A Criatividade Que Liberta - Riso, Humor e Morte

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  • REVISADO

    A criatividade que liberta: riso, humor e morte

    Homo ludens e homo ridens: o homem o nico animal que ri, afirmam vrios estudiosos

    do riso. Explica-se o riso pela sensao de superioridade diante do risvel, mas tambm pelo fato

    de o homem saber que no imortal. Um animal v seu companheiro morrer, mas no deduz que

    tambm ele mortal. Scrates sabe-o e da sua ironia, de que fazem parte o cmico e o humor,

    formas pelas quais, comenta Umberto Eco, o homem tenta tornar aceitvel a idia insuportvel

    da morte ou vingar-se do destino ou dos deuses que o definem como mortal.

    O riso relaciona-se, assim, com a tragicidade da vida, mas tambm com a capacidade de

    distanciamento: o prazer de pensar, o gosto do engano e a possibilidade de subverter

    provisoriamente, atravs do jogo, a condenao morte e tudo aquilo que a representa. Em geral

    visto como sinal de alegria, o riso pode revelar o sofrimento em toda a sua crueza.

    Supostamente cheio de certezas, sujeito desejante dono de seu corpo e de sua vida, o ser

    se vislumbra submetido s condies biolgicas, sociais e culturais, obrigado a ver-se como um

    ser para a morte, j marcada na descontinuidade que o caracteriza e que ele tenta mas receia

    eliminar atravs do amor. Uma soluo ser portanto o riso, que denota simultaneamente a

    superioridade do homem e a sua misria infinita em relao ao ser absoluto de que, como diz

    Baudelaire, ele possui a concepo.

    O riso uma exploso, afirma Roustang, um brilho que no se prolonga, ruptura que no

    pode durar, menor unidade pensvel do desapego, da diferena, do recuo. O seu tempo o de um

    instante. Depois do brilho, da exploso, a realidade retorna com o peso de sua histria.

    Bataille, tomando o pensamento de Nietzsche, considera o riso como a libertao possvel

    para o homem. Os seus estudos sobre o erotismo refletem sobre a busca psicolgica que

    impulsiona os seres humanos, inconformados descontnuos que, desde o nascimento, procuram a

    continuidade com o outro, embora essa continuidade signifique paradoxalmente a morte.

    Certamente ser esse um dos motivos pelos quais o homem busca o amor e ao mesmo tempo o

    teme, pois a entrega sem reservas equivale ao desaparecimento do ser. Esse movimento

    contraditrio, certamente dramtico, engendra o riso, se houver distanciamento capaz de

    compreender a sua complexidade, normalmente ignorada por aquele que se debate como um

    autmato entre o impulso amoroso e o desejo de evit-lo. Isso porque o apaixonado no tem

    tranqilidade para discernir o amor que inspira, o amor que experimenta e a expresso do amor,

    o que pode significar a presena de uma rigidez e/ou de uma parania que faz rir, porque se furta

    ao exerccio da reflexo, reveladora da ao de uma conscincia.1

    Muitos estudiosos j se debruaram sobre o riso: da Antigidade ficaram estudos de 1 Franois Roustang afirma que a parania uma interdio ao riso, pois a certeza o srio que o coibe.

  • Plato, Aristteles, Ccero e Quintiliano. Dos sculos XVII e XVIII trabalhos de Hobbes,

    Shaftesbury e Hutcheson, alm de um tratado annimo de 1768. Victor Hugo, no prefcio a

    Cromwell, estuda o grotesco risvel, to elaborado na obra de Cervantes e Rabelais.

    Schopenhauer, Bergson, Nietzsche, Bataille e vrios outros documentam a preocupao da

    filosofia com o riso. Baudelaire estuda-o nas artes plsticas, enquanto Freud, Lacan, Roustang e

    Jacques Alain-Miller observam-no da perspectiva da psicanlise.

    Interessa aqui principalmente a relao do riso com a literatura e a filosofia e,

    especialmente, o fato de o riso ser defesa contra a morte por parte do homem consciente das

    limitaes da vida e da fragilidade do corpo, cujo funcionamento regular lembra o automatismo

    da mquina e por isso muitas vezes risvel, principalmente se apresenta defeitos... Uma das

    grandes fontes de riso, segundo o estudo clssico de Bergson, alis a semelhana do corpo com

    animais ou mquinas. Tambm o riso provocado pelos palhaos remete a essa relao com o

    corpo, certamente pelo descontrole que indica ausncia do domnio da razo e da dignidade. Por

    isso que o riso pode indicar uma vitria sobre a morte: a sua exploso suscita, como diz

    Bataille, a experincia do nada, do impossvel, da morte, indispensvel para que o pensamento se

    sobreponha a si mesmo e o homem possa aceitar o desconhecido. O riso traz assim a

    possibilidade de ultrapassar o mundo e o ser que somos, precrio, limitado e mortal, marcado

    pela falta e pela impossibilidade de atingir o total conhecimento. Pelo riso o ser pode sair da

    verdade da finitude, pois o nada a que ele d acesso liberta de racionalismos e condicionamentos

    ratificados pela organizao social.

