbitrarie-dade e falta de transparncia. Hodges acrescenta, citando Maier, que a imagem corrupta do regime me foi espelhada por um dito popular durante as eleies de 1992, segundo o qual o MPLA rouba, a UNITA mata (2002: 113). Angola faz parte da lista dos pases mais corruptos do mundo. Em 2000, a organizao anti-corrupo Transparency Inter-national colocava Angola na sexta posio entre os noventa mais cor-ruptos do mundo includos no seu ndice anual relativo corrupo. Em 2003, Angola surge j na quinta posio.

    Embora nos seus discursos oficiais, o presidente se mostre preocupa-do com esta imagem e realidade do pas, o que certo que nunca con-cretizou as medidas previstas na lei 10/96, de Abril de 1996, que institui a Alta Autoridade para a Corrupo. Em 2003, ainda no passa de mais uma inteno.

    Hodges no acredita que o fim da guerra venha alterar, por si s, o cenrio. Os interesses associados ao acesso s receitas petrolferas do Es-tado continuam a ser um obstculo reforma. Hodges advoga, no entan-to, que esto criadas condies para uma nova perspectiva de progresso. A guerra civil j no mais um alibi para a m gesto e para a restrio das liberdades democrticas. Por outro lado, (a paz) aumenta as expec-tativas de uma vida melhor e pode destruir os grilhes psicolgicos do fatalismo e do medo. Finalmente, torna possvel a mudana de paisagem poltica, diminuindo a bipolarizao da poltica angolana que, at agora,

    34 Como fenmeno criminal, passado normalmente no domnio restrito do corruptor e do corrompi-do, a corrupo difcil de provar. Ambos tm interesse no negcio e, por isso, nenhum dos intervenien-tes denuncia. Falar seria assumir a culpa. O que, obviamente, no se quer. Da a divergncia gritante entre a criminalidade real e a criminalidade detectada, investigada, perseguida e punida.

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    barrou a emergncia de uma oposio civil credvel com uma agenda de mudanas progressivas (2002: 267).

    S o futuro poder confirmar ou desmentir o optimismo de Hod-ges. Em Moambique, o terminus da guerra civil no trouxe, todavia, o fim do clientelismo, a transparncia e legalidade na Administrao Pblica, nem retirou aquele pas das listas dos mais corruptos e mais pobres do mundo. Como salienta Jos Diquissoned Tole, na sua tese de mestrado, a dcada de noventa s veio agravar o clientelismo e a formao da Classe-Estado s veio contribuir para reforar um Estado predador (1995: 257). O antroplogo Joo de Pina Cabral encara o fu-turo de Moambique com pessimismo. Em entrevista ao jornal Pblico, de 17 de Julho de 2003, salienta que se est a assistir a uma repatri-monializao do Estado com a constituio de grandes fortunas e com a atribuio de enormes latifndios, no s a figuras do regime como o Gebusa, Marcelino dos Santos, ou outros, mas a grandes interesses financeiros nrdicos(35).

    Certo que a corrupo no tem desempenhado um papel liberta-dor. A independncia formal no se materializa. A dependncia face aos pases do norte cada vez maior. H pases estrangulados pela dvida. 37 pases so considerados casos insustentveis, para os quais o Banco Mundial aprovou medidas especficas.

    A dependncia externa, tal como a corrupo, seria partida um dos grandes obstculos ao desenvolvimento econmico, mas esta tam-bm produtiva, para os detentores do poder e para os seu clientes. Na realidade, resulta claro que a dependncia a condio estrutural dos pases africanos e que se converte numa parte integrante do funciona-mento dos sistemas econmicos e polticos, constituindo a dependncia uma restrio e um recurso. Uma restrio na medida em que a Ajuda Internacional impe condies (os chamados condicionalismos polticos ou econmicos, na maioria das vezes no controlados), e um recurso, porque dota o Estado de meios financeiros que de outro modo no teria acesso. Os autores de frica Camina alertam para a possibilidade de algumas elites africanas estarem a negociar internacionalmente a de-

    35 Joo Pina Cabral refere-se a pases como a Noruega, a Sucia e os EUA, que diz ser quem realmen-te suporta o Estado Moambicano em troca da concretizao de interesses econmicos e geopolticos.

