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A CRIAçãO DO SANTO NãO CANôNICO MOTORISTA GREGóRIO Iury Parente Aragão 1 Resumo: Este artigo analisa a relação entre os discursos dos devotos do santo não canônico piauiense Motorista Gregório e os jornais impressos de Teresina. O objetivo é verificar quais são os discursos formadores da imagem de santo do motorista Gregório e as táticas utiliza- das pelos devotos e pela grande mídia. A ideia de imaginário proveniente de Maffesoli e a noção de fundo arcaico foram as linhas teóricas seguidas para a análise. Como metodologia, foi necessário realizar pesquisa bibliográfica, pesquisa documental e entrevista não estrutu- rada. Os resultados apontam para uma relação dialética entre a mídia impressa e os devotos, com a construção de inúmeros imaginários, mas todos ligados a uma ideia central, que é a do martírio capaz de santificar. Palavras-chave: Imaginário; Fundo Arcaico; Motorista Gregório; Mídia; Devotos THE CREATION OF THE NON-CANONICAL SAINT MOTORISTA GREGóRIO Abstract: This article analyses the relationship between the speeches of the devotees of the non-canonical saint Driver Gregório and printed newspapers from Teresina. The objective is to verify which are the speeches that form the image of the Driver Gregório as a saint and the tactics used by the devotees and by the great media. The idea of imaginary originated from Maffesoli and the notion of archaic background were the theoretical base followed by this analysis. As methodology, it was necessary to do bibliographical research, documental research and unstructered interview. The results point to a dialect connection between the print media and the devotees, with the building of infinite imaginaries, all connected to a central idea, which is the martyrdom capable of sanctifying. Keywords: Imaginary; Archaic Background; Driver Gregório; Media; Devotees É inegável o sincretismo religioso que existe no Brasil. A colonização do país foi um dos principais aspectos que ajudaram a mesclar as mais diferentes crenças. Os portugueses, quando para cá vieram, no século XVI, trouxeram o catolicismo como a religião detentora dos preceitos morais, os quais deveriam ser seguidos pela população. A união entre o Estado e a igreja deu-se rapidamente, pois o rei se considerava católico e via na irmandade com a religião uma forma de manter a unidade política e os súditos coesos através da fé. Mas o catolicismo vindo de Portugal tinha certa brandura e tolerância, o que refletiu no compor- 1 Mestrando em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp). Bolsista CNPq. E-mail: [email protected]

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iury Parente Aragão1

resumo: Este artigo analisa a relação entre os discursos dos devotos do santo não canônico piauiense Motorista Gregório e os jornais impressos de Teresina. O objetivo é verificar quais são os discursos formadores da imagem de santo do motorista Gregório e as táticas utiliza-das pelos devotos e pela grande mídia. A ideia de imaginário proveniente de Maffesoli e a noção de fundo arcaico foram as linhas teóricas seguidas para a análise. Como metodologia, foi necessário realizar pesquisa bibliográfica, pesquisa documental e entrevista não estrutu-rada. Os resultados apontam para uma relação dialética entre a mídia impressa e os devotos, com a construção de inúmeros imaginários, mas todos ligados a uma ideia central, que é a do martírio capaz de santificar.Palavras-chave: Imaginário; Fundo Arcaico; Motorista Gregório; Mídia; Devotos

the creAtion of the non-cAnonicAl sAint MotoristA GreGório

Abstract: This article analyses the relationship between the speeches of the devotees of the non-canonical saint Driver Gregório and printed newspapers from Teresina. The objective is to verify which are the speeches that form the image of the Driver Gregório as a saint and the tactics used by the devotees and by the great media. The idea of imaginary originated from Maffesoli and the notion of archaic background were the theoretical base followed by this analysis. As methodology, it was necessary to do bibliographical research, documental research and unstructered interview. The results point to a dialect connection between the print media and the devotees, with the building of infinite imaginaries, all connected to a central idea, which is the martyrdom capable of sanctifying.Keywords: Imaginary; Archaic Background; Driver Gregório; Media; Devotees

É inegável o sincretismo religioso que existe no Brasil. A colonização do país foi um dos principais aspectos que ajudaram a mesclar as mais diferentes crenças. Os portugueses, quando para cá vieram, no século XVI, trouxeram o catolicismo como a religião detentora dos preceitos morais, os quais deveriam ser seguidos pela população. A união entre o Estado e a igreja deu-se rapidamente, pois o rei se considerava católico e via na irmandade com a religião uma forma de manter a unidade política e os súditos coesos através da fé. Mas o catolicismo vindo de Portugal tinha certa brandura e tolerância, o que refletiu no compor-

1 Mestrando em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp). Bolsista CNPq. E-mail: [email protected]

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tamento da população, que, mesmo sendo obrigada a participar das missas aos domingos e festas de preceito, confissão e comunhão anual na época da páscoa, via a existência de

elementos de bondade nas diversas religiões, através das quais se podia expressar o sentimento de dependência do mundo sobrenatural. Os colonos portugueses aceitavam tranquilamente a influência religiosa do ambiente em que viviam, negando-se na prática a enfatizar a radical oposição apregoada pela hierarquia católica: de um lado Deus, na fé católica, e de outro a presença dos demônios, nas outras religiões (AZZI, 1978, p. 52).