    Quanto mais o esprito est seguro, afirma Nietzsche, mais o homem desaprende a

    gargalhada, necessria para sair da crena na razo e na positividade da existncia. O riso revela-

    se til, assim, para a manuteno da espcie: experincia do no-saber, livra do desespero do

    pensamento aprisionado nos limites do srio. Nesse sentido, saber rir momentaneamente

    tornar-se Deus, experimentar o impensvel, sair da finitude da existncia.

    A organizao social, pautada em normas e regras, procura firmar o siso e restringir o

    riso, bem como controlar o amor. Ao impor a proibio do incesto e defender o casamento

    heterossexual, por exemplo, a sociedade regula o prprio crescimento e protege a sua

    sobrevivncia. O homem pode ter trs atitudes diante dessas regras coercitivas: submeter-se,

    rebelar-se ou fingir transgredir. Surgiram da as inmeras comdias e anedotas sobre a

    (in)fidelidade conjugal e sobre o homossexualismo ou as histrias sobre casamentos de

    convenincia, grande alimento para os chistes recolhidos por Freud.

    Em Os chistes e sua relao com o inconsciente as brincadeiras com os costumes do

    povo judeu indicam o humor de Freud, j que o riso tem fundamentalmente dois objetos: o outro

    ou o eu. Provocado pela ironia, o riso uma afirmao de poder sobre o outro, considerado ento

    2

  • de alguma forma inferiorizado. No humor, pelo contrrio, o riso volta-se para o prprio eu, que

    brinca com seus costumes, crenas, pretenses ou manias. O humor provoca o riso, assim, em

    muitos chistes recolhidos por Freud, pois neles o fundador da psicanlise parece rir de si mesmo

    ao rir de seu povo, de sua relao com o dinheiro, de seus hbitos, da tradio de ajudar

    familionariamente os irmos desvalidos. Brincando tambm com as regras das relaes

    amorosas, Os chistes mostram uma rebeldia mansa, uma conscincia ldica da represso, com

    a qual o humor ajuda a lidar.

    Dada a relao entre o riso e a morte, o autor literrio cmico ser portanto um autor

    funreo. Tendo sempre em mente a morte, embora usando a tcnica do distanciamento, que

    apresenta a morte como se vista pela primeira vez,2 esse autor revela-se capaz de provocar

    sorrisos, geralmente inquietos. O sorriso ambguo e irnico, indicador de ceticismo, que resulta

    dessa anteviso da morte, coloca-a em dvida e permite afastar a indesejada para um momento

    improvvel e perdido num futuro incerto, ou ento coloca no seu raio de atuao apenas o outro

    e no o eu.

    Tambm as desiluses amorosas relacionam-se com a morte e ajudam nessa reflexo. Em

    Escola de mulheres, de Molire, o personagem Arnolfo, para prevenir-se da infidelidade das

    esposas um tipo de morte para o marido trado e para o qual ele freqentemente contribua ,

    decide cuidar da educao de uma rf, mantendo-a na maior ignorncia possvel de coisas

    essenciais da vida, incluindo as relaes sexuais e, especialmente, a possibilidade da infidelidade

    conjugal. Preservadas sua ingenuidade, pureza e honestidade, deveria Agnes ser depois a esposa

    fiel com que sonhava o seu protetor. A menina corresponde inicialmente s expectativas, pois

    chega a perguntar a Arnolfo se pelas orelhas que se fazem as crianas, no ocorrendo ao

    interessado educador que essa pergunta pudesse revelar o amadurecimento de uma disposio

    natural para o amor e para o sexo, completamente desvinculada de qualquer interesse por sua

    pessoa. E depois o feitio volta-se contra o feiticeiro, pois a cordeirinha ingnua, sem abandonar

    a sinceridade que Arnolfo sempre lhe recomendara, ou mesmo exercitando-a, encanta-se com as

    palavras sedutoras de Horcio, o amigo de Arnolfo que lhe conquista a noiva sem lhe saber o

    segredo, destruindo assim as pretenses do matreiro lobo, seu suposto protetor.

