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IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64 A ESCRAVIDÃO EM SERGIPE PELO OLHAR DA LITERATURA Autor: Carolline Acioli O. Andrade 1 Orientador: Profª. Draª Edna Maria Matos Antonio (DHI/UFS) Introdução A relação entre História e Literatura e os debates em torno da questão das fronteiras entre as disciplinas tem sido um assunto há muito debatido. Ora aproximadas, ora afastadas, ora confundidas, as linhas que traçam o território de ambas e delineiam suas características são estudadas e analisadas por intelectuais das duas áreas. Entre os historiadores, existe hoje a opinião mais ou menos homogênea sobre o valor das obras literárias enquanto fontes para o conhecimento histórico e também como potenciais objetos de estudo para a compreensão de uma sociedade. A ascensão e sucesso dos romances históricos marca uma fase de reaproximação de fronteiras e diálogo entre as duas disciplinas. Nesse sentido, percebe-se uma tendência cada vez mais crescente da produção de obras literárias baseadas em fatos, momentos ou períodos históricos. A minoria, porém, escrita por historiadores. Nesta breve reflexão analisaremos o romance histórico sergipano O Comedor de Jia, buscando demonstrar como o livro trata a escravidão em Sergipe em meados do século XIX a partir de um caso pontual envolvendo um senhor e sua escrava doméstica. Examinaremos a forma como o autor Pedro dos Santos constrói a imagem da escravidão e discutiremos sobre as potencialidades de interpretação que o romance oferece, ao 1 Graduanda do curso de História Licenciatura da Universidade Federal de Sergipe. Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET/MEC/Fnde) do Departamento de História da UFS. E-mail para contato: [email protected]

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O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

A ESCRAVIDÃO EM SERGIPE PELO OLHAR DA LITERATURA

Autor: Carolline Acioli O. Andrade1

Orientador: Profª. Draª Edna Maria Matos Antonio (DHI/UFS)

Introdução

A relação entre História e Literatura e os debates em torno da questão das

fronteiras entre as disciplinas tem sido um assunto há muito debatido. Ora aproximadas,

ora afastadas, ora confundidas, as linhas que traçam o território de ambas e delineiam

suas características são estudadas e analisadas por intelectuais das duas áreas. Entre os

historiadores, existe hoje a opinião mais ou menos homogênea sobre o valor das obras

literárias enquanto fontes para o conhecimento histórico e também como potenciais

objetos de estudo para a compreensão de uma sociedade. A ascensão e sucesso dos

romances históricos marca uma fase de reaproximação de fronteiras e diálogo entre as

duas disciplinas. Nesse sentido, percebe-se uma tendência cada vez mais crescente da

produção de obras literárias baseadas em fatos, momentos ou períodos históricos. A

minoria, porém, escrita por historiadores.

Nesta breve reflexão analisaremos o romance histórico sergipano O Comedor de

Jia, buscando demonstrar como o livro trata a escravidão em Sergipe em meados do

século XIX a partir de um caso pontual envolvendo um senhor e sua escrava doméstica.

Examinaremos a forma como o autor Pedro dos Santos constrói a imagem da escravidão

e discutiremos sobre as potencialidades de interpretação que o romance oferece, ao

1 Graduanda do curso de História Licenciatura da Universidade Federal de Sergipe. Bolsista do Programa

de Educação Tutorial (PET/MEC/Fnde) do Departamento de História da UFS. E-mail para contato:

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mesmo tempo em que reafirmaremos que a literatura constitui-se um discurso histórico

legítimo e real, ao seu próprio modo.

Enquanto representação e reconstrução da sociedade, a literatura pode revelar

facetas da realidade social que por vezes permanecem obscuras em obras puramente

acadêmicas. São registros que falam sobre o passado e possuem a capacidade de

promover também reflexões e questionamentos que tocam a sociedade contemporânea.

Definindo a História como uma ciência que reinscreve um tempo realmente acontecido

e aspectos reais utilizando-se da voz narrativa, percebemos que história e literatura

convergem e se penetram ao tratarem, ambas, de realidades (fatos) construídos ou

reconstruídos.

Nosso objetivo é demonstrar como isso ocorre em O Comedor de Jia e de que

forma o discurso que a obra traz sobre a escravidão pode ser útil para a compreensão

daquele momento histórico.

A Literatura como discurso histórico

A história, no entendimento do senso comum, ainda está vinculada à ideia de

verdade. Porém, não há como discernir ou alcançar o que seria esta verdade histórica.

Como postularam os Annales, a história não é uma ciência “dura”, objetiva e imparcial.

Haverá sempre o elemento subjetivo, resultado não apenas da presença do historiador

que realiza a investigação histórica, como também do autor dos documentos utilizados

na pesquisa. E, conforme afirmou Marc Bloch, a história é uma ciência que tem como

característica ser poética.