As obrigações do povo para com o Estado/igreja ajudaram na difusão do catoli-cismo, mas a família também se fez um ambiente de propagação de valores, com os pais passando para seus filhos as crenças familiares, pois eram comuns oratórios domésticos, nos quais os santos, padroeiros das cidades ou protetores das lavouras, eram adorados, o que fugia do calendário oficial da Igreja e das prescrições litúrgicas (AFONSO DE TAU-NAY apud AZZI, 1978, p. 50-51). Ao lado dos santos oficiais havia os populares, que eram considerados da família e, embora irregulares canonicamente, ajudavam seus próximos, pois estão na obrigação de defender e ajudar seus patrocinadores porque os conhece.

O Piauí é o estado brasileiro com maior percentual de católicos, com 90,03% da sua população, segundo dados do IBGE através do Censo 2000. Os santos não canônicos piauienses existem em larga escala, tendo como exemplos Nossa Senhora da Cabeça, Finada Alda e Motorista Gregório, os quais ganham patamares de entidades pela fama de ajudar a população, de diminuir as angústias e as mazelas de um povo sofredor. Nessa relação en-tre fiéis e milagreiros são criados símbolos, histórias, ex-votos etc., os quais enriquecem e ajudam na manutenção e recriação do imaginário existente sobre os santos não canônicos.

O objeto de estudo deste artigo será o santo popular Motorista Gregório, o qual tem monumento construído em sua homenagem pela prefeitura de Teresina (PI), conta com devotos, com ex-votos, com romaria, com a atenção da imprensa, com “causos” criados e recriados pelos fiéis e pela mídia. São diversos os aspectos formadores de um imaginário, de uma aura santificadora, fazendo-se necessária, dessa forma, a realização de um estudo para compreender qual é a atuação dos discursos dos devotos e da grande mídia na construção da imagem desse santo não canônico.

A metodologia empregada consistiu em pesquisa bibliográfica, com a leitura de materiais já elaborados, como livros e artigos científicos que tiveram como tema o santo popular objeto deste estudo, além de pesquisa documental no Arquivo Público de Teresina: nos jornais existentes no período de outubro, novembro e dezembro de 1927 (período próximo da morte do Motorista Gregório); nos jornais O Estado e O Dia no mês de setembro 1975 (período em que houve a entrevista do perito criminal Delfino Vital da Cunha Araújo com Florentino Cardoso) e nos anos de 1982, 1983 e 1984 (período próximo da inauguração do monumento ao Motorista Gregório); nas matérias, depoimentos, fotos, cordéis e demais documentos pertencentes ao arquivo sobre o Motorista Gregório mantido por Vital Araújo. Para entender a rotina, os inte-resses e as aspirações do grupo foi necessário o contato com os devotos, sendo o dia

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de Finados o período escolhido, pois é a época de maior movimento no monumento levantado em homenagem ao santo popular.

histórico do santo popular Motorista GregórioO Motorista Gregório tornou-se milagreiro no imaginário popular após a

sua morte. Ele não obteve nenhum grande reconhecimento em vida, era apenas um garoto que trabalhava como motorista, na paróquia da cidade de Barras (PI), para o padre Lindolfo Uchôa. O veículo foi adquirido com a finalidade de o pároco visitar as localidades mais distantes e, assim, ter acesso a um número maior de pessoas.

Embora tenha sido reconhecido como tal no Piauí, não era piauiense, sen-do sua naturalidade desconhecida até hoje. Muitos cogitam que o seu nascimento ocorreu na Paraíba, pois foi nesse estado que ele foi contratado e levado à cidade de Barras pelo comerciante Jaime Teodomiro.

Gregório Pereira dos Santos, o Motorista Gregório, era um garoto que mo-rava na Paraíba e aos dezenove anos foi residir em Barras do Marathaoan (PI) a convite do comerciante Jaime Teodomiro. Este foi à Paraíba com o intuito de com-prar um carro, o Ford T, para circular na cidade piauiense. Ao adquirir o veículo, o comerciante contratou Gregório para ser o motorista. Após pouco tempo, Jaime passou o carro para a paróquia do padre Lindolfo Uchôa.

A história da morte e da santificação popular de Gregório começou no dia 14 de outubro de 1927. A cidade em questão estava em festa porque o bispo Dom Severino Vieira de Melo iria visitar a paróquia de Barras. Por ser uma visita rara, a população inteira se preparou, conforme explica Barros (informação oral)2:

A visita de Dom Severino deve ter sido uma visita muito rara, porque fizeram uma festa muito grande. Eu conversei com algumas pessoas que eram crianças na época e me disseram que a cidade mudou completamente. Fizeram um jantar muito grande para ele na diocese, tinha banda de música, que ficou montada uma tarde inteira esperando, e ele nunca apareceu.