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    sordem, o crime e a violncia, como formas de sobrevivncias poltica e mesmo pessoal. Luigi Ferrajoli, no seu artigo sobre Criminalidade e Globalizao, advoga que, actualmente: as verdadeiras classes perigo-sas j no provm dos estratos marginais, mas sim das elites dirigentes, econmicas e polticas (2003: 11, 12).

    As actividades ilcitas seriam a fonte de rendimentos necessrios sua manuteno poltica, at porque estes dirigentes tm poucas cartas polticas legtimas para esgrimir (Chabal e Daloz, 2001: 132). O Ajus-tamento Estrutural foi tambm instrumentalizado pelas elites africanas e com xito, pelo menos, em dois aspectos: primeiro, os dirigentes tm agora um bode expiatrio para o fracasso, o Banco Mundial; segundo, continuam a ter uma fonte de receita externa.

    O destino dessa receita muitas vezes questionado, dado que os resultados prticos no so, como seria de esperar, visveis. O povo an-golano continua na misria e o ano de 2003 registou o seu pior nvel de desenvolvimento humano dos ltimos sete anos, apesar do fim da guerra e do renascer da esperana, em 2002.

    A Organizao de direitos humanos Human Rigths Watch (HRW)(36) denuncia que mais de 4, 2 mil milhes de dlares cerca de 3,1 milhes de euros desapareceram dos cofres do Estado Angolano entre 1997 e 2002. Numa investigao levada a cabo por aquela organizao so re-velados, curiosamente, dados do FMI Fundo Monetrio Internacional que eram confidenciais(37). A HRW acusa o governo angolano de ter des-perdiado elevadas somas atravs da corrupo e m gesto.

    A falta de transparncia, a m governao e a indisponibilidade de-monstrada para a realizao de eleies livres, dois anos aps a morte de Jonas Savimbi antigo lder da Unita constituem fortes entraves ao desenvolvimento sustentado. A leitura da Organizao da HRW vai mais longe ao afirmar que os responsveis receiam que, pelo facto de o Governo no ter dado respostas s necessidades da populao, no tero

    36 Conforme notcia do jornal Pblico, de 14 de Janeiro de 2004, intitulada As provas do desapare-cimento de 4 milhes de dlares das contas de Luanda.

    37 O FMI fala no desaparecimento de cerca de 700 milhes de dlares por ano e atribuiu esse desa-parecimento a m gesto, recusa do governo em disponibilizar informao exacta sobre as suas contas e corrupo. A falta de transparncia do governo angolano apontada como um dos maiores obstculos ao desenvolvimento humano (in jornal Pblico, 14 de Janeiro 2004).

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    condies para manter o poder, se os angolanos tivessem possibilidade de escolha(38).

    Entre os aspectos destacados pela HRW, no seu relatrio, escreve Ana Dias Cordeiro, esto as ameaas de Luanda aos pases onde foram iniciadas investigaes sobre casos de desvio de fundos pblicos em be-nefcio privado (2004). A corrupo parece estar assim na origem do extravio dos dinheiros pblicos. Negcios pouco transparentes resultan-tes da explorao do petrleo.

    85% das receitas pblicas de Angola provm do petrleo, tendo sido de 17,8 mil milhes de dlares o total de receitas registadas entre 1997 e 2002. Segundo o relatrio da HRW, 4,22 mil milhes foi a falha detecta-da pelo FMI entre as receitas petrolferas e as contas apresentadas pelo governo angolano. O relatrio refere ainda que 970 milhes de dlares foram gastos na compra de armas.

    Alex Vines da HRW realou que nunca em nenhum pas como agora em Angola se havia detectado uma tal magnitude de dinheiros desapare-cidos, comparativamente a dimenso da populao 12 milhes de ha-bitantes(39). Resta saber se estamos no puro domnio da especulao, da verdade jornalstica ou se estes relatrios e notcias tm uma base factu-al credvel. Se assim no for, no se compreende a irritante passividade das instituies internacionais.