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Além disso, a história só se torna acessível por meio da linguagem. Ou seja, a

experiência histórica precisa ser colocada em forma de discurso, o qual tem como

pressuposto a existência do passado. É desde ponto que parte Hayden White para a

construção de Meta-História, sua principal obra.

Para ele, o discurso histórico constitui-se num tipo específico de escrita que

produz uma interpretação dos fatos históricos construídos pelo historiador e organizados

na forma de uma narrativa. A narrativa é, segundo White, o modo de representação

fundamental para se perceber o objeto de estudo como “histórico”.

“[...] os discursos distintivamente históricos tipicamente produzem

interpretações narrativas de seu assunto. A tradução desses discursos

numa forma escrita produz um objeto distinto, o texto

historiográfico.” (WHITE, 1994, p.23).

A teoria de White defende a indissociabilidade do conteúdo factual e conceitual

de um discurso da sua forma literária e linguística. Como o discurso histórico é uma

estrutura de linguagem, segue-se que o seu conteúdo é indistinguível de sua forma

discursiva. Dessa maneira, o autor atenua os contrastes entre discursos literais e

figurativos e autoriza a busca e a análise de elementos figurativos tanto no texto

historiográfico quanto no ficcional.

White identifica a presença de elementos tropológicos no discurso histórico e

defende o uso da tropologia e da narrativa como componentes de todo discurso

histórico. Nesse sentido, ele aponta o uso da metáfora, metonímia, sinédoque e ironia –

estruturas básicas da figuração – pelo historiador no ato de escrita da história. Além

disso, relaciona enredos correspondentes a cada uma delas – metáfora e romance,

metonímia e tragédia, sinédoque e comédia, ironia e sátira – e postula que estas

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estruturas tropológicas são importantes para a construção das várias interpretações da

história (“tipos de verdade”) que se pretende apresentar. White vai ainda mais longe e

rompe as fronteiras entre história e literatura, afirmando que todas as histórias são

ficções, entendendo a relação entre as disciplinas como uma interpenetração que leva

uma a confundir-se com a outra. (WHITE, 1995, p.28-30).

Apesar da radicalização de sua concepção, criticada por vários pares, os estudos

de Hayden White foram importantes para uma nova visão acerca das convergências e

divergências entre história e literatura, contribuindo para que se considerasse a obra de

ficção como um tipo legítimo de discurso histórico. White ainda apontou a necessidade

de repensar a distinção entre discurso “sério” e “não sério”, entendendo que aquilo que

se considera “realmente acontecido” não pode significar a exclusão da possibilidade de

que a fala figurativa (obra de ficção) seja tão verdadeira, à sua maneira, quanto a literal.

(1994 p.35).

É necessário lembrar também que o que é concebido como “real” varia de

período para período e que o que uma dada época identifica como real se define mais

facilmente pelo que tal época entende como irreal ou utópico. (WHITE, 1995, p.60 e

61).

A modalidade literária que mais possui a capacidade de entrelaçar as duas

disciplinas é a metaficção historiográfica. Surgida na emergência da Nova História e na

tomada de consciência de que era necessário problematizar o contexto social, a

metaficção constitui o ato de “apropriar-se de personagens e/ou acontecimentos

históricos sob a ordem da problematização dos fatos concebidos como ‘verdadeiros’.”

(JACOMEL; SILVA, 2009, p.740).

As autoras identificam na metaficção histórica uma função estritamente social e

de cunho conscientizador das desigualdades. Caracterizam-na como sendo uma história

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que “vem de baixo” (Nova História), propondo uma leitura alternativa do passado como

crítica à história oficial, e que contraria as estruturas históricas, pois recupera e recusa

os pressupostos históricos, na medida em que os questiona (JACOMEL; SILVA, 2009,

p.741).

Dessa forma, a metaficção histórica atua como um elo entre literatura e história,

as quais, a partir dessa modalidade literária, “unem-se em função de uma causa: as

produções escritas, ficcionais ou não, levam os leitores à autoreflexão, ao

questionamento das ‘verdades absolutas’”. (JACOMEL; SILVA, 2009, p.746).

No tocante à relação entre literatura e história, Carlo Ginzburg apresenta a

utilização dos textos literários pelos historiadores como um desafio que necessita tanto

de uma distinção clara entre história da literatura, como também do reconhecimento dos

entrelaces entre as duas disciplinas. Antes de tudo, o autor afirma que toda obra literária

está inserida em determinados tempo e espaço, possuindo, assim, historicidade. Porque

estão inseridos em uma conjuntura histórica, os textos literários possuem suas raízes em

uma realidade histórica definida.

A partir dessa compreensão, Ginzburg considera as obras literárias ou de ficção

um discurso histórico legítimo, pois, como ressalta ao comentar sobre romances

medievais:

“Um escritor que inventa uma história, uma narração imaginária que

tem como protagonistas seres humanos, deve representar personagens

baseados nos usos e costumes da época em que viveram: do contrário,

não seria críveis.” (GINZBURG, 2007 p.82 [grifo nosso]).

