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A Dança Clássica - festivaldedancadejoinville.com.brfestivaldedancadejoinville.com.br/acervo/wp-content/uploads/2017/... · 6 Pesquisa em Dança - CoMuniCAçõES A dança como narrativa

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  • A Dana Clssica:

    dobras e extenses

    Joinville/2014

    7 Edio

    OrganizaO:

    institutO Festival de dana de JOinville

  • 4

    Copyright2014

    Organizao

    Reviso

    Alice Vila

    Na reviso, em alguns casos prevaleceu a vontade dos autores.

    Assim, alguns artigos seguiram padro individual ou mesmo mantiveram o acordo ortogrfico antigo.

    Diagramao e Impresso

    Nova Letra Grfica e Editora Ltda.

    47 3325-5789

    S471 A Dana Clssica: dobras e extenses /

    Organizao: Instituto Festival de dana de Joinville

    Joinville: Nova Letra, 2014.

    283 p.

    Vrios autores

    ISBN: 978-85-7682-927-0

    1. Dana.

    CDD 793.3

  • 5

    sumrioPrefcio .........................................................................................................................................................................9

    Apresentao ..............................................................................................................................................................13

    Homenagem ................................................................................................................................................................21

    ConfernCias

    Bal sobre outras bases ou em que o tango pode ser bom para tudo

    Thereza Rocha .......................................................................................................................................................................................................... 27

    Ballet clssico: formao e atuao Ceclia Kerche ........................................................................................................................................................................................................... 43

    Dana ClssiCa | formao | ProCessos PeDaggiCos | sustentabiliDaDe | ferramenta De

    Criao | merCaDo De trabalho

    Dana clssica no mundo contemporneo? Paradoxos, dobras, extenses e invenes

    Thas Gonalves ........................................................................................................................................................................................................ 53

    Bal: processos a estabilidade e a perpendicularidade

    Flvio Sampaio .......................................................................................................................................................................................................... 63

    Tcnica clssica como ferramenta de criao: mediaes possveis

    Carlos Alberto Pereira dos Santo ..............................................................................................................................................................................75

    Tcnica e Arte

    Luis Arrieta ................................................................................................................................................................................................................ 81

    Bal clssico: um dos mtodos de formao e preparo de artistas de dana

    expressiva cnica na contemporaneidade

    Rui Moreira ................................................................................................................................................................................................................ 85

    Repertrios coreogrficos e formao em dana: uma reflexo acerca do papel da

    (re)montagem de obras na formao em dana contempornea

    Ernesto Gadelha ........................................................................................................................................................................................................ 91

    FormAo: movimento do meu, do outro, do nosso Projeto Ballet Jovem Palcio das Artes Poesia RelatoPatrcia Avellar Zol ................................................................................................................................................................................................... 101

    O que poderia se parecer com um mercado de dana (e por que seguir pensando sobre isso)? ............................105

    Marcos Lima de Moraes .......................................................................................................................................................................................... 105

    A dana e os desafios da gesto na esfera nacional ................................................................................................113

    Fabiano Carneiro ..................................................................................................................................................................................................... 113

    Rupturas e novas costuras ........................................................................................................................................117

    Magda Bellini ........................................................................................................................................................................................................... 117

    Sumrio

  • 6

    Pesquisa em Dana - CoMuniCAES

    A dana como narrativa potica: o bal como base do processo de criao

    ngela Ferreira | Lenise Ghiorzi .............................................................................................................................................................................. 123

    Aproximaes entre Antnio Damsio e Ernst Boesch: reflexes sobre o processo de

    desenvolvimento do eu-corpo por meio de processos artsticos

    Antonio Marcelino Vicenti Rodrigues ....................................................................................................................................................................... 129

    A dana clssica na contemporaneidade: a educao somtica como proposta pedaggica e artstica

    Carla Bandeira Amorim ........................................................................................................................................................................................... 135

    Tradutibilidades do bal clssico nos jogos digitais

    Carlise Scalamato Duarte ........................................................................................................................................................................................ 141

    A construo de uma identidade por meio da versatilidade nos corpos do Bal Teatro Guara

    Claudio Daniel Mancuso Siqueira............................................................................................................................................................................ 147

    O bal na formao de licenciados em Dana

    Maiara Moraes Gonalves | Daniela Llopart Castro | Silvia Susana Wolff .............................................................................................................. 157

    Dana multilngue: clssica e contempornea

    Jussara Janning Xavier ........................................................................................................................................................................................... 163

    O ensino do bal clssico: da prtica pedaggica dos professores da cidade de Goinia

    formao docente na universidade

    Marlini Dorneles de Lima | Renato Gonalves Rodrigues ....................................................................................................................................... 171

    Configuraes de um novo bal: as desconstrues de William Forsythe

    Rousejanny da Silva Ferreira | Rosangela Patriota ................................................................................................................................................. 177

    A tcnica clssica e outros cdigos em Nazareth

    Siane Paula de Arajo ............................................................................................................................................................................................. 183

    Desconstruindo para construir: o bal como ferramenta de criao

    Vera Arago | Ruana Balduino ................................................................................................................................................................................ 189

    Pesquisa em Dana - GALERiA DE PSTERES

    Tipologia junguiana em praticantes de bal clssico: prevalncia de atitudes

    Ana Caroline Bonato da Cruz | Carlos Augusto Serbena | iris Miyake okumura .................................................................................................... 198

    O ensino da dana na educao bsica: conhecendo e vivenciando a cultura (dana)

    popular na formao do educando

    Artur Martins Garcez ............................................................................................................................................................................................... 200

    Mtodos de bal clssico: linguagens em dilogo

    Caroline Konzen Castro........................................................................................................................................................................................... 203

    Os stiros do deus Dioniso: uma reflexo nietzschiana sobre o bailarino clssico

    Daniele Bentin Mendona ....................................................................................................................................................................................... 208

    7 Seminrios de dana correlao dos movimentos de amplitude articular com o En Dehors

    em primeira posio de bailarinas clssicas

    Diana de Medeiros AnDRADE | Letcia Marques SABino | Helton SAD | Marcelo Ricardo DiAS ......................................................................... 210

    A histria da dana por uma perspectiva crist

    Fabiana nunes ........................................................................................................................................................................................................ 213

  • 7

    O treinamento dos saltos do bal clssico na impulso de atletas saltadores de atletismo

    de uma universidade da Serra Gacha

    Jlia Schulz Borges | Rafaela natercia Costa Londero | Magda Bellini................................................................................................................... 219

    Alguns aspectos da fsica mecnica e dana: procedimentos tcnicos e criativos

    Mariane Araujo Vieira .............................................................................................................................................................................................. 222

    Do bal elitizado ao bal ao alcance de todos

    Samylle Maria da Silva Veloso ................................................................................................................................................................................ 225

    A dana na formao inicial: a percepo dos acadmicos do Bacharelado em Educao Fsica

    Simone Piccoli | Magda Bellini ................................................................................................................................................................................. 229

    Repertrios contemporizados: o estudo das obras tradicionais sob o prisma da contemporaneidade

    Thas Castilho | Cinthia de Andrade ........................................................................................................................................................................ 232

  • 8

  • 9

    Prefcio

  • 11

    extenses dO cOrPO e dO cOnhecimentO

    Em mais esta instigante stima edio dos Seminrios, entre os dias

    21 a 23 de julho de 2013 a dana entrou na roda ocupando um papel reflexivo

    sobre toda a expresso do gnero clssico, suas dobras e amplas extenses.

    Sob a coordenao de Angela Nolf, o debate valsou por temas

    inesgotveis como a formao e pedagogia da dana, a tcnica clssica

    como base instrumental da criao e o cada vez mais desafiador mercado de

    trabalho.

    assim, vivenciando diferentes abordagens e integrando cada vez mais

    a prtica como fruto de um estudo igualmente disciplinado que nos propomos

    como organizadores a dar oportunidade s milhares de pessoas que vm ao

    Festival de Dana de Joinville todos os anos, de aprofundar o debate sobre a

    dana brasileira, seus caminhos, suas dvidas, seus horizontes.

    Por isso, este evento dirigido a estudantes, artistas, pesquisadores,

    educadores, profissionais da dana e de reas afins. a prtica sendo

    embasada por trabalhos de pesquisa, erudio e muito flego para avanar

    no processo criativo da dana atravs de mesas temticas, artigos, psteres e

    palestras com vivncias.

    Entre as homenagens no mbito da trajetria do clssica no Brasil, no

    poderamos deixar de agradecer a encantadora e fundamental contribuio de

    Marcia Hayde, que gentilmente aceitou o convite para abrir esta edio, de

    modo que o pblico pudesse usufruir um pouco da sua sabedoria artstica e

    ampla experincia internacional.

    E por falar em estrelas de luz prpria, encerramos a edio em alto

    estilo, com uma conferncia danada com foco em formao e atuao que

    trouxe pra o centro da roda uma das curadoras artsticas do Festival, a nossa

    embaixadora da dana no mundo, Ceclia Kerche. Sua aula aberta para

  • 12

    interao do pblico, foi mais um grand finale numa demonstrao de que a

    escola clssica ainda e sempre ser um dos principais pilares que a maestria

    requer.

    ely Diniz

    Presidente Instituto Festival de Dana de Joinville

  • 13

    apresentao

  • 15

    A organizao do Festival de Dana de Joinville tem buscado criar

    eventos paralelos que, aos poucos, foram se firmando e passaram

    a ter vida prpria. Nesta edio destacamos os Seminrios de Dana, hoje

    evento j consolidado que oferece para a comunidade um importante espao de

    reflexo e discusso dos inmeros caminhos da dana na contemporaneidade.

    Diante da pluralidade de prticas, estratgias pedaggicas e das vrias

    vertentes que constituem o universo da dana, o Conselho Artstico do festival,

    formado por Andra Bardawil, Ceclia Kerche, Iracity Cardoso e Sigrid Nora,

    props para esta stima edio dos Seminrios de Dana a reflexo sobre o

    tema Dana clssica: dobras e extenses.O evento comps-se de conferncias, mesas temticas e comunicaes

    de trabalhos, reunindo no Teatro Juarez Machado nos dias 21, 22 e 23 de

    julho de 2013 profissionais convidados a refletir sobre o tema acima proposto,

    organizados em trs eixos: Formao e processos pedaggicos na dana,

    Tcnica clssica como ferramenta de criao e Dana: sustentabilidade e

    mercados de trabalho.