    1.2. A literatura e a denncia da corrupo.

    A corrupo um mal, um terrvel mal, de que est infectando o nosso Continente e que vai, pouco a pouco, minando o seu desenvolvimento, pondo em causa mesmo a sua sobrevivncia. O vrus da corrupo uma doena que tem cura, desde que os Africanos, definitivamente se decidam pela sua extirpao. Para tanto, preciso instituir meios e instrumentos legais que a previnam e reprimam os respectivos pra-ticantes, criar rgos e instituies que funcionem e faam aplicar correctamente

    38 cfr. Pblico, de 14 de Janeiro 2004.39 Cfr. Pblico, de 14 de Janeiro de 2004. Recentemente a imprensa nacional e internacional tem di-

    vulgado notcias comprometedoras do presidente Jos Eduardo dos Santos. Segundo o jornal Expresso de 24/01/2004, o Luxemburgo confirmou justia helvtica que o presidente angolano possui naquele pas uma conta secreta de 53 milhes de dlares, que estaria relacionada com as comisses sobre a renegocia-o da dvida angolana Rssia, onde o negociante de armas Pierre Falcone foi interveniente.

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    todas as leis e medidas anti-corrupo, e sobretudo, que a sociedade civil assuma o seu papel de olho vivo da nao, lutando pela transparncia da actividade admi-nistrativa e pblica, fiscalizando as prticas dos agentes pblicos e denunciando os desvios e os actos de corrupo de que tome conhecimento.

    David Hopfer, A corrupo suas consequncias(40)

    A denncia da corrupo , hoje em dia, uma necessidade impres-cindvel manuteno dos sistemas democrticos. Convictos de que a corrupo poder abalar os fundamentos da prpria democracia(41), alguns polticos, jornalistas, escritores, intelectuais, entre outros, no a tm silenciado, fazendo da sua arte um importante instrumento de denncia. Sem essa denncia o sistema seria lentamente corrodo e os valores que o integram subvertidos e aniquilados. A legalidade, a transparncia, a igualdade, que devem pautar o relacionamento com a Administrao Pblica, dariam lugar peita, ao suborno, ao trfico de influncias e extorso. A igualdade de direitos e de opor-tunidades ficaria comprometida. O direito, a razo, a racionalidade econmica perderiam o seu vigor, dando lugar a lgicas obscuras e incontrolveis. O Estado de direito democrtico ficaria enfraquecido se no mesmo comprometido.

    Ao longo dos tempos, encontramos muitos exemplos paradigmticos da utilizao da literatura como uma arma de denncia da corrupo. o caso emblemtico de O Homem Quebrado, de Tahar Bem Jelloun(42), mas tambm de muitas obras em lngua portuguesa, que de forma directa ou indirecta, a ttulo principal ou acessrio, focam o tema em questo.

    40 Comunicao apresentada no Frum Sobre Transparncia e Corrupo organizado a 8 e 9 de Outubro pela Assembleia da Repblica de Moambique e pelo PNUD, nesse pas, pelo ex-ministro da Justia de Cabo Verde.

    41 Cfr. o socilogo suo Jean Ziegler no seu famoso livro Os Senhores do Crime, As novas mfias con-tra a democracia (1999: 253 e ss), que teve eco entre ns, no artigo de Cunha Rodrigues (ex-Procurador Geral da Repblica e, portanto, testemunha idnea) tambm intitulado Os Senhores do Crime (1999). Segundo Ferrajoli, a criminalidade do poder abrange uma fenomenologia complexa e heterognea. H formas variadas de corrupo e de apropriao da coisa pblica, que parecem ter-se tornado uma dimenso ordinria dos poderes pblicos... um sinal de patologia das instituies e, precisamente devi-do ao seu carcter secreto, a expresso mais degenerada de uma crise do Estado de Direito e da prpria democracia (2003: 11).

    42 Em bom rigor, como o autor adverte logo na introduo, o seu romance no mais do que uma homenagem ao livro: A corrupo, de Pramoedya Ananta Toer, escritor indonsio.

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    Mia Couto, testemunha privilegiada da construo de uma nova nao, insere-se nessa cultura de denncia(43), utilizando a escrita para desmascarar a manipulao de Moambique pela outra raa : Mas, na minha vila, havia agora tanta injustia quanto no tempo colonial. Parecia de outro modo que esse tempo no terminara. Estava era sendo gerido por pessoas de outra raa (O ltimo Voo do Flamingo: 114).