Nesse dia atípico, em que as ruas estavam enfeitadas e a população esperava a visita de Dom Severino, Gregório, dirigindo o Ford T, levava o juiz de Direito José de Arimathéa Tito, o coronel Otávio de Castro Melo e o padre Lindolfo Uchôa para receber Dom Severino na entrada de Barras. Ao passar pela rua Grande, uma crian-ça com 4 anos de idade, chamada Manoel Cardoso de Vasconcelos, saiu de dentro da sua casa e cruzou a frente do carro, sendo atropelado. Tendo o pneu passado por cima do seu peito, causou-se um traumatismo na região torácica, o que a levou à morte. A população local afirmava que foi uma fatalidade e que Gregório não teria como evitar o atropelamento.

2 Eneas Barros, autor do livro Parabélum, o qual é um romance baseado na história do motorista Gregório.

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Manoel era filho de Florentino Cardoso, inspetor de veículos e delegado da cidade. Florentino, ao saber que seu filho fora atropelado, prendeu Gregório, tortu-rando-o e deixando-o sem comida e sem água. O juiz de Direito José de Arimathéa Tito, que estava dentro do carro no momento do acidente, ficou sabendo da prisão do motorista e expediu um Habeas Corpus para a liberação de Gregório.

Florentino Cardoso já era conhecido por torturar presos e já o cercava, segun-do a imprensa do tempo, a fama de praticar prisões arbitrárias e espaldeirar presos. Era repressor, tirano, “sabido por todos ser homem temperamental e cioso da im-portância do cargo com que o brindara o então governador do Estado, seu protetor” (DIAS; ARAÚJO, 2005, p. 37). O delegado disse ao juiz que iria cumprir a ordem, mas foi para Teresina levando o Motorista Gregório acorrentado pelo pescoço.

O delegado ordenou que João Fernandes, apelidado Peba, guiasse um cami-nhão até Teresina, com Guiomar (esposa do delegado), o caixão com o corpo de Manoel, o delegado, dois soldados e todos os pertences da família. Gregório viajou na boleia, acorrentado pelo pescoço. Por causa da péssima condição da estrada, a viagem foi demorada, durando toda a noite até chegarem ao porto do Porenquanto, localizado na cidade de Teresina, capital piauiense, onde tiveram que descarregar o caminhão para ter condição de descer a ribanceira. Quando a carga foi descida, inclusive o caixão com o corpo de Manoel, Florentino, ao ver o féretro no chão, puxou a Parabélum e disparou um tiro na cabeça de Gregório. O laudo do exame cadavérico aponta como ocorreu a morte:

Aos 17 do mês de outubro de 1927, procedeu o Perito Médico Legista, Doutor Benjamim de Moura Baptista, o exame no cadáver de José Gregório, ao cabo do qual respondeu que houve lesões corporais produzidas por cordas nos punhos, chicotadas no rosto e nas costas e marcas de corrente no pescoço, tendo sido empregado meio cruel e tortura. Informa que a vítima apresentou ventre escavado e costelas à mostra e uma perfuração produzida por arma de fogo no ouvido direito, que produziu morte instantânea (BARROS, 2008, p. 174)

O atestado de óbito de Motorista Gregório, registrado no livro nº. 18 do 1º cartório de registro civil da cidade de Teresina (PI), corrobora com o laudo médico, o qual aponta como a causa da morte um ferimento por arma de fogo na cabeça:

Aos dezoito dias do mês de outubro de mil novecentos de vinte e sete, nesta cidade de Theresina capital do Piahuy em meu cartório compareceu o senhor Antonio José de Sousa, com um atestado do doutor Benjamim de Moura Baptista declarou o seguinte: que faleceu hoje, as sete horas, victima de ferimento por arma de fogo na região cerebral o chauffeurt de nome José Gregório, de vinte anos de idade, presumíveis, piauhyense, morador na cidade de Barras; cujo corpo vae ser sepultado no cemitério público. E para constar eu, Antonio Pereira Vieira, official do registro cível lavrar este termo que comigo assina o declarante.

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A construção do santo popular motorista GregórioA história contada acima será considerada, para este estudo, como a mais próxima dos

fatos acontecidos na morte do Motorista Gregório, pois está fundamentada em entrevistas com pessoas que estudaram o caso e em diversos documentos. Este tópico trará a relação entre os fiéis e a mídia, os quais ajudam a promover a construção da imagem de santo de Gregório.