    O presente material traz a pblico inmeros trabalhos produzidos pelos

    participantes desta edio dos seminrios, e os artigos aqui apresentados no

    tm organizao sistemtica, refletindo com isso a diversidade dos tpicos

    abordados.

    hOmenagem

    A exemplo das edies anteriores, o evento Seminrios de Dana

    prestou homenagem a um profissional da dana nacional. A escolhida nesta

    stima edio foi Mrcia Hayde, grande artista brasileira reconhecida

    internacionalmente que participou da abertura do evento revelando simpatia

    e disponibilidade para o dilogo com o pblico, revendo momentos iniciais de

    sua carreira e a posterior trajetria de reconhecimento no exterior.

  • 16

    cOnFerncias

    Duas conferncias diferenciadas quanto a sua natureza marcaram a

    edio deste ano.

    Thereza Rocha, pensando no ensino da dana, de qualquer dana,

    apresentou um diferente olhar para a discusso quando questionou em seu

    texto: Que cho este em que eu dano? Em que cho quero danar?,

    podendo correlacionar essas questes s perguntas: Em que bases se d

    esta dana que ora ensino? Em que bases se d esta dana que ora aprendo?

    Um tal pensamento contemporneo interessaria to somente ao ensino/aprendizagem de dana contempornea ou podemos tranar o ensino de bal

    clssico, por exemplo, com um pensamento contemporneo de dana?.

    Encerrando a tarde, Ceclia Kerche foi especialmente convidada para

    ministrar uma conferncia danada, cujo tema focou a formao e atuao

    em dana clssica. Acompanhada pelo sensvel pianista da Escola do Teatro

    Bolshoi no Brasil, Eduardo Boechart, Ceclia apresentou com maestria uma

    aula aberta para o pblico, demonstrando detalhes tcnicos dos exerccios de

    barra, evolues no centro e o refinamento de um trabalho para chegar cena.

    Desenvolvendo trs solos marcantes de sua carreira, manteve convvio nico

    e inesquecvel com a plateia ali presente. O essencial dessa performance pde ser apreendido apenas presencialmente, e, neste livro, a artista descreve os

    principais pontos da apresentao.

  • 17

    mesas temticas

    As inmeras tcnicas de dana e seus mtodos de aprendizado esto

    em constante evoluo.

    Hoje em dia o treinamento da dana consiste numa combinao de

    diferentes mtodos, sendo que alguns so capazes de melhor entender

    os caminhos do corpo em movimento, e como este movimento pode ser

    capturado individualmente, com eficincia e sensibilidade [...], novos

    procedimentos oferecem ferramentas criando habilidades distintas,

    tornando-se difcil agrup-los em baixo de um mesmo guarda-chuva

    chamado tcnica1.

    A tcnica existe na compreenso de cada corpo, gerando entendimentos

    e informaes prprias por intermdio das oportunidades oferecidas durante o

    aprendizado. Tcnicas distintas, prticas somticas e pesquisas de movimento,

    em meio a outras atividades, figuram entre as inmeras referncias usadas

    para a formao de bailarinos na atualidade.

    Tomando como ponto de partida informaes que delineiam um

    recorte sobre a formao do intrprete na dana, observa-se que inmeras

    escolas e companhias de dana ainda reservam um tempo considervel de

    suas atividades manuteno da tcnica clssica, pois esta, em virtude de

    sua arquitetura e consistente metodologia, compe um forte alicerce para

    o desenvolvimento artstico e motor do bailarino, podendo contribuir para

    o estudo de variadas linguagens corporais. Nessa perspectiva, Luis Arrieta

    comenta, em seu texto: Muitos ensinamentos j esto contidos perfeitamente

    na tcnica clssica, obviamente quando bem ensinada e bem compreendida.

    O importante que os ensinamentos sejam passados com profundidade e

    jamais levem ideia de conflito ou represso com a arte, porque eles so a

    1 CLARK, Gil. Dance techniques: tanzplan Germany. Leipzig, 2010. p. 4.

  • 18

    mesma coisa.

    Considerando os cruzamentos entre passado e presente, Thas

    Gonalves, em seu artigo, prope um breve panorama histrico sobre os

    movimentos que foram modificando o modo de se compreender a dana

    em seus processos artsticos e pedaggicos, para assim pensarmos o lugar

    da dana clssica na contemporaneidade. Contribui efetivamente para a

    discusso, uma vez que questiona: Dana contempornea, pensamento

    clssico? Dana clssica, pensamento contemporneo?.

    No painel Formao e processos pedaggicos na dana, Flvio Sampaio, com sua larga experincia como educador, escreve em seu artigo

    que resultados positivos na dana clssica s so possveis se levarmos

    em conta dois conceitos: a conscincia corporal na qual o bailarino est

    trabalhando os seus msculos e a energia que deve estar vibrando dentro

    dele. Mais tarde esses dois conceitos se transformaro em tcnica e arte.

    Patrcia Avellar, num ensaio, apresenta um recorte a respeito do

    grupo jovem do Palcio das Artes, e Ernesto Gadelha, em seu artigo, faz

    uma reflexo acerca do papel da (re)montagem de obras na formao em

    dana, estabelecendo por meio desse expediente um vnculo direto entre o

    preparo tcnico e artstico do estudante, futuro bailarino, e os vocabulrios de

    movimentos que constituem as partituras coreogrficas de repertrio.

    Contaminado por suas experincias artsticas, cada profissional

    carrega uma trajetria distinta, trazendo diferentes olhares para a discusso.

    Desse modo, Antonio Nbrega, Rui Moreira e Luis Arrieta, mediados pelo

    jornalista e crtico Carlos dos Santos, discutiram o tema Tcnica clssica como

    ferramenta de criao, compartilhando com o pblico diversos pontos de vista.

    Rui Moreira, em seu texto, abre a questo afirmando que variados estudos da

    fisicalidade mantm a tcnica de dana clssica viva, como um dos mtodos

    mais utilizados no Ocidente. Mas h que se deixar claro que essa prtica no

    o nico meio para capacitar um artista de dana. Para concluir, Luis Arrieta faz

  • 19

    referncia vivncia do artista e afirma: O que acontece com a tcnica que

    ela nos confronta muitas e muitas vezes com experincias difceis de assimilar

    e superar, e por esse motivo achamos que ela nos tolhe, quando em realidade

    ela vem para estimular-nos a superar a ns mesmos e, consequentemente,

    liberar os caminhos internos da nossa genuna expresso.

    Com base no imaginrio social sobre o lugar da arte e a supremacia

    de uma viso mercadolgica na contemporaneidade, o painel Dana, sustentabilidade e mercados de trabalho teve a importante participao de Iracity Cardoso, Pavel Kazarian e Fabiano Carneiro, que descreve em seu

    texto as aes da Fundao Nacional de Artes (Funarte) durante sua gesto.

    Tambm convidado para dividir a mesa, Marcos Moraes, em seu artigo,

    apresenta dados socioeconmicos da produo profissional de dana no

    pas, levantando a questo: O que poderia se parecer com um mercado de dana, e por que seguir pensando sobre isso?. Seria fundamental que os artistas debatessem o significado de valor em uma obra de arte, pois para tal

    importante que seja criada uma nova tica nas relaes artsticas, alm de

    novas formas de troca, a fim de compartilhar criaes.

    trabalhOs acadmicOs Psteres

    Reunindo num mesmo espao graduandos, ps-graduandos e

    artistas pesquisadores de diversas partes do Brasil, os trabalhos acadmicos

    coordenados pelas doutoras Magda Bellini e Thas Gonalves abriram

    a discusso para novas experimentaes e singularidades. Os autores

    dos artigos e resumos procuraram dialogar com o tema dos seminrios,

    desdobrando-o em uma diversidade de abordagens que vo desde questes

    tcnicas e histricas at filosficas.

    Com a significativa expanso das graduaes em Dana em todo o pas

    na ltima dcada, ampliaram-se os espaos para a produo de pesquisas

    artsticas e pedaggicas no mbito das universidades. Em sintonia com esse

  • 20

    contexto, Magda Bellini em seu artigo afirma que as sesses de comunicao

    dos trabalhos cientficos e os painis que integram a programao dos

    Seminrios de Dana instauram um importante lugar de divulgao e dilogo,

    contribuindo para incentivar a cartografia e a elaborao de saberes no campo

    das artes.

    Esperamos que esta compilao de vivncias acadmicas e de

    trajetrias artsticas distintas reforce a necessidade da constante troca

    de experincias entre pares interessados na produo do conhecimento

    em dana, oferecendo preciosas colaboraes, desde relatos at artigos

    acadmicos de maior densidade.

    Angela Nolf

    Coordenadora da 7. edio dos Seminrios de Dana

  • 21

    homenagem

  • 22

    Marcia Hayde

  • 23

    Aos trs anos de idade, Mrcia Hayde j tinha aulas de bal clssico, tendo formao, no Brasil,

    com Yuco Lindenberg e Vaslav Veltchek. Aos dezesseis anos, foi se aperfeioar na Royal Ballet School de

    Londres, na Inglaterra. Em 1957, Hayde iniciou sua carreira profissional no Ballet do Marqus de Cuevas.

    Quatro anos depois, conheceu o coregrafo John Cranko, diretor do Ballet de Stuttgart, de onde se tornou

    a primeira solista.

    Cranko investiu em Hayde, que se tornou uma estrela internacional, danando em obras como

    Romeu e Julieta, Eugne Oneguin e A megera domada. Em 1976, trs anos aps a morte de Cranko,

    Mrcia assumiu a direo do Ballet de Stuttgart, passando a ser disputada por outros corografos, tais

    como Maurice Bjart, Glen Tetley, Jiri Kylian, John Neumeier e William Forsythe. Ela era ento aclamada

    como a Maria Callas da dana. Mais tarde, em 1993, Mrcia Hayde assumiu tambm a direo da

    Companhia Nacional de Dana do Chile.

    Seus mais importantes partners bailarinos foram Richard Cragun (com quem foi casada durante

    dezesseis anos), Rudolf Nureyev, Jorge Donn, Mikhail Baryshnikov e Anthony Dowell.

    Depois de um longo perodo distante dos palcos, em outubro de 1999, aos sessenta e dois anos, volta

    a apresentar-se, danando a pea Tristo e Isolda, com o bailarino brasileiro Ismael Ivo, na Alemanha.

    Hoje reside em uma casa de campo, a quarenta quilmetros de Stuttgart, e ainda atuante no mundo

    artstico, Mrcia Hayde constantemente convidada para dar consultorias e ministrar palestras, tendo

    sido homenageada em julho de 2013, no VII Seminrios de Dana do Festival de Dana de Joinville.

  • 25

    Conferncias

  • 27

    Ballet sobre outras bases ou em que o tango pode ser bom para tudo?