    Pepetela, em Jaime Bunda, Agente Secreto, radiografa uma socieda-de corrupta at mais alta esfera poltica. Optando, aparentemente, por um gnero policial, denuncia os efeitos da corrupo (desigualdade social, impunidade...). Mas denuncia a quem, se a prpria autoridade policial surge corrompida? Aqueles que deviam combater o mal esto, afinal, irremediavelmente infectados. A impotncia da sociedade civil e a ausncia de formas de combate e de controlo perante o fenmeno esto subjacentes ao longo de toda obra. A nica esperana que resta, como veremos ao analisar o romance, a escrita, ou seja, a denncia. Mas, para isso, ter de existir uma comunicao social imparcial, inde-pendente, que esteja do lado do povo.

    A corrupo motivou, e motiva ainda, a produo de centenas de romances. Para alm destas duas obras, onde o tema central, ambos os escritores noutros romances focam o flagelo. Mia Couto, no livro Cronicando dedica uma crnica exclusivamente corrupo. Carta entreaberta do corrupto nacional um texto irnico e de um humor surpreendente que denuncia a corrupo do Estado ps-colonial em Moambique, mas sobretudo aponta o dedo acusatrio aos jornalistas, que de certa forma so cmplices com a situao, dado que no denun-ciam, nem investigam! Porque, em Moambique, um corrupto mesmo pode desmoralizar. Uma pessoa entrega-se sua vocao, aplica gol-pes por baixo do ventre nacional, rouba aos pobres para dar aos ricos, tudo isso para ser ignorado (Cronicando: 177)(44). O prprio corrupto sente-se ignorado, pelo que a carta termina com um apelo: Por isso, eu apelo ao pblico em geral: investiguem-nos, denunciem os nossos esquemas. Concedam-nos a ateno e seriedade que nos devida. No

    43 Mia Couto, escritor moambicano, bilogo, mas foi director da Agncia de Informao de Mo-ambique, da revista Tempo e do Jornal de Notcias de Maputo, seguindo, alis, as pisadas do pai.

    44 Couto, Mia, Cronicando, Caminho, 6. edio, 1991.

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    nos reservem o boato, que deixa tudo igual ao que j foi (177). Do outro lado, na frica ocidental, tambm Pepetela apela aos seus colegas escritores para denunciaram a falta de liberdade de expresso imposta pelo governo aos meios de comunicao social. Em 1999, aquando da entrega do Prmio holands Prinz Claus, pelo conjunto da sua obra, Pe-petela acusava a passividade dos escritores angolanos que nada faziam contra o actual clima de intimidao aos jornalistas por parte de alguns sectores caducos do pas... Ns, escritores, ficamos, de um modo geral, comodamente na retaguarda, esperando para ver (Chaves e Macedo, 2002: 42, 43).

    Apesar dessa alegada passividade, todavia, a corrupo tema fo-cado por um grande nmero de escritores angolanos e moambicanos como, para referir s alguns, Manuel Rui, Sousa Jamba, Unhenga Xito, Ruy Duarte de Carvalho, inundando, assim, centenas de pginas liter-rias no final do sculo XX e incios do sculo XXI(45). A sua identificao, inventariao, catalogao mesmo uma tarefa quase inacabvel.

    Mas ao mundo retratado na literatura corresponde um mundo real? Ser o relato da corrupo uma mera enfabulao, um simples devaneio criativo do autor ou corresponde ao propsito de denunciar factos reais, com intuitos pedaggicos e formativos?

    Por no atentarem nos complexos procedimentos de modelizao concretizados na narrativa literria que certas anlises tendem a iden-tificar, linearmente, personagens, espaos e acontecimentos do mundo

    45 Manuel Rui, por exemplo, em Quem me dera ser onda, Qual Instituto qual merda, bando de cor-ruptos que arranjam casas s prs amigos. Eu sempre paguei renda (11). O prprio Direito, o garante da Justia, no est imune: Tudo tachistas como esse requerimenteiro que apanhou boleia na revoluo e agora juz. Eu ao menos no apanhei boleia nenhuma. Em casa dele passa ovos, dendm, carne e ontem quatro ramalho eanes. Quando era morteiro eu vi trs caixas. Se cada pessoa s tem direito a uma, como que um juz aambarca dessa maneira? (42). Alis, Inocncia Mata insere esta obra de Manuel Rui numa escrita de figurao satrica do real semelhana de O Co e os Caluandas, de Pepetela (Mata, 1992: 37).