Em Teresina (PI) há um monumento ao Motorista Gregório, um local de adoração e de grande visitação, uma área onde os devotos se reúnem para colocarem ex-votos, re-zarem, acenderem velas, conversarem, enfim, um espaço para agradecer e pedir ajuda. O monumento ao motorista Gregório surgiu em 1983 na gestão do prefeito Freitas Neto, que sucedeu Jesus Elias Tajra, no mesmo ano. A construção é em formato de gota para representar a morte por sede e foi feita no local onde o santo popular foi assassinado, na Av. Marechal Castelo Branco. Antes de existir a avenida, surgida apenas na gestão do pre-feito de Teresina Joel da Silva Ribeiro (1971-1975), o lugar já era ponto de visitação dos devotos, que procuravam a região para rezar, pedir ajuda e/ou agradecer.

O monumento possibilita que os fiéis se encontrem, conversem e contem as graças recebidas, criando e recriando crenças, fortalecendo alguns aspectos e relegando outros, ajudando a cristalizar a imagem do martírio e da boa alma (assim o veem) que é o Mo-torista Gregório. Esse encontro origina um ambiente único marcado de características próprias, o que corrobora com a ideia de praça pública de Bakhtin, que, nas palavras de Martín-Barbero (2009, p. 101-102) é

um espaço não segmentado, aberto à cotidianidade e ao teatro, mas um teatro sem distinção de atores e espectadores. Caracteriza a praça, sobretudo uma linguagem; ou melhor: a praça é uma linguagem, “um tipo particular de comunicação”, configurado a partir da ausência das construções que especializam as linguagens oficiais, seja a da igreja, a da corte ou a dos tribunais.

Nesse ambiente a oralidade entra como uma maneira poderosa de difusão de men-sagens, pois é um meio simples por requerer apenas o contato entre uma pessoa e outra, ora um sendo emissor, ora outro sendo receptor. É um processo dialético, onde ideias são expostas e discutidas, num complexo e rico nascer de teses e antíteses. Algumas vezes um acordo de opiniões surge, noutras a conversa não termina em consenso, mas sempre há o enriquecimento dos participantes. As formas da morte do motorista Gregório são as mais variadas, segundo os depoimentos dos fiéis, com cada devoto acreditando na sua e, numa conversa qualquer, difundindo a sua versão. Um dos devotos entrevistados foi o “devoto A”3, o qual acredita que a morte do milagreiro ocorreu da seguinte forma:

Seu Jurandir me disse que foi naquela árvore. Ele passou, parece, que ele passou sete dias e sete noites. Ele veio arrastado lá de Barras para cá. Veio arrastado num Jipe, um Jipe da

3 Serão usadas letras em vez do nome para garantir o sigilo do entrevistado.

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polícia. Aí, trouxeram ele pra cá e amarraram. Parece que ele matou, atropelou um filho de um Coronel. Ele chegou a falecer, não é? Ele veio de Barras pra cá arrastado! Chegaram aí e amarraram e ele passou, se não me engano, sete dias e sete noites. Sem beber e sem nada! Igual Cristo! Terminaram executando ele. Deram um tiro na testa. Ele morreu, primeiro, agonizando. Ele já estava morto, ai pegaram e executaram. Ficou esse martírio. Ele foi amarrado de frente para o rio, pra olhar pra água, pra dar sede e ele não beber.

Pode-se perceber que o fato não condiz com o registrado em livros e em documen-tos. A mensagem passou por um processo de interpretação, natural nas histórias narradas por meio da oralidade. A crença numa morte mais dolorosa é importante para manter e expandir a imagem do martírio, favorecendo a representação de mártir.

“Devoto A”, em seu depoimento, mostra que a característica da morte por sede em frente ao rio é mais forte do que um assassinato por tiro. O discurso manifesta várias facetas. Quando ele afirma que “deram um tiro na testa”, revela o seu conhecimento de que Gregório havia morrido por causa de um tiro na cabeça, mas continua e tenta mostrar que o suplício foi a causa mortis, dizendo que o motorista “morreu, primeiro, agonizando” e que depois de morto ele foi executado. O devoto cria duas mortes, a do martírio e a do tiro quando afirma que “ele já estava morto, aí pegaram e executaram”.

Outra parte de destaque no discurso é quando ele profere: “Chegaram aí e amarraram e ele passou, se não me engano, sete dias e sete noites. Sem beber e sem nada! Igual Cristo!”. É simbólica essa comparação entre o santo popular e Jesus, a figura central do cristianismo. Cris-to passou 40 dias e 40 noites em jejum, e Gregório também passou pela privação de comida e água. Há a comparação que santifica o motorista Gregório, tornando-o semelhante a Jesus.