    Thereza Rocha

  • 28

    THEREZA ROCHA - Pesquisadora, diretora e dramaturgista de processos criativos em dana. Professora dos cursos de Bacharelado e de Licenciatura em Dana e do Programa de Ps-graduao em Artes da Uni-versidade Federal do Cear. Coordenadora do grupo de pesquisa QUINTAL: dana, pensamento, outras dramaturgias e regimes de dizibilidade. Autora do livro Dilogo/Dana (So Paulo: SENAC, 2012) em par-

  • 29

    De quantas contas fia-se o cordo de sentido de uma palestra? So contas bbadas e rolantes que

    querem escapar, sumindo e reaparecendo como os pirilampos da noite de Ary Barroso e Luiz Peixoto na

    letra da cano1, com os quais os compositores bordaram de estrelas o grampo de cabelo da cabocla. So

    talvez os mesmos pirilampos cujo lusco-fusco intermitente no serve de guia para o rumo certo na noite

    duvidosa. Ao contrrio convidam ao caminhar trpego, bordado no cho pelo vaguear do encantamento.

    Quem j se deixou acompanhar no escuro pelos vaga-lumes, seguindo a sua luminescncia em ziguezague,

    sabe que no h terreno preciso a guiar os passos.

    Vai adiante e logo recua, pisa e volta sobre si, tropea e avana aos solavancos, meneia, segue para

    logo parar, segue mais um pouco, volteia e assim sucessivamente, melhor dizendo, e assim intensivamente.

    Talvez estejamos j a falar de uma dana, mas de uma dana cujo cho escapou, cujas bases esto

    sendo dadas em outros termos: exatamente os mesmos termos com os quais este vaguear trpego de

    palavras delas tenta se acercar. Como produzir uma palestra e, agora um texto, acerca disso (acercar como arrodear, aproximar, e no como encerrar ou sitiar); no sobre isso, mas nisso, precisamente nisso? Como constituir uma fala que seja a ao disso?

    Necessrios um roteiro, algumas pistas, e um punhado de coisas: um balde cheio de bolas de gude,

    pesadas, brilhantes, transparentes (as coloridas no servem); um cho de dana preparado para tal; um

    bom motivo para improvisar; um perigo. Um no, dois. O primeiro, a prpria palestra-ao (o desafio no/

    do qual ela mesma se constitui); o segundo, o fato de ela ser sucedida na programao pela conferncia

    danada de uma bailarina clssica de alta estirpe cujo cho no pode escapar2. Uma vez sob controle os

    riscos correlacionados a este ltimo perigo, com a limpeza posterior do palco assegurada pela produo,

    posso comear.

    Mesa e 2 cadeiras posicionadas na lateral esquerda-frente do palco do ponto de vista do pblico.

    Roteiro no computador, microfone ao lado, ambos em cima da mesa. Sobre o assento de uma das cadeiras,

    fora da vista do pblico, o balde. Longo espao de palco vazio direita da mesa. Um pouco de penumbra

    deste lado. Coordenao motora e rtmica, para fazer acompanhar a pronncia do texto no microfone e

    os lanamentos de bolinhas ao cho. Aos arremessos das bolas seguem-se pausas na fala, de variadas

    duraes, durante as quais acompanhamos, o pblico e eu, o seu rolar para longe da mesa, ficando

    lento at parar. Variados modos e velocidades de arremesso de bolinhas. Alternar os arremessos com a

    pronncia do ano, do ano + o item correspondente, ou mesmo com as bolinhas entrecortando a pronncia

    da frase. Os acontecimentos de dana narrados na fala tem um qu de ficcional, denunciados ou sugeridos

    pelo tom de voz e, aqui, pelo que acabou de ser escrito aqui mesmo.

    Comeo.

    1 Por Causa Desta Cabocla, composio originalmente lanada na voz de Silvio Caldas, em 1935.2 Ballet formao e atuao, apresentada no mesmo seminrio supracitado.

  • 30

    Joinville

    23/7/2013

    Palestra:

    Ballet sobre novas bases ou em que o tango pode ser bom para tudo?Thereza Rocha

    1. Interveno Com bolas de gude.

    1891 [Joga uma bola de gude.] Loie Fuller evolui as volutas fericas de sua dana serpentina diante de uma plateia americana, pouco interessada.

    1902 Loie Fuller d uma passadinha no studio de Isadora Duncan e a convida para um tour pela Europa. Nenhuma das duas volta mais ao lugar de onde partiu. [Joga outra bola de gude.]

    1912 Uma dana com fluxo contido, quase esttica, com forte explorao do paralelismo, tendente

    bidimensionalidade no corpo, habita um Fauno-Nijinski. [Joga outra.]1913 A iconoclastia chega agora ao extremo [Mais uma] com as bailarinas literalmente danando

    com os ps, [Outra] pernas e braos torcidos e voltados para dentro, [Ainda outra] novamente com Nijinski como coregrafo da dilacerante msica de Stravinsky, cuja estreia provocou um motim na plateia parisiense.

    [Joga uma, mais lentamente agora.]1926 Mary Wigman reedita3 a sua dana feia [Bola de gude] interpretada, agora, pela msica feia,

    sob a mscara feia da bruxa [Mais uma].

    [Joga uma bola de gude] Ainda na dcada de 20 Laban desenvolve um Sistema de Anlise do Movimento a partir da tridimensionalidade do corpo atravessada pela quarta dimenso do tempo. [Bola no ar e depois no cho.]

    Dcada de 30 Cair [Aqui, uma bola] torna-se procedimento tcnico e esttico para Doris Humphrey de uma proposta que elogia a queda e a recuperao [Outra bola] no mais como o outro da dana.

    1932 Gestos fortes proclamam Mesa Verde, o libelo antibelicista [Mais uma] de Kurt Joos. [Uma outra ainda.]

    Dcada de 1940 [Mais uma] Eros Volsia evolui os seus fouetts de cabea4, o corpo em febre

    3 -man, a primeira, de 1913, pouco documentada e danada sem msica e sem mscara, diferente da segunda

    os dois minutos iniciais da performance.4

    Macumba. De acordo com a descrio da

    exatamente como eu fazia: iniciando o giro, este ia num crescendo, chegava a uma velocidade realmente impressionante, a ponto do meu rosto sumir envolto na minha vasta cabeleira, o que fazia o pblico delirar

    apud PEREIRA Op. cit.: 194).

  • 31

    afrobrasileira, diante de uma plateia boquiaberta do Cassino da Urca.

    Dcada de 50 Merce Cunningham [Bola] John Cage [Outra bola], 60 Steve Paxton [Bola], 70 Angel Vianna [Bola] [Bola], Graziela Figueroa; No h mais tempo de pronunciar o tempo; Klauss Vianna [Bola]; Oscar [Bola] Arraiz [Bola]; Pina Bausch; Lia Rodrigues; Flavio Sampaio; Joao Saldanha; Denise Stutz; Vera Mantero... [Vira o balde inteiro das bolinhas que caem em cascata, espalhando-se pelo cho do palco, rolantes, em profuso.]

    Pausa.

    todo um colar de contas que se desfia pelo palco da histria, caindo vertiginosamente, sem que seja possvel s duas mos alcanarem as joias que lhe escapam entre os dedos e se perdem para o cho, espalhando e multiplicando em milhares, as inquietas bolinhas de gude, pirilampos desassossegados que rolam aqui e ali e no param de mexer e tilintar a terra segura sobre a qual se ergueria o edifcio de uma

    conferncia, fosse outra esta (aquela) conferncia.

    2. esPaos fluIdos, lugar ao movImento

    O espao no um palco que pode estar cheio ou vazio, no qual as coisas

    entram e saem. O espao no algo separado das coisas que existem,

    apenas um aspecto das relaes que existem entre elas.

    Lee Smolin5

    Com as contribuies da arte, da filosofia e da Teoria da Relatividade no sculo passado, podemos

    conceber, por exemplo, que o espao no antecede o corpo. Eis uma mutao ocorrendo na concepo

    espacial, para a qual contribuem largamente os princpios das Geometrias no-Euclidianas que nos

    habilitaram, ao longo do sculo XX, a falar mais generalizadamente de um espao no-euclidiano. Trata-se de suposies espaciais que nascem da incorporao da geometria pela fsica e que adicionam s trs

    dimenses espaciais, uma quarta: o tempo.

    A dificuldade do senso comum em compreender a quarta dimenso temporal (do espao) se explica

    tambm pela pregnante solidez da suposta concepo tridimensional de tudo o que h.

    plausvel que essa concepo de tridimensionalidade tenha origem no simples fato de que os

    objetos fsicos que encontramos no nosso cotidiano possuem, de acordo com nossa experincia

    sensorial, comprimento, largura e altura. Alm disso, em nosso primeiro contato com a geometria

    plana ou espacial, na escola, temos a tendncia natural de atribuir aos teoremas o status de fatos

    geomtricos, como se eles tivessem uma existncia real, transcendendo a natureza puramente

    abstrata e axiomtica da Matemtica. (ROMERO FILHO apud SILVA, BENUTTI 2007: 3).

    O espao euclidiano corresponderia concepo de espao vigente, formulada, digamos, pelo senso

    5

  • 32

    comum, ou seja, aquela que no se d conta, nem o trabalho, de perceber que h nela antes, ou seja, a priori, uma formulao. De acordo com tal concepo, qualquer sala, por exemplo, preexiste ao momento e ao fato

    de que nela entremos.

    Pensar a partir das geometrias no-euclidianas atravessadas pela dimenso temporal implica pensar:

    (a) O espao no um lugar estvel ou fixo; (b) O espao no um lugar que contm os objetos; (c) O espao

    no um lugar que antecede os acontecimentos; (d) Em resumo, o espao no um lugar.

    reconhecida a importncia que exercem tais geometrias, por exemplo, no agravamento do cubismo

    na pintura no incio do sculo XX. Neste dilogo, arte e cincia fabricam modos anlogos de pensar os

    objetos, o mundo e a relao entre eles. Sem dvida o feito do cubismo notvel. Na explorao/construo

    de outras espacialidades, os cubistas vo ao mximo do que permite a especificidade pictrica. No caso da

    dana, as snteses sero outras, pois ela acontece como tempo. No no tempo, mas como tempo, melhor, como espao-tempo. (Por isso, neste estudo, a partir de agora, em todas as vezes em que aparecer a palavra

    espao referida s espacialidades no-euclidianas, leremos j espao-tempo.)Na dana, o corpo opera a passagem de objeto a processo; de materialidade intensidade; de produto

    produo; de instrumento corporeidade/subjetividade, e o faz porque ele j no se move dentro de um espao euclidiano. Isso implica a percepo, ou seja, a compreenso vivencial de que o corpo fabrica

    espacialidade, manufatura o seu entorno; de que o corpo no um objeto circundado por um espao j

    dado. Trata-se, segundo Jos Gil, de um espao do corpo aquele produzido pelo prprio corpo a partir da experincia movente. Espao intensificado que prolonga os limites do corpo prprio para alm dos

    contornos visveis (...). Investido de afetos e de foras novas, o ar, o espao adquirem texturas diversas

    mesmo invisveis (GIL 2005: 47).