Os relatos não se tornam críveis pela persuasão da escrita do autor, mas sim

porque são baseados em um momento histórico real. O acontecimento não necessita ter

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acontecido “realmente” da forma como é descrito no texto literário para que se possa,

através dele, chegar à realidade histórica na qual ele está ancorado.

As concepções de Ginzburg, Jacomel e Silva convergem, pois o autor reafirma

que história e ficção, a partir do romance histórico, conseguem apreender aspectos do

social e problematizá-los, levando os leitores a refletir e questionar o tempo em que

vivem, bem como as estruturas e valores de sua sociedade.

Nubia Jacques Hanciou ainda reforça o papel do romance histórico, entendendo-

o como uma “[...] possibilidade de criar um espaço capaz de simular a verdade da vida

social de modo bem mais convincente e esclarecedor do que pode ser alcançado nos

relatos factuais.” (2000, p.1 [grifo nosso]). E, ao possuir um enredo construído com o

objetivo de gerar interesse, o romance goza de um alcance de leitores maior do que as

obras acadêmicas, as quais não atingem o público leigo.

A autora identifica a temporalidade como o elemento que permite o cruzamento

entre história e ficção, pois “tudo o que se conta acontece no tempo, toma tempo,

desenvolve-se temporalmente e o que se desenvolve no tempo pode ser contado.”

(HANCIOU, 2000, p.5). Considerando a narrativa como forma de escrita histórica, ela

ressalta sua relação com o tempo através do enredo – que é temporal –, que integra e

liga os fatos históricos num só conjunto. E, tendo a temporalidade como elemento de

coesão entre as duas disciplinas, a autora estabelece: “É, pois, na reconfiguração do

tempo que a narrativa histórica e a narrativa ficcional se interpenetram sem se

confundirem.” (HANCIOU, 2000, p.5-7).

Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas são dois teóricos que também

defendem o valor da literatura, o uso de textos literários na investigação histórica e a

fecundidade de estudos que seguem esta linha. Segundo esses autores, não existe

história independente de texto, pois ela é, antes de tudo, texto e, mais amplamente,

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discurso. Porém é necessário ao historiador decifrar os discursos que exprimem e

contém a história, ou seja, estabelecer nexos entre as ideias contidas nos discursos e o

contexto no qual estão inseridas. Nesse sentido, afirmam que:

“[...] considerar o conteúdo histórico do texto dependente de sua

forma não implica, de modo nenhum, reduzir a história ao texto [...]

trata-se, antes, de relacionar texto e contexto [...] sem negligenciar a

forma do discurso, relacioná-lo ao social.” (CARDOSO; VAINFAS,

1997, p.378 [grifo do autor]).

O historiador deve sempre atentar para a forma do texto, mas também conhecer

os fatores extratextuais que presidem a produção, circulação e consumo dos discursos

produzidos pelas obras literárias. Antonio Celso Ferreira também ressalta que o

historiador deve estar atento à diversidade das formas literárias no tempo e às

circunstâncias de sua constituição, perpetuação ou modificações. Além disso, é

fundamental para esses autores compreender como a literatura interage nos contextos

sociais e que papéis lhe foram atribuídos historicamente, e de que forma se disseminam

e repercutem no coletivo. (FERREIRA, 2009, p.71 e 72).

Portanto, devem interessar à pesquisa histórica todos os textos literários, na

medida em que sejam vias de acesso à compreensão dos contextos sociais e culturais de

uma época. A história dialoga com a literatura, mas jamais confunde-se com ela. A

operação da história implica na construção e tratamento dos dados, na produção de

hipóteses, crítica e verificação de resultados e validação da adequação entre o discurso e

seu objeto. Essas especificidades não podem ser reduzidas ou desconsideradas pelo

historiador ao dialogar com a literatura, do contrário, deve-se trabalhar com a literatura

a partir do olhar histórico. (FERREIRA, 2009, p.77).

Cabe ao historiador a tarefa de interrogar a que público os textos literários se

destinam e que papel cumprem nas condições sociais e culturais da época em que estão

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inseridos. É essencial analisá-los enquanto documentos e, por isso, portadores de um

discurso que não pode ser visto como algo transparente ou inocente (CARDOSO;

VAINFAS, 1997, p.377). É tarefa do historiador também colocar estes discursos à

prova, confrontando-os com outras fontes que permitam a contextualização da obra para

assim se aproximar dos múltiplos significados da realidade histórica, levando em conta

o intercâmbio entre a literatura com outros tipos de linguagem.

A literatura, enquanto representação e reconstrução da sociedade, pode revelar

facetas da realidade social que de outra forma permaneceriam obscuras. Os textos

remetem aos anseios, angústias, paixões, ideias, mudanças e valores das pessoas que

formavam a sociedade que o produziu. São registros que falam sobre o passado, mas

também podem ecoar até o presente. Por isso, é fundamental ao historiador possuir a

sensibilidade necessária para “ler as marcas” da sociedade e da cultura nas obras e a

capacidade de articular a análise interna da obra ao mundo circundante, a fim de que a

investigação histórica possa captar as nuances da realidade histórica e social mais

profunda da qual as obras tratam.