    Em Sousa Jamba, so denunciados tambm os esquemas, e, sobretudo, o trfico de diamantes: Es-cuta, por favor! Um rapaz e um amigo fugiram ao servio militar. Ento decidiram construir uma jangada e fugir para Portugal. Bem j houve quem o fizesse, por isso acharam que tambm podiam fazer o mesmo. Depois de construrem a jangada, foram apanhados. Um foi para a priso; o outro, o Silva, conseguiu safar-se e h seis meses que anda escondido. Ns queremos salvar o rapaz. Arranjou-se um passaporte falso para ele. S tem de passar no aeroporto de Luanda com os diamantes ns sabemos como que isso se consegue e de os entregar depois tal Madame em Lisboa, e pronto. E tambm h de receber uma recompensa (Patriotas: 278).

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    possvel da fico com personagens do mundo real, alertam Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, no Dicionrio de Narratologia (2000: 245). A verdade dos objectos s pode ser equacionada dentro do mundo poss-vel criado pelos processos de modelizao artstica. Indubitavelmente, cada texto narrativo literrio constri o seu prprio domnio de refern-cia, promovendo existncia um mundo possvel ficcional. Os mundos ficcionais mantm sempre uma correlao semntica com o mundo real, correlao essa que oscila entre a representao mimtica e a transfigu-rao desrealizante (2000: 246).

    Embora no possa ser analisado divorciado do sistema semitico que a Literatura, o mundo textual mantm uma relao fundamental com o mundo real. Mas essa relao no pode ser orientada por uma concep-o mimtica, como bem defende Ana Margarida Fonseca. Dependncia e autonomia articulam-se, pois, na caracterizao do mundo possvel narrativo. Por um lado, o mundo ficcional constituiu-se no e pelo texto, e apenas deste modo, compreendendo-se, assim, os espaos vazios nele encerrados, ou seja, a sua incompletude. Por outro lado, devemos atender ao facto de o mundo textual ser uma macrounidade autnoma, ainda que tal no signifique a negao da relao estabelecida com o mundo real. Pelo contrrio, esta relao fundamental, mas no dever ser confundi-da com uma orientao textual especular, identificvel com as concep-es mimticas (2002: 39). A concepo mimtica dominou a histria da literatura. Mas a mimese(46) posta em causa pela teoria construtivista da cognio, rejeitando linearmente o apostolado de Plato e de Aristteles.

    O Formalismo, por um lado, e as teorias da recepo e as teorias cog-nitivas, por outro, dominam os estudos literrios do sculo passado. O primeiro assume a obra de arte, neste caso literria, como um artefacto verbal autnomo, rejeitando qualquer contexto extratextual. O segundo no separa o texto literrio do seu contexto produtivo e de recepo, nem da biografia do autor (dado que o processo de modelizao do mundo artstico assenta na experincia do quotidiano), pondo, assim, em causa o dogma da autotelicidade do texto literrio.

    46 Entenda-se mimese como representao literria do real. Para um estudo mais aprofundado re-comenda-se a leitura da Potica de Aristteles e da Repblica de Plato, onde abordada a mimesis como imitao do real.

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    As questes da referencialidade e representao voltam a ser essen-ciais nas reflexes sobre o literrio. Pavel diz mesmo que se possvel abordar a obra literria reduzindo a componente literria limitada a efei-tos intratextuais subordinados estrutura narrativa, o contrrio tambm possvel: nous pouvons aussi bien partir de la primaut de la rfrence et de la rpresentation, en leur subordonnant les structures narratives et les techniques du discours (apud Fonseca, 2002: 29).

    Para Csare Segre existe, inegavelmente, uma relao entre texto li-terrio e mundo real. A verdade que a literatura especialmente narra-tiva instituiu simulacros da realidade: mesmo se os factos que expe no tm real consistncia, no deixam de ser eles, porm isomorfos de factos ocorridos ou possveis (1999: 11).