    Assim, dentro e fora do corpo j no so categorias aplicveis. de uma reversibilidade que se trata.

    No h fronteira, mas contiguidade. Corpo e espao so intersticiais e perfazem avesso e direito um do outro,

    justaposio que entretanto no fixa. Como a figura no est parada, se o corpo o avesso do espao,

    mesma medida que se movimenta, o espao que j se converte em seu avesso, passando corpo e espao

    a no conhecerem outra coisa um do outro seno o avesso do avesso do avesso6. Se o corpo, por exemplo,

    puxa o espao para perto de si porque imediata e correlativamente, ou seja, neste durante que ali se estabelece, o espao encontrou analogia transformando-se em corpo, de tal modo que j no podemos falar

    seno de um espao-corpo no-euclidiano. O espao suporta o corpo, o mesmo corpo que , do espao, o

    porteur. Paradoxo.Admitir o espao-tempo no antecedendo o corpo, mas sendo fabricado conjuntamente movncia,

    inaugura uma mutao profunda nos fazeres em dana, aos quais primeiramente ser conferido o epteto

    de dana moderna, mutao esta que s se agravar e multiplicar ao longo do sculo XX. Neste contexto,

    chegamos a entender a inadequao de nomearmos o que vemos nos espetculos de dana contempornea

    6

    2010 e dedicado aos mtodos somticos e seus entrelaces com a dana.

  • 33

    como cenografia entendida como dcor. Trata-se de uma ambincia, um modo particular de habitar o lugar como tempo. Espao-tempo. Danar neste contexto implica ento constituir modos no corpo de transformar as coordenadas espaciais em coordenadas temporais, e vice-versa.

    Nesse caminho, o espao de dana abandona o primado do palco nico, sinttico e perspectivado,

    anlogo concepo pictrica surgida no quattrocento, e passa a ser um lugar dana7, ou a room to move tal como o concebem Pina Bausch e o cengrafo Rolf Borzig na dcada de setenta, para o Tanztheater

    Wuppertal8. Importar menos ento se os espetculos acontecem ou no em um palco italiana, pois o

    prprio modo de compor tempo-espao em dana contempornea inaugura nele outras espacialidades.

    o que ocorre, por exemplo, na pea coreogrfica Caf Mller de Pina Bausch de 1978. No palco

    italiana, dzias e dzias de cadeiras e umas tantas mesas se interpem perigosamente ao avano muitas

    vezes frentico dos bailarinos que inclusive danam, alguns deles, de olhos fechados. A iminncia da coliso

    sempre presente contornada pelo esforo de um homem atentamente empenhado durante todo o tempo

    da performance em retirar as cadeiras do caminho que ser percorrido pelos bailarinos em seu movimento.

    A pertinncia da proposta deste room to move completa-se ao sabermos que tal funo, por que no dizer papel, foi desempenhada(o) originalmente pelo prprio Borzig que adicionava esforo fsico, presencial e performativo, ao seu trabalho de stage designer.

    No caso de Caf Muller, o espao no s habitado, mas produzido pela tenso/relao entre o

    bailarino e o cengrafo9 e transforma-se todo o tempo, move-se ele tambm: espao fluido, espao-fluxo. mais ou menos como sugere Gilles Deleuze e Flix Guattari em outro contexto, uma questo de velocidade

    sem sair do lugar (1996: 57). As regncias de velocidade entretanto no constituem nenhum rally, ou seja, nenhuma corrida contra o tempo. Ali se constitui um jogo s vezes sutil, s vezes intenso, em que o avano de um e o cuidado do outro performam a nica contracena possvel naquele ambiente. Assim os acontecimentos

    fundam o espao.

    As cadeiras so movidas e abrem, inauguram, todo o tempo, novas espacialidades. Mais importante e decisivo: elas no so movidas antes, mas conjuntamente passagem do bailarino, em um clculo preciso (e quase perigoso) para o qual tempo espao e espao tempo. Opera-se ali continuamente uma traduo simultnea do tempo como espao como tempo.

    Assim podemos entender um pouco mais de perto a preciso deste room to move bauschiano: um espao para o movimento, um espao ao movimento, ou ainda, assim o propomos, um espao-movimento, bastante afeito s concepes no-euclidianas. No estudo do tempo-como-espao-como-tempo, o bailarino aprende a ajustar-se ao fluxo com as mesmas fineza e preciso de um surfista que no pode atrasar nem

    7 a edio aconteceu em 2012.8 Companhia de dana dirigida por Bausch de 1973 at 2009, ano de sua morte.9 -

    Laurent Sasportes fazendo, brilhantemente bem por sinal, o papel, sem qualquer perda para os aspectos que analisamos neste estudo.

  • 34

    antecipar a subida na prancha sob pena de perder o espao-tempo da onda formante (semovente). A ateno ao momento ajustado no suficiente. Faz-se necessria uma consubstancialidade surfista-onda a partir

    de sua fina leitura psicofsica do lugar ao movimento, ou seja do momento em que o lugar seguinte vai acontecer.

    Da metfora do surf de volta dana: o bailarino no se submete ao fluxo, mas maneja-o numa consubstancialidade ao espao-tempo ali formante. Os trabalhos de Bausch permitem visualizar o quanto o estudo do espao-tempo na dana pode potencializar, aumentar, entumecer, no bailarino, a ateno, a presena de si no prprio corpo e, assim, a experincia do mover-se. De objeto a processo, o bailarino pode

    enfim desejar simultaneamente tudo o que potencialize o seu danar e intensifique o seu modo de existir.

    Dana como modo de existncia.

    3. Por uma PoltICa do Cho

    Andr Lepecki10 desenvolve estudo longevo e muito contundente acerca das implicaes ontolgicas e polticas do cho na dana. Que corporeidades so fundadas e dadas a existir nas/a partir das bases onde a dana se d? Trata-se do que o pesquisador chamar de poltica do cho, tomando de emprstimo uma expresso de Paul Carter11 (1996).

    Para Carter, a poltica do cho no mais do que isto: um atentar agudo s particularidades fsicas

    de todos os elementos de uma situao, sabendo que essas particularidades se coformatam num

    plano de composio entre corpo e cho chamado histria. Ou seja, no nosso caso, uma poltica

    coreogrfica do cho atentaria maneira como coreografias determinam os modos como danas

    fincam seus ps nos chos que as sustentam; e como diferentes chos sustentam diferentes

    danas transformando-as, mas tambm se transformando no processo. Nessa dialtica infinita, uma

    corresonncia [sic] coconstitutiva se estabelece entre danas e seus lugares; e entre lugares e suas

    danas. (LEPECKI 2012: 47)

    Tarefa de vulto queles que se sintam convidados empreitada genealgica, necessariamente crtica, a suposta, coisa que Lepecki faz com competncia e brilhantismo. E por isso que seguimos o seu caminhando12, por escolha nossa, aos tropeos.

    A ideia de um cho firme a sustentar os nossos passos, conformando as bases seguras sobre as quais se assenta estavelmente o edifcio do futuro, no para de produzir e reproduzir a ideologia, pelo cho, literalmente sustentada. Para trazermos esta ideologia vista, basta observar a prpria construo desta frase cuja lgica no se pe seno e propositadamente por uma sequncia de termos repetitivos que, isolados do restante, por si, permitiriam a leitura de uma frase outra na qual a tautologia torna-se mais explcita: Cho firme a sustentar bases seguras assenta estavelmente. Quem o questionar? Quem

    10 Pesquisador e professor do Departamento de Estudos da Perfomance na NYU, colabora em diversos pro-

    11

    12

  • 35

    duvidar de que entramos para dentro ou de que algum suicida nenhum outro algum seno a si mesmo? Trata-se de pleonasmo barato desta natureza, no presente caso, entretanto, bem menos inocente. sempre importante repetir: as palavras no so vs ou ingnuas, burras tampouco. Por isso, importante questionar, digamos, at o talo, a pregnncia da palavra cho, ou mais certeiramente, da palavra base, metaforizando tantos aspectos no uso corrente da linguagem, tambm e sobretudo, em dana.

    Trata-se da iluso, talvez, de um pensamento programtico, assegurado (seguro e ao mesmo tempo

    afianado) pela noo de pedra fundamental que daria ao porvir, ao que vem, a sua razo e a sua lgica; um princpio regente e um modo de funcionamento: a correlativa sensao de um pleno avanar sem

    obstculos, supostamente livre, cuja nica liberdade a recusa de perceber as condies, ali alisadas, de

    um solo previamente preparado para tal. Estamos j (e sempre) a falar de uma dana. Seguimos com o

    autor:

    Carter lembra-nos que, para Valry, a condio primeira de possibilidade da dana no o corpo, o

    movimento de braos e pernas, no a msica, nem o el vital. A condio primeira para a dana

    acontecer a terraplanagem. Para que a dana possa se dar e, ao dar-se, dar-se soberanamente,

    sem tropeos, interrupes e escorreges, seu cho tem que ser antes de mais nada, um cho liso,

    terraplanado, calcado e recalcado. (...) Apenas depois de um cho tornar-se to liso, vazio e chato

    (...) o danarino pode entrar em cena, de modo que sua execuo de passos e saltos no tenha que

    negociar acidentes de terreno. (LEPECKI 2010: 14-15)

    Se voltarmos s espacialidades no-euclidianas da seo anterior, revolvemos mais uma camada do terreno acidentado bauschiano. Cobrindo toda a extenso do palco: folhas secas; dzias de pinheiros; cinco mil cravos; dezenas de cadeiras; fileiras de cactos; tonelada de terra hmida; litros e litros dgua; objetos em profuso que vo sendo utilizados e depois abandonados. Estes so apenas alguns dos exemplos de recursos, cada qual desenvolvido em um determinado espetculo do Tanztheater Wuppertal, para conformar o seu room to move, o seu lugar dana: um espao no qual os bailarinos so obrigados a empenhar toda a fisicalidade para poder danar, lidando concretamente com interrupes, impedimentos e riscos.

    No h literalmente como tomar este cho acidentado, irregular, indeterminado como base segura para um livre e leve avanar. O tropeo iminente e inevitvel. A hesitao, a topada, o titubeio; o escorrego, o deslize; errar, vacilar, cambalear, enfraquecer, cair, conformam entre si um errar dos ps que convocam uma dana, e por que no, um modo de existncia movidos por outros verbos, por outros motivos. O quicar, na linguagem mais comum das salas de dana no Brasil, deixa de ser o outro da dana o indesejvel, a vergonha fatal, aquilo a ser desesperadamente evitado , para tornar-se a prpria condio tica e poltica do danar.

