A Escultura No Espaco Publico Do Porto No Seculo XX (1)

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    Jos Guilherme RibeiroPinto de Abreu

    A Escultura noEspao Pblico doPorto no Sculo XX

    Inventrio, Histria ePerspectivas deInterpretao

    EDICIN 2005

  • BIBLIOTECA DE LA UNIVERSITAT DE BARCELONA. DADES CATALOGRFIQUES

    NUEVOS LUGARES DE INTENCIN: A Escultura no Espao Pblico do Portono Sculo XX.Inventrio, Histria e Perspectivas de Interpretao( e- polis, n 3)

    Referncies bibliogrfiquesISBN: 84-475-2765-4

    I. Jos Guilherme Abreu II. Universitat de Barcelona.Centre de Recerca Polis III.Col.lecci1. Art Pblic 2. Art 3. Espai Pblic

    (c) 2005. Publicacions de la Universitat de Barcelona - Centre de Recerca Polise-polisDirector: A. RemesarDisseny grfic: Jos Guilherme AbreuISBN: 84-475-2765-4____________________________________________________________

    Direcci i administraci de la publicaci:PUBLICACIONS DE LA UNIVERSITAT DE BARCELONAGran Via, 585Tel.- +34-93 403 54 36Fax. +34-93 318 52 67______________________________________________________

    Centre de Recerca Polis Universitat de BarcelonaFacultat de Belles ArtsPau Gargallo 4 - 08028 Barcelonatel. +34 93 333 34 66 ext 3720 fax. +34 93 334 51 12http://www.ub.edu/escult/1.htm

  • Jos Guilherme Ribeiro Pinto de Abreu

    A Escultura no Espao Pblico do Porto no Sculo XX

    Inventrio, Histria e Perspectivas de Interpretao

    Dissertao

    Mestrado em Histria da Arte em Portugal

    Faculdade de Letras da Universidade do Porto Orientao: Prof. Doutor Antnio Cardoso

    VOLUME IVOLUME IVOLUME IVOLUME I

    1996/981996/981996/981996/98

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    Ficha Tcnica

    Ttulo A Escultura no Espao Pblico do Porto no Sculo XX Origem da obra Dissertao de Mestrado em Histria da Arte em Portugal

    Orientao Prof. Doutor Antnio Cardoso, Faculdade de Letras do Porto Ano do Curso 1996-1998

    Edio Do autor; Policopiada; Porto, 1999 Paginao Texto escrito em Word 97; Fonte: Garamond, corpo 12

    Fotografias de cor Do autor; Digitalizadas e inseridas electronicamente no texto Imagens a preto e branco Micro-filmes; imprensa; documentos iconogrficos; esplios; internet

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    Todas as grandes manifestaes da vida social tm em co-mum com a obra de arte o facto de nascerem da vida in-consciente; este nvel colectivo no primeiro caso, individual no segundo; mas a diferena secundria porque umas so produzidas pelo pblico, as outras para o pblico: preci-samente o pblico que lhes fornece um denominador comum.

    Aldo Rossi

    A significao profunda da escultura portuguesa est por estudar, por documentar, por descobrir.

    Ernesto de Sousa

    A escultura a arte do ar livre

    Henry Moore

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    Plano da Investigao

    Volume I

    Introduo e Agradecimentos Primeira Parte

    Escultura e Espao Pblico

    Segunda Parte Prembulo

    Ciclos da Escultura Urbana do Porto

    1.1 Fin de Sicle 1.1.1 Lugares de Memria 1.1.2 Elementos de Qualificao Urbana 1.1.3 Elementos de Animao Arquitectnica 1.1.4 Lugares de Devoo

    1.2 Proto Modernismo/Neo-Academismo 1.2.1 Lugares de Memria 1.2.2 Elementos de Qualificao Urbana 1.2.3 Elementos de Animao Arquitectnica 1.2.4 Lugares de Devoo

    1.3 Resgate 1.3.1 Lugares de Memria 1.3.2 Elementos de Qualificao Urbana 1.3.3 Elementos de Animao Arquitectnica 1.3.4 Lugares de Devoo

    1.4 Compromisso/Contestao 1.4.1 Lugares de Memria 1.4.2 Elementos de Qualificao Urbana 1.4.3 Elementos de Animao Arquitectnica 1.4.4 Lugares de Devoo

    1.5 Renovao 1.5.1 Lugares de Memria 1.5.2 Elementos de Qualificao Urbana 1.5.3 Elementos de Animao Arquitectnica 1.5.4 Lugares de Devoo

    1.6 Internacionalizao/Individualizao 1.6.1 Lugares de Memria 1.6.2 Elementos de Qualificao Urbana 1.6.3 Elementos de Animao Arquitectnica 1.6.4 Lugares de Devoo

    Terceira Parte 1 Sntese Interpretativa 2 Registo de Concluses

    Quarta Parte 1 Anexos 2 Apndice Documental 3 Bibliografia

    Volume II

    Base de Dados

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    Introduo

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    A escultura pblica do sculo XX apesar de constituir uma temtica cujo impacte poltico-cultural amplamente reconhecido no contexto da Histria da Arte em Portugal, contraria-mente pintura, tem sido uma rea pouco estimada pela investigao e de um modo geral, parte a publicao de algumas monografias dos principais autores e de catlogos de exposies, raras vezes a sua investigao tem sido empreendida na especialidade, integran-do-se normalmente em obras de carcter geral.