A imagem da morte de sede em frente a um rio mostra-se poderoso no imaginário popular. A ideia de alguém não ter acesso à água quando se está olhando para o Rio Poti é um dos aspectos fundamentais para reforçar o sofrimento e, assim, a santificação. Os jornais da capital do Piauí colaboram para a estruturação dessa representação, se assemelhando muito com os fiéis no papel de recriador das histórias das sevicias sofridas pelo Motorista Gregório:

Amarrado durante 15 dias com os pés para cima, com alimentação e água racionadas, olhando para a correnteza do rio Poti, no bairro Primavera, zona norte de Teresina, Gregório Pereira dos Santos, o “motorista Gregório”, se transformou num símbolo de fé e completa na próxima sexta-feira 70 anos de morte – uma das mais violentas do século na capital. Os milagres conseguidos em nome de Gregório fazem do local de sua morte um verdadeiro ponto de romaria e ainda hoje tem quem chore pela crueldade praticada pelo assassino, capitão PM Florentino de Araújo, o “Capitão Flores”. […] A história da morte de Gregório começa quando ele era motorista do Padre Lindolfo Uchôa, na década de 20. No volante de um caminhão Chevrolet 20, no município de Barras (126 quilômetros de Teresina), Gregório foi dar uma ré e atropelou um menino de dois anos que era filho do “Capitão Flores”. A criança foi levada em estado grave para o hospital, enquanto o motorista era preso e amarrado ao tentar prestar socorro. Ele foi colocado com a cabeça para baixo em um pé de jatobá, na Primavera. O local era deserto e o “Capitão Flores” disse que se a criança morresse ele voltaria para matar o motorista,

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se ela escapasse voltava para soltá-lo. Mas para evitar que alguém o soltasse, dois policiais ficaram de plantão no local. ‘Gregório gritava pedindo água e comida, mas os soldados levavam água no rumo da sua boca e quando chegava perto jogavam no rosto’, conta a aposentada Sebastiana Morais. […] Depois de muita sede e fome, Gregório foi eliminado a balas na presença da mulher e dos filhos. Como a criança atropelada morreu, “Capitão Flores” pegou a família do motorista e seus móveis e alugou um caminhão, que foi levado ao local, onde ele agonizava (SÍMBOLO, 1997)

A distorção da história é evidente, com o jornalista tendo misturado personagens, passagens, laços familiares, a maneira do assassinato etc. A história ocorreu no município de Barras, mas o jornalista já traz a história para Teresina, num lapso espaço-temporal, dando a entender que Primavera (bairro teresinense) está localizada na cidade de Barras. Os soldados que estavam no carro quando Gregório foi transportado do interior à capital aparecem como torturadores debochados. Por fim, o jornal dá ao milagreiro esposa e filhos, os quais assistiram a execução, pois Florentino “pegou a família do motorista e seus móveis e alugou um cami-nhão, que foi levado ao local, onde ele agonizava”. É uma história desconexa, com elementos que dão mais dramaticidade ao caso, excitando o leitor com o calculismo e a frieza do Capitão.

“Amarrado durante 15 dias com os pés para cima, com alimentação e água racionadas, olhando para a correnteza do rio Poti”. Já pelo início da matéria tornam-se nítidas quais ima-gens fazem do Motorista Gregório santo popular. Toda a história pode mudar, como a manei-ra da tortura, o cargo do assassino (ser do Poder Público é relevante), a forma como ocorreu o atropelamento etc. Nesta passagem fica claro que o cerne do “causo” é o sofrimento e a sede estando à beira de um rio, com toda a história de fundo sendo maleável, alegorias que dão cor, mas que não são tão importantes. Porém, quanto mais sofrimento, melhor.

As matérias dos jornais, muitas vezes, são baseadas nos depoimentos dos fiéis, que, ao se apropriarem dessas falas, tomam para si o discurso, sendo um meio de difusão do ima-ginário do grupo. O fenômeno cultural dos santos não canônicos tem sua legitimação feita pelos devotos, não sendo de fundamental importância a apropriação dos meios de comu-nicação de massa para que a cultura popular seja considerada válida ou que seja vista como algo capaz de gerar manifestações. Mas a imprensa participa desse fenômeno tendo uma função importante, pois se apropria das crenças do povo para publicá-las em suas páginas, sendo lida tanto por quem não tem interesse na ação do grupo como também por devotos. Os leitores podem passar por um processo de mudança, seja reforçando a visão de santo do motorista ou dando mais intensidade à não-crença. Dessa forma, existe a visibilidade da cultura do povo na grande mídia, assim como há o enraizamento dos media na realidade popular, dando ao caso um sentido mediático:

o sentido mediático do fenômeno cultural acontece na sua transposição do espaço privado para o espaço público, através de um processo de instauração que começa no instante preciso em que deixa de ser um simples acontecimento da experiência cotidiana de um grupo ou comunidade para ser visibilizado pelos meios de comunicação e legitimado como parte de uma experiência coletiva. Um sentido proposto pelo processo de interação e visibilidade dos fenômenos culturais nos

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media, permitindo uma variabilidade de significados e interpretações num mesmo tecido social (MARQUES, 2000, p. 66).

Além do martírio, os milagres realizados por Gregório ajudam na construção da imagem de santo. “devoto B” acredita nas graças e relata um dos supostos milagres reali-zados pelo santo não canônico:

Eu não sei se foi o militar que fez tudo isso com ele que cegou. E depois que ele já tinha matado o Gregório, que mataram assim de sede e de fome, e parece que deram um tiro nele ainda, aí ele cegou e se pegou com a alma dele e ficou bom. Ficou cego e ainda ficou bom! […] O homem lá em Barras cegou e se pegou com a alma do finado Gregório e ficou bom da vista. Por isso ele é santo, ele é santo, o Gregório! Não é muita gente que sabe disso não, mas eu sei porque eu moro perto do cemitério São José.