    Se aceitarmos a proposta de Giorgio Agamben (1993) acerca do que vem e, nesta, de que o que vem o qualquer, chegaremos a dizer, com Lepecki, que a uma poltica do cho corresponde uma tica do tropeo. Poderemos pensar criticamente acerca de uma dana que se produz na dispensa ou no controle do qualquer. E justamente a que a poltica arrasta a tica para perto de si. Essa modulao do qualquer empreendida pelo filsofo italiano talvez possa concordar com Lepecki que, nos idos de 2003,

  • 36

    dizia acerca de Pina Bausch: Seu tanztheater a mais potente revoluo no modo da dana entender seu cho ontolgico e sua proposta tica (LEPECKI 2003: 8). Vejamos:

    O facto de onde deve partir todo o discurso sobre a tica o de que o homem no nem ter de ser

    ou de realizar nenhuma essncia, nenhuma vocao histrica ou espiritual, nenhum destino biolgico.

    a nica razo por que algo como uma tica pode existir: pois evidente que se o homem fosse ou

    tivesse de ser esta ou aquela substncia, este ou aquele destino, no existiria nenhuma experincia

    tica possvel haveria apenas deveres a realizar.

    Isto no significa, todavia, que o homem no seja nem deva ser alguma coisa, que ele seja

    simplesmente entregue ao nada e possa, portanto, decidir ser ou no ser sua vontade, atribuir a

    si ou no atribuir este ou aquele destino (niilismo e decisionismo encontram-se neste ponto). H, de

    facto, algo que o homem e tem de ser, mas este algo no uma essncia, no propriamente uma

    coisa: o simples facto da sua prpria existncia como possibilidade ou potncia. Mas justamente

    por isso que tudo se complica, que a tica se torna efectiva. (AGAMBEN 1993: 38)

    Que estas questes se liguem criao coreogrfica e se faam bordado e necessidade dos ps

    que revolvem o cho (ontolgico, histrico e poltico) da dana na dana contempornea, aqui no contexto

    deste seminrio, em meio ao Festival de Dana de Joinville, apenas mais uma andorinha que, sozinha,

    no faz vero. Como venho j repetidas vezes palestrar aqui, estas so as mesmas repetidas vezes em que

    me vejo obrigada a correlacionar as questes encomendadas pela organizao ao candente e necessrio

    tema da formao em dana. a que a porca torce o rabo (ROCHA 2009: 65), eu dizia na primeira das

    quatro incurses neste ambiente. Parafraseando Andre Lepecki (2010: 15), em outro texto: Pergunta tico-

    poltica para o plano de ensino de dana, de qualquer dana: que cho este em que dano? Em que cho

    quero danar?13

    Agamben, no mesmo livro supracitado, chama a ateno para a etimologia, no latim, da palavra

    qualquer. Simplificadamente, trata-se de um qual que quer, um qual-quer. O o qual, este qual que se d como tal, retomando a citao de Agamben, que no ter de ser ou de realizar nenhuma essncia, est

    investido da potncia da vontade; ele deseja. Assim, perguntar Que cho este em que dano? Em que

    cho quero danar? pode correlacionar-se s perguntas: Em que bases se d esta dana que ora ensino?

    Em que bases se d esta dana que ora aprendo? A base, aqui, com sentido desde sempre alargado,

    abarcando tanto o sentido de cho, quanto o sentido de princpio ou fundamento.

    Seria possvel ensinar/aprender a dana, qualquer dana, a partir de um cho que escapa a si;

    de um cho que no foi terraplanado; sobre uma base cujo princpio nunca principiar propriamente,

    mas encantar-se desde sempre com a potncia do desvio; a partir de nenhum fundamento, de nem

    um fundamento um que se desdobraria no dois, no trs e assim sucessivamente? O que um tal convite

    supe e modifica em nossas aulas? Podemos nos interessar por isso? Temos medo? Um tal pensamento

    contemporneo interessaria to somente ao ensino/aprendizagem de dana contempornea ou podemos

    13

    este em que dano? Em que cho quero danar?.

  • 37

    tranar o ensino de ballet clssico, por exemplo, com um pensamento contemporneo de dana?

    O compromisso tico-poltico do ensinar talvez passe por no tentar controlar o que vem, pois

    inevitvel, o que vem o qualquer e no o que deve(ria) ser. Ao observar este aspecto, o ballet clssico

    talvez possa encontrar outros meios, outros modos, de tornar-se aquilo que ele , nenhuma essncia, com

    Agamben mais uma vez: o simples facto da sua prpria existncia como possibilidade ou potncia14

    (1993: 38). Isso o mesmo que dizer, afastando-nos agora da ascendncia excessivamente heideggeriana do pensamento do italiano, do devir qualquer do ballet. Sem medo, agora, a partir deste, mais precisamente, neste cho.

    Se pedirmos licena e emprstimo ao portentoso pensamento de Gilles Deleuze, talvez possamos

    afirmar o qualquer, como a razo, ou mais apropriadamente como a figura do devir, figura necessariamente

    afigurativa, uma vez que este processo no resulta; no resulta seno no relanamento do prprio

    processo. Nele no o trmino que buscado (...) mas sim o prprio devir, ou seja, as condies de um

    relanamento da produo desejante ou da experimentao (ZOURABICHVILI 2004: 18). Seguindo as

    palavras do prprio Deleuze:

    Devir jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de justia ou de verdade.

    No h um termo de onde se parte, nem um ao qual se chega ou se deva chegar. Tampouco dois

    termos que se trocam. A questo o que voc est se tornando? particularmente estpida. Pois

    medida que algum se torna, o que ele se torna muda tanto quanto ele prprio. (DELEUZE, PARNET

    1998: 3)

    Para exemplificar, no posso furtar-me de correlacionar tudo isso com os sofisticados ensinamentos

    de Klauss Vianna (1928 1992), grande mestre brasileiro que desenvolveu um mtodo somtico de

    aprendizagem do ballet clssico. Se somtica, precisamente neste caso, porque a Tcnica Klauss

    Vianna, modo como o seu trabalho ficou conhecido, implica certa Conscincia do Movimento, nome do

    mtodo somtico de trabalho corporal atribuvel a Angel Vianna, esposa e longeva parceira de Klauss.

    Aqui tomamos a liberdade de afirmar, entre a Conscincia do Movimento e a Tcnica Klauss Vianna,

    afinidades indiscernveis; o mesmo que dizer, metafrica e literalmente, seguindo a nossa perspectiva, que

    elas partilham o mesmo cho, entendido a esta altura, assim esperamos, no mais como a mesma base,

    mas como o mesmo sustentar-se, precrio e temporrio, no/a partir do questionamento tico, ontolgico e

    poltico da consagrada noo de base em dana (e, por que no, na prpria vida).

    O que vemos, no entanto, que o domnio da arte da dana, em nossos dias, obedece a certas regras

    ou convenes em funo de um ideal esttico antecipadamente suposto e proposto. Mas possvel

    pensar a dana para alm desses limites (...). Mais do que uma maneira de exprimir-se por meio do

    movimento, a dana um modo de existir. (VIANNA 2005: 105)

    Um dos ensinamentos da Tcnica Klauss Vianna, cuja extenso necessita sria pesquisa

    fonte, a um s tempo simples e sofisticado, diz respeito a empurrar o cho e verificar a diferena e

    14 Grifos nossos.

  • 38

    os desdobramentos que isso produz na apreenso de si (do bailarino-aprendiz) no prprio movimento.

    Uma rpida e rasteira leitura poderia nos levar na direo de entender este ensinamento como princpio

    (fundamento) da Tcnica Klauss Vianna, o cho, a base, portanto, de seu mtodo de trabalho. Mas

    precisamente porque ele implica uma ao outra na base do danar que aparece como modo de existncia

    no danar, o que no simplesmente trocar seis por meia-dzia. Trata-se de dizer, e a est a preciso do

    ensinamento, que aprender a danar implica agir tica e efetivamente na base sobre a qual esta dana se

    d: literal e ontologicamente, no a partir do cho, mas no cho, no modo de os ps se relacionarem a ele

    no movimento.

    Correlativamente ao fato do cho deixar de ser um a priori, um j dado, ao danar, passando a

    dar-se no danar, empurrar o cho deixa de ser um fundamento do qual posso livrar-me uma vez que

    foi aprendido; que pode e deve ser esquecido e recalcado para que dancemos a partir da. Implica voltar

    sempre a, neste a, neste cho (concreto e ontolgico) a ser agido, no caso a ser empurrado. Bem

    diferente, trata-se de um ensinamento que nunca ser plenamente aprendido, quer eu esteja iniciando-me

    na Tcnica, quer eu seja dela um experiente praticante, pelo simples fato, de to simples to difcil de ser

    aprendido, de eu nunca pisar o mesmo cho.

    Existe um mundo-vasto-mundo a ser descoberto de apoios milimtricos, de diferentes matizes e qualidades, que as plantas dos ps performam com o cho. Trata-se de perceber a mirade de micro-acidentes que um cho permanentemente lembrado e agido traz ao movimento. No um lugar para a dana (preparado para tal e esquecido como tal), mas um lugar dana (que permanentemente lembrado por dar-se como tal).

    Lendo e ao mesmo tempo reescrevendo o cho, reinscrevendo-se no cho, por via do cho, numa

    nova tica do lugar, um novo pisar que no recalque e terraplane o terreno, mas que deixe o cho

    galgar o corpo, determinar os seus gestos, reorientando assim todo o movimento (...). (LEPECKI 2012:

    49)

    Ao invs de um movimento executado sobre a planaridade do cho o cho agindo no corpo, produzindo corpo. Ao mesmo tempo, trata-se de um cho que no antecede o danar, mas que se fabrica enquanto se dana, nesta mediao conformante entre os ps e a prpria base por eles conformada. Base semovente, to acidentada quanto o lugar dana bauschiano, mesmo que nela no se encontrem cacos, cadeiras, pedras e afins.