    O espectador ri da frustrada expectativa do personagem, da incongruncia existente entre

    o que ele aguarda confiadamente e o que afinal encontra.3 Repetidamente enganador de maridos,

    Arnolfo cmico porque adota meios extremos e supostamente infalveis para prevenir a

    2 Em seu livro clssico sobre o riso, Bergson atribui insensibilidade a capacidade de rir do semelhante em situao de discutvel humanidade. Talvez seja melhor falar do distanciamento que permite ver o outro como outro e como diferente, o que torna possvel o riso, salvaguardada assim a suposta dignidade do eu. 3 Segundo Kant, o sbito aniquilamento da tenso de uma expectativa o afeto que provoca o riso. Para Herbert Spencer, o riso seria o ndice de um esforo que se depara repentinamente com um vazio.

    3

  • possibilidade de ser tambm ele um marido enganado: quando resolve ter uma mulher s para si,

    pretende impedi-la de pensar, de ter desejos e de usar a linguagem. Ao restringir-se, entretanto, a

    esse plano de repetio e, principalmente, ao experimentar o amor a que se julgava imune, o

    personagem mergulha no engano que pretendia evitar.

    Arnolfo enganado pela mesma linguagem que ele supe carregada de sentido: acredita

    que o manual da mulher casada seja capaz de moldar o pensamento de Agnes, e afinal ele o

    colhido pelo pensamento do amor: a sua teimosia e idia fixa fazem dele figura humana

    desprovida de suas caractersticas fundamentais. Invertem-se, assim, os discursos das

    personagens: Arnolfo passa a aceitar a traio da futura esposa para no perd-la e Agnes,

    supostamente incapaz de ter uma idia ou um discurso prprios, afirma o seu desejo e a sua

    palavra. Ambos falam de amor, mas no como esperavam Arnolfo ou o leitor/espectador e essa

    incongruncia o maior motivo de riso. Molire elabora temas tradicionalmente risveis: o do

    enganador enganado, o do reconhecimento e o da ambigidade favorecida pela mudana e pela

    incoerncia entre os supostos e os reais significados dos nomes. Arnolfo risvel porque v

    frustrada sua pretenso de que o olhar amoroso da mulher lhe garanta a imortalidade, ao t-lo

    para sempre como objeto de desejo. A pea elabora, assim, a frustrao da expectativa daquele

    que julga ter encontrado forma de livrar-se da morte representada na traio da mulher amada.

    Bergson lembra que o que provoca o riso o afastamento do homem do que se considera

    como prprio dele sua racionalidade e sua suposta capacidade de usar o intelecto, adaptar-se.

    Quando Freud ope riso e pensamento srio, fala do prazer decorrente da possibilidade de pensar

    sem as obrigaes da educao intelectual e explica que no jogo de palavras a idia da palavra

    ultrapassa a significao da palavra, o que pode ser fonte de prazer e provocar o riso.

    Arnolfo usa a razo, mas a sua rigidez liga diretamente palavra e ao, na tentativa de

    controlar o outro, conduzi-lo ao seu bel-prazer. No admite que esse outro possa ter sentimentos,

    exercitar sua vontade e fazer diferente uso da linguagem, o que tornaria falveis todos os planos e

    destruiria todas as certezas. O personagem ainda mais digno de riso quando, repentinamente,

    reconhece-se no s enganado, mas tambm desejoso da continuidade vislumbrada no amor, que

    representaria vitria contra a solido essencial mas tambm, nesse caso, aceitao do risco da

    posio de marido trado, que tanto desejara evitar. Julgando conhecer todos os artifcios e

    estratgias da seduo e da traio, Arnolfo isolou-se na sua suposta sabedoria, na sua

    insociabilidade e falta de sensibilidade para ver o outro e a sua diferena. E essa falta de

    profundidade e essa semelhana com uma mquina que acabam por torn-lo objeto de riso.

    Lacan acentua a comicidade da pea de Molire, em que Arnolfo fala de amor, enquanto

    Agnes fica no campo da linguagem. O que a atrai em Horcio o seu discurso encantatrio.

    Arnolfo apanhado em outro engano: o fato de no querer ser chamado pelo prprio nome, mas

    4

  • pelo nome de sua propriedade, contribui de forma decisiva para a trama da comdia e para o jogo

    de enganos no qual ele se envolve: sua estratgia de educar Agnes, transmitindo-lhe os deveres

    de fidelidade da mulher no casamento, acaba por enquadr-lo na ideologia do contrato

    matrimonial, fazendo-o cair na armadilha triangular do desejo amoroso.4

    Riso, ironia e humor

    O riso resulta da inesperada unio de incompatveis, entre os quais incluem-se distintas

    experincias culturais, como as de Arnolfo e Agnes. Mas o conceito de riso mistura-se a vrios

    outros conceitos, como os de humor, ironia, comdia, piada, brincadeira, stira, grotesco, farsa

    ou jogo de palavras. Assim o riso oferece resistncia a qualquer definio satisfatria, nos planos

    filosfico, psicolgico e esttico. Seu estudo fica num campo interdisciplinar, que abarca ainda

    os domnios da histria e da antropologia.