O “devoto B” não sabe ao certo quem ficou cego, embora transpareça querer acreditar que foi o assassino (militar). Ele começa dizendo que não sabe se foi o militar quem cegou, mas na continuidade da história demonstra acreditar que foi Florentino ao afirmar que “parece que deram um tiro nele ainda, aí ele cegou e se pegou com a alma dele e ficou bom”. Ele não tem certeza da identidade de quem recebeu o milagre, com seu discurso indo e vindo entre ter sido e não ter sido Florentino, pois começa dizendo não saber se foi ele o curado, depois, pelo desenvolvimento da fala, deixa claro que foi, para, noutro trecho, dizer simplesmente que “o homem lá em Barras cegou e se pegou com a alma do finado Gregório e ficou bom da vista”. É contada a história de alguém que ficou cego e foi curado pelo milagreiro, mas, para o devoto, é melhor acreditar que quem recebeu a graça foi o assassino do Motorista Gregório.

A história da cegueira remete a São Longuinho, que tinha uma grave doença ocular. Este, ao perfurar o corpo de Jesus com uma lança, foi atingido nos olhos por respingos do sangue de Cristo, o que lhe curou. O vilão na história do motorista Gregório também foi agraciado pelo milagre de ter a visão restabelecida. São duas pessoas ligadas ao “lado do mal” que foram curadas pelos torturados e injustiçados. Assim como “devoto A” associa o jejum de Gregório ao de Cristo, o “devoto B” também relembra a história de Jesus ao asse-melhar os milagres de curar o assassino cego, mostrando o perdão e o poder milagroso que são recorrentes nos santos.

A estória da vida dos santos populares são processadas no imaginário popular, dando margem ao surgimento de várias lendas, a exemplo do caso de São Longuinho, um santo pertencente ao devocionário nordestino. Vale a pena ressaltar que o vocábulo longino é proveniente do latim e significa alto, longo. Segundo a lenda, Longino foi o centurião que transpassou o coração de Jesus com sua lança. Como era cego, ele não percebeu os respingos de sangue que lhe caíram nos olhos. E, quando isto ocorreu, deu-se um verdadeiro milagre: Longino voltou a enxergar. A partir daí, dizem que ele se converteu ao cristianismo: ficou conhecido como São Longuinho, considerado como o santo dos objetos perdidos, e seu dia ficou sendo o 15 de março. […] Ao longo do tempo, os milagres exaltados pelos santos não-canônicos foram sendo destacados

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e memorizados. Com o acontecimento dos milagres, concedidos por aqueles santos, o interesse de outros fiéis foram sendo despertados, tornando-se eles, por sua vez, seguidores desses “santos” (LÓSSIO, 2010, p. 4-5).

O jornal O Dia de 07 de setembro de 1975 compara a história de outro santo com a do motorista Gregório. Há estabelecimento de semelhança entre o milagreiro piauien-se e São Sebastião, como também existe o castigo da cegueira sofrido pelo assassino. E, por fim, o martírio ganha atenção especial, principalmente a enorme sede pela qual passou o santo não canônico.

Gregório – e não interessa o sobrenome – é para todos os piauienses um mártir com uma diferença de São Sebastião: enquanto este morreu perfurado de flechas por um crime que não cometeu, o outro morreu de sede e à bala, com uma indagação permanente: “tem água para eu beber?”. No próximo dia 17 será mais um aniversário da sua morte na beira do rio, no tronco de um “pau d’água” onde ele ficou agarrado a uma corrente para ser executado por um tenente da Polícia, de nome Florentino, que hoje está cego e paralítico em Crateús, Ceará. […] O finado – como justifica para os mortos a linguagem dos vivos – passou a ser um verdadeiro santo em Teresina. Até o bairro onde ele foi executado pelo seu “amigo” tenente Florentino recebeu o nome de “Porenquanto”. E isso criou uma lenda até: o nome surgiu porque o preso reclamava água e o tenente dizia “porenquanto tome água de sal”. Consta do depoimento do acusado que ele atropelou o filho do tenente sem culpa. Mas Florentino decidiu agir com as próprias mãos e as duas fotos acima testemunham até o episódio da rede que Gregório pediu que lhe dessem, a fim de que não visse a sua própria morte. Ele colocou a rede na cara e depois dos tiros caiu sangrando, como vítima inocente que não teve a menor defesa. E além disso, como cão acorrentado, que não cometera qualquer crime. […] O tenente, que talvez tenha executado-o sem o conhecimento da central da Polícia, nesse tempo, está hoje cego e paralítico na cidade de Crateús, enquanto Gregório tem flores e visitas constantes no seu túmulo, principalmente por parte daqueles devotos que atribuem “milagres”. A festa do dia 17 terá sempre as mesmas garrafas d’água que os devotos colocam no túmulo de Gregório e as mesmas flores como respeito e crédito à sua inocência. Isto não custará nada para repetir uma história que todos os anos acontece, que relembra exclusivamente a alma mansa de um povo que nunca deu os braços à violência nem à injustiça (MATADOR, 1975).