    Por isso, escassos tm sido os trabalhos que dela se ocupam em exclusivo e, o que pior, os que o fazem, so demasiado ligeiros, pouco rigorosos e quase sempre inexactos, revestindo-se assim de reduzido interesse para a Histria da Arte1.

    Falta, j se v, uma inventariao de base, que possa funcionar como ponto de partida para mais altos voos. Inventariao que nem o prprio Inventrio de Portugal fornece, mesmo para os casos em que j se deu por concludo, como por exemplo a Cidade do Porto, uma vez que o mesmo parte de um conceito descritivo de inventrio que de todo no nos parece o mais adequado e muito menos o mais til.

    O trabalho de sntese de Joaquim Saial2, a seleco de Srgio Guimares de Andrade3 e a realizao de algumas exposies como, por exemplo, A Figura Humana na Escultura Portu-guesa do Sculo XX4, que produziu um interessante catlogo, so sinais de que existe uma consciencializao crescente das carncias que no campo da escultura pblica se fazem sentir.

    Escultura pblica, que nos parece constituir, por outro lado, um estudo aliciante, prin-cipalmente se encarada na perspectiva de uma investigao cruzada das temticas que lhe esto directamente associadas: o Urbanismo, a Histria e o Desenho Urbanos, a Morfolo-gia e a Teoria da Cidade. que, sendo a cidade um documento da Histria, o estudo da es-cultura pblica e, muito particularmente, a problemtica do monumento, constituem uma das manifestaes fundamentais da arte pblica e do azo a pertinentes reflexes: como se integram as obras no tecido urbano; como contribuem elas para a definio de uma ima-gem da cidade; que funes lhe so imputadas; por que metamorfoses tm passado no lti-mo sculo; que modelos e influncias denotam; que agentes contribuem para a sua defini-o; que vivncias acolhem ou suscitam; que discurso lhes historicamente associado...

    So estes alguns dos aspectos que mais interessam ao presente estudo. Um estudo que encarado como uma indagao escultura implantada no espao pblico portuense no sculo XX. Uma indagao aberta e reflectida que visa o seu objecto atravs de uma estru-tura interpretativa que j um primeiro resultado da prpria investigao. Estudo que de-corre em mltiplas vertentes, desde a inventariao e classificao das obras at sua an-lise e insero histrica, tendo em vista a necessria actualizao interpretativa dos diferen-tes segmentos que vm caracterizando a referida produo.

    Desde logo, este trabalho tem como escopo fundamental contribuir para a valorizao e promoo, pelo seu estudo atento, da obra de arte inserida no espao pblico. Refm du-rante dcadas de uma manipulao poltico-cultural limitativa e desprestigiante, a arte p-blica e nomeadamente a escultura, de algum tempo a esta parte, tm procurado encontrar caminhos alternativos e independentes de afirmao e de expresso, naquilo que constitui

    1 Referimo-nos concretamente a obras como A Estaturia do Porto, FERREIRA, Rafael Laborde e VIEIRA, Vitor Lopes, Porto, 1987 e O Porto e a sua Estaturia, BROCHADO, Alexandrino, Edies Salesianas, Porto, 1998. 2 A Estaturia Portuguesa dos Anos 30, Bertrand, Lisboa, 1991. 3 Escultura Portuguesa, CTT, Lisboa, 1997, Edio Bilingue. 4 Porto, Museu dos Transportes e Comunicaes, Alfndega Velha, 1998.

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    um interessante fenmeno de reformulao e de reapropriao do espao pblico que, es-ttica e culturalmente, se redescobre e se reinventa, na consciencializao e transposio das insuficincias do funcionalismo.

    Fenmeno geral, portanto, com diferentes manifestaes no chamado Mundo Ocidental, e no s, que tem escolhido as cidades histricas do Velho Continente como cenrio favorito, e cujos primeiros arremedos remontam s realizaes de que foi palco a cidade de Paris, em 89, aquando das celebraes do bicentenrio.

    Caso exemplar dessa metamorfose Barcelona, onde para l dos resultados concretos que a esse nvel so bem visveis, e que so j um exemplo de como a arte pblica, e em especial a escultura, podem desempenhar um papel decisivo, seno mesmo central, na requalificao e regenerao dos espaos urbanos, paralelamente a esses aspectos pragm-ticos, e de algum modo sustentando-os, prossegue a uma fecunda actividade de investi-gao e discusso, com a escultura pblica a ser estudada a nvel de licenciatura na Univer-sidade de Barcelona5, sob a direco do Prof. Antoni Remessar.

