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A ELITE DO CRIME: DISCURSO DE RESISTÊNCIA E LAXISMO PENAL Daniel de Resende Salgado Procurador da República, membro do Conselho Penitenciário do Estado de Goiás e coordenador do Grupo de Controle Externo da Atividade Policial no Ministério Público Federal em Goiás. 1 Introdução 2 Discurso de resistência a uma nova perspectiva (re) legitimadora 2.1 Técnicas de neutralização 2.2 Inadequação legislativa 2.3 Resistência dos aplicadores do direito 2.4 Disseminação monocular da doutrina liberal 3 Conclusões Página 1 de 18

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A ELITE DO CRIME:DISCURSO DE RESISTÊNCIA E LAXISMO PENAL

Daniel de Resende SalgadoProcurador da República, membro do Conselho Penitenciário do Estado de Goiás e coordenador do Grupo de Controle Externo da Atividade Policial no Ministério Público Federal em Goiás.

1 Introdução

2 Discurso de resistência a uma nova perspectiva (re) legitimadora

2.1 Técnicas de neutralização

2.2 Inadequação legislativa

2.3 Resistência dos aplicadores do direito

2.4 Disseminação monocular da doutrina liberal

3 Conclusões

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1 IntroduçãoEm 27 de dezembro de 1939, Edwin H. Sutherland, durante uma exposição perante a

Sociedade Americana de Sociologia, estabeleceu um conceito que, conquanto construído a partir de baldrames sociológicos, tornou-se referência no âmbito do estudo do delito: o white-collar crime1.

Ao apresentar as conclusões decorrentes de seus estudos, Sutherland identificou os white-collar crimes como aqueles delitos perpetrados por pessoas que possuem uma privilegiada posição social, desde que cometidos na esfera de suas atividades profissionais. Tal definição, conforme aduziu o próprio Sutherland, não objetivava estabelecer um conceito definitivo de criminalidade do colarinho branco, mas, especialmente, visava chamar atenção para uma cifra criminosa que não se encontrava, via de regra, em estatísticas2.

Apesar de críticas3 a Sutherland por propor uma definição ao white-collar crime com contornos subjetivos, centrada nas características dos agentes, não se pode negar que, a partir dos alicerces conceituais por ele cunhados, foram abertas novas perspectivas ao desenvolvimento dos estudos em torno da criminalidade, viabilizando, inclusive, uma reviravolta superadora dos preceitos estabelecidos pela primitiva sociologia/antropologia criminal. Aduz Cláudia Maria Cruz Santos:

Note-se que, de forma algo paradoxal, o surgimento do conceito de white-collar crime, embora radicado nas especificidades do agente da infração, veio contribuir decisivamente para o descrédito das tradicionais explicações de natureza individual, ao demonstrar que a actividade delituosa não é exclusiva de pessoas diferentes do cidadão comum. Ao chamar atenção para os crimes dos bem-sucedidos, não mais se pode identificar a delinquência com a “anormalidade”. E prejudicada fica também a crença de que só os mais desfavorecidos socialmente cometem infracções, pelo que a criminalidade deixa de poder ser explicada exclusivamente com base na pobreza e na desinserção social [...]. Com efeito, parece não haver melhor exemplo de que não é a diferença – física, psíquica ou económica – relativamente aos padrões normais que motiva o crime: os criminosos de white-collar são, inequivocamente, não só pessoas com uma boa situação económica e socialmente integradas, como sujeitos perfeitamente aptos, capazes quer do ponto de vista biológico quer intelectual e, por vezes, até com capacidades acima da média 4.Vislumbra-se, destarte, que as pesquisas de Sutherland conseguiram demonstrar que os

1 Há alguns antecedentes teóricos ao pensamento de Sutherland. Aristóteles, por exemplo, ao recusar o fato de a miséria ser a causadora de todas as infrações, afirmou que os crimes mais graves são causados pelo excesso e não pela necessidade, o que pode indicar possível reconhecimento da existência de uma criminalidade econômica. A preocupação com a moralização do mundo dos negócios, contudo, adquire relevância na teoria criminológica a partir do século XX. Bonger, teórico marxista do início do século XX, considerado por Braithwaite (Criminological theory and organizational crime. Justice Quarterly, v. 6, n. 3, sept. 1989) como uma das importantes referências no estudo da criminalidade do colarinho branco, ao proceder um exame comparativo entre as infrações penais e a estrutura econômica de diversos países, tendo em conta as classes sociais, conclui pela existência de categorias de “delinquência econômica burguesa”. Moris referiu-se, em 1935, aos criminals of the upperworld, caracterizados pela destreza em escaparem da persecução criminal. Entretanto, ao que parece, o white-collar crime somente atingiu a estatura de “celebridade” com Sutherland. Cf. SANTOS, Cláudia Maria Cruz. O crime de colarinho branco: da origem do conceito e sua relevância criminológica à questão da desigualdade na administração da justiça penal. Coimbra: Coimbra, 2001, p. 39-41.

2 Sutherland anotou que cerca de sessenta por cento das empresas americanas tiveram uma média de quatro acusações cada, número este que, em vários estados americanos, caso fosse relacionado a delinquentes comuns, seria passível de considerar seus autores como criminosos habituais. Cf. SUTHERLAND, Edwin H. White-collar crime. New York; Chicago; San Francisco; Toronto; London: Holt, Rinerhart and Winston, 1961, p. 25.

3 Taylor, Walton e Young (The new criminology: for a social theory of deviance. London: Routledge and Kegan Paul, 1973, p. 268-282) asseveram que Sutherland estava preocupado, apenas, em demonstrar “aquilo que via como desigual aplicação da lei no controle dos comportamentos” e não “em examinar as formas através das quais aquelas infrações eram (e são) funcionais em relação às sociedades industriais capitalistas em determinados pontos de seus desenvolvimentos”. Cf. SANTOS, O crime de colarinho branco, nota de rodapé da p. 42).

4 SANTOS, O crime de colarinho branco, p. 16 e 45.

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cidadãos economicamente mais abastados podem cometer, tanto quanto os comuns, infrações penais, não havendo, desse modo, motivos racionais de cunho político-criminal para que inexistisse um rígido controle penal sobre os delitos por aqueles cometidos.

Passados, entretanto, mais de setenta anos desde o início da “revolução copérnica” viabilizada por Sutherland, os elaboradores das leis e os seus aplicadores continuam, frequentemente, a conferir um tratamento favorecido e desigual ao delinquente econômico, se comparado ao criminoso comum.

Os escólios de Ela Wiecko Volkmer de Castilho são elucidativos:O controle jurídico-penal revela a contradição fundamental entre a igualdade formal dos sujeitos de direito e a desigualdade substancial dos indivíduos, que se manifesta nas probabilidades de alguém ser definido e controlado como desviado [...] o status conferido a certos indivíduos por parte daqueles que detêm o poder de criar e aplicar normas é distribuído desigualmente [...] a seleção é um fato inquestionável, tanto na criminalização primária como na secundária. Nesta última, os estudos evidenciam que a variável independente mais importante é a posição ocupada pelos indivíduos na escala social [...]5.

Na mesma esteira, ao traduzir nossa realidade, Antonio García-Pablos de Molina apregoa:

lo que se pretende denunciar con el concepto de delincuente de cuello blanco es algo más grave. Es la particular trascendencia social de los crímenes de los poderosos, en compareción con la criminalidad convencional, y la irritante impunidad de que, sin embargo, suelen disfrutar en nuestro tiempo6.

De fato. A percepção de a ação interventiva do direito penal só se voltar praticamente à proteção de bens jurídicos de cunho liberal-iluminista e, consequentemente, tentar neutralizar, de forma paliativa e seletiva, a conduta criminosa das massas, soma-se à generalização de um discurso de resistência ao reconhecimento em todas as esferas (legislativa, doutrinária e jurisprudencial) da integral tutela penal de bens jurídicos de relevância social, que carregam consigo a nota da supraindividualidade, atingidos, em sua maioria, por condutas dos representantes de uma delinquência economicamente graduada.

2 Discurso de resistência a uma nova perspectiva (re)legitimadora

O alicerce normativo, os conceitos básicos, o modo de produção e interpretação sobre os quais se encontram estruturados nosso direito penal são derivados, não se pode negar, de postulados unilaterais amoedados a partir das concepções de cunho individualista e patrimonialista, próprias do Estado Liberal7.

Contudo, somente tais postulados já não mais se adaptam aos riscos sociais gestados em nossa sociedade moderna. A indiscutível complexidade social leva a uma modernização da 5 CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de. O controle penal nos crimes contra o sistema financeiro nacional. Belo Horizonte:

Del Rey, 1998, p. 45-46.6 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Problemas actuales de la criminología. Madrid: Instituto de Criminología de la

Universidad Complutense de Madri, 1984, p. 179.7 Segundo Luiz Gracia Martin “a realização da utopia liberal burguesa tinha evoluído sob o manto do Estado de Direito

rumo a uma situação econômica e socialmente irracional. Essa era uma consequência da rígida separação da sociedade e do Estado em sistemas distintos e independentes postulada pela concepção liberal. [...] o Estado era entendido pela concepção liberal como outra organização racional distinta e independente, separada da sociedade, que não poderia intervir, mas que, ao contrário, deveria abster-se de intervir no jogo da ordenação natural daquela, e cujo fim, por conseguinte, deveria se limitar estritamente a garantir e assegurar a liberdade e o exercício dos direitos naturais individuais enquanto pressupostos e condições de existência e de funcionamento da ordem social natural” (MARTIN, Luiz Gracia. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do direito penal e para a crítica do discurso de resistência. Tradução de Érika Mendes de Carvalho. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2006, p. 144-145).

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criminalidade que, consequentemente, deveria conduzir a uma correspondente reação do Direito, por intermédio, em especial, de uma necessária modernização do direito penal. No dizer de Bernd Schünemann, ao apresentar obra de Luiz Gracia Martin:

O direito penal teria que reagir de modo equivalente à danosidade social frente às formas específicas desta que teriam se formado na sociedade industrial desenvolvida [...]. Enquanto um Direito Penal tradicional que situa o tipo de furto no centro de suas preocupações tem seu ponto nevrálgico na lesão da propriedade, um Direito Penal moderno tem que se preocupar com a utilização da propriedade que produz danos milionários sob determinadas circunstâncias (por exemplo, deve se preocupar mais e de modo mais intenso com a exploração de um petroleiro que satisfaz tão somente exigências de segurança obsoletas e que, por isso, hoje em dia está acarretando enormes riscos, que com o furto de uma lata de óleo para motores)8 e 9.

Entretanto, não é isso que se vê. Com efeito, em que pese ser incompatível a complexidade da realidade fática atual com os clássicos paradigmas liberais-iluministas trazidos pelo direito penal tradicional, parte significativa da produção normativa/doutrinária e jurisprudencial continua com suas luzes voltadas à tutela de conflitos de índole eminentemente individual, com forte influência, certamente, da teoria monista-individualista do bem jurídico, desenvolvida pelos representantes da Escola de Frankfurt10.

As palavras de Fábio Roque Sbardelotto caminham no mesmo sentido:

O Direito Penal vigente em nosso país [...] tem sido marcado por características que norteiam o interesse individual, reproduzindo uma ideologia de camadas sociais dominantes que, formalmente, sob os auspícios do Liberalismo, apregoam a igualdade entre todos os cidadãos, quando, em verdade, constitui-se em instrumento de manutenção do status quo, ou seja, da realidade jurídica e social construída sob a ótica do modelo de Estado Liberal. Neste prisma, o Direito Penal tem-se mantido vinculado a conceitos dogmáticos que não refletem, em suma, os novos ares de um Estado Democrático de Direito, implementado pela Constituição de 1988. Constitui-se, em essência e grande parte, em instrumento de tutela de bens jurídicos ainda vinculados à ideologia iluminista, onde, a pretexto de uma igualdade formal, tutelam-se interesses individuais díspares, sem qualquer compromisso com a implementação dos direitos sociais ainda não estabelecidos [...]”11.

Destarte, mesmo com o acolhimento constitucional de direitos sociais, coletivos e difusos, a partir de uma perspectiva do Estado Social e Democrático de Direito – fato este que legitimaria a necessária superação da análise do direito penal alicerçada em uma visão restritamente iluminista – não há a devida preocupação legislativa e, na maioria das vezes, jurisprudencial, tendente a robustecer a tutela de tais valores que, quando atingidos, enfraquecem o próprio Estado. Pelo contrário. Vislumbra-se um movimento de resistência ao fortalecimento da tutela de bens jurídicos 8 MARTIN, Prolegômenos, p. 10.9 O que assevera Schünemann não é nada mais do que aquilo que Lenio Streck já preconiza, conforme nos lembra

Luciano Feldens: “olhar o novo com os olhos do novo, isto é, adequar o Direito (penal) à alta complexidade da sociedade contemporânea, circunstância decorrente da profunda modificação assumida pelos fatos sociais – por conseguinte, dos fatos acoimados de criminosos – do final do século XX e início do século XXI, a implicar uma intensa reformulação das bases dogmáticas de produção do Direito Penal sobre as quais essa disciplina fazia-se (faz-se) assentada até então, isso sob pena de o Direito perder a sua referenciabilidade histórica como instrumento não apenas regulado por, mas regulador da realidade social a ele subjacente”. Cf. FELDENS, Luciano. Tutela penal de interesses difusos e crimes do colarinho branco: por uma relegitimação da atuação do Ministério Público. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 45 e 46.

10 A Escola de Frankfurt, tendo Hassemer o seu mais conhecido representante, perfilha um discurso do direito penal ultraliberal, de conteúdo mínimo.

11 SBARDELOTTO, Fábio Roque. Direito penal no Estado Democrático de Direito: perspectivas (re)legitimadoras. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 113.

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supraindividuais.

Agregam-se ao discurso de resistência várias circunstâncias. Antonio García-Pablos de Molina, por exemplo, refere-se a algumas delas, denominando-as: a) técnicas de neutralização; b) insuficiência (ou inadequação) de legislação material e processual; c) falta de vontade dos poderes públicos para prevenir, controlar e apenar tais práticas delitivas. Acrescento, ainda, a importação monocular e tendenciosa de algumas teses doutrinárias liberais provenientes do sistema penal alienígena. Vejamos.

2.1 Técnicas de neutralização

Antonio García-Pablos de Molina assevera que as técnicas de neutralização são estratégias dirigidas a ocultar, dissimular ou justificar, de forma sutil e sofisticada, os comportamentos delitivos, por meio da manipulação da imagem ou linguagem. São suas palavras:

Es interesante observar como precisamente en él ámbito económico y las finanzas se encuentran argumentos y lemas para propiciar una actitud pública de comprensión hacia el delincuente, degradando la trascedencia de su infracción, justificándola, desviando el interés colectivo hacia otros delitos “prioritários” y explotando su “buena imagen”. Es lo que sucede, por ejemplo, cuando se argumenta que el “supuesto crimen” es tan solo uma infracción “administrativa” o “fiscal”, pero no penal; una mera “irregularidad” formal; una conducta castigada por razones “circunstanciales”, cambiantes, pero no intrínsecamente mala12.

James William Coleman traduz o papel da mídia como ente fomentador de justificativas a práticas de delitos econômicos:

A influência das corporações sobre a mídia também ajuda a ocultar seus crimes da opinião pública. Isso não se deve apenas ao fato de jornais, rádios e televisões serem de propriedade de grandes empresas, mas também à dependência da mídia em relação às verbas dos anunciantes, necessárias para a sobrevivência financeira dos meios de comunicação [...] Crimes relativamente ‘nebulosos’, que envolvem poderosos interesses corporativos, como violações da lei antitruste, geralmente recebem atenção mínima da mídia, apesar das enormes perdas que podem causar13.

A título de exemplo, ao repercutir a condenação a uma pena de quase cem anos aplicada à empresária Eliana Tranchesi, dona da loja mais luxuosa da capital paulista, parte da imprensa procurou moldar os fatos, subestimando a gravidade dos delitos econômicos (ou ligados a eles) cometidos. Em um primeiro momento, a estratégia foi conferir maior relevo a bens jurídicos individuais, que causam ao público furor direto, em detrimento dos bens jurídicos coletivos, com o claro condão de minimizar este último. Foram convidados para tal tarefa alguns nomes respeitados no cenário jurídico. Ao comentar a condenação, assim se manifestou um deles:

“Isso é uma excrescência”, afirmou à ISTOÉ o jurista Hélio Bicudo, 86 anos, vice de Marta Suplicy na Prefeitura de São Paulo e com larga militância em defesa dos direitos humanos e dos perseguidos pelo regime militar. “O direito penal brasileiro está dando muito mais importância ao problema financeiro do que à vida. Isso é uma maneira de transformar o Estado democrático em totalitário”, diz Bicudo14.

12 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Problemas actuales de la criminología, p. 185.13 COLEMAN, James William. A elite do crime: para entender o crime do colarinho branco. Tradução de Denise R. Sales. 5.

ed. São Paulo: Manole, 2005, p. 289.14 JUSTIÇA ou exagero da justiça? ISTOÉ, edição n. 2055, de 1º abr. 2009.

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Seus argumentos se limitaram a desqualificar a sentença e, indiretamente, toda a magistratura federal, ao transmitir ao público leitor informações de veracidade questionável. Vejam:

Para o jurista Hélio Bicudo, na raiz da questão está o comportamento dos atuais juízes federais. Segun­do ele, o governo – e não apenas os tribunais – é responsável pela ascensão profissional dos magistra ­dos. “Se quiser fazer carreira com mais rapidez, o juiz terá de olhar o que está interessando mais a quem está no poder: maior arrecadação? Maior punição dos crimes tributários? Aplicação da lei de anistia aos que torturaram e mataram durante a ditadura?”, diz o advogado. “Para não perder receitas, o governo imprime penas cada vez maiores a sonegadores”15, reforça o jurista Ives Gandra Martins. “Esses juízes estão pensando no acesso à carreira que lhes é dado se eles assinarem suas decisões de acordo com os interesses do Estado”, critica Bicudo16.

E conclui a reportagem, ao conclamar a população a uma análise da sentença:

É justamente por isso que os brasileiros que desejam o fim da impunidade devem questionar a lógica pouco madura de que pena exemplar é a que mostra a musculatura da Justiça. Afinal, para que um exemplo seja eficiente ele precisa ser, antes de qualquer coisa, respeitado pela sua justeza, seu bom senso. As condenações ao exagero da sentença e a decretação da prisão da proprietária da Daslu, que não oferecia risco ao andamento do processo e está sob tratamento de uma metástase, podem, ao con­trário, comprometer o princípio de que todos são iguais perante a lei. No caso de Eliana, se fosse con­denada por crime hediondo, a pena teria sido menor17.

Pode-se notar que, deveras, o meio de comunicação se valeu de uma vertente das chamadas técnicas de neutralização, muito usadas pelo colarinho branco: fomentar e entranhar no seio social a noção de que os crimes econômicos não são males tão grandes ou que tais comportamentos criminosos são normais. E, pelo fato de a lesão e violência desses delitos não serem perceptíveis diretamente, como os seriam nos crimes de massa, tem-se a sensação de que é uma criminalidade menos danosa, portanto merecedora de penas menos graves. Criam, destarte, mecanismos psicológicos para aceitação da prática espúria. Luciano Feldens, entretanto, desconstrói tais imagens:

A título de exemplo, atente-se para o jargão clichê frequentemente utilizado nos fóruns e tribunais para afastar a aplicação da pena privativa de liberdade a crimes do “colarinho branco”, qual seja, o fato de que não seriam “crimes violentos”. Teses, teorias, exemplificações, paralelos, precedentes, enfim, tudo edificado a fazer crer tratar-se de uma criminalidade “diferente” (a significar: criminalidade menos danosa), portanto a merecer sanções “diferentes” (a significar: sanções menos gravosas). Ofende à lógica. Atente-se: acaso desejasse apropriar-se do patrimônio alheio, de que forma o empresário faria? E de que forma procederia um cidadão humilde, que o mesmo objetivasse? Nesse exercício indagamos: imaginar-se-ia, por exemplo, um empresário abandonando a sua mesa de negócios, confortavelmente situado em um asséptico escritório climatizado, postando-se em uma fila de ônibus para, nele penetrando, subtrair, sorrateiramente, a carteira (o patrimônio) de outro particular? E cogitar-se-ia, do contrário, ou seja: que um cidadão qualquer, desprovido de emprego e renda, tomasse a mesa, o escritório e o posto do empresário, e assim passasse a empreender operações financeiras ilegais, como, por exemplo, evasão de divisas? Quer-se dizer, a par da imponderabilidade emergente da ilustração: guardados os meios, é nítido o paralelismo das duas situações acima ventiladas, com a observação de que os crimes do “colarinho branco”, como vimos de ver, se fazem assaz mais gravosos à coletividade que um simples delito de furto ou mesmo algumas hipóteses de roubo. Pois o que se pretende colocar é exatamente isso: a maneira de o “colarinho

15 Veremos que, pelo menos na seara criminal, tal afirmação não é verdadeira.16 Reportagem mencionada. 17 Idem.

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branco” delinqüir não é outra senão aquela. Por igual, a delinqüência patrimonial do pobre não se afasta, por demais, da situação narrada. Eis o problema: se não reconhecermos a danosidade da conduta delituosa por seus efeitos, mas pela espécie delitiva praticada, estaremos, ao mesmo tempo, selecionando os réus para os quais infligiremos ou os rigores da lei ou os seus benefícios. Reside, nesta consideração, importante aspecto fomentador da desigualdade18.

James William Coleman é ainda mais cirúrgico:

Muitos podem desconfiar das motivações que movem funcionários do governo e das grandes corporações, mas poucas pessoas encaram os executivos como criminosos violentos. Extremamente trabalhadores, competitivos e bem-sucedidos, esses homens e essas mulheres representam aspirações e os ideais da classe média e parecem estar anos-luz da violência e desordem das ruas das grandes cidades. No entanto, as diferenças entre os criminosos da alta sociedade e seus colegas do submundo são mais uma questão de forma do que de conteúdo. Um jovem assaltante que acidentalmente mata o caixa de uma loja mostra a mesma indiferença pela vida humana que o engenheiro que falsifica os resultados dos testes para abafar uma falha no sistema de freios de um automóvel que pode levar à morte. A distância entre o engenheiro e sua vítima permite que ele se dê ao luxo de fingir que ninguém será ferido em conseqüência de seus crimes quando, na verdade, os danos são bastante reais19.

Deveras. Justamente pelo fato de a criminalidade econômica representar uma soma de lesividade material e imaterial, sua gravidade é extremamente acentuada. Os efeitos causados pelos delitos econômicos, conforme aduzido por Manoel Pedro Pimentel, “transcendem dos prejuízos impostos às vítimas dos casos concretos, pois denunciam a presença de um perigo social e moral capaz de atingir todos”20. Destarte, deveriam ser reprimidos com vigor. Contudo, infelizmente, essa não é a regra.

2.2 Inadequação legislativa

A discrepância com que nossa legislação penal trata os delitos de inspiração liberal, se comparável a outros crimes de concepção social, impressiona. É fato que nossas leis penais não se ajustaram à proteção dos novos valores sociais, coletivos e difusos erigidos por nossa Carta Política, extremamente caros à sociedade brasileira. Ao contrário. O que se nota é um movimento legislativo trilhando um caminho oposto. Os escólios de Luciano Feldens são agudos:

[...] quando esboçava uma ação no sentido criminalizante (vg., Lei 8.137/90, que define os crimes contra ordem tributária), não tardou a reação tendente a neutralizá-la, o que de resto já era de se esperar, porquanto atingiu-se potencialmente uma distinta e favorecida camada social. Primeiro, produziu-se uma regra, na própria lei, que lhe conferiria uma espécie de eficácia condicionada: a revogada (art. 14 da Lei 8.137/90) porém repristinada (artigo 34 da Lei 9.249/95) norma que previa/prevê a extinção da punibilidade do sonegador pelo pagamento do tributo. Ao depois, surgiram as (novas) penas alternativas para – objetiva e pragmaticamente – contemplar a totalidade dos crimes do “colarinho branco” (Lei 9.714/98)21.

Há uma miríade de exemplos de inadequação legal e de incompatibilidade lógica de tratamento normativo entre o criminoso comum e o graduado. Menciono apenas um, também cunhado por Feldens:

18 FELDENS, Tutela penal, nota de rodapé das páginas 156 e157.19 COLEMAN, A elite do crime, p. 117 e 118.20 PIMENTEL, Manoel Pedro. Direito penal econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 5 e 6.21 FELDENS, Tutela penal, p. 57 e 58.

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Na hierarquia estrutural do sistema de tipos e sanções penais que corporifica nosso Código Penal, se “a” e “b” (ou Caio e Tício, para prestar vassalagem aos manuais) trombarem contra a vítima “c” (Mévio, certamente), tomando-lhe alguns trocados (artigo 157, § 2º, II, do CP), receberão uma pena mínima (5 anos e 4 meses de reclusão) equivalente ao dobro daquela que seria cabível para a mais estrondosa das sonegações fiscais (2 anos e 8 meses de reclusão, a teor do artigo 1º da Lei 8.137/90, com a majorante do artigo 12, I, da mesma lei)22.

Dúvidas não há, por exemplo, de que a sonegação de tributos afronta objetivos do texto constitucional, ao subtrair do Estado recursos que, se destinados à implementação de valores sociais (como educação, saúde, saneamento etc.), viabilizariam melhorias de condições de vida digna à população. Lenio Streck, mencionado por Fabio Roque Sbardelotto, apresenta surpreendentes informações:

Lenio Luiz Streck, citando reportagem de Elio Gaspari, intitulada Santa Sonegação, publicada no jornal Zero Hora de 20.06.99, p. 05, refere que “informes oficiais sinalizam que as 460 pessoas mais ricas do Brasil detêm, juntas, um patrimônio de 26,7 bilhões de dólares, mais que a soma dos PIBs de Uruguai, Paraguai e Bolívia. Ou 6% do PIB brasileiro. Selecionando-se os 50 mais ricos deste grupo, descobre-se que seus patrimônios somam 12 bilhões de dólares. Sabem quanto estes 50 ricos pagam de imposto de renda? Apenas 32,5 milhões de dólares. Dados da Receita dão conta de que, enquanto a classe média paga 1 real de imposto para cada 10 reais de patrimônio, o clube dos 460 recolhe somente 1 real para cada 821 [...] E então? O que dizer sobre isso? O que dizer sobre a descoberta feita no âmbito da CPI do Congresso Nacional de que a sonegação de impostos chega ao montante de 82 bilhões de dólares? [...]”. Ressalta [Lenio Streck] que não se pode conceber um conceito de violência de maneira metafísico-objetificante, conforme aceito pela doutrina tradicional [violência stricto sensu!]. Amplia a concepção para inseri-la em um conceito de relação social, que abarca também “a violência simbólica, a violência reflexa, a violência social, a violência da omissão, a violência da exclusão social, e assim por diante”23.

Mesmo luzente a gravidade que permeia tais condutas, a leniência legislativa é assombrosa. Vislumbra-se uma política reducionista, de clara aproximação das sanções penais às sanções cíveis. Em resumo: um típico processo de despenalização e descriminalização, sob o manto de uma propalada civilização do direito penal. Entretanto, o que mais chama atenção é que a maior parte desse “processo civilizatório” beneficia, como não poderia deixar de ser, o colarinho branco. Evaristo de Moraes Filho, de forma perspicaz, chama atenção para tal fato:

É uma curiosa coincidência que esse movimento da intervenção mínima tenha ganho (sic) incremento exatamente na fase em que o Direito Penal está se democratizando, exatamente na fase em que o Direito Penal está deixando de alcançar tão-somente aqueles delinqüentes etiquetados seletivamente, que constituem a clientela tradicional do sistema repressivo. Na hora em que o Direito Penal começa a se voltar contra uma outra clientela, a que pratica crimes contra a ordem econômica e contra a economia popular, fala-se em descriminalização, despenalização, desjudicialização24.

A leniência legislativa pode ser explicada, também, pelo poder de disposição e o controle quase absoluto que as camadas sociais mais abastadas possuem sobre o princípio da legalidade penal, desde sua invenção pelo ideário liberal. Interessante, sobre tal aspecto, a colocação de Luiz Gracia Martin:

22 FELDENS, Tutela penal, p. 58.23 SBARDELOTTO, Direito penal, nota de rodapé da p. 138.24 Apud FELDENS, Tutela penal, p. 47.

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[...] do ponto de vista histórico-material, a modernização do Direito penal deve ser entendida antes de mais nada como uma luta pelo discurso material de criminalidade, que deve ser vislumbrada no sentido de conquistar a integração, nesse discurso, de toda a criminalidade material própria das classes poderosas que estas mesmas classes conseguiram manter excluída daquele discurso graças ao domínio absoluto que exerceram sempre sobre o princípio da legalidade penal desde a sua invenção como um instrumento formal que inclui, mas que ao mesmo tempo, e sobretudo – o que é muito mais importante – também exclui comportamentos criminosos no sentido material do discurso de criminalização25.

No âmbito do processo penal, a resistência ao fortalecimento legislativo da utilização de instrumentos modernos de persecução criminal, tudo sob os auspícios de uma decidida defesa de perspectivas meramente individualistas, também impera. Com efeito, a partir de tendenciosas críticas, alicerçadas na possível conversão do processo penal em “um mecanismo de polícia em um Estado de segurança”, é moldada toda resistência à adequação de meios investigativos às modernas formas de criminalidade, dentre elas a delinquência econômica.

A gestação de restrições legais ao leque de legitimados a procederem a diligências investigatórias, ao tempo em que procuram manter intactos anacrônicos instrumentos de investigação26; a nascente obstrução legal às interceptações das comunicações, a partir da propagação de mitos, como o do “estado policial”, escondem uma característica denominada por Bernd Schünemann de “política de interesses encobertos”. Tal fenômeno, não apenas predominante na produção legislativa, é descrito pelo autor alemão como situações em que os argumentos que motivam a produção normativa ou doutrinária não são formulados, apenas, em razão da persecução da verdade ou da justiça, mas visam a alcançar outras finalidades: “no solo son utilizados de modo instrumental, sino que son ya concebidos como instrumentos”. Os riscos desse processo são explicitados pelo próprio Schünemann:

Este riesgo, finalmente, es enorme en el tercer nivel, cuando hay una verdadera producción artificiosa de “opiniones dominantes”, o ello al menos se intenta realizando una especie de estrategia científica de influir a la opinión pública mediante las publicaciones de simpatizantes ideológicos o de autores de dictámenes. Esto sucedió en Alemania a medidados de los años ochenta en el ya mencionado caso de las donaciones a partidos políticos, en el que se intentó por todos los medios encubrir la clara realización del tipo delito fiscal que hecho concurría [...] Más explícita es esta persecución de intereses bajo el ropaje de la ciencia en el campo de los acuerdos en el marco del proceso penal: un pequeño grupo de penalistas prácticos, actuando en connivencia con los colegios profesionales, que están muy interesados en la práctica de los acuerdos, ha intentado cohonestar en sus escritos una

25 MARTIN, Prolegômenos, p. 115.26 Para se ter uma ideia, segundo estatísticas elaboradas pela coordenação do Núcleo Criminal do Ministério Público

Federal em Goiás, do dia 1º janeiro de 2009 a 8 de junho de 2009, os procuradores da República daquele Estado promoveram o arquivamento de 926 inquéritos policiais, ao passo que, no mesmo período, alicerçados em inquéritos policiais, ofereceram 89 denúncias (jornal O Popular, de 13 jun. 2009). Uma das conclusões: os instrumentos e métodos investigativos anacrônicos, apropriados, talvez, para viabilizar investigações da criminalidade de rua, são, sozinhos, inadequados para se alcançar a criminalidade moderna.

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inversión de los principios centrales del proceso penal alemán que frecuentemente es criminal27.

No século XVIII, Beccaria já havia percebido tal deformação legislativa:

Percorrendo a história, veremos que as leis, que deveriam ser convenções feitas livremente entre homens livres, não foram, na maioria das vezes, mais que instrumento de paixões da minoria, ou o produto do acaso e do momento, e, nunca, a obra de um prudente observador da natureza humana, que tenha sabido dirigir todas as ações da sociedade com este único fim: todo o bem-estar possível para a maioria28.

Dessa forma, essa política benéfica que alcança, em especial, a delinquência econômica, acoberta o insatisfatório papel de garantidor de privilégios a uma classe específica e o de mantenedor do status quo que o sistema penal vem sendo levado, historicamente, a se prestar. Em resumo: o legislador continua a utilizar a criação normativa penal como apanágio de uma desigualdade substancial histórica. Luiz Gracia Martin assevera:

[...] o resultado alcançado com a análise da ordem do discurso penal liberal em uma perspectiva histórico-material, seguindo o ditame da vontade de verdade ou de saber, conduz, antes de tudo, a uma negação da tese absolutamente majoritária de que o substancial do Direito penal liberal seja constituído por um dispositivo de garantias. Pelo contrário, aqui se afirma já com valor de uma tese que o substancial do Direito penal liberal está constituído por uma ordem formal de criminalidade cuja característica principal é a definição e inclusão no discurso de criminalidade da quase totalidade do sistema de ação social das classes sociais subordinadas e privadas do poder econômico e, ao mesmo tempo, a exclusão desse discurso da criminalidade de quase todo o sistema de ação material criminal das classes sociais com poder econômico. “Nessas condições” – escreve documentadamente Foucault – “seria hipócrita ou ingênuo acreditar que a lei foi feita para todo o mundo em nome de todo o mundo; é mais prudente reconhecer que foi feita para alguns e que recai sobre outros; que em princípio obriga a todos os cidadãos, mas que se dirige principalmente às classes mais numerosas e menos ilustradas”29 e 30.

Por meio de subterfúgios e a pretexto de uma igualdade apenas formal inspirada no Estado liberal, a produção legislativa caminha contra o verdadeiro desiderato do próprio direito penal, que precisa se constituir em um instrumento de transformação no Estado democrático de direito. Urge, destarte, uma mudança de perspectiva.

2.3 Resistência dos aplicadores do direito

A mudança da cultura legislativa não é, sozinha, capaz de remodelar o sistema penal. Mister um giro hermenêutico, partindo, como assevera Luiz Gracia Martin, da superação de um discurso penal liberal para expandir sua atuação à dimensão social das relações de convivência31.

27 SCHÜNEMANN, Bernd. Cuestiones básicas del derecho penal en los umbrales del tercer milenio. Tradução de Jesús-María Silva Sánchez, Manuel Cancio Meliá, Mariana Sacher, Silvina Bacigalupo y Gonzalo Rodríguez Mourullo. Lima: Idensa, 2006, p. 133.

28 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Flório de Angelis. São Paulo: Edipro, 1999, p. 13-14.29 MARTIN, Prolegômenos, p. 128-129.30 Lenio Steck vai no mesmo sentido: “Está na hora de o nosso legislador retirar a máscara! Historicamente tem feito leis

para proteger os interesses das camadas que dominam as relações sociais [...]. Na divisão dos tipos penais, basta ver como o legislador penal tem tratado os delitos contra a vida e integridade corporal e os delitos contra o patrimônio [...]. E quando se trata de punir os delitos cometidos exclusivamente pelas camadas médio-superiores, cria-se uma série de favores legais, que vão desde a extinção da punibilidade pelo ressarcimento do prejuízo ao erário, até a discrepância que existe entre as penas desses delitos e dos delitos cometidos pela patuléia” (apud SBARDELOTTO, Direito penal, 2001, p. 152).

31 MARTIN, Prolegômenos, p. 19.

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Com efeito, não há dúvidas de que a atuação da criminalidade graduada tem contribuído para a corrosão dos alicerces do Estado e para a inviabilização da execução dos anseios sociais inseridos na Carta Política nacional. Por outro lado, ainda que alguns fatos delitivos realizados no contexto econômico tenham natureza dogmática correspondente a alguns tipos tradicionais, a complexidade de seu modus operandi32 requer, por conseguinte, a evolução na capacidade de lidar com essa complexidade, por intermédio, outrossim, de uma adequação hermenêutica apta a captar as perspicácias e sutilezas inerentes a essa atividade criminosa.

Essa mudança de perspectiva hermenêutica, entretanto, esbarra no apego exagerado a uma interpretação liberal, não condizente com uma nova concepção de direito que emerge a partir de um Estado de Justiça Social33. Nesse diapasão, os mecanismos processuais, no âmbito da criminalidade econômica, ainda são interpretados sob a ótica (liberal) das consequências pessoais que o delinquente ou seus negócios poderão sofrer. Da mesma forma, técnicas especiais de investigação, necessárias ao cabal acesso a elementos que formariam o quadro probatório de infrações penais identificadas com a delinquência econômica (v.g., sonegação fiscal, evasão de divisas, lavagem de dinheiro etc.), são taxadas de invasivas, excessivas ou imorais e, consequentemente, objetos de restrição, especialmente pelos Tribunais Superiores.

Soma-se a isso o fato de, com frequência, se verificar uma tendência a considerar menos graves os delitos negociais ou profissionais cometidos por aqueles que frequentam os mesmos colégios, pertencem às mesmas igrejas e partilham da mesma vizinhança, eventos culturais, praias e hotéis dos responsáveis por julgá-los. Luciano Feldens é contundente:

[...] via de regra, os delinqüentes do “colarinho branco”, ao contrário dos delinquentes de rua, participam dos mesmos locus sociais de lazer e entretenimento daqueles que haverão de processá-los e julgá-los pelas práticas de seus crimes (os operadores jurídicos), circunstância a contribuir, per si, para que não sejam estigmatizados como autênticos delinqüentes que são [...]. Essas aproximações teóricas acima alinhavadas bem dão conta sobre a forma sutil como a ilicitude – a conduta delituosa – do criminoso do “colarinho branco”, assumindo ares de brandura, acaba se instalando na consciência do operador do Direito, que assim passa a considerá-la, se não como comportamento modelar, como uma mera adversão legislativa, de resto não desejável, mas cuja invisibilidade física e imediata do dado dela decorrente o proíbe intimamente de compará-la a crimes graves, tal como outros que ele assim considera em face das tradições que informam o seu horizonte de sentido [...]. Daí por que uma diferenciação de tratamento é praticada de forma quase “natural”. Na intenção de fundamentá-la, entretanto, acaba-se por produzir um discurso retórico de absoluta esterilidade teórica [...]34 e 35.

32 Bernd Schünemann, ao tratar da criminalidade de empresa, demonstra a sua complexidade: “Como consecuencia del principio de descentralización, característico en la organización de la empresa moderna, y la transformación de la función de poder y de decisión de las altas instancias, por él condicionada, la ‘organización de la responsabilidad’ – por decirlo con una expresión tópica – amenaza con convertirse en la ‘organizada irresponsabilidad’, lo que desde un punto de vista jurídico-penal se expresa a través de un cambio de la imputación del hecho hacia abajo, si no hacia los miembros de la organización que están más bajo, ya que solo ellos llevan a cabo por sí mismos la actuación tipificada en el supuesto de hecho penal o administrativo” (SCHÜNEMANN, Bernd. Delincuencia empresarial: cuestiones dogmáticas y de política criminal. Tradução de Beatríz Spínola Tártalo y Margarita Valle Mariscal de Gante. 1. ed. Buenos Aires: Fabián J. Di Plácito, 2004, p. 25).

33 Segundo Luiz Gracia Martin “o conceito de Estado social surgiu assim como a invenção histórica de uma fórmula para corrigir aqueles desequilíbrios profundos que acarretava o livre jogo das forças sociais postulado – e realmente posto em prática – pela concepção liberal da sociedade como um sistema completamente separado do Estado” (MARTIN, Prolegômenos, p. 145).

34 FELDENS, Tutela penal, p. 156-157.35 Coleman é incisivo: “As sentenças também apontam para um favoritismo dos transgressores do colarinho branco. Um

fator importante é a posição social mais elevada desses transgressores quando comparados com outros réus. Justamente por isso, eles conseguem se identificar mais com os valores dos próprios juízes e são considerados membros respeitáveis da comunidade” (A elite do crime, p. 117-118).

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A confirmar tais conclusões, destaco o seguinte trecho da decisão do ministro Carlos Velloso ao, liminarmente, em 20.10.2005, nos autos do Habeas Corpus n. 86.864-9/SP, determinar a soltura de Flávio e Paulo Maluf, flexibilizando, em favor dos pacientes, o enunciado de Súmula n. 69136 do STF:

Registre-se que o paciente e seu pai estão presos numa mesma cela. Os que somos pais podemos avaliar a intensidade do sofrimento de ambos. Noticiam os jornais, também, que o pai do paciente, o Sr. Paulo Maluf, está adoentado, necessitando de tratamento médico, tratamento médico esse que, na prisão, há de ser deficiente. Estivesse condenado, deveria sujeitar-se, evidentemente, à prisão com as deficiências desta. Mas não seria preciso dizer que condenação, no caso, não existe. O que existe é prisão cautelar, por conveniência da instrução criminal37.

Indubitavelmente, a esterilidade teórica mencionada por Feldens conduz àquilo que Volney Corrêa Leite de Moraes Jr. e Ricardo Dip chamam de laxismo38 penal39. Tal propensão, impregnada de uma retórica vazia e simbolista e convolada, com alguma frequência, em braço doutrinário tendencioso e de baixos interesses, traduz disposição em propor solução absolutória/extintiva da punibilidade quando as evidências do processo apontem direção oposta ou reprimenda simbólica e benevolente, desproporcional à gravidade do delito, às circunstâncias do fato ou à periculosidade do agente. No dizer dos autores:

o laxismo bem pensante metamorfoseia-se, a olhos vistos, no corpo sapiencial, na assessoria doutrinária, no braço intelectual do crime organizado [...]40.

Como exemplo de generalizada impregnação do discurso laxista, destaco a interpretação

36 Reza o enunciado: “Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a Tribunal Superior indefere liminar”.

37 Note que o ministro, igualando-se aos pacientes, chega a, piedosamente, se colocar na posição dos encarcerados. Heleno Fragoso já alertava: “os ricos livram-se facilmente (da prisão), contratando bons advogados [...]. Quando, em situações excepcionais, isso (a prisão) vem a suce­der, logo ficam doentes e são transferidos para os hospitais” (FRAGOSO, Heleno Cláudio. Ciência e experiência do direito penal. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro: Forense, n. 26, 1979, p. 15). Com Paulo Maluf, hoje deputado federal, não foi diferente. Após sua soltura, passou a es­banjar a saúde de uma criança. Chegou a ser visto degustando pastéis e bebendo cerveja em Campos do Jordão, conforme notificou o jornal O GLOBO, de 20 nov. 2005: “Maluf: Recuperação-relâmpago: SÃO PAULO. Doze dias depois de sair da prisão graças a uma decisão do Supremo Tri­bunal Federal considerando frágil seu estado de saúde e alegando motivos humanitários para li­bertá-lo, o ex-prefeito paulistano Paulo Maluf teve um dia de lazer ontem em Campos do Jordão, a 167 quilômetros de São Paulo. Bebeu cerveja, comeu pastéis e se mostrou descontraído e bem-humorado [...]. Ontem, Maluf esteve na pastelaria Pastelão 46, que fica no bairro Capivari. Al­moçou e, segundo a balconista que o atendeu, o ex-prefeito pediu um pastel de carne com ovo (R$ 6) e bebeu uma latinha de cerveja (R$ 3). De acordo com a funcionária, Maluf deixou uma gorjeta de R$ 11. O ex-prefeito reclamou muito, durante o período em que ficou preso, de dores no estômago. Maluf chegou a deixar a custódia da PF para fazer exames no Hospital das Clínicas em função de dores estomacais. Segundo o médico gastroenterologista, Sérgio Nahas, que aten­deu Maluf quando ele ainda estava preso, o ex-prefeito tem gastrite”.

38 Na teologia moral, é a tendência a fugir ao dever e à lei, com base em razões pouco ou mal fundamentadas.39 MORAES JÚNIOR, Volney Correa Leite de; DIP, Ricardo Henry Marques. Crime e castigo: reflexões politicamente

incorretas. Campinas: Millennium, 2002, p. 2.40 MORAES JÚNIOR; DIP, Crime e castigo, p. 7.

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conferida pelos tribunais à disposição prevista no artigo 9º, § 2º, da Lei n. 10.684/2003, que reconhecia a extinção da punibilidade dos delitos tributários em caso de pagamento integral do montante devido (a qualquer momento, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória!). Douglas Fischer assevera:

Atualmente, o entendimento consolidado no âmbito dos tribunais é que, como a regra em comento não traz nenhum marco para sua incidência, o pagamento se pode dar a qualquer tempo [...] Além disso, sua incidência não está restrita àquelas pessoas que sejam integrantes, no âmbito administrativo, de eventual parcelamento consoante preconizado na cabeça do artigo. Sua incidência é geral e irrestrita, caracterizada como lex mitior41.

O colarinho branco é condenado por crime tributário e, enquanto não transitar em julgado da sentença condenatória, passa a ter, na prática, a liberdade de escolher entre cumprir a pena ou pagar o tributo. Tal fato acaba por debilitar os efeitos da prevenção geral positiva do direito penal. Destarte, após análise do custo-benefício, o delinquente passa a verificar que a prática do crime compensa, uma vez que, se descoberto, se livrará da sanção, desde que promova a restituição à indigitada vítima. Ora, uma pessoa numa situação apropriada à prática de um delito integrará o comportamento criminoso se, e apenas se, o peso das definições favoráveis exceder o peso das definições não favoráveis. No mesmo sentido, Bernd Schünemann, mutatis mutandis, assevera:

Además, confiando en el principio de que la sanción debe comunicar la reprobabilidad moral de la conducta, los efectos preventivos de prevención general positiva son amenazados cuando la única consecuencia es la compensación económica [...] Si alguien, por ejemplo, planea y lleva a cabo un insidioso fraude transfiriendo la ganancia a las Bahamas, asegurándola así contra la responsabilidad civil, demuestra a través de tal considerable intención criminal que merece una pena especialmente severa. Si devuelve el dinero y lo usa para compensar a la víctima del fraude, la expiación contrapesa la intención criminal intensificada pero no justifica la exención de la pena. Esta noción puede ser ilustrada apuntando al simple cálculo de lo que el ofensor podría, por otra parte, hacer antes de cometer el delito: “O mi delito permanece no detectado, en cuyo caso el dinero está por siempre seguro en las Bahamas, o seré condenado, y entences tendré que devolver el dinero y restaurárselo a la víctima – así yo puedo quedar libre de pena – así, ¡es perfectamente racional al menos intentar la estafa!”42.

Se não bastasse, nota-se a disseminação maliciosa de supostos argumentos de proteção a direitos fundamentais individuais, a refletir, na realidade, uma opção política, e não a pretensa neutralidade científica. Tal fenômeno traduz, na seara decisória, a já mencionada “política de interesses encobertos”. Marcelo Cunha de Araújo é veemente:

a resposta a qual direito fundamental deve prevalecer acaba por dizer mais sobre o interlocutor (ou dos interesses de seu cliente) do que sobre uma inalcançável essência do objeto. Destarte, entende-se a errônea solução oriunda da colisão abstrata de princípios constitucionais ao se prevalecer, via de regra, o direito fundamental individual (por exemplo, de intimidade, de privacidade etc) ao direito fundamental coletivo (por exemplo, uma investigação criminal por lavagem de dinheiro, corrupção etc), o que é ininteligível ao leigo e também ao jurista crítico [...]43.

41 FISCHER, Douglas. Delinquência econômica e estado social e democrático de direito. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006, p. 191.

42 SCHÜNEMANN, Bernd; ALBRECHT, Peter-Alexis; PRITTWITZ, Cornelius; FLETCHER, George. La víctima en el sistema penal: dogmática, proceso y política criminal. Tradução de Luis Miguel Reyna Alfaro. Lima: Grijley, 2006, p. 34 e 35.

43 ARAÚJO, Marcelo Cunha de. Fundamentos filosóficos do sistema penal como embasadores da aplicação coercitiva diferenciada calcada num direito penal do autor. Revista dos Tribunais, ano 97, n. 874, p. 433-434, ago. 2008.

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2.4 Disseminação monocular da doutrina liberal

O discurso de resistência, por fim, está ligado à disseminação unilateral, reacionária e arbitrária de doutrinas que sustentam, unicamente, a legitimidade de um sistema penal com base em um discurso ultraliberal, fazendo, contudo, uso omissivo de contraposições a tal modelo.

Com efeito, alicerçados no individualismo monista da escola de Frankfurt, autores preceituam não existir legitimidade em um direito penal que vise à tutela de bens ou interesses capazes de extrapolar o círculo eminentemente individual. A tutela de bens jurídicos coletivos remanescentes, por seu turno, somente seria admissível se condicionada a serviço de algum bem jurídico individual.

Hassemer, uma das referências dessa escola, defende não sejam qualificados como injustos penais condutas lesivas a objetividades jurídicas difusas, valores que, caso tutelados por essa seara do direito, o levaria a fugir da tradicional esfera autor-vítima a qual deveria estar sempre vinculado44.

Entretanto, esse predomínio do discurso doutrinário liberal da criminalidade esconde a resistência ao necessário desenvolvimento de um direito/processo penal em conformidade com o sistema material de garantias políticas do Estado Social e Democrático de Direito. Como consequência, fomenta a manutenção de um direito/processo penal que exclui do discurso de criminalidade quase todo o sistema de ação materialmente criminosa das classes sociais mais abastadas.

Ora, importante reiterar que o crime não mais representa aquela hipótese atávica retratada por meio de uma relação jurídica interindividual em que Caio, por exemplo, subtrai bens de Mévio. Os conflitos, na atualidade, afligem objetividades jurídicas difusas. Basta verificar a existência dos grandes escândalos financeiros, da lavagem de dinheiro, da corrupção corrosiva. Se a função básica do direito penal é a defesa social, conforme já apregoaram Aníbal Bruno45, Heleno Fragoso46 e, no exterior, Bernd Schünemann47, deveria, então, adequar-se aos riscos gestados pela complexidade da sociedade moderna, adaptando-se às mudanças da realidade fática, como já alhures mencionado.

Destarte, as regras doutrinárias tradicionais referentes às liberdades do cidadão, às necessidades de investigação e a intervenção da administração da justiça precisam ser, outrossim, revistas em face dessa alteração dos conflitos sociais. Os escólios de Bernd Schünemann, ao comentar a concepção individualista predominante na doutrina dos autores da escola de Frankfurt, é nesse sentido:

Por tanto, la postura según la cual ha de mantenerse férreamente la ponderación de intereses fijada originalmente en el Código de Procedimiento penal del Reich, es decir, que busca lo “indisponible en

44 HASSEMER, Winfried. Direito penal libertário. Tradução de Regina Greve. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 227-232.45 “O fim do direito penal é, portanto, a defesa da sociedade, pela proteção de bens jurídicos fundamentais” ( BRUNO,

Aníbal. Direito penal: parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, t. 1, p. 28).46 “A função básica do Direito Penal é a defesa social. Ela se realiza através da chamada tutela jurídica: mecanismo com o

qual se ameaça com uma sanção jurídica [no caso, a pena criminal] a transgressão de um preceito, formulado para evitar dano ou perigo a um valor da vida social [bem jurídico]” (FRAGOSO, Heleno. Lições de direito penal: parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 4).

47 “La sustancia original del Derecho penal en cuanto legitima defensa social deriva la necesidad de formas de reación adecuadas a la realidad” (SCHÜNEMANN, Cuestiones básicas, p. 115).

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el proceso penal” de modo similar a la teoría personal del bien jurídico en el siglo XIX, tiene consecuencias nefastas porque no sólo dificulta y en parte imposibilita una persecución penal efectiva de las modernas formas de criminalidad, sino porque también destruye simultáneamente la legitimidad de la persecución penal también de la “criminalidad clásica”. Pues ¿cómo va a justificarse la ulterior persecución intensa de la criminalidad aventurera y de miseria, si se cierran los ojos frente a las necesidades de la persecución efectiva de la criminalidad organizada moderna, generando de este modo una presión desigual en la persecución, en perjuicio de aquellas formas de criminalidad que en el fondo son menos graves? [...] Sobre todo, habrá que definir el ámbito de la criminalidad organizada de modo más amplio a lo que suele hacerse en la actualidad, y ello también desde el punto de vista teórico, puesto que deben incluirse en ella tanto la criminalidad empresarial como los sistemas de corrupción48.

Por tudo isso, no mínimo questionável a construção dogmática e de política-criminal que remeta seus fundamentos aos postulados unilaterais oriundos do Estado liberal de Direito, mormente quando a experiência histórica, a partir das construções liberais, revelou uma vigência meramente formal das liberdades individuais à grande maioria das pessoas, em especial os desvalidos. São conclusivas as colocações de Luiz Gracia Martin:

É evidente que hoje a teoria do Estado que deve figurar como referente do sistema jurídico em geral, e do penal em particular, não pode ser de modo algum a do Estado liberal de Direito, mas só – necessária e obrigatoriamente – como ensinou e devemos agradecer a Mir Puig, a teoria do “Estado social e democrático de Direito”49.

Isso não quer dizer que a ora sugerida releitura do sistema penal é contrária às garantias penais do Estado de Direito. Pelo contrário. As garantias não só permanecem intactas, mas, por enxertá-las de conteúdo de justiça material, são superiores às conferidas no Estado Liberal. Luiz Gracia Martin é contundente:

[...] com o conceito de Estado social nunca se pretendeu nada distinto senão adaptar – e de modo algum eliminar – o Estado de direito tradicional às exigências da sociedade industrial e pós-industrial em razão da incapacidade do Estado liberal para fazer frente às mesmas e para uma realização material efetiva de seus postulados formais [...] No Estado social de Direito, as garantias só podem ser derivadas e compreendidas a partir de princípios normativos, mas de base necessariamente ontológica, cheios de conteúdos materiais de igualdade e justiça social, e em absoluto são meras formas liberais que, até agora, funcionaram materialmente só e exclusivamente a serviço da definição, classificação, disciplina e repressão do comportamento desviado de classes sociais economicamente despossuídas e, por isso, politicamente dominadas e subjugadas, e a serviço, ao mesmo tempo, da exclusão do discurso da criminalidade da quase totalidade da criminalidade material das classes sociais poderosas e, com isso, por acréscimo, a serviço da expansão dos espaços de liberdade e de riqueza abundantes e superabundantes que as mesmas se apropriaram para estabelecer o próprio marco de desenvolvimento de uma existência vital e social como a que, sem dúvida, merece ter todo e qualquer ser humano, em qualquer tempo e circunstância, presente e futura, pelo mero fato de existir50.

3 Conclusões

O discurso de resistência às mudanças de concepção do sistema penal conserva, sem dúvida,

48 SCHÜNEMANN, Cuestiones básicas, p. 114-116.49 MARTIN, Prolegômenos, p. 138.50 MARTIN, Prolegômenos, p. 145-146.

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uma força copiosa, especialmente por não romper, mas, ao contrário, conferir, sob uma roupagem diversa, um cariz novo a dispositivos liberais-iluministas, hoje quase que absolutamente arraigado à formação dos aplicadores do direito.

As consequências disso estão entranhadas em nosso sistema: aplicação de penas simbólicas a causadores de danos sociais vultosos, alicerçada em doutrinas laxistas; neutralização de instrumentos contemporâneos de investigação, a partir de construções ultraliberais; a comiseração injustificável dos tribunais a determinada vertente de criminosos.

Não obstante, impossível claudicar à luta para integrar, no discurso penal da criminalidade material, a delinquência econômica, e à batalha pelo fortalecimento de mecanismos aptos a alcançá-la, mormente quando, importante mais uma vez ressaltar, os delitos cometidos por essa camada graduada de criminosos são portadores de uma “danosidade social exponencial e de magnitude cósmicas, até o ponto de que em uma comparação entre ela e a criminalidade tradicional das classes sociais baixas contra o patrimônio só pode resultar que esta última não pode assumir outra conotação senão a da insignificância e bagatela”51. Como bem sintetizou Thomas Lynch “los mayores crímenes de hoy implican más manchas de tinta que de sangre”52.

Por outro lado, a simples reafirmação doutrinária ou jurisprudencial dos postulados liberais não pode fazer frente de modo exitoso às modernas formas de atuação da criminalidade econômica e organizada. Imprescindível uma readequação do sistema de persecução vigente em nosso país, instalado sob influências buscadas em bases que não mais se coadunam com a realidade brasileira.

Dessa forma, a remodelação dos preceitos liberais cunhados nos séculos XVIII e XIX, sozinha, não pode oferecer expectativa de persecução à elite do crime. Constitui, na realidade, um beco sem saída incapaz de levar a cabo o efetivo enfrentamento da macrocriminalidade. Urge, portanto, procurar alcançar uma compreensão social das garantias políticas e penais do Estado de Direito para, a partir daí, se implementar uma mudança de perspectiva, com o condão de se alcançar uma verdadeira (re)legitimação do sistema penal.

ReferênciasARAÚJO, Marcelo Cunha de. Fundamentos filosóficos do sistema penal como embasadores da aplicação coercitiva diferenciada calcada num direito penal do autor. Revista dos Tribunais, ano 97, n. 874, agosto de 2008.BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Flório de Angelis. São Paulo: Edipro, 1999.BRAITHWAITE, John. Criminological theory and organizational crime. Justice Quarterly, v. 6, n. 3, sept. 1989.BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. t. 1.CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de. O controle penal nos crimes contra o sistema financeiro nacional. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.COLEMAN. James William. A elite do crime: para entender o crime do colarinho branco. Tradução de Denise R. Sales. 5. ed. São Paulo: Manole, 2005.

51 MARTIN, Prolegômenos, nota de rodapé da p. 117.52 Apud FISCHER, Delinquência econômica, p. 140.

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