Nessa notícia do jornal O Dia se encontram vários elementos que corroboram com a visão do martírio, da injustiça, da ação de alguém da polícia como o algoz, da sede, do casti-go, dos milagres e da força do povo que “nunca deu os braços à violência nem à injustiça”.

A busca de santos que sejam referenciais para comprovar o Motorista Gregório como consagrado a Deus também existe na imprensa. O jornal O Dia achou na história de São Sebastião o modelo de alma santificada. Em relação a este, tentaram executá-lo com flechas e depois o lançaram num rio. Mas ele não falecera. Mais tarde, o Impera-dor Diocleciano, ao saber que São Sebastião continuava vivo, mandou que o santo fosse espancado até a morte. Mas ele não morreu. Por fim, para que a ordem imperial fosse cumprida, transpassaram o coração do julgado com uma lança. A semelhança, segundo o

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jornal, entre São Sebastião e Gregório se dá pelo sofrimento e por terem sido injustiçados, porque foram punidos por crimes não cometidos: “enquanto este (São Sebastião) morreu perfurado de flechas por um crime que não cometeu, o outro morreu de sede e à bala”.

O suplício pelo qual o motorista Gregório passou é contado, sendo a sede tendo um rio à frente, o principal sofrimento. Fica evidente a força simbólica que há na falta de água como fator relevante na formação de santo do Motorista Gregório. A matéria elenca símbolos que se ligam à água. Segundo o periódico, o santo popular teresinense morreu com “uma indagação permanente: ‘tem água para eu beber? ’”, assim como morreu amar-rado no “tronco de um ‘pau d’água’”. Por fim, a passagem dramática, a qual dá nome ao bairro do “Porenquanto”, onde ele foi executado, mostra o aspecto mais sórdido do “vilão” Florentino Cardoso: “Até o bairro onde ele foi executado pelo seu ‘amigo’ tenente Florentino recebeu o nome de ‘Porenquanto’. E isso criou uma lenda até: o nome surgiu porque o preso reclamava água e o tenente dizia ‘porenquanto tome água de sal (suor)’”. A questão do nome do bairro também foi contada pelos fiéis, mas houve outros que dis-seram que o nome surgiu porque as pessoas esperavam o barco para realizar a travessia do rio Poti e diziam uns aos outros: “o barco vai já chegar, espera aí por enquanto”.

Por fim, o assassino é castigado ainda em vida, ficando cego e paralítico. Já o torturado é amado pela população: “A festa do dia 17 terá sempre as mesmas garrafas d’água que os devotos colocam no túmulo de Gregório e as mesmas flores como respei-to e crédito à sua inocência.” Essa matéria foi desmentida pelo jornal O Estado, o qual entrevistou Florentino Cardoso, publicando um texto rebatendo as afirmações feitas por jornal O Dia. Abaixo está uma foto do delegado, mostrando que nem a cegueira e nem a paralisia faziam parte da realidade dele.

À esquerda está Florentino Cardoso e à direita Vital Araújo, investigador que fez a reportagem reba-tendo as declarações de O Dia. Fonte: Arquivo pessoal de Araújo.

Pode-se perceber que Jesus Cristo, considerado o santo maior, o filho de Deus, tem na sua história o fundo arcaico formador da história do santo não canônico motorista Gre-

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A CRIAÇÃO DO SANTO NÃO CANÔNICO MOTORISTA GREGÓRIO

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Acta Científica, Engenheiro Coelho, v. 20, n. 3, p. 53-64, set/dez 2011

gório. É habitual os fiéis procurarem semelhanças entre as mortes, como também entre os castigos sofridos pelos pecadores. Muitos santos têm uma história de sofrimento em vida, assim como o motorista Gregório teve, como pode ser notado na comparação feita pelo jornal O Dia. O padecimento pelo qual Gregório passou, segundo o jornal, e as curas reali-zadas pelo milagreiro de Teresina é proveniente da história estruturadora do Cristianismo.

A cultura remete sempre a um princípio constitutivo único que tem a ver com a própria existência arquetípica do homem e que se revela no fundo arcaico, ou seja, um conjunto de estratos subterrâneos, resultado de um imaginário mítico primitivo e fundador, constante na história humana, independente de qualquer circunstância temporal ou espacial (MARQUES, 2000, p. 63).