    Nesta ambincia, o acidente pode ento ser entendido como incidente. Ampliando o sentido de um cho acidentado, por que no falarmos ento de um cho incidental? Um cho incidental d-se como circunstncia. A noo de acidente poderia, desavisadamente, coisa que Lepecki no faz, convocar a indesejvel metafsica aristotlica, levando-nos a compreende-lo como causalidade no essencial. Diferente deste caminho, entende-lo como incidente nos leva na direo das casualidades no essenciais: a letra u mudando de lugar e mudando, com ela, todo o lugar. Casualidade no essencial, o acidente/incidente da ordem do qualquer. O incidente diz de circunstncias que sobrevm, que esto sempre sobrevindo, acontecendo, precipitando-se, ocorrendo, em resumo, incidindo. Falar ento de um cho incidental implica falar de um cho que incide, que se enfia entre os ps, pois j so os prprios ps que o fabricam nesta

  • 39

    corressonncia coconstitutiva15 que entre eles, entre os devir-ps e o devir-cho, precisamente ali, est sendo negociada.

    Trata-se tambm e correlativamente de um cho atravessado de tempo, um cho que acontece; que no palco dos acontecimentos, mas acontecimento dentre os acontecimentos. Um cho que (...) extrai um devir que j no tem termo, porque cada termo uma parada que preciso saltar. Sempre a bela frmula de Blanchot, extrair a parte do acontecimento que sua realizao no pode realizar (DELEUZE, PARNET 1998: 59), que seu termo (vocbulo; trmino) no pode terminar. O espao da ordem do discurso e portanto do pensamento. Se seguirmos a mxima acerca do que vem de que o que vem o qualquer,

    no lugar do vir-a-ser teleolgico (que implica uma finalidade dada de antemo: o que deve ou deveria ser),

    teremos o devir e, como tal, necessariamente um devir qualquer. Eis um simples empurrar o cho conformando toda uma outra tica, poltica e ontologia de ensinar

    o ballet. Empurrar o cho, no caso, significa ensinar o bailarino-aprendiz a pensar com os ps. E, se seguirmos a mxima de Isadora Duncan: no existe outra dana seno a dana de cada um, uma vez que a mesma dana no pode pertencer a duas pessoas (apud LOUPPE 2004: 44), os ps no poderiam ser outros seno os prprios. Assim, empurrar o cho significa ensinar o bailarino-aprendiz a pensar com os prprios ps.

    Sobre estas outras bases, quem ousar repetir bobices to festejadas por a: de um lado os imperialistas dizendo ballet a base de tudo; de outro, os relativistas com suas mximas ballet no muda; ballet enrijece; ballet antianatmico. Falsos problemas. Por um lado, ballet no a base de tudo, simples e efetivamente, esperamos que tenha ficado claro, pois ele no sequer a base de si mesmo. A depender dos modos de ensino, pode conformar-se como uma volta genealgica, e necessariamente crtica, sobre a prpria noo de base. Por outro, ballet muda sim, muda sempre, pois s o muda o que permanece, do mesmo modo s permanece o que se modifica. A depender, mais uma vez, dos modos de ensino, ballet no enrijece e, se seguirmos o paroxismo do mestre, a coisa mais anatmica que j foi criada na arte ocidental (VIANNA 2005: 30). Se isto procede, onde est o problema?

    Sempre discordei da forma pela qual a tcnica clssica chega aos bailarinos, no Brasil. No discuto a

    beleza e a eficincia do clssico ao contrrio, amo o clssico , mas h alguma coisa que se perdeu

    na relao entre professor e aluno e que faz da sala de aula um espao pouco saudvel. (KLAUSS

    2005: 30)

    O problema talvez esteja no ensino, nos modos de ensino, na filosofia encarnada nos modos de operar a aprendizagem: na noo de cho, para finalizar, que embasa as relaes pedaggicas e cuja ontologia esperamos ter contribudo para elucidar e para cuja genealogia esperamos ter sido eficientes no convite.

    15

  • 40

    4. breve volta dos PIrIlamPos

    As bolas de gude transparentes apareceram como recurso na tentativa de fazer agir os conceitos

    aqui em jogo, de produzir uma po(i)tica, seguindo a convocao de Paul Valry (1957), destes mesmos

    conceitos no espao-tempo da palestra. Cada uma das bolas lanadas neste palco, palco do Teatro Juarez

    Machado onde se realiza o Seminrio e palco do pensamento onde se produz agora este texto, pontua a pronncia de outros nomes, alm do de Bausch, que tem contribudo para este repensar da dana,

    rejeitando uma relao privilegiada do corpo laboral emudecido e recusando estruturas sociais de comando

    (LEPECKI 2003: 8). Nomes cujos aparecimentos furtivos encarnam e provocam profundos abalos ssmicos

    no cho histrico-poltico-tico-ontolgico da dana. Danas cujo cho deixou-se escapar.

    Caso estivssemos empenhados aqui em fazer agir alguma empresa blica, cada bola de gude

    poderia representar uma bomba que, uma vez lanada e pela fora liberada, escavaria e revolveria a

    terraplanagem deste cho, acidentando-o. Dada a fineza perceptiva proposta pelos ps que empurram

    o cho dos Viannas16, preferimos tentar fazer aqui cintilar, na transparncia e brilho das boles de gude, a

    luminescncia dos vaga-lumes, suas aparies efmeras e clandestinas, cuja seduo nos faz tropear de encantamento.

    O agenciamento dos pirilampos no texto tardia em relao palestra; refere-se composio, a posteriori, da escritura. Por isso eles margeiam o texto compondo nele uma espcie de fora da linguagem. E foram estes mesmos pirilampos que convidaram Didi-Huberman (2011)17, comprado h algum tempo e no lido at ento, a sair da estante e surpreender-nos com a acuidade da associao. Seguindo o autor, os vaga-lumes, no seu reaparecer e redesaparecer, so lampejos moventes do desejo que iluminam e metaforizam nada mais do que a humanidade reduzida a sua mais simples potncia de nos acenar na noite (DIDI-HUBERMAN 2011: 7; 18; 30). Noite da histria.

    Trata-se dos resistentes de todos os tipos que se transformam em vaga-lumes fugidios tentando se fazer to discretos quanto possvel, continuando ao mesmo tempo a emitir os seus sinais. So pequenas histrias na grande histria. Histrias de corpos, de desejos, histrias de almas e de dvidas ntimas durante a grande derrocada, a grande tormenta do sculo (Ibid.: 17). Leia-se sculo XX. No caso da dana, so nomes que trabalham na escurido, que amam a escurido, e operam, discretos, seu saber pisca-pisca, por que no pisca-pistas. Neste ambiente, nenhum farol ofuscante da revelao. So lampejos de pensamento, pequenos sinais que vemos esvoaar aqui e ali, discretos, passantes, tremeluzentes. Trata-se de fechar os olhos para ver: o espao, na noite da histria, todo salpicado, constelado de belezas

    16

    17 Em Sobrevivncia dos vaga-lumes, Didi-Huberman desenvolve, desdobra, constela o que ele reconhece como tese histrica, escrita entretanto de modo potico, tese de outra ordem portanto, aparecendo por dentro de

    -

    e tendentes ao desaparecimento diante do excesso de luminosidade da Itlia fascista das dcadas de 1940 e

  • 41

    gratuitas e inesperadas (Ibid.: 28; 159; 11).So momentos de exceo em que os seres humanos se tornam vaga-lumes seres luminescentes,

    danantes, errticos, intocveis e resistentes enquanto tais, momentos de graa, lampejos erticos, alegres e inventivos (Ibid.: 23; 20-21), que resistem ao mundo do terror cotidiano em que estamos submersos. Terror que no sombrio ou escurecido, mas fulgurante, iluminado plena e constantemente pelos refletores ferozes da espetacularizao da vida. Luzes cuja cintilao excessiva poderia apagar os pirilampos. O trabalho faze-los sobreviver, caso contrrio, adverte o autor,

    agir como vencidos: estarmos convencidos de que a mquina cumpre seu trabalho sem resto nem

    resistncia. no ver mais nada. portanto no ver o espao18 seja ele intersticial, intermitente,

    nmade, situado no improvvel das aberturas, dos possveis, dos lampejos, dos apesar de tudo.

    (Ibid.: 42)

    Trata-se aqui do convite tessitura de um saber-vaga-lume de uma dana que pensa. So falas, textos e aulas atravessados por um pensamento contemporneo, pensamento sendo uma nuvem de pirilampos que pode mediar os tratos tico-polticos nos ensaios das companhias de dana; que pode mediar os tratos tico-polticos na sala de aula de dana, se e quando as bases so dadas em outros termos. Exatamente os mesmos termos, aqui e agora, com os quais este texto embriagado tentou perfazer o cho de seu assentamento provisrio. Um texto que, encantado com a nuvem de pirilampos, pela potncia do desvio que ela faz garoar no pensamento, tenta pensar com os ps o mesmo vaguear bbado de vaga-lumes que sobrevivem. Pensar com os ps, errar, vacilar, cambalear, enfraquecer, deslizar, hesitar, titubear, tropear, cair, em resumo, perder o cho talvez possa significar, em dana, aventurar-se na luminescncia

    tremeluzente e delicada do amor.

    refernCIas

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    LEPECKI, Andre. (2012). Coreopoltica e coreopolcia. Ilha, v. 13, n. 1, p. 41-60, jan./jun.

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    SOBRAL, Sonia (orgs.). Cartografia rumos ita cultural dana 2009-2010: criaes e conexes. So

    Paulo: Ita cultural.

    18 Grifo nosso.

  • _____________ . (2003). Corpo colonizado. Gesto: revista do Centro Coreogrfico do Rio, v.2, jun. Rio de

    Janeiro: Instituto Municipal de Arte e Cultura.

    LOUPPE, Laurence. (2004). Poetique de la danse contemporaine. Bruxelas: Contredanse.

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    geometrias no-euclidianas. Curitiba: Graffica.

    ROCHA, Thereza. Entre a arte e a tcnica: danar esquecer. In: WOSNIAK, Cristiane, MEYER, Sandra,

    NORA, Sigrid (Orgs.). (2009). Seminrios de dana: o que quer e o que pode (ess)a tcnica?. Joinville:

    Letradgua.

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    ZOURABICHVILI, Franois. (2004). O vocabulrio Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumar.

    Negrito no nome do livro.

  • 43

    Ballet clssico: formao e atuao Ceclia Kerche

  • 44

    CECdos mais notveis expoentes do ballet latino-americano. Danando ao lado de reconhecidos bailarinos inter-nacionais, constam de seu repertrio diversas verses dos mais importantes clssicos. Foi outorgada Embai-xatriz da Dana pelo Conselho Brasileiro da Dana (CBDD), rgo vinculado a UNESCO por suas inmeras apresentaes como convidada em diversas Galas na Europa, Amrica e sia e nos mais importantes festi-vais brasileiros.

  • 45

    O corpo do bailarino no apenas movimento, no se desloca apenas daqui para acol, mas se

    forma, deforma-se, transforma-se, estende-se, alonga-se, figura-se, desfigura-se, transfigura-se; polimorfo

    e proteiforme, o corpo atua. O que envolve mltiplas condutas, tenses, prazeres e metamorfoses (NORA;

    FLORES, 2013, p. 13).