Breve quadro sobre a Escravidão

O romance histórico sergipano O Comedor de Jia narra um processo criminal

ocorrido em São Cristóvão, então capital de Sergipe, entre 1849 e 1850. Uma escrava

doméstica menor de idade é acusada de ter envenenado o seu senhor, um renomado

escrivão de órfãos.

Santos constrói uma narrativa ficcional a partir de uma base histórica real,

fundamentada por documentos que são, porém, permeados de lacunas. Já no prefácio do

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livro, a definição da obra é apresentada ao leitor a partir desse aspecto: “Um misto de

literatura e laudo, de conto policial e documentário” (SANTOS, 2006, p.19).

O autor deixa claro que utilizou sua imaginação para preencher os espaços

deixados pela fonte histórica oficial. Alguns diálogos e personagens que o livro

apresenta não ocorreram ou existiram realmente, ou pelo menos não da forma narrada.

(SANTOS, 2006, p.24). Mas esta é uma opção do escritor, que afirma ter procedido de

tal forma para que o trabalho tivesse uma linguagem acessível, “sem as usanças

metodológicas que obrigam ou sugerem o emprego de termos e expressões incomuns e

inconsequentes à grande maioria da população brasileira”. Ao mesmo tempo, possui o

objetivo de “mostrar o fato histórico e documental, verdadeiro e singular, inédito,

irrepetível, de uma forma diferente e, sobretudo, humana.” (SANTOS, 2006, p.25 [grifo

nosso]).

Utilizando-se da literatura, O Comedor de Jia constitui-se uma obra de caráter

histórico e desafiador, pois descortina os valores preconceituosos da sociedade

sergipana da época como fator legitimador da escravidão, apresentando também os

interesses econômicos que suportavam a instituição da escravatura. Enquanto um

discurso histórico legítimo que visa compreender as relações sociais entre senhores e

escravos na sociedade oitocentista, na capital sergipana São Cristóvão, o romance

permite ao historiador uma visão plural do momento histórico narrado, mas também

promove uma reflexão sobre as reminiscências dos mesmos valores na atualidade.

O momento histórico que é plano de fundo do romance, o século XIX, marca o

declínio da instituição da escravatura no Brasil, em decorrência do crescimento do

movimento abolicionista e as ações de resistência e revolta dos negros.

Em Sergipe, assim como em todo o país, a escravidão se fez presente de maneira

forte e violenta. Possuir escravos era mostra de poder e status. Segundo Nunes, os

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primeiros negros chegaram ao território sergipano com os primeiros colonizadores, após

a “conquista” por Cristóvão de Barros em 1590. Utilizados na pecuária, na agricultura

de mantimentos e nas lavouras de fumo e cana-de-açúcar, eles eram “as mãos e os pés

dos senhores de engenho” (ANTONIL apud NUNES, 2006, p.224).

Os braços cativos eram fundamentais para o desenvolvimento da Província. A

escravidão era um elemento constitutivo da sociedade brasileira, como também da

sergipana, imersa no contexto nacional. Acreditava-se que o progresso estava ligado à

escravidão. (SOUSA, 2010, p.94).

Com a proibição do tráfico internacional de escravos imposta pela Lei Euzébio

de Queiroz em 1850, a economia apela para o tráfico interprovincial para manter a

circulação de escravos e sustentar a cultura da cana-de-açúcar. Neste momento, a

escravatura começa a sofrer rachaduras em sua estrutura. A lei gerou um abalo

econômico no negócio do comércio de escravos e a ascensão do movimento

abolicionista causou um abalo social, pois a partir deste momento, uma nova maneira de

pensar o Brasil começou a surgir. O movimento pró abolição trouxe a perspectiva de

vergonha e indignação diante de um país escravocrata, confrontando as noções de

“direito” e “posse” do branco sobre o negro.

As tensões entre os partidários da escravidão e os opositores se acirram neste

século e especialmente a partir de 1850. É importante entender esse momento, pois,

como vimos anteriormente, o discurso não está separado do contexto no qual está

inserido.

A Lei Euzébio de Queiroz não promoveu, ao contrário do que é defendido por

alguns historiadores, uma melhoria no tratamento dos escravos. Autores como Emília

Viotti da Costa postularam que, não obstante as barreiras impostas à antiga facilidade na

aquisição dos escravos com a cessação do tráfico negreiro, e a atenção que os

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proprietários passaram a ter com relação a alguns aspectos da vida do cativo tais como

vestuário e alimentação, o tratamento violento permaneceu. Documentos da época,

inclusive casos de denúncias contra a postura dos senhores nas décadas de 1870 e até

1880, demonstram esse fato. (1998, p.339).

