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6/5/2016 A economia dos quilombos | Revista Pesquisa Fapesp
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A economia dos quilombos
Trocas de excedentes agrícolas com o entorno ainda sobrevivem nas comunidades rurais negras daatualidade
MÁRCIO FERRARI | ED. 242 | ABRIL 2016
© VICTOR FROND – LITOGRAFADA PELOS ARTISTAS DE PARIS, 1861, PARIS LEMERCIER, IMPRIMEUR-LITOGRAPHE. BIBLIOTECA
BRASILIANA GUITA E JOSÉ MINDLIN. REPRODUÇÃO RENATO PARADA
Saída de escravos da senzala para a roça em 1861: atividade agrícola serviria de aprendizadopara sustento econômico dos quilombos
Há no Brasil hoje, segundo levantamento do pesquisador Flávio dos Santos Gomes,quase 5 mil comunidades negras rurais remanescentes de antigos quilombos deescravos fugidos. Ao tentar estudar o fio de continuidade entre a atualidade e opassado escravista, Gomes encontrou um hiato desde a abolição da escravidão (1888)até pouco menos de 100 anos depois, quando as comunidades quilombolas vieram aganhar visibilidade com a oficialização do termo “remanescente de quilombos” naConstituição de 1988. Historiador e professor da Universidade Federal do Rio deJaneiro (UFRJ), o pesquisador estuda a escravidão desde o início dos anos 1990. Asfontes habituais sobre o assunto, como processoscrimes, registros policiais e relatos dejornais, “falavam dos quilombos e das tentativas de destruílos e capturar seushabitantes”, de acordo com o pesquisador, mas não do modo como sobreviviam.
“Resolvi partir de outra perspectiva”, conta Gomes. “Fui estudar as comunidadesnegras rurais em todo o país, suas origens e transformações, principalmente no períodopósabolição. Vi que era possível avaliar a formação de um campesinato negro noBrasil.” O resultado do trabalho está no livro recémlançado Mocambos e quilombos –Uma história do campesinato negro no Brasil (Companhia das Letras), baseadoprincipalmente na pesquisa “Cartografias da plantation: demografia, cultura materiale arqueologia da escravidão e do pósemancipação do Brasil”, em curso no Instituto deHistória da UFRJ, com o apoio da Fundação Guggenheim, dos Estados Unidos, da
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Edição n. 242 | Abril 2016
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© VICTOR FROND – LITOGRAFADA PELOS ARTISTAS DE PARIS, 1861,
PARIS LEMERCIER, IMPRIMEUR-LITOGRAPHE. BIBLIOTECA
BRASILIANA GUITA E JOSÉ MINDLIN. REPRODUÇÃO RENATO PARADA
Mulheres escravas preparam comida durante acolheita do café no século XIX
© EDUARDO CESAR
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e do ConselhoNacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O livro inclui a lista detodos os quilombos remanescentes no país.
O traço de continuidade entre o passado e o presente foi encontrado na atividadecomercial. A visão tradicional é de que os mocambos e quilombos – denominações que,em épocas e lugares diferentes, designaram o mesmo fenômeno – eram redutosisolados de negros fugitivos que apenas produziam para consumo próprio. “O tempotodo as comunidades estavam conectadas com agentes da sociedade do seu entorno,como taberneiros, vendeiros e redes mercantis”, afirma Gomes. “Eram aglomeradosagrários articulados, e os excedentes de sua produção abasteciam as redes locais,compostas por fazendas, vilas, feiras e entrepostos de trocas.” Com as transaçõescomerciais, vieram também intercâmbios religiosos e culturais e miscigenação étnica.
A atividade econômica nos quilombos,que sobrevive, em essência, nos atuaisaglomerados remanescentes, teria suaorigem numa peculiaridade da escravidãono Brasil: o hábito dos senhores deconceder parcelas de terra e um ou doisdias por semana aos escravos para ocultivo de alimentos, a fim de semanterem. Era um modo de osproprietários se eximirem dos gastos como sustento dos cativos, pelo menos emparte, mas havia outras razões, comoreforçar o “amor à terra” paradesestimular as insurreições e fugas emgrupo. Nesse aspecto, o efeito foi o
oposto: o hábito e o domínio da agricultura, incluindo a comercialização deexcedentes, inspiraram escravos a fugir e a construir uma vida sustentada pelo cultivoda terra. “A economia dentro da fazenda foi também fundamental para a constituiçãode famílias e a criação de uma margem de autonomia financeira, com uma lógicacontrária à da plantation, que era a da monocultura”, diz Maria Helena Machado,professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e CiênciasHumanas da Universidade de São Paulo (FFLCHUSP) e especialista em história socialda escravidão.
Ataque e defesaA experiência da roça nas propriedades dos senhores de escravos brasileiros já haviasido analisada pelo historiador Ciro Flamarion Cardoso (19422013) e pelo antropólogonorteamericano Sidney Mintz (19222015), ambos nos anos 1970. Cardoso criou aexpressão “protocampesinato” e utilizou o conceito de “brecha camponesa” emreferência ao fenômeno. Para Gomes, que explorou a questão no livro A hidra e ospântanos (Unesp/Polis, 2005), tais termos revelam uma subavaliação da importânciadas roças permitidas pelos proprietários de escravos na formação de um campesinatonegro autônomo. Também não havia naqueles estudiosos a dimensão de continuidadeque chegaria até os dias de hoje. “A importância dos estudos de Flávio Gomes é ligar aexperiência da roça ao quilombo e este à comunidade camponesa”, comenta MariaHelena.
Quilombos existem desde pelo menos1575, quando se deu o primeiro registroda existência de um “mocambo” naBahia. Gomes explica essa precocidadepela ideia de que não havia forma deprotesto mais eficaz contra o escravismodo que a fuga. “Muitas escapadascoletivas foram antecedidas de levantesou motins”, diz o historiador. Osquilombos nunca eram totalmente fixos econtavam com os locais de difícil acesso,
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Trabalhadores transportam produtos…
© EDUARDO CESAR
…e colhem arroz no quilombo de Morro Seco (SP),em 2015
como montanhas, cavernas, florestas emanguezais, como refúgio. Diante dosgrandes prejuízos com a perda de mão deobra, fazendeiros mandavam capitães domato e tropas irem ao encalço dosfugitivos, o que não impedia ascomunidades de se multiplicarem. “Osurgimento de um quilombo atraía arepressão, assim como mais fugas paraele”, conta Gomes. Além disso,quilombolas, portando armas artesanaisou pistolas e espingardas roubadas oucedidas por parceiros comerciais, faziamexpedições que induziam os cativos dassenzalas a escapar e realizavamsequestros para aumentar a população dacomunidade fugitiva. A articulação entrequilombolas e escravos das senzalas degrandes engenhos provocou uma rebeliãono engenho de Santana, na Bahia, em1789. Ocorreram sucessivos levantes até1828, período em que se formou, de acordo com Gomes, uma economia camponesa denegros fugidos.
Os quilombos costumavam ser cercados por valas e madeiras pontiagudas, mas seushabitantes não se limitavam a se proteger. “Circunstâncias de tempo e lugar faziam dealguns quilombos unidades de guerrilha, espalhando o medo nas fazendas”, diz opesquisador. A forma mais eficaz e lucrativa de proteção, entretanto, era a formação darede de parceiros econômicos, incluindo outros roceiros, garimpeiros, pescadores,mascates e quitandeiros, indígenas e soldados desertores, além de escravos ao ganho,aqueles que compravam a alforria dos senhores. Na década de 1870, a lenha queabastecia a Corte imperial era produzida por quilombolas do mangue do rio Iguaçu, noestado do Rio de Janeiro, e comercializada por escravos recémlibertos.
“Os quilombos continuaram a sereproduzir mesmo com o fim daescravidão, porém não foram maisencontrados na documentação dapolícia e nas denúncias dos jornais”, dizGomes. Nos primeiros tempos pósLeiÁurea, “continuaram migrando,desaparecendo, emergindo e sedissolvendo no emaranhado das formascamponesas do Brasil”, mantendo acaracterística de interagir e misturarsecom seus entornos. O pesquisador
atribui a invisibilidade dos quilombos depois da abolição aos recenseamentospopulacionais e censos agrícolas que não tinham critérios claros e constantes sobre raçaou cor e não sabiam como classificar atividades econômicas “entre a agriculturafamiliar, o trabalho sazonal e o extrativismo”. Além disso, as comunidades negrasrurais do início do século XX eram marcadas por deslocamentos determinados porarranjos de moradia e trabalho. O sustento principal continuou sendo o comércio daprodução agrícola. “Muitas comunidades fabricam farinha e, como no passado,vendem parte da produção”, diz Gomes.
A antropóloga Neusa Gusmão, professora aposentada da Faculdade de Educação daUniversidade Estadual de Campinas (Unicamp), relativiza a continuidade estrita entreos aglomerados de escravos fugidos e as atuais comunidades negras rurais. “Não sepode dizer com certeza que o campesinato negro atual seja originário de antigosquilombos”, diz ela, que pesquisou e escreveu sobre cultura negra no campo. “Adenominação atual de quilombo obedece a uma reconfiguração do termo que osidentifica como ligados à terra e a práticas culturais próprias.”
6/5/2016 A economia dos quilombos | Revista Pesquisa Fapesp
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Ela concorda, entretanto, que a invisibilidade desses grupos nos anos de 1970 e 1980“era quase absoluta, tanto no meio social quanto no acadêmico”. O ganho devisibilidade, para o qual contribuiu o aperfeiçoamento dos métodos de pesquisademográfica, teve na Constituição de 1988 apenas uma de suas etapas. No mesmo ano,a questão dos quilombos associados à identidade negra foi trazida à tona pelos eventose protestos organizados para lembrar os 100 anos da abolição. Algo semelhante ocorreuem 1995, nos 300 anos da morte de Zumbi, líder de Palmares, o quilombo maisconhecido. Segundo o pesquisador, tem sido importante a atuação de entidades comoa Fundação Cultural Palmares, ligada ao Ministério da Cultura, que reconhece ecertifica as comunidades remanescentes de quilombos, e principalmente dos estudosacadêmicos em várias áreas que “têm ajudado a articular os movimentos sociais emtorno dessas comunidades”.
LivroGOMES, F. S. Mocambos e quilombos – Uma história do campesinato negrono Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, 238 p.
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