    Nessa conferncia danada, acompanhada pelo pianista da Escola do Teatro Bolshoi no Brasil,

    Eduardo Boechart, tive a oportunidade de dar forma proposta da curadoria do Festival de Dana em

    proporcionar aos participantes do evento um contato direto com o fazer prtico do trabalho de bailarinas

    e bailarinos profissionais na sua construo diria do aprimoramento tcnico, interpretativo, virtuoso e

    estilstico, atributos que do suporte ao corpo danante no ballet clssico.

    Figura 1 - Exerccio na barra. Foto: Nilson Bastian

    Figura 2 - Exerccio na barra. Foto: Nilson Bastian

  • 46

    Reuni a prtica demonstrativa de uma aula de tcnica clssica com a apresentao de trechos de

    ballets de repertrio, intercalados a momentos dedicados reflexo histrica, bem como a relatos sobre os caminhos de minha trajetria.

    Articulando comentrios e demonstraes prticas, iniciei a sesso com um aquecimento, prosseguindo com os fundamentos da tcnica da dana clssica por meio dos exerccios executados na

    barra1, segundo o mtodo Vaganova2. Enfatizo a necessidade de o bailarino treinar igualmente os lados

    direito e esquerdo do corpo a fim de desenvolver habilidades idnticas em ambos os lados. Tambm

    destaco os cuidados com a posio dos ps, com a verticalidade e postura corretas, com a coordenao entre as diferentes partes do corpo. Ressalto a funo e o uso apropriado da coluna vertebral (para

    Vaganova, a fonte da estabilidade localiza-se na coluna), a importncia dos plis, do relaxamento dos ombros e da impostao de braos, a posio da cabea em relao ao conjunto do movimento, o papel

    do en dehors, alm do propsito de demais aspectos, como flexibilidade, musicalidade, fora muscular, destreza, entre outros. As habilidades corporais adquiridas e desenvolvidas na barra so recursos que

    permitem ao bailarino ir alm.

    Na segunda etapa da aula, denominada centro3 e que d sequncia estrutura da aula ministrada, foi o momento de dar continuidade a essa lgica de construo corporal que desafia o espao, o peso, o

    fluxo, o ritmo e o equilbrio, trabalhando as diferentes e complexas dinmicas de combinaes de passos

    (adgios, allegros etc.), aprimorando o movimento dos braos mediante os port de bras, aperfeioando baterias, giros e saltos. na aula, cujo objetivo est em aparelhar o bailarino para o domnio do movimento

    e o refinamento do vocabulrio, que se atinge a excelncia tcnica para o desempenho das obras a serem

    apresentadas cenicamente. A estrutura metodolgica aplicada faz-se essencial para alcanar os resultados

    desejados e deve ser motivo de ateno dos professores desde o comeo da formao dos estudantes.

    Mas no apenas a experincia motora que o corpo deve acumular. Alm de talento e vocao,

    ainda, outros elementos so indispensveis para que o intrprete atinja a sua magnitude, a excelncia

    artstica. Entretanto, a partir dela, da eficincia em manipular o corpo pelo domnio consciente da tcnica,

    aliada percepo musical, ao conhecimento sobre o estilo coreogrfico, ao emprego correto da energia a ser despendida durante a ao, do exato entendimento da narrativa e do papel desempenhado pela

    personagem a ser interpretada, que surgir espao para o exerccio da individualidade criativa, para o

    virtuosismo, diferencial que imprimir personalidade pea. A fim de ilustrar o que foi expresso, escolhi apresentar ao pblico presente trs trechos de obras do

    ballet de repertrio, os quais traduzem necessidades tcnicas e interpretativas distintas. So trechos de A

    1 Estrutura de metal ou madeira que d sustentao ao bailarino para a execuo dos movimentos.2 ballet. Foi sistematizado pela pedagoga Agrippina Vaganova na dcada de

    ballet

    artistas.3 Etapa da estrutura de uma aula de dana clssica.

  • 47

    Bela Adormecida, Dom Quixote e Giselle, obras impregnadas de significados que revelam o pensamento artstico de perodos histricos.

    O primeiro trecho a variao feminina (princesa Aurora) do terceiro ato de A Bela Adormecida, que expressa o estilo clssico. Nele as posies de braos, mos e o emprego da cabea so evidncias

    marcantes. A obra completa composta de um prlogo e de trs atos, com composio musical de Piotr

    Tchaikovsky e coreografia de Marius Petipa. Baseado no conto de fadas do escritor francs Charles

    Perrault, estreou em 1890 no Teatro Mariinsky, em So Petersburgo.

    Figura 3 A Bela Adormecida Foto: Nilson Bastian

    Embora o tema e a partitura musical evidenciem claramente um romantismo

    tardio, o estilo e a estrutura coreogrfica da obra inserem-se na categoria de

    Ballet Clssico. considerada a mais lmpida realizao do ideal acadmico

    (CAMINADA, 1999b, p. 152).

    J na variao feminina Kitri do terceiro ato de Dom Quixote, possvel observar um desempenho de complexa articulao entre a desenvoltura tcnica exigida e o manejo com o uso do adereo cnico (leque).

    O referido ballet, com trs atos e baseado na obra homnima de Miguel de Cervantes, tem composio musical de Ludwig Minkus e coreografia de Marius Petipa. Estreou em 1869 pelo Ballet Imperial de Moscou.

  • 48

    Figura 4 Dom Quixote Foto: Nilson Bastian

    E, por fim, temos a cena da loucura de Giselle, que acontece no fim do primeiro ato do bal de mesmo nome. A ao traduz o estado delirante da protagonista, que se suicida com uma faca cravada ao peito aps a decepo amorosa. Diferentemente dos exemplos anteriores, o que se querer tornar evidentes aqui

    so a fora dramtica, a natureza plstica e o poder virtuoso e narrativo que a cena exige do intrprete.

    Giselle, coreografado por Jules Perrot e Jean Coralli, com msica de Adolphe Adam, considerado a obra-prima do perodo romntico.

    Figura 5 Giselle Foto: Nilson Bastian

    Ainda, no intuito de bem aproveitar o tempo dedicado a esse encontro com o pblico, as pausas e

    os intervalos entre uma demonstrao e outra serviram para falar, na medida do possvel, sobre a histria

    dos ballets, de seus coregrafos, da criao dos figurinos, do uso das sapatilhas de ponta e tambm para relatar algumas das minhas experincias vividas: as sensaes, as limitaes, as leses, as superaes,

    os encontros, os fatos curiosos; todas determinantes para a minha formao artstica. O corpo humano

    em si um artifcio, uma obra criada, recriada e autocriada (FLORES, 2008, p. 88).

  • 49

    Figura 6 dilogo com o pblico Foto: Nilson Bastian

    refernCIas

    CAMINADA, E. Considerao sobre o mtodo Vaganova. In: PEREIRA, R.; SOTER, S. (Orgs.). Lies de Dana 1. Rio de Janeiro: UniverCidade, 1999a.

    ______. Histria da dana: evoluo cultural. Rio de Janeiro: Sprint, 1999b.

    FLORES, M. B. R. No tem os danarinos ouvidos nas pontas dos ps? In: Pereira, R.; Meyer, S.; NORA, S. Seminrios de Dana 1. Caxias do Sul: Lorigraf, 2008.

    NORA, S.; FLORES, M. B. R. Frestas da memria. Caxias do Sul: Lorigraf, 2013.

  • 51

    Dana Clssica

    Formao

    Processos Pedaggicos

    Sustentabilidade

    Ferramenta de Criao

    Mercado de Trabalho

  • 53

    Dana clssica no mundo contemporneo? Paradoxos, dobras, extenses e invenes

    Thas Gonalves

  • 54

    THAS GONALVES - Professora dos cursos de Bacharelado e Licenciatura em Dana do Instituto de Cul-tura e Arte da Universidade Federal do Cear (ICA/UFC). Doutoranda em Dana pela Faculdade de Motri-cidade Humana da Universidade de Lisboa (FMH/UL), sob orientao do Prof. Dr. Daniel Trcio. Graduada em Dana pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

  • 55

    Qual o lugar da dana clssica na contemporaneidade? Seria essa pergunta relevante ou um falso problema? Tema to espinhoso quanto instigante para pensarmos as relaes entre dana, ensino e criao em arte no mundo contemporneo. Sem pretenso de responder questo ou valor-la, apresento aqui o desejo de cartografar traos conceituais e movimentos artsticos que fazem mover em ns os sentidos da dana, pois, como diz Gil (2004), o sentido do movimento o movimento do sentido.

    Para delinear um diagrama que cartografe conexes entre dana clssica e arte contempornea, sugiro um primeiro deslocamento: em vez de adjetivar a dana como clssica, indago o que h de clssico na dana. Podemos seguir nos perguntando: o que existe de moderno e de contemporneo na dana? Em palestra proferida na Bienal Internacional de Dana do Cear, em 2011, Launay, professora da Universidade Paris 8 (Frana), disse que os gestos antigos vm ao presente, porm no sabemos dimensionar as relaes produzidas em diferentes contextos, uma vez que h um processo de transformao de foras e formas.

    Numa retrospectiva panormica, podemos perceber em linhas gerais que entre os sculos XVI e XIX havia concordncia sobre o que era dana, assim como estavam delimitados os pressupostos da arte erudita. Com a virada do sculo XIX para o sculo XX, as vanguardas modernistas comearam a friccionar conceitualmente a arte e a propor outras estticas que alargaram e comearam a diversificar o universo da dana, at mesmo negando alguns de seus elementos tradicionalmente institudos, como a sapatilha de ponta, os vestidos de tule e os temas etreos e platnicos que permeavam os espetculos, indicando uma aproximao da dana com o mundo real e vivido, relacionando arte e vida.

    Na primeira metade do sculo XX no havia muita dvida sobre o que constitua o universo da dana, ainda que controvrsias sobrevoassem esse territrio. O desconforto maior estava em apresentar ao mundo outros modos de danar e, em alguns casos, com clara negao esttica da dana clssica, que nesse momento era sinnimo de bal clssico. As relaes entre artista e espao cnico, bailarino e plateia, por exemplo, seguiam relativamente dadas. No entanto, a partir da segunda metade do sculo XX, uma mudana conceitual apresentou-se de modo mais contundente com base na questo: o que dana? Tal pergunta se desdobrou em outras: o que a constitui como arte? De que maneiras a dana indaga o mundo no qual est inserida? E mais: quando h efetivamente dana? O cho da dana parecia mover-se como placas tectnicas na iminncia de um terremoto, afinal a lgica da dana cnica irreversivelmente subvertida pelos artistas desde as formas de criao at a relao com o pblico.