Em casos de escravos rebeldes e “fujões”, a legislação orientava marcá-los com

ferro em brasa um “F” nas nádegas ou rosto e, caso reincidisse, se lhe poderia cortar

uma orelha. Os açoites só foram suprimidos em 1886, mas continuaram na prática. A lei

se mostrava incapaz de abolir os privilégios e os preconceitos já tão consolidados. Em

Sergipe, os escravos eram proibidos de frequentar escolas, havia escravos casados que

pertenciam a senhores diferentes e a exploração sexual da mulher negra era também

fator comum em nossas terras. (FIGUEIREDO, 1977, p.53-55).

A legislação protegia os interesses dos senhores, possuindo resoluções que

liberavam donos e comerciantes de cumprir com o pagamento de alguns tributos e

multas. Medidas desse tipo também foram tomadas em Sergipe, isentando os

proprietários de engenho e lavradores de cana do pagamento da “meia sisa”, em 1853.

(FIGUEIREDO, 1994, p.35). Além de isenções de pagamento de tributos e multas, uma

carta régia já em 1696 proibia às escravas do Brasil o uso de vestidos de seda, cambraia

de renda e adornos de ouro e prata a fim de evitar “excessos e maus exemplos”

(NUNES, 2006, p.226).

Algumas medidas legais buscavam estabelecer a moderação nas relações entre

senhores e escravos, e ordenavam que os proprietários mantivessem seus cativos bem

vestidos, que não empreendessem castigos excessivos e que oferecessem uma maior

atenção às mulheres gestantes. Porém, essas leis tinham pouca eficácia, especialmente

no campo, onde a fiscalização era ínfima e o poder senhorial agia absoluto,

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concentrando em si a representação da Igreja, da Justiça e da força política e militar

(COSTA, 1998, p.266).

No entanto, a justiça ineficiente também era conivente com os desmandos

senhoriais. Essa situação era favorecida pelo fato de que o corpo de jurados era

escolhido segundo princípios que levavam em conta a representação social do

indivíduo, o que acarretava no recrutamento dos burocratas entre os fazendeiros

escravistas ou seus aliados. Além disso, os estereótipos vigentes influenciavam os

julgamentos desses homens, os quais estavam imersos numa cultura que enxergava o

escravo como um ser “primitivo, ignorante, culposo permanente”. Por outro lado, a

conduta do senhor de escravos era considerada como correta com antecedência,

favorecendo a impunidade de proprietários e feitores. (COSTA, 1998, p.315 e 316).

Além do arcabouço jurídico de suporte e reforço à escravidão, a justificativa

religiosa emergia como mais um sustentáculo do sistema escravocrata. A propagação da

fé cristã era utilizada desde o início da expansão marítima como amparo às conquistas

de novos territórios e a escravização dos povos. Não foi diferente com relação à

escravidão de africanos, para qual o Império apoiava-se no postulado de Tomás de

Aquino que, inspirado em Platão e Aristóteles, afirmou que “os homens são, por

natureza, uns senhores e outros escravos” (FIGUEIREDO, 1994, p.20).

O papel do confessor deveria ser o de mediador entre senhores e escravos.

Ajustada à realidade vigente, a igreja católica pactuava com o setor senhorial. A religião

tinha a função de mediadora, agindo como um freio que controlasse os escravos e

aconselhasse os senhores. Os cativos eram exortados à moralidade e aos bons costumes,

ao amor ao trabalho e obediência aos seus donos, que deveriam ser vistos como seus

pais. Por sua vez, os proprietários deveriam ser moderados, cuidar da assistência

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religiosa aos escravos, zelando pela doutrinação e batismo dos mesmos. (COSTA, 1998,

p.273 e 274).

Havia padres que possuíam escravos e os tratavam com crueldade. Alguns

religiosos chegavam a dizer que os negros pertenciam a uma raça de condenados para os

quais apenas a obediência passiva ao trabalho constituía a única reabilitação. Outros,

porém, defendiam outra corrente teológica, a qual estabelecia que os negros eram

“filhos do mesmo Pai” e que os senhores deveriam considerar o princípio de tratar a

outrem como eles mesmos desejavam ser tratados. (COSTA, 1998, p.305).

A Igreja, de maneira geral, permaneceu omissa às atrocidades da escravidão e

buscou conciliar os interesses financeiros com os ditames da religião. Não podemos

desconsiderar, porém, a ação de clérigos que se colocaram contra a instituição

escravocrata e defenderam posições abolicionistas. Com a “vontade divina” ao seu lado,

os senhores e comerciantes mantinham sua posição de poder e /privilégios na sociedade.

No meio rural, como já dissemos, o poder do proprietário imperava quase sem

restrições. O isolamento das fazendas dos núcleos urbanos, onde estavam sediados os

órgãos públicos que deveriam fazer cumprir as moderações previstas pela lei, contribuía

para que, em sua fazenda, o senhor fosse a personificação da lei. Nas cidades, como é o

caso de São Cristóvão, as recomendações legislativas que visavam atenuar a violência

entre senhores e escravos raramente eram obedecidas e mesmo as autoridades urbanas

estavam inseridos na cultura de violência contra o escravo.