    Nestes mesmos pressupostos assentou a escolha do tema da nossa dissertao. Uma indagao escultura pblica do Porto no sculo XX, com o objectivo de trazer at hoje as particularidades de um conjunto de obras, que, nalguns casos, esto a ser estudadas agora pela primeira vez. Particularidades evolutivas e caracteriolgicas que tm ajudado a cons-truir uma diferenciao que, como veremos, actualmente, j possvel vislumbar.

    Por este ltimo aspecto se justifica um to longo perodo de considerao. Alis, torna-se difcil, no final do sculo, resistir tentao de lanar um olhar retrospectivo procura de uma linha sequencial, como o denota, por exemplo, as vrias exposies que se tm realizado, tendo como tema o sculo XX6.

    Na verdade, a produo escultrica pblica portuense no sculo XX no se apresenta como uma sequncia linear, mas formada por diferentes segmentos produtivos que ao mesmo tempo se sucedem e sobrepem, ora adaptando-se, ora resistindo aos ventos da Histria e s solicitaes da Cultura, nas diferentes modalidades de que a escultura e a esta-turia se servem para se inserirem no espao pblico e no tecido urbano.

    Para ordenarmos esta disparidade de situaes, organizmos o estudo dividindo o conjunto da produo em quatro categorias ou classes: Lugares de Memria; Elementos de Animao Arquitectnica; Elementos de Qualificao Urbana e Lugares de Devoo. Trata-se de um esquema que foi pensado para categorizar a escultura inserida no espao pblico e, j se v, a esse tipo de produo que ele se aplica.

    Alm destas quatro categorias, dividimos a produo em seis ciclos, correspondendo cada um deles aos j referidos segmentos de produo: Fin-de-sicle; Proto-Modernismo; Resgate; Compromisso/Contestao; Renovao e Internacionalizao/Individualizao. No comporta cada um destes ciclos uma periodizao rgida, verificando-se que, apesar de a cada passo s a um deles caber a primazia, os mesmos convivem de um modo geral pacificamente, verificando-se at que alguns escultores se deixam contaminar por segmentos de produo que no eram inicialmente os seus, transitando de um para o outro.

    Por fim, havendo a necessidade de distinguir obras de importncia muito diversa, atribumos quatro nveis de considerao e de inventariao, de um 1 a 4, correspondendo

    5 Que tem um excelente site na Internet, a que nos referiremos, e donde provm muitas das informaes que mencionare-mos ao longo do trabalho 6 Alguns exemplos: O Automvel em Portugal 100 Anos de Histria; As Comemoraes dos 100 Anos do Cinema Portugus; A Figura Humana na Escultura Portuguesa do Sculo XX; Arquitectura do Sculo XX, Portugal.

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    o nvel 1 s obras de primeiro plano de cada ciclo e em cada classe de implantao.

    Na base do estudo, encontra-se, portanto, um inventrio, tanto quanto sabemos exaustivo, da produo escultrica inserida no espao pblico. Inventrio informtico que realizmos no programa Access 7.0 da Microsoft que conta com 242 registos de obras existentes e 17 de obras que no chegaram a ser implantadas ou foram retiradas ou demolidas. Inventrio que depois de esgotados os levantamentos parciais que existem nas obras j referidas teve de prosseguir no arquivo, nos esplios dos escultores e no prprio terreno.

    Mas em virtude do estudo da escultura pblica no poder circunscrever-se sua in-ventariao, introduzimos no nosso trabalho o estudo histrico das obras de Nvel 1, para por essa via podermos detectar os vectores scio-culturais que sobre elas exerceram um de-terminado efeito de campo (cf. Bourdieu, Pierre, 1992) para assim dispormos de instru-mentos de interpretao e de anlise que permitissem formular hipteses de explicao e, eventualmente, de correco dos ciclos j referidos, na perspectiva dos agentes sociol-gicos.

    Por fim, e porque a obra de arte pblica para l do estudo e catalogao que possa ser feito, antes de mais um facto urbano (cf. Rossi, Aldo, 1977) destinado a ser frudo e vivido pela comunidade e que na qualidade de sujeito-objecto da prpria cidade, detentora de uma dimenso social e humana, procurmos sondar a sua intencionalidade, por forma a perce-ber como ela numa perspectiva fenomenolgica se insurge e apreendida pelo sujeito.

    Foram estas as linhas mestras do nosso trabalho. Um trabalho que foi forado a adquirir uma dimenso, porventura, excessiva, embora nos tenhamos preocupado em eliminar toda a retrica intil, bem como em evitar toda a erudio estril ou meramente petulante. Pro-curmos, isso sim, lanar um olhar atento, analtico e crtico sobre as obras, por forma a fa-zer emergir o seu valor, ou a falta dele, pois em ltima anlise na obra de arte em si mes-ma que se encontram plasmadas e codificadas as chaves da sua prpria desocultao, uma desocultao que somente pela exegese da obra o historiador e o crtico podero realizar.

    O estudo e a descrio das obras processa-se cronologicamente dentro dos agrupamentos a que pertencem, sendo o fluxo diacrnico decomposto em seis fases distintas, estabelecidas de acordo com uma proposta de periodizao e de interpretao que se discute mais adiante.

    Mas porqu um mbito cronolgico to extenso?