E essa estrutura formadora de personagens míticos é comumente usada para a criação de novas figuras. Um exemplo encontrado é na Inconfidência Mineira, com Tira-dentes. Existe a presença do Judas, que é Silvério dos Reis, pois delatou os inconfidentes em troca de dinheiro. O papel de Jesus foi ocupado por Tiradentes, tendo na divulgação da sua imagem um rosto com cabelos e barba similares à da imagem de Cristo. Mas, na verdade, não se sabe qual era a fisionomia de Tiradentes; o que se sabe é que ele morreu sem barba e careca, já que para ser enforcado ele deveria ter o rosto limpo (sem pelos no rosto e cabelos) para ser visto ao ser executado.

A imagem do santo não-canônico motorista Gregório não é construída por uma ou duas pessoas, mas por inúmeras interferências tanto dos fiéis quanto da grande imprensa. É uma história em constante modificação, recebendo novas informações, novas compa-rações e novos modelos sacros que estimulam a imaginação de quem lê ou ouve sobre as manifestações dos devotos ou sobre a história do sofrimento de um “homem do povo” injustiçado por um “homem do governo”.

Todas essas informações se unem numa só estrutura que tem contornos maleáveis. Há a manutenção de uma base principal de quem foi/é o motorista Gregório, que é cerca-da por uma nuvem de imaginários construída pela soma das ações de pessoas que tenham qualquer tipo atuação sobre o santo em questão. Os contornos maleáveis são imaginários individuais, mas que estão subordinados a um imaginário coletivo: o sofrimento de um injustiçado que morreu de sede olhando para um rio.

Pode-se falar do imaginário de uma ou de outra pessoa, mas sempre está inserido no imaginário de um grupo. Pode-se falar em ‘meu’ ou ‘teu’ imaginário, mas, quando se examina a situação de quem fala assim, vê-se que o ‘seu’ imaginário corresponde ao imaginário de um grupo no qual se encontra inserido. O imaginário é o estado de espírito de um grupo, de um país, de um estado-nação, de uma comunidade etc. O imaginário estabelece vínculo. É o cimento social. Logo, se o imaginário liga, une numa mesma atmosfera, não pode ser individual (MAFFESOLI, 2001, p. 76).

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considerações finaisO motorista Gregório, enquanto vivo, não teve grandes realizações e nem ficou

gravado por ser uma figura marcante. Era um garoto que se mudou provavelmente da Paraíba, para Barras (PI) no intuito de exercer o ofício de motorista. Depois de prestar serviços ao comerciante Jaime Teodomiro, foi trabalhar, ainda como motorista, para a paróquia local. O que marcou sua vida a maneira como ele morreu.

Gregório tem em sua história inúmeros elementos que podem alimentar sua fama de santo, mas ficou explícito, pelos discursos analisados nesse artigo, que os devotos deixam à mar-gem muitos desses elementos com potencial de serem utilizados para criarem ou recriarem a história. Os fiéis não se importam muito com os detalhes da morte, bastando, para que a crença permaneça, a ideia do martírio (das sevícias), da injustiça feita por um “homem do poder” contra um “homem do povo” e dos milagres realizados. Trabalhar para a igreja, ser pacato ou qualquer outra característica é relegada. Os pormenores não precisam ter um caráter real/verdadeiro, cada devoto cria seus detalhes. A imagem de virtuoso é o resultado da soma das crenças individuais, estas sempre estando subordinadas a uma ideia coletiva dos porquês que transformaram em mi-lagreiro o motorista. Num rápido olhar, não é possível enxergar as justificativas e os motivos da crença, mas na análise dos discursos pôde ser percebida a ação do fundo arcaico fundamentando o imaginário, ajudando a transformar um simples motorista em santo.

referências bibliográficas

AZZI, R. Formação histórica do catolicismo popular brasileiro. A religião do povo. São Paulo: Edições Paulinas, 1978.

BARROS, E. Parabélum. Teresina: [s.n.], 2008.

DIAS, W. P.; ARAÚJO, D. V. Motorista Gregório: mártir ou santo? Teresina: Editora Gráfica Expansão, 2005.

LÓSSIO, R. O belo da fé: a sociologia da aparência na cultura popular. Museu de Arte Popu-lar, Recife, abr. 2010. Seção Artigos. Disponível em: http://museudeartepopular.files.wordpress.com/2010/04/texto-de-rubia-lossio.pdf

MAFFESOLI, M. O imaginário é uma realidade. Famecos: mí dia, cultura e tecnologia. Porto Ale-gre, v.1, n. 15, 2001. Seção Documentos. Disponível em: http://www.revistas.univerciencia.org/index.php/famecos/article/viewArticle/285.

MARQUES, F. As interações entre os media e a cultura: a produção do fundo arcaico e as variações de sentido. In: FAUSTO NETTO, A. et al (Orgs.). Comunicação e corporeidades. João Pessoa, Editora UFPB, 2000.

MARTIN-BARBERO, J. Dos meios às mediações. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

MATADOR de Gregório não está arrependido. O Dia, set., 1975.

SÍMBOLO de fé, Gregório faz 70 anos de mito. Jornal Meio Norte, out., 1997.