    Na perspectiva antropolgica, o homem que parece animal ou tem um comportamento

    mecnico provoca o riso, assim como a repetio, o ato falho, o trocadilho e a inverso, porque

    insinuam que o homem, ser racional e soberano, deveria ter e nem sempre tem o suposto,

    necessrio e racional domnio sobre si mesmo. D. Quixote, com seus desvios sistemticos,

    visto por Bergson como a prpria comicidade, apanhada o mais prximo possvel de sua fonte.

    que a personagem de Cervantes, diz o filsofo, peca por obstinao de esprito ou de carter,

    por desvio, por automatismo.

    Prprio do ser humano, o riso tem uma funo social e educadora: ridendo, castigat

    mores. Com a ironia, que objetiva, como lembra Schopenhauer, a stira e a transgresso, a

    comdia serve a um poder estabelecido, buscando a cumplicidade do leitor/espectador. Tem uma

    utilidade ideolgica, pois fala a uma sociedade que v degradados os seus valores e procura

    resgat-los, sem dvida porque acredita na ideologia que eles representam (ou porque esta lhe

    convm). Baudelaire chama esse riso de cmico significativo, mostrando a sua dupla base: a da

    arte e a da idia moral.

    Numa outra perspectiva, o riso provocado por algo que instantaneamente rompe o

    crculo de automatismos cristalizados em torno do ser. O riso ter como fonte, no caso, o humor

    a ironia humoresque, de que fala Janklvitch. Sua funo emancipadora ser ento a de

    desmistificar a ideologia dominante, marcando a comunicao entre seres que se arriscam a uma

    terceira margem, ao lugar do intervalo e instabilidade do no j e do ainda no. O riso pode

    assim proporcionar um prazer mais sutil, porque se superpe ou porque escapa s limitaes do

    ser humano. 4 Em seu estudo sobre a estrutura triangular do desejo, Ren Girard (1968) demonstra que a valorizao do objeto do amor pelo olhar de um terceiro fundamental para a existncia e o fortalecimento do desejo.

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  • Esse segundo tipo de riso permite brincar com verdades cristalizadas, partindo do

    princpio de que nada fixo ou imutvel no mundo ou no homem, cuja caracterstica maior (j

    dizia Cames) a mudana e, portanto, a surpresa. esse riso o instantneo alvio do

    insuportvel de que fala Franois Roustang que permite ao ser humano, a partir do fingimento,

    a convivncia com sua condio de frgil, dependente e fadado morte. Parece ser tambm a

    esse riso que se refere Bataille quando afirma que ele traz a possibilidade de ultrapassar o mundo

    e o ser que somos. Ser ainda certamente o riso de que fala Jacques Alain-Miller, quando

    estuda o piropo e o v como exemplo de captao, ao vivo, da funo da linguagem, pois o

    piropo uma mensagem que marca um corte entre o dizer e o fazer, expressa um desejo e, ao

    mesmo tempo, um desinteresse profundo: um homem dirige a uma mulher uma mensagem

    ertica, desejando apenas a reao de um sorriso (que poder at vir invertido, numa

    demonstrao de que a mensagem foi recebida como ofensa). Em vez de ter como objeto o outro

    e sua inadequao aos pressupostos e s normas sociais, esse segundo riso tem como alvo o

    prprio eu, seus desejos impossveis e suas iluses. Remete experincia do nada, do impossvel

    e da morte, permitindo pensar o que no pode ser pensado, porque no faz parte do mundo

    reconhecido pela razo.

    Para Schopenhauer, esse outro riso resultaria do fracasso da razo em apreender a

    realidade ou da percepo da incongruncia existente entre o conhecimento abstrato e o

    conhecimento concreto, o que significa percepo do carter virtualmente enganador de todo

    acordo entre a realidade e o pensamento ou entre o realismo e a iluso do real. A sua fonte

    assim a percepo do carter fluido e evanescente da linguagem e a conscincia de que qualquer

    atrelamento do significado ao significante artificial, fingido ou ideolgico, e provisria

    qualquer garantia, porque os fingimentos podem sobrepor-se, o que , afinal, a salvao possvel

    (e utpica) para o homem, que tem como nica certeza a morte.

    A ironia e o riso moralizador da stira

    Para estudar o riso na literatura h que se considerar sua evoluo histrica. Gil Vicente,

    autor portugus que fica na transio entre a Idade Mdia e o classicismo, um bom exemplo de

    olhar crtico sobre a degradao de valores na sociedade do seu tempo, sobretudo nos campos da

    igreja, da nobreza e da justia. Em suas peas h sacerdotes supersticiosos e adeptos da luxria,

    habilidosos em extorquir dinheiro com promessas de recompensas eternas. H tambm nobres e

    fidalgos prepotentes, preguiosos e presunosos, exploradores do trabalho de camponeses e

    mesteirais, com o apoio de juzes que usam as leis para proteger os seus favorecidos. Gil Vicente

    celebra com seu riso essa diversidade de mundos, numa viso antittica: de um lado, o mundo

    ideal, de glria e repouso; de outro, o mundo real, de despropsito universal.

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  • No Auto da barca do inferno, somente se salvam os cruzados honestamente empenhados

    na guerra santa ou os tolos que, por falta de desenvolvimento mental, no se integram geral

    corrupo. A organizao social criticada tambm em peas hilariantes que focalizam a

    degradao do casamento, adultrios, amores serdios, despropositados ou interesseiros e

    mulheres preguiosas que s pensam em alar, pelo matrimnio, a uma classe social que

    garantiria divertimentos e uma vida longe do trabalho, como a Ins Pereira, da farsa que leva o

    seu nome.

    Uma boa amostra/resumo das crticas de Gil Vicente a essa sociedade est no dilogo

    Todo-o-mundo e Ningum, da pea Auto da Lusitnia, em que Todo-o-mundo, um rico

    mercador, conversa com Ningum, um pobre homem, travando-se um dilogo registrado por

    dois demnios Berzabu e Dinato:

    Ningum Como hs nome, cavaleiro? Todo-o-Mundo Eu hei nome Todo-o-Mundo e meu tempo todo inteiro

    sempre buscar dinheiro, e sempre nisto me fundo.

    Ningum. E eu hei nome Ningum, e busco a concincia. Berzabu Esta boa experincia: Dinato, escreve isso bem. Dinato Que escreverei, companheiro? Berzabu Que Ningum busca concincia

    e Todo-o-Mundo dinheiro. (...) Todo-o-Mundo Folgo muito d'enganar, E mentir nasceu comigo. Ningum Eu sempre verdade digo, Sem nunca me desviar. Berzabu Ora escreve l compadre, no sejas tu preguioso. Dinato Qu? Berzabu Que Todo-o-Mundo mentiroso e Ningum diz a verdade.

    A moralizao e a utopia atravs do riso evidenciam-se na situao de Ningum buscar

    virtude, desengano, conscincia e verdade, enquanto Todo-o-Mundo s quer dinheiro, louvores,

    lisonjas e mentiras. O registro escrito em que se empenham os diabos tem mais peso para a

    condenao e, por isso, deve ser mais eficaz na regenerao do decado, representado em Todo-

    o-mundo.

    Outros autores portugueses se destacam pelo uso da ironia da stira. Em seu estudo sobre

    o riso no romantismo portugus, Maria Fernanda Abreu lembra o riso satrico em obras de

    Garrett, Camilo, Ramalho Ortigo e Ea de Queirs. Esse ltimo confessa sua inteno de dar

    um choque ao enorme porco adormecido, para que se percebessem os desvios de sua conduta.

    7

  • Ea critica a degradao do clero e da famlia e a poltica de interesses pessoais em obras

    como O crime do padre Amaro (onde as caricaturas burlescas do Padre Brito, das beatas

    enfeitadas e da figura saltitante do Libaninho provocam o riso), O primo Baslio (com as figuras

    risveis do Conselheiro Accio e de D. Felicidade), A relquia (com a secura desejante da Titi e a

    sensualidade obscena dos padres e do prprio Teodorico), Alves & Cia. (com o desamparo risvel

    do marido trado) e O conde de Abranhos (com o depoimento ingnuo do secretrio adulador).

    Nesse sentido, a obra de Ea de Queirs ser um bom exemplo de riso engajado, com base na

    ironia e privilgio da significao, presena marcante no enunciado textual e funo

    ideologicamente pedaggica.

    A literatura pode, entretanto, elaborar-se de forma mais livre e ainda mais criativa,

    provocando um riso leve e sem intenes pedaggicas, paradoxalmente mais forte e capaz de

    vencer a morte, quando abandona ou rev modelos e normas sociais e, atravs do humor, faz rir

    de convices, medos e idias fixas, como se viu com o Arnolfo, de Molire. Ea de Queirs

    tambm trabalha esse tipo de riso, quando acena para o leitor com o manto difano da fantasia,

    desamarrando intenes e moralismos e permitindo-se brincar com os dados ficcionais e com a

    linguagem. Ea muitas vezes afirma que a funo da arte seria a de criar uma iluso de real,

    produzida a partir de uma observao indireta desse real.

    O texto de Ea em que isso fica mais evidente A ilustre casa de Ramires, pois seu

    narrador-personagem percebe que a viso que outras personagens tm dele distancia-se da viso

    que tem de si mesmo: se o valento das Narcejas o v como fraco e covarde, outros habitantes da

    regio veneram-no, elegendo-o maciamente para o cargo de deputado. Alm disso, a leitura da

    novela histrica reescrita pela personagem revela a inverso feita na histria do suposto heri

    Trutesindo Mendes Ramires, afinal caracterizado como grosseiro e radical, enquanto o Bastardo

    repetidamente chamado de o Claro Sol. Alm da stira com que Ea de Queirs critica

    aquele mundo atrasado e preso ao passado, o risvel que Gonalo se aplica em leituras, escritas,

    trapaas e achegas para resgatar a grandeza dos Ramires, mas afinal demonstra que a sua

    linhagem de brutos e de desumanos. O castigado Bastardo apresentado como o verdadeiro

    heri, exaltado por sua bravura e pintado com as cores douradas do heri mtico em que Gonalo

    o transforma.

    Em A ilustre casa de Ramires o jogo do enunciado mais complexo que em outras

    narrativas de Ea, seja porque o narrador-personagem participa da diegese com um olhar

    impregnado de ironia, como acontece com Fradique Mendes e com o Jos Fernandes de A cidade

    e as serras, seja porque a ironia se acentua no plano da enunciao. Multiplicam-se no romance

    narradores, leitores e perspectivas textuais, expondo-se artifcios e artimanhas de uma elaborao

    discursiva pragmtica e interessada, que se contrape voz do autor implcito. Desenvolve-se

    8

  • assim uma ironia no plano da tessitura da narrativa, com os recursos da metalinguagem e do

    humor. O autor volta o riso para o seu prprio eu (para o seu outro eu, o narrador) e para a sua

    prpria pretenso moralizadora, procurando, num contato mais ameno com o leitor, sensibiliz-

    lo para o lado ldico e criativo de seu texto.

    O humor: riso como jogo e vitria sobre a morte

    Em A ilustre casa de Ramires confluem assim o riso provocado pela ironia e o que tem

    como fonte o humor,5 o que se pode encontrar tambm no conto de Dostoivski Polzunkv

    em que se criticam as instituies e sua degradao, mas, ao mesmo tempo, valorizam-se a

    elaborao textual e o ldico. Multiplicam-se no texto as vozes narrativas e divergem os pontos

    de vista, pois o conto contm uma histria dentro da histria, cada uma com seu narrador, seus

    narratrios e seus jogos de enganos, o que faz sair da verdade sria, rompendo automatismos e

    cristalizaes e mostrando a preocupao do autor com a enunciao e com a intertextualidade.

    Um narrador heterodiegtico cuja narrao se faz a partir da observao do comportamento do

    narrador primeiro , traz um segundo nvel de enunciao, permitindo a ultrapassagem da

    barreira ideolgica da stira: mais do que proclamar a virtude da honestidade e a inutilidade dos

    enganos, o conto mostra um enganador enredado nas malhas tecidas por ele prprio, das quais se

    liberta pelo riso. Dostoivski apresenta assim aquele segundo riso, cuja finalidade est no

    homem que, rindo, livra-se instantaneamente de um sistema que o oprime, bem como do

    imprevisvel e da morte.

    Em Polzunkv o homem dirige o riso para si mesmo, para suas prprias crenas e

    ingenuidades, indicando o que existe de representao e fingimento nos sistemas e nas

    ideologias. O autor faz a personagem aderir conscientemente a essa representao e a esse

    fingimento, tecendo uma crtica distanciada e artstica, que v de fora os jogos da ideologia e os

    repete, espelhando-os, de forma consciente e deliberada. Talvez por perceber, com Nietzsche,

    que as verdades so iluses, metforas gastas, ele abre deliberadamente os bastidores da criao

    para mostrar artifcios de construo textual, revelando assim ter aprendido a usar o fingimento

    em favor de uma arte que critica essa repetio de forma crtica, porque no acredita mais nela.

    Dialogicamente desdobrada em duas, a personagem ri principalmente de suas esperanas

    frustradas. Em suas risveis mensagens textos, piadas, representaes preocupa-se mais com

    a enunciao que com o enunciado, mais com o dizer que com o dito, num riso que se tornou

    mais possvel e freqente a partir do romantismo, poca em que o homem tomou conscincia de

    sua individualidade, para perceber contraditoriamente que sua liberdade uma iluso. Observa

    5 Ver A ldica complexidade de A ilustre casa de Ramires, de Ea de Queiroz, neste volume.

    9

  • ento que seu impulso para o absoluto cerceado por sua relatividade e que somente quando

    consegue aliar objetividade e subjetividade, misturar realidade e sonho, sublime e pattico,

    afirmar a iluso das coisas e, antes de tudo, a iluso da prpria arte, ele pode ser livre, ou melhor,

    ter a iluso de liberdade.6

    Esse riso estaria na base de toda a revoluo modernista, que colocou em causa certezas e

    sacralidades, relativizadas atravs da demonstrao de que existem pelo menos dois pontos de

    vista possveis e de que artifcios de enunciao podem inverter ou subverter a seriedade crtica

    supostamente presente no enunciado. que, segundo Jean Paul, o risvel no existe sem o sujeito

    que lhe empresta essa percepo. Para Schopenhauer, o risvel deriva da percepo da

    incongruncia, que Bataille explica como o engano existente em qualquer impresso de

    segurana.

    Um bom exemplo de autor que lida com o riso, nessa acepo de Schopenhauer, Jorge

    Lus Borges. Para ele, o riso se rege pela poesia, em luta contra a estupidez. Borges ri

    principalmente de si mesmo, como mostra o relato de que, instado a interromper uma aula por

    exigncia da direo da escola e ameaado com o apagamento das luzes, teria ele dito: No

    importa, tomei a precauo de ficar cego.

    Borges ri assim de sua prpria deficincia fsica. Alm disso, mostra que, para ele, o

    trabalho intelectual humorstico, talvez por lidar com a linguagem que, no seu simbolismo,

    substitui a realidade na sua certeza da morte e supe a comunicao que pode disfarar a solido

    e o destino trgico do ser humano. O humor para ele um ditame de beleza que encerra em seu

    mecanismo potico o jbilo do descobrimento: ante o estupor que provoca a incorrigvel

    estupidez humana, o humor provoca o riso e impe a sua desmesura, indicando uma infrao

    que, de alguma maneira, oferece uma ordenao do caos, rindo para fazer sair de toda a verdade

    e usando talvez a nica forma de salvao: a do absurdo. Escrever e, principalmente, criar,

    seriam assim formas de desmoronar a realidade cotidiana, com a ilusria segurana, trazendo a

    possibilidade de rir da solido, do medo e da insegurana, que podem ser assim enfrentados ou

    cuja presena pode ser ento fingidamente ignorada, abrindo caminho para a sada do real

    indesejado, onde habitam a fragilidade, a impotncia e a inexorvel morte.

    Um autor especialista nesse riso que se equilibra entre a tragdia e a comdia

    Guimares Rosa. Suas estrias fazem rir da ignorncia, do enganador enganado e da prepotncia

    castigada, mas revelam sobretudo que o riso pode levar superao dos preconceitos,

    convivncia com a incerteza e a loucura e vitria contra o sofrimento e a morte. Uma das

    frmulas rosianas mais eficazes para provocar o riso consiste em desdobrar o sujeito do

    6 Ver Polzunkov, o funmbulo, ou o engano reduplicado, neste volume.

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  • enunciado e o sujeito da enunciao a partir de um narrador ingnuo tornado risvel porque

    desautorizado por uma outra personagem ou voz, como acontece em Pirlimpsiquice e Os

    irmos Dagob, de Primeiras estrias, ou em Uai eu?, de Tutamia. O mesmo

    desdobramento se observa, de forma ainda mais sutil, em Famigerado (Primeiras estrias), em

    que o narrador-personagem arrisca toda a sua precria segurana ao usar a linguagem nica

    arma possvel naquele embate com o famigerado e amedrontador Damzio. A aposta desse

    narrador, que se divide entre o que fala personagem e o que pisca o olho ao leitor

    extradiegtico, consiste em contar com a ignorncia do perigoso facnora e de seus sequazes e

    em afrontar a morte, provocando riso no leitor por enganar os ameaadores visitantes com a

    ambigidade de uma palavra de significao duvidosa.7

    Poesia, incongruncia, irracionalidade, criatividade, libertao so atributos desse humor

    rosiano que provoca um riso leve, revelador da conscincia de que o sentido no fixo ou nico

    e est ligado ao poder e determinao da morte, podendo ser provisoriamente escamoteado,

    como se v tambm no conto Partida do audaz navegante. Brejeirinha certamente parente

    prxima do Z Bon de Pirlimpsiquice, do narrador do Famigerado, da Agnes de Molire e

    de Polzunkv, de Dostoivski.

    Guimares Rosa faz rir no apenas porque utiliza ironicamente a surpresa reservada pelo

    destino, mas porque tem conscincia do caos e da relatividade. Por isso, humoristicamente,

    desmistifica ideologias e poderes estabelecidos, dividindo a sua voz e brincando com a

    linguagem, e assim livrando o leitor que entrar no seu jogo, mesmo que instantaneamente, do

    peso da vida e do medo da morte.

    Referncias ABREU, Maria Fernanda. Riso e humorismo (na literatura romntica). In: BUESCU, Helena Carvalho (Org.). Dicionrio do romantismo literrio portugus. Lisboa: Caminho, 1997. p. 480-483. ALBERTI, Verena. O riso e o risvel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Fundao Getlio Vargas, 1999. ALAIN-MILLER, Jacques. El piropo: psicoanalisis y lenguaje. In: Recorrido de Lacan. Caracas: Manantial, 1984. p. 25-40. BACHELARD, Gaston. As superposies temporais. In: A dialtica da durao. So Paulo: tica, 1988. p. 85-102.

    7 Ver tambm No j e ainda no: a leveza do humor em contos de Guimares Rosa, Brejeirinha e outros doidinhos / artistas de Guimares Rosa e A ironia na obra de Guimares Rosa ou a capacidade encantatria de um divino embusteiro, neste volume.

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  • BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Joo Bnard da Costa. Lisboa: Antgona, 1988. BAUDELAIRE, Charles. Da essncia do riso e, de um modo geral, do cmico nas artes plsticas. In: Escritos sobre arte. Organizao e traduo Plnio Augusto Colho. So Paulo: Imaginrio/Edusp, 1991. p. 23-50. BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significao do cmico. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. DUARTE, Llia Parreira. Polzunkv, o funmbulo, ou o engano reduplicado. In: Ensaios de semitica Cadernos de Lingstica e Teoria da Literatura n. 10, Belo Horizonte, Fale/UFMG, dez. 1983. p. 63-81. DUARTE, Llia Parreira. Realismo e iluso do real: ambigidade e ironia em Ea de Queirs. In: SCARPELLI, M. F.; OLIVEIRA, P. M. Os centenrios Ea, Freyre, Nobre. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2001. p. 187-194. DUARTE, Llia Parreira. No j e ainda no: a leveza do humor em Guimares Rosa. In: DUARTE, L. P.; ALVES, M. T. A. Outras margens estudos da obra de Guimares Rosa. Belo Horizonte: Autntica/PUC Minas, 2001. p. 99-116. ECO, Umberto. Campanile: il comico come straniamento. In: Tra mensogna e ironia. Milano: Bompiani, 1998. p. 53-97. GENETTE, Grard. Mortos de rir. In: Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, So Paulo, 18.11.2001, p. 4-10. JANKLVITCH, Vladimir. LIronie. Paris: Flammarion, 1964. LACAN, Jacques. Uma mulher de no-receber. In: O seminrio: as formaes do inconsciente. Livro V. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 126-145. MOLIRE. Lcole des femmes. Paris: Hachette, 1969. NIETZSCHE, F. Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral. In: Obras incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. 3. ed. So Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 53-60. ROSA, Joo Guimares. Primeiras estrias. Rio de Janeiro: Aguilar, 1994, v. 2. ROSA, Joo Guimares. Tutamia. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1967. SCHOPENHAUER. La risa. In: STEPANENKO, Pedro (Sel, prol. e notas) Schopenhauer en sus pginas. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1991. p. 77-83. ROUSTANG, Franois. Comment faire rire un paranoaque? In: Critique revue gnrale des publications franaises et trangres. Tome XLIV, n. 488-489, Janvier/Fvrier, 1988. p. 5-15. VICENTE, Gil. Compilaam de todas las obras. Introduo e normalizao de texto de Maria Leonor Carvalho Buescu. Lisboa: INCM, 1984. v. II. VEGA, Celestino. El secreto del humor. Buenos Aires: Editorial Nova, 1967.

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  • Publicado inicialmente em Romnica revista do Depto.de Literaturas Romnicas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. n. 11, 9-26, 2003.

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    Riso, ironia e humor