O Comedor de Jia: a escravidão em Sergipe pelo olhar literário

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Dentro desse contexto, podemos perceber que, em meados do século XIX, época

na qual ocorre o caso descrito em O Comedor de Jia, os valores preconceituosos que

justificavam e suportavam a escravidão estavam cristalizados na sociedade brasileira e,

por consequência, também na sergipana. Juntamente com esse fator, o pânico dos

brancos gerado pelas décadas de sublevações de escravos e os boatos que alimentavam

esse sentimento de terror contribuíram para a violência que caracterizaram as

investigações do caso de envenenamento narrado no livro.

O enredo da obra tem como centro o drama de Hilária, a jovem escrava

doméstica acusada de ter envenenado seu senhor, o conhecido escrivão de órfãos

Bartholomeu José Correia Beija-Flor. Homem de posses, descrito no livro como alguém

que era visto pela população com admiração, considerado um cidadão digno e

trabalhador, de boas relações e contatos com pessoas da classe privilegiada. Em meados

de 1842, mudou-se da Bahia com a esposa Francisca Romana da Silveira e a filha Maria

Clara (Mariquinha). Com eles foram os escravos domésticos Hilária e Roberto, filhas da

negra Felisberta, que permaneceu cativa nas terras baianas.

Já nas primeiras páginas da história podemos perceber uma conexão com a

realidade da escravidão: a separação de escravos membros da mesma família. Embora a

legislação desaconselhasse essa prática, a maioria dos senhores a ignorava, como tantas

outras resoluções legais. Os dois irmãos que foram separados da mãe eram menores,

tendo Hilária 16 anos e Roberto, 8, à época do crime.

Apesar de ser membro e representante da classe urbana dominante, o personagem de

Beija-Flor também aponta para a cultura negra. Seus exóticos hábitos alimentares, tão

afamados quanto o seu nome, foram aprendidos “na zona do baixo meretrício da Quinta

do Maciel” e em áreas como a do “Pelourinho e da Baixa dos Sapateiros”, consideradas

obscuras pela presença latente da população mais pobre e negra. Dessa forma, Santos

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demonstra a penetração da cultura africana no mundo dos brancos através da culinária

apreciada por Beija-Flor, revelando já de início a complexidade das relações e das

trocas entre os vários agentes sociais que conviviam durante o período escravocrata.

(SANTOS, 2006, p.33).

Entre seus pratos favoritos constam cozido de ovos de tartarugas, fritada de jia,

croquete de lesmas, entre outras refeições peculiares. Foi justamente um dos pratos mais

apreciados por ele – um ensopado de jia – o responsável por sua morte. Após o escrivão

cair de cama, sua filha descobre um pó branco no chá que estava sendo utilizado para

fins medicinais, e acusa a escrava doméstica Hilária de ter administrado veneno na

bebida do pai. A adolescente é, então, levada à delegacia, onde o delegado Pereira

Cunha a submeteu a interrogatório. (SANTOS, 2006, p.23)

Antônio Augusto Pereira Cunha era juiz municipal e delegado. Nomeados pelos

Imperadores, os juízes municipais tinham um mandato de quatro anos, ao fim dos quais

eram promovidos a juízes de direito. Eles eram responsáveis por executar sentenças e

mandados dos juízes de direito, investigar crimes e prender culpados, fazer corpo de

delito e pronunciar nos crimes comuns. (SANTOS, 2006, p.138). Como parte da

estrutura administrativa do aparelho estatal e representante da “lei e da ordem”, Pereira

Cunha cumprirá um papel central na trama de Pedrinho dos Santos, como símbolo da

violência dos brancos contra os escravos e da intolerância, corrupção e brutalidade das

investigações quando o assunto envolvia delitos praticados – ou supostamente

praticados – por negros.

Os interrogatórios são permeados de ameaças e torturas, até que Hilária confessa

o crime. Durante o processo de investigação, Beija-Flor morre e suas vísceras são

levadas a Salvador para um exame toxicológico, o qual não acusa a presença de veneno

no corpo do falecido. Mesmo após sua leitura pública, o laudo foi ignorado e Hilária

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sentenciada a morte. As últimas páginas do livro, porém, não apresentam um final

definido para a história. Ao invés disso, Santos oferece aos seus leitores a descrição de

um diálogo cotidiano entre dois trabalhadores simples, e finaliza o texto com uma cena

na qual um animal se deita sobre o piso de um prédio, da mesma forma que o fez no

início do enredo. Este “retorno à rotina” aponta para apatia social diante do drama de

Hilária, demonstrando que a situação dos escravos era recebida com uma “indiferença

natural” pela sociedade.

Encontramos, nas páginas de O Comedor de Jia, descrições que vem a confirmar

o que a historiografia afirma sobre a escravidão e seu alicerce na violência. Fica muito

claro no livro como o tratamento dispensado aos escravos, mesmo os domésticos – que

possuíam uma relação mais próxima com a família senhorial e uma pequena margem de

“liberdade”, se pode-se falar nesses termos – era baseado nos preconceitos de raça e nos

valores escravocratas reforçados pela legislação e pela igreja.