    Se se trata de simulacros ou de mundos possveis, inegvel que a obra literria o produto duma relao dialctica entre o seu criador e a sociedade onde ele se insere (Venncio, 1990: 109) e os mundos ficcionais no se constrem nem funcionam fora de uma relao com o mundo de referncia de autor e leitores; pelo contrrio, solicitam e evocam esta relao, tornando-a inevitvel no processo de comunicao narrativa (Fonseca, 2002: 43). Para que haja comunicao narrativa, o leitor tem de apreender do texto figuraes que accionem as suas re-cordaes. Francisco Soares, ao elaborar a Autobiografia Lrica de M. Antnio, advoga que um poema, por mais fantstico, nunca deixa de funcionar precisamente porque possvel, a partir das nossas recorda-es, acompanharmo-lo na composio das suas referncias em vez de o imaginarmos a descrever-nos as experincias do autor (1996: 53). A presena da realidade na poesia sempre a presena do possvel ou do verosmil, em tal facto assentando a adopo sua da teoria dos mundos possveis de Leibniz e a prpria teoria leibniziana, conclui Francisco Soares (1996: 53).

    De facto, j Fernando Pessoa afirmava que o poeta um fingidor, pelo que no se devem tomar as referncias textuais como vivncias do autor. Elas so, no entanto, constituintes de mundos possveis, moldados atravs da percepo que o autor tem do real. Mas se isto vlido no que diz respeito poesia, onde a criao literria ainda mais particular, na narrativa, concretamente no romance, no se pode cortar o cordo um-

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    bilical com o real. Os defensores do realismo preconizavam mesmo que sem experincia nada se faz em literatura. Nada se faz sem uma larga experincia resultante de um esforo deliberado de chegar compre-enso das pessoas, as suas ideias, emoes, razes de conduta (Lima, apud Reis, 1981: 187).

    O escritor Teixeira de Sousa, em entrevista a Jos Carlos Venncio (1992: 75), diz que as suas personagens tm uma relao directa com as pessoas que conheceu e interroga mesmo Qual o escritor que no cria as suas personagens a partir de pessoas conhecidas e muitas vezes, como o meu caso, h personagens minhas que so cocktail de duas, trs qua-tro pessoas conhecidas. Observao importante tambm aquela que Pepetela, ou melhor, o narrador de O Co e Os Caluandas faz ao refe-rir-se ao dilema de um historiador, neste caso historiador/romancista, quando diz: ... a sua verso pode estar completamente errada, mas vai sempre influenciar no futuro qualquer anlise sobre os acontecimentos que narra. J o Herdoto o sabia ao enfiar as suas Kbuas que at hoje continuamos a engolir (1985: 94). Isto demonstra a importncia que o mundo ficcional detm ao contribuir para que o leitor construa a sua prpria imagem do mundo real. Poderamos concluir que o autor in-fluenciado pela realidade e influencia o mundo real quando cria o seu mundo ficcional.

    Na fico ps-independncia, na opinio de Pires Laranjeira, muito difcil no existirem marcas referenciais que remetam para luga-res, coisas, pessoas, linguagens, factos ou tempos concretos. Nesse jogo, entre a iluso do real concreto e o concreto da iluso ficcional a ideologia do enraizamento, enquanto modo de identidade, crava no texto as suas garras (1995: 164).

    No se pode abordar as questes de referencialidade do texto liter-rio sem focar o realismo at porque as obras em anlise neste trabalho, ou melhor, os seus autores (sobretudo numa primeira fase) so enqua-dradas pela crtica literria no chamado realismo socialista. Alis, o rea-lismo na literatura africana contm um lugar incontornvel na histria das independncias. No romance africano, o realismo tornou-se num meio para os africanistas corroborarem as suas teses de autenticidade cultural: Les africanistes attendirent des crivains noirs un tmoignage

  • A Corrupo no estado ps-colonial em frica: duas vises literrias

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    2007 e-BOOK CEAUP

    du dedans, la peinture de laspect profond des traditions et de lesprit des civilisations noirs. Ils cherchrent dans les oeuvres romanesques la corro-boration de leurs thses sur lauthenticit culturelle africaine, lillustration des possibilits dvolution des civilisations noires. Pour ce faire, le ralisme devient un moyen (Kane, 1982: 60).

    Na opinio de Kane, o exotismo foi substitudo pelo realismo social e este instituiu-se como uma tradio (1982: 61). No seu estudo sobre a tra-dio no romance africano, que se centrou sobretudo no espao francfo-no, observa, ainda, que o realismo uma herana tradicional e moderna, ao mesmo tempo, da qual os escritores africanos dificilmente conseguem fugir (1982: 79). Na ve