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Esta é a pequena e curta história de Alfredo Salgado, que esconde em segredo o seu amor, vive entre o tempo e a solidão, entre a saudade e o desejo de morrer.
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ALBERTO SALGADOCURTA-HISTÓRIA DE:
JOSHUARODRIGUEZ
O tempo esgotou-se na ampulheta. O tempo passou e eu, parece que não dei pela sua
passagem. Talvez, porque o tempo é algo que não se deva contar, talvez eu seja apenas mais
um, que ao chegar a velho, sente o pesar do tempo, o desgaste do tempo e que prefere que o
tempo passe, porque muito o que se passou na vida, já passou. E voltar atrás, é recordar um
passado que para muitos continua a ser estranho, outros é necessário porque só assim
poderão descansar em paz.
Sempre disse que quando chegasse a velho, queria ir viver para junto da praia, ter um cão,
viver numa casa de madeira e poder pescar sem mais nada para me preocupar. Parece, que
este sonho foi possível de realizar. Ao longo da vida, não fui mais de que um mero homem que
andou perdido, que se questionava sobre muitas coisas, entre elas o passado, o presente.
Hoje, a noção do tempo esgota-se, vivo de sol a sol, no inverno continuo a gerir a minha vida
de acordo com o sol, felizmente posso sempre acender a lareira em casa, enquanto as
tempestades passam.
1
Hoje, a noção de que eu tenho do tempo é nenhuma ou insignificante, como quando tenho
fome, pesco quando me apetece, escrevo quando chove, pinto na rua e passeio pela praia
vezes sem conta, sem nunca me cansar, e pensar o quão belo é o mar. Mas a inquietude de
hoje, é a inquietude do passado. Estar só, a viver na praia, poderá ter sido uma decisão minha,
mas é minha. Nunca o escondi de ninguém. Aliás a única coisa que escondi toda a vida, foi o
amor, o meu, o nosso amor. O tempo passou em tantas coisas, mas o amor que eu tinha, que
eu dei. Perdeu-se. Perdeu-se no tempo e na saudade. Nunca quis trazê-lo de volta. Nunca
consegui ter o amor que tinha. E ao fim deste tempo, eu nunca mais amei ninguém. Magoou---
-me. Ajudou-me. Não sei, sinceramente o que ela fez comigo, mas quero recordar que o único
amor que tive, foi o amor de uma vida, e que hoje com 73 anos, continuaria a amar. A minha
mãe e meu pai, sempre me olharam com alguma incógnita, nunca perceberam bem quem eu
era, o que fazia, o que estudava, e não, não sabem, as histórias, algumas coisas que vivi, senti e
passei. Muito sinceramente, estou grato, por nunca me terem importunado com essas coisas.
O meu passado viveu comigo e irá morrer comigo.
Pode parecer arrogante e egoísta esta minha atitude, mas acima de tudo é uma forma de estar
na vida, não peço que me compreendam, peço apenas que me respeitem. O respeito pode ser
feito em silêncio ou com uma cusquice nas costas. Cada um é livre, mas respeite para ser
respeitado.
2
Se a minha vida, tivesse algum tipo de lema, podia muito bem ser este.
À alguns dias, um grupo de jovens, tem circundado a minha calma, a minha passividade e o
meu pedaço de praia, escondido num recanto da Lagoa. Não que me incomodem, mas porque
não respeitam o local onde vivo. Sempre defendi a liberdade, tentei que as pessoas com que
eu me cruzei ao longo da vida, não vivessem presas, com medos ou receios do que a vida lhes
possa trazer. Acho isso importante para a evolução das pessoas, em todos os aspetos. Mas a
tua liberdade acaba, quando invades a liberdade do outro. E a rotina que este grupo de jovens
está a tomar, estão a abusar da minha liberdade. Finalmente, ganhei coragem e chamei á
atenção da «rapaziada»; aquela era a minha casa, o meu habitat para eles respeitarem isso,
não lhes proíbo que venham, mas que não passem cá a vida. Uns gozaram-me, outros nem
ligaram, outros calaram-se. Voltei para casa, danado. Pelo facto de não me terem respeitado
ou sequer dado uma satisfação.
Afinal estavam no meu espaço á dias, e eu, nunca lhes dissera nada. Pergunto-me se serão
assim com os seus pais, ou é tudo fogo de vista?
3
Mal me sento no banco da mesa, a fumar um cigarro, batem-me á porta. Eu que nunca tivera
visitas e muito menos, nunca iria fazer conta que alguém me aparece-se de surpresa. Era uma
senhora nos seus 45 anos, chama-se Cristina e que queria falar comigo. Como não podia fugir a
mim mesmo, pedi que voltasse noutro dia que eu não tinha tempo, que não tinha paciência
(aquelas desculpas de alguém casmurro).
No dia, seguinte acordo cedo para ir á vila buscar pão e algumas mercearias para casa e
quando abro a porta, estava a Cristina, a dormir sobre um mando, que eu tenho na cama de
rede, deixei-a dormir, tentei fazer pouco barulho. No caminho, para a vila ia a pensar porque
raio estaria ela ali, o que quereria falar comigo? Ao mesmo tempo, a cara dela parecia-me
familiar, estupidamente, eu parecia reconhecê-la de algum lado.
Quando chego da mercearia, ela já tinha acordado e parecia contemplar o sol, o mar, o vento,
a tranquilidade. Basicamente, era essa a forte razão de eu estar ali, um pouco isolado do
mundo. Não consegui resistir e convidei-a para o pequeno -almoço. Ainda que de uma forma
apática e estranha, o silêncio parecia afunilar e esquartejar-me á medida que íamos comendo.
Ela agradeceu-me a generosidade e perguntou-me se eu precisava de alguma coisa.
Prontamente lhe respondi, preciso que me respondas, que me digas o que queres falar
comigo. Ela ainda que envergonhada e nervosa, me disse que queria deixar-me uma carta, que
tinha encontrado. Eu guardei a carta, agradeci-lhe mas queria saber quem ela era.
4
Disse-me que era mãe do João, um dos jovens que teria estado em redor da minha casa, que
sua mãe teria morrido e que andava á algum tempo á procura de mim, para me dar uma carta
que ela tinha deixado endereçada em meu nome, que a Sr. Madalena teria dado a minha
morada. Dei-lhe as minhas condolências. Mas não percebia como uma desconhecida poderia
saber quem eu era e como seria eu o destinatário daquela carta. Perguntei-lhe quem era a
mães dela. Respondeu-me «Anna»..O meu coração parou, fiquei pálido, custava-me respirar,
senti o meu olhar a abrir, o peito a doer e comecei a tremer. Agradeci-lhe, e de imediato pedi-
lhe que se fosse embora. Pode parecer brusco, de facto talvez tenha sido brusco. Mas não
consegui aguentar-me de pé perante ela. Chorei. Saudei.
Naquele momento, parte de mim, morreu para sempre.
Coloquei a carta em cima da lareira, esperançado que algum dia conseguisse abrir aquela
carta. De fato estava bloqueado, sentia-me preso. Preso sobre mim próprio e o meu passado.
Fumei, vim para a varanda de casa. Esperei. Esperei que me sentisse livre para abrir aquela
carta. Apesar da curiosidade, não queria acreditar que a Anna, tivesse morrido. Tinha-me
isolado, para que este tipo de situações não me afetassem. Supus que seria uma barreira
protetora, entre mim e o meu passado.
5
O medo perde-se com o tempo, ou o tempo faz-nos perdero medo. Entrei em casa, tremia por todos os lados, asminhas mãos queriam fechar-se, a minha ansiedade feria-me... abri a carta...... A única coisa que tinha escrita era
«Enquanto na água existir vida, eu vou sentir saudade.Enquanto no ar, houver oxigénio, eu vou viver a liberdade.Enquanto te tiver no meu coração, pode não haver água nem oxigénio, mas sentirei uma enorme felicidade.
Um beijo - Anna»
6
A minha dor, era enorme, não uma for física, mas sentimental. Dói. Não tinha bastado, o que o
passado me fez, o quanto eu tinha sentido a dor de te deixar. Contudo, quero suportar esta
dor, a dor, da tua partida, a nossa partida... Tive dias, em que não comi, só fumava e via o mar,
esperava que o tempo passasse e se eu passasse pelo tempo não tinha mal nenhum. Como
catarse, todas as minhas memórias, recordações e a única paixão que teria realmente sentido
na vida, multiplicava-se a saudade. Nunca mais parou de se multiplicar.
Anna, nunca esqueci o teu sorriso, aquele olhar que era só teu. A tua mão, os teus pequenos
dedos, a tua pele tão suave, o teu cheiro, a tua sensibilidade, acima de tudo, nunca me esqueci
de ti. Passou algum tempo, desde que eu abri a carta, lidei com a morte da Anna e com todas
as sensações que tinha, que decidi procurar a Cristina, para saber um pouco mais sobre quem
te terias tornado, quem terias sido. Contando o tempo, passaram-se 48 anos em que eu não te
vejo, 48 anos sem falar contigo. Passou bastante tempo e eu sempre esperei nunca dar pela ua
falta.
Quando voltei á mercearia da vila, perguntei á Sr. Madalena onde vivia a Cristina e fiz uma
breve descrição física. Ela disse-me que essa senhora ter-se-ia mudado á pouco tempo para cá
e que vivia junto ao Hostel. Agradeci, á Sr. Madalena, pedi-lhe que me guardasse os sacos da
mercearia, que iria tentar falar com ela e que depois passava por lá.
7
Bati á porta, da suposta casa da Cristina e apareceu-me um jovem, que eu deduzi á partida que
fosse o João, ele ficou um pouco nervoso, reconheceu-me, talvez porque tenha sido um
daquele que me gozou. Tentei fazê-lo crer que estaria ali para falar com a sua mãe por outros
assuntos. Ele disse-me que ela não estava, então pedi-lhe que quando ela pudesse para me
visitar porque queria falar com ela.
Nesse dia fui almoçar com a Sr. Madalena, o Sr. Luís (seu esposo) e a família da sua filha.
Apesar de estar isolado, e a viver um pouco á parte, desde que vim morar para cá, que este
casal tem-me ajudado e hoje são os meus únicos amigos, quem eu confiarei a minha humilde
casa, quando o meu tempo chegar.
Ao anoitecer volto para casa, com os sacos nas mãos, já a escurecer, a Cristina passa por mim
de carro, para um pouco á frente e pergunta se eu quero que ela me leve a casa. Eu nem lhe
liguei, naquele momento voltei a sentir tudo novamente, a Anna, o passado, a dor, a paixão, o
amor, a dor no peito, os batimentos a ficarem descoordenados, o vazio e a dor da morte a
perdurarem-me tudo o que acreditava, que um dia te voltaria a ver. A tua falta, faz-me sentir
mais e mais saudade. A tua falta, faz-me sentir que possas ter partido de coração
despedaçado.
8
Ignorei simplesmente, a Cristina. Por mais que transmitisse arrogância e egoísmo, eu sempre
fui assim. Sempre tentei esconder as minhas fraquezas e resolvê-las comigo mesmo. Será
teimosia? Velhice? Amor? Uma história mal acabada? ou uma história que nunca acabou?
Faço uma pequena fogueira para grelhar um pouco de carne, no alpendre de casa. A Cristina
volta a aparecer.
Eu enfrento-a. Mais tarde ou mais cedo. O tempo iria encarregar-se que nós falássemos sobre
o assunto.
Convido-a para jantar, ela rejeita. Eu pergunto-lhe se ela se importa de ficar na rua, está bom
tempo, não á vento, com algumas velas acesas, falámos da Anna, eu tentei de uma forma
simples saber algo mais sobre ela. Apesar de tudo o que sentia, continuava e mostrava
imunidade, não queria mostrar que vacilava. Cristina disse-me que a Anna, teria sido mãe
solteira, seu pai teria desaparecido, quando soube que ela estaria grávida. Enaltecendo o
esforço de Anna, como mãe, sempre falando de uma forma intensa, e se eu não conhecesse
parte dela, diria que era alguém fantástico e simplesmente bela. Nunca parou de a elogiar.
Anna teria trabalhado numa reserva natural na Africa do Sul, teria desenvolvido investigações
cientificas para estudar os Babuins e Ximpanzés, que viveram as duas sozinhas e que á 5 anos
teriam regressado a Portugal, por ter sido diagnosticado uma doença fatal e sem cura, A
yulonpcetologia e que teria pedido para vir viver para cá. Para além dos benefícios para a
saúde, Anna pediu para voltar para casa. Os seus últimos dias teria passado no hospital, mas a
doença avançou mais rápido que o previsto. Notei que ela não quereria falar muito de sua
mãe, também lhe custava falar de tudo aquilo. Como seria de prever e como deve de ser.
Perder alguém. É perder parte de nós. Eu sinto, senti e vou sentir que ao perder a Anna, perdi-
me também… pelo vazio que ela deixou em mim, por não querer mais, do que a felicidade
dela, mesmo abdicando da minha.
9
A Cristina perguntou-me quem era eu? Aproveitou e perguntou-me o conteúdo daquela carta.
Respondi-lhe também de uma forma muito rápida. Contei-lhe que teria sido um grande amigo
dela no inicio da idade adulta, que nos teríamos separado por opções da vida, eu tinha
mudado para o Porto, para estudar história. Expliquei à Cristina que tinha sido professor,
cronista de alguns jornais e que tinha trabalhado com alguns projetos culturais. Que o tempo
tinha passado, que tinha perdido os contactos da Anna e que derivada á minha constante
mobilidade nunca teria tido uma vida estável e linear. Disse-lhe que o conteúdo da carta, era
uma promessa de amigos. Ambos temos o mesmo poema e é como se esse poema fosse a
nossa ligação. Estivemos separados pelo tempo, pela distância, pelos sentimentos e pelas
nossas opções, mas este poema sempre nos ligou como amigos.
O tempo passou, com ele a minha relação com a Cristina foi-se mantendo, de vez em quando
convidava o João para ir lá a casa com os seus amigos e que estariam á vontade. Que não iria
interrompê-los e sempre que quisessem poderiam acampar por lá.
Entretanto. Muito se passou. Especialmente o tempo. O tempo em que te perdi. O tempo em
que deixei que te levassem. O tempo em que te abandonei. O tempo em que não te apoiei. O
tempo em que não te disse que te amo. Tudo se passou e por muito passámos, Anna. Só uma
coisa se manteve, o meu amor por ti.
10
A curta-história do Sr. Alfredo é uma curta análise de uma vida, passada
em solidão. Um homem que muito viveu, mas também suportou, a dor, o vazio,
e conta tudo com base no tempo.
Com 73 anos, o Sr. Alfredo faz uma analogia da sua vida, conhece
Cristina, filha de Anna e descobrem uma carta que irá mudar tudo e
todas as definições e noçõesde tempo.