A legislação não ofereceu proteção a Hilária e de maneira nenhuma ela teve

direito a um advogado, visto que não era considerada cidadã. Essa mesma legislação

caracterizava os castigos físicos como direito e dever senhorial e, não obstante a

Constituição de 1824 reconhecer em seu artigo 265 os contratos entre senhores e

escravos, os mesmos eram “letra morta” e nunca foram disciplinados juridicamente

(FIGUEIREDO, 1977, p.53).

Devemos considerar também a opção ideológica do autor. Esta se revela mais

claramente nos momentos em que Pedrinho toma posições e se mostra parcial. Ele

busca revelar e denunciar a estrutura social existente, baseada no preconceito, na

violência e na mercantilização do ser humano: “Hilária estava frita. Condenada. Pagava,

ali, na enxovia, o preço de ter nascido negra, ser cativa e analfabeta.” (SANTOS, 2006,

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p.49). Em sua denúncia, o autor acaba por abrir mão da imparcialidade histórica e cria

uma dicotomia do tipo “heróis” e “vilões”:

“O vibrar continuado do azorrague fê-la pequena na grandeza da sua

inocência. A iminência da morte a tocar-lhe a pele negra curvou-a à

vilania dos tiranos. Se lágrimas nela havia estas foram sugadas pelo

ardor da sua alma juvenil.” (SANTOS, 2006, p.50).

Hilária, enquanto representante dos negros escravizados, é construída não é

apenas uma vítima inocente da “tirania” dos senhores, mas também uma vítima cuja

alma é juvenil, grandiosa, e cujo caráter é o de uma pessoa correta, inocente,

“irrepreensível” diante da acusação à qual foi submetida. Em posição antagônica está o

delegado, seu assistente, a família de Beija-Flor. Todos, enfim, que simbolizam o poder

senhorial, os algozes dos escravos, aqueles que, ameaçando a negra com a morte,

arrancaram dela uma confissão falsa.

Mais uma vez, o olhar do historiador deve estar atento e considerar o caráter

fictício da obra. Tratando-se de um romance histórico, no qual o autor desde o início

aponta a utilização da sua imaginação na construção do enredo, não cabe aqui acusá-lo

de estar fugindo ao rigor metodológico, não se distanciando do seu objeto. O texto é

uma obra literária e, apesar de ser escrita por um historiador, o mesmo construiu a

narrativa em formato não acadêmico. O gênero literário dá ao autor “liberdade poética”,

o que lhe permite expressar sua opinião sobre os personagens históricos e sobre os

próprios fatos descritos.

Por fim, é importante salientar que O Comedor de Jia também descortina traços

dos dois mundos em conflito: o do escravo e o do senhor.

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Para além do sincretismo religioso, o romance capta outros aspectos da realidade

de Hilária nas entrelinhas da narrativa: a vida cotidiana do escravo doméstico das áreas

urbanas, que mantém uma relação próxima com os senhores, diferentemente dos

escravos do meio rural, a ponto de dividir os trabalhos na cozinha com as senhoras; a

quantidade de responsabilidades e tarefas que eram designadas aos escravos, e as

relações de trabalho –o autor descreve tarefas específicas para escravos diferentes na

preparação dos alimentos, por exemplo – e de solidariedade ou não entre eles, como

mostra o interrogatório de negros citados por Hilária, que a defendem ou acusam.

Também destaca o abismo que separava escravos e senhores, por mais próxima

que parecesse a sua convivência, por suas condições sociais, culturais e “humanas”, na

medida em que o escravo era tratado como “coisa”. Na caracterização dessa relação,

sobressalta a vitimização e exploração de um pelo outro.

Ao mesmo tempo, Pedrinho adentra a casa da família senhorial e traça o perfil

dos parentes do escrivão envenenado, especialmente o da sua esposa, constituindo-os

como representantes da mentalidade da elite da época, a qual ele chama de “burguesia

citadina”. Conforme suas diretrizes ideológicas, o autor constrói uma imagem da elite

urbana como sinônimo de tudo o que é desonesto – a esposa de Beija-Flor é mostrada

como uma das articuladoras do “teatro” para condenar Hilária, mesmo sabendo de sua

inocência – e ardiloso, violento e sem compaixão.

Os acontecimentos são expostos como parte de uma trama motivada pelo

preconceito que condenou a escrava para satisfazer a necessidade de punição da

autoridade senhorial e o desejo de encontrar um bode expiatório para ser

responsabilizado pela morte do escrivão de órfãos.

Ao final desta análise, ressaltamos novamente o efeito do “retorno à rotina”

presente na última parte do romance. Por meio dele, Santos promove não apenas a

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reflexão sobre os valores sobre os quais a sociedade em que vivemos foi construída,

mas também o questionamento sobre a permanência desses valores e resquícios de

preconceitos e práticas – agora sim – racistas na contemporaneidade. Após acompanhar

todo o enredo e envolver-se com o drama de Hilária, o leitor é “trazido para o chão” e é

levado a perceber que, apesar de tudo o que a escrava teve de passar, a mentalidade e a

opinião daquela sociedade não foi modificada.

Nesse sentido, o autor chama a atenção do leitor, promovendo uma pergunta: o

que mudou e quanto mudou de lá para cá? A experiência da escravidão e a Abolição

modificaram substancialmente a sociedade? Se sim, em que medida? São questões

lançadas no ar, que, na época em que o romance foi escrito, explodiam nas rodas de

debates das universidades, nas conversas entre cidadãos comuns e nas ações dos

movimentos negros no país.

A permanência da estrutura tradicional de modelo nobiliárquico português, que

dotava o senhor de um poder paternalista e autoritário sobre sua família e seus criados.

Essa é, para Santos, a base que sustenta os valores escravistas e o ponto que norteia as

relações entre senhores e escravos. A estrutura da sociedade, de fundamentos

patriarcais, paternalistas, católicos e aristocráticos, sustentava uma série de crenças e

preconceitos sobre o negro, sobre sua alma, seu caráter que era visto como deturpado,

sua própria humanidade que era vista como “decaída” e “degenerada”.

O conjunto desses valores retratava o negro não como ele era, mas sim imerso

nas condições de escravos. Disso resultava que o vício de um escravo, por exemplo, era

entendido como um desvio de caráter e não como uma consequência de sua triste

situação; as revoltas, insurreições, tentativas de vingança e assassinatos eram

compreendidos como características próprias de uma raça selvagem, e não como reação

de um grupo de pessoas que eram tratadas como menos que animais.

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São justamente esses valores que Santos denuncia durante todo o livro. O

discurso histórico produzido pelo romance é um discurso de denúncia, no qual Santos

apresenta inúmeras facetas sobre a escravidão em Sergipe no século XIX, com foco na

cidade de São Cristóvão. Porém, ao mesmo tempo em que essa narrativa polifônica

aponta para várias nuances e aspectos sobre o tema e abra muitas possibilidades de

aprofundamento e análises, esta nota central de denúncia e questionamento dos

preconceitos que regiam a sociedade escravocrata ressoa em todos as partes de O

Comedor de Jia, sendo o ponto de partida e o ponto final – ou, nesse caso, o ponto “em

aberto” deixado pelo autor – que provoca uma reflexão sobre a atualidade.

Resquícios de práticas escravocratas permanecem até hoje no Brasil e mais

pessoas do que se gostaria de admitir ainda possuem uma visão preconceituosa acerca

do negro e da África também. Dessa forma, o final de O Comedor de Jia, ainda que

possua pouquíssimas páginas, aponta para heranças que a instituição da escravatura nos

deixou, como o racismo ainda presente na população, o desprezo pelo trabalho manual,

o desrespeito aos direitos do cidadão das camadas mais baixas, a visão da elite sobre

esses trabalhadores e a irradiação desta para os próprios setores populares (MAESTRI,

1994, p.2 e 3). Em adição, essa herança também atinge a educação, o que é demonstrado

pela pouca atenção ao estudo da história africana e dos trabalhadores escravizados antes

de serem privados de sua liberdade.

Considerações Finais

Em conclusão, consideramos que Pedro dos Santos apresenta uma obra

diferenciada dentro cenário historiográfico sergipano. Escolhe trabalhar com uma escala

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de observação menor e consegue apreender traços da sociedade escravocrata sergipana

oitocentista, sem perder, entretanto, a beleza e o dinamismo próprios do gênero

romance. O Comedor de Jia demonstra como a história pode, assumindo a forma de

literatura, captar a realidade histórica e descortiná-la diante dos olhos dos leitores,

atingindo tanto acadêmicos quanto leigos.

Seu caráter de denúncia remete àquele atributo problematizador da metaficção

histórica. O seu discurso de questionamento é indissociável de seu conteúdo: a forma

como o autor escreve os interrogatórios, as caracterizações que apresenta e a dicotomia

que estabelece entre Hilária (vítima e heroína) e o delegado (tirano e vilão) e o ataque

aos ideais da elite citadina da época. Todos esses elementos são colocados em uma

forma literária e linguística específicas, que visa atingir o leitor e, mais do que encantá-

lo, promover nele a reflexão.

A obra exemplifica de maneira vívida como história e literatura se interpenetram

sem se confundirem, pois nela a São Cristóvão escravocrata oitocentista e suas tensões

sociais são expostas, lançando luz sobre nuances que de outra forma poderiam

permanecer obscurecidas. Desse modo, O Comedor de Jia reafirma como o romance

histórico nos permite compreender o passado, debater o presente e até mesmo pensar o

futuro através de uma narrativa ficcional, que não deixa de ser real, ao seu próprio

modo.

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