    Considerando os cruzamentos entre passado, presente e futuro, proponho uma visita aos movimentos artsticos que foram modificando o modo de compreender a dana em seus processos artsticos e pedaggicos, para assim pensarmos o lugar da dana clssica na contemporaneidade. Uma anlise articulada aos estudos do educador gacho Silva (2002), o qual destaca trs significativas abordagens que delimitam teoricamente os modos de educar tradicional, crtica e ps-crtica consiste num pensamento formulado em trs atos para, no fim, poderem ser mesclados, possibilitando ainda a inveno e reinveno

    de outras foras e formas a potencializar a dana em seu tempo presente.

  • 56

    UM PaSSaDo a PaSSar: Dana ClSSiCa, PenSaMenTo ClSSiCo

    A dana clssica relativa ao universo do bal surgiu em estreita relao ao modo como se organizou

    a arte erudita, tendo se constitudo com base na adequao das danas pags ao contexto dos palcios.

    Na corte francesa sua esttica se desenvolveu mais fortemente, a partir do sculo XV, em consonncia

    ao Renascimento. No incio todos danavam uma sequncia de passos metrificada, com regras para o

    deslocamento no espao. Com o tempo, parte do bailado era apresentada por um grupo especfico de

    danarinos e, no fim, todos participavam, at que essa dana passou a ser vista por um pblico no mais

    inserido na execuo dos passos.

    O contexto era o do Iluminismo, do mercantilismo e da industrializao, no qual se compreendia o

    corpo como objeto da cincia e da tcnica. O bal clssico no sculo XVIII foi codificado, com movimentos

    tais quais conhecemos atualmente, e o corpo ganhou fora e vitalidade com grandes saltos e equilbrio em

    sapatilhas de ponta, numa tentativa de vencer a gravidade, obter leveza e alcanar o etreo (BOURCIER,

    2001). Para os bailarinos, assim como para os atletas, o corpo um instrumento de trabalho, algo que lhes

    pertence e deve ser afinado e cuidado.

    A dana metrificada contribui para o processo civilizatrio do homem moderno. Segundo Le Breton

    (2006, p. 21), a sociedade de corte o laboratrio onde nascem e a partir do qual se difundem as regras

    de civilidade que hoje adotamos em matria de convenes de estilo, de educao dos sentimentos,

    de colocao do corpo, de linguagem. Em sua obra Elias (1994) pontua o controle das emoes e o

    progressivo silenciamento do corpo, de seus rudos, impulsos e movimentos.

    Conforme Hall (2006), esse sujeito unidade de medida de todas as coisas est conectado

    concepo do indivduo centrado, unificado, dotado de razo, conscincia e ao, sendo capaz de controlar

    suas emoes. No bal os bailarinos solistas e os do corpo de baile so separados hierarquicamente. O

    centro do palco o lugar mais importante a ser ocupado. Um nico centro, uma nica formao tcnica,

    um nico objetivo, uma nica identidade e um dado padro de corpo como perfeio, esguio e alongado.

    Exatido e preciso de movimentos e comportamentos.

    A dana clssica, nesse contexto, tem foco na forma. Os objetivos nesse referencial artstico e

    pedaggico correspondem ao modelo tradicional de ensino, de contedos fixos, tcnicos, utilitrios,

    perspectivados no como fazer, em preservar o status quo enquanto referncia desejvel (SILVA, 2002). Direciona-se a formao pela imitao, repetio e reproduo de conhecimentos e resultados j estipulados

    e transferidos do professor ao aluno.

    A finalidade do ensino tradicional preencher o aluno com os contedos determinados pelas

    cartilhas e pelos mtodos que se universalizam. O aluno deve se adequar ao que est sendo demandado,

    independentemente de suas caractersticas pessoais. Tal como o pblico dos bals, o aluno

    predominantemente passivo. Ambos recebem o que lhes apresentado, cujo contedo no tem a funo

    de suscitar nenhum tipo de problematizao (MARQUES, 2001). Uma concepo de mundo permeada

    pela lgica do diretor-coregrafo, que dita regras.

    Se h cartilha, modelo estipulado a priori a copiar, a dana no pensamento clssico faz-se por um

  • 57

    projeto de passado, uma tradio a ser reproduzida. Uma dana atravessada pela concepo platnica de

    corpos ideais e por uma suposta perfeio que esto no mundo exterior e que devem ser alcanadas com

    dedicao e exausto. O foco est no treinamento e no desenvolvimento de habilidades motoras, havendo

    pouco ou nenhum espao para a criao, o novo, os acasos.

    ProjeToS De FUTUro: vangUarDaS MoDerniSTaS

    Com a complexificao do mundo e a organizao da vida em cidades, uma poltica multitnica e

    plurilingustica representando diferentes pontos de vista comeou a substituir as representaes monolticas.

    Cada novo grupo que se evidenciava marcava sua identidade, seu centro de domnio, com base no que

    lhes fazia diferente em relao aos outros, parecendo haver a necessidade de afirmar sua diferena em

    oposio, e at mesmo negao, ao outro (KROEF, 2000). No entanto estruturalmente algo permaneceu.

    O sujeito ainda tem um ncleo ou essncia interior que o seu eu real, mas este formado e

    modificado num dilogo contnuo com os mundos culturais exteriores e as identidades que esses

    mundos oferecem [...]. A identidade, ento, costura (ou, para usar uma metfora mdica, sutura) o

    sujeito estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando

    ambos reciprocamente mais unificados e predizveis (HALL, 2006, p. 11-12).

    Na dana esse fenmeno das novas identidades, das novas representaes e dos novos centros deu

    visibilidade a outras estticas imbricadas efervescncia cultural das vanguardas modernistas nas artes,

    as quais tinham necessidade contextual de tomar posio diante do mal-estar gerado pela complexificao

    das relaes na modernidade. O que os coregrafos modernos buscavam era recuperar o movimento

    inerente ao ser humano (MARQUES, 2003).

    Loie Fuller (1862-1928) inaugurou uma dana livre de tcnicas, com tecidos esvoaantes e coloridos

    pelas luzes da recm-descoberta iluminao eltrica, por Thomas Edison. Isadora Duncan (1878-1927)

    ficou conhecida por danar descala com tnicas semelhantes s dos povos gregos e utilizar gestos

    impulsionados pelo plexo solar. Rudolf Laban (1879-1958) fazia experimentos corporais com bailarinos

    nus, em contato com a natureza. Em comum, todos tinham o interesse em uma dana que trouxesse para

    a cena as questes de seu tempo, com espao para a pluralidade de corpos e ideias.

    A dana moderna deslocou o foco do centro do palco para direcion-lo ao centro do ser. Os intrpretes

    reivindicaram o direito de criar invenes pessoais na dana (LABAN, 1978, p. 236) e elegeram o plexo

    solar ou o baixo-ventre como centros de si e da sua dana. Tratava-se de uma dana mais interiorizada,

    em consonncia com as pesquisas no campo da psicanlise, que objetivava trazer tona o que estava

    no inconsciente, na ordem do instintivo, das emoes que no se podem dominar nem conter, havendo

    interesse contextual pelo impensado do pensamento e das sensaes.

    Duplos opostos marcavam uma relao binria com o modo de fazer arte e de pesquisar novas

    relaes com o corpo e, assim, com o mundo: consciente e inconsciente, queda e recuperao, contrao e

    relaxamento, equilbrio e desequilbrio. Desenvolviam-se, nesse perodo histrico, diferentes tcnicas que,

    no entanto, tal como o bal clssico, eram codificadas, a exemplo de Doris Humphrey, Martha Graham,

  • 58

    Jos Limn, em geral instigadas em uma organicidade de movimentos guiados pela respirao, pelos

    batimentos cardacos e pela fluncia livre.

    Tal como o sujeito, que ampliou suas matrizes identitrias, embora ainda preservasse a ideia de

    centro, a dana tambm se pluralizou, ao mesmo tempo em que estabeleceu modelos tcnicos e

    mtodos de criao referenciados, a partir de ento em nomes prprios. Diversificaram-se as propostas,

    multiplicaram-se as estticas, os gneros, mas os centros de referncia continuaram existindo, fixando-se

    e codificando-se.

    Aproximando esse modo de danar ao de ensinar, podemos tecer aproximaes com as teorias

    crticas, que desconfiam do status quo e das desigualdades e se preocupam com que ns compreendamos o que o currculo faz (SILVA, 2002), que processos esto implicados nos contedos apresentados e quais suas finalidades em relao construo social. Trata-se de uma concepo emancipadora, libertria,

    igualitria, incentivando uma atitude autnoma. H a ideia de um sujeito de conscincia a ser formado

    com base naquilo que lhe falta. Sem esse conhecimento ausente, no possvel superar a condio de

    dominado e atingir autonomia e liberdade de escolhas.

    A educao nesse ponto de vista tem como papel adequar o sujeito a essa finalidade, construindo

    contedos que possibilitem a formao de um sujeito de conscincia. A dana, nesses termos, passa

    a ser mediao, um meio para, um atravs no qual se atingem como fim tais predicados de liberdade e igualdade, que podem at mesmo ser entendidos em alguns casos como mais importantes do que a

    dana em si, do que a produo da arte em sua prpria potncia argumentos que, depois, permeiam os

    discursos das polticas culturais para as artes.

    Trata-se de uma dana focada na descoberta de um eu interior. O processo, assim, torna-se bem mais importante que o produto (MARQUES, 2003, p. 113). Existem experincias em que a dana se perde

    na espontaneidade, no discurso de que todos tm o dom livre e natural de danar, de que a dana uma

    educao integral, completa e total do ser. Consiste num direito de todos (MARQUES, 2001). Enfim, dana-

    se para encontrar uma essncia, um centro, uma conscincia, um movimento natural, fluido, cuja diferena

    est em distinguir-se do outro, numa relao dialtica de negao e de falta, de duplos opostos (dominante/

    dominado, sujeito/sujeitado).

    A arte moderna atravessa a dana diversificando suas propostas artsticas e pedaggicas, pluralizando

    as formaes tcnicas e abrindo espao criao. Os bailarinos inventam seus mtodos de estudo e

    pesquisa, embora ainda seja concreta a figura do diretor-coregrafo e se mantenham, predominantemente,

    as relaes cnicas entre artista, palco e plateia. Cada esttica que se evidencia na dana moderna traz

    consigo um projeto de futuro, um novo corpo a ser desenvolvido, menos focado em um modelo exterior e

    platnico, porm ainda preservando a ideia transcendente de corpo, cujo foco transita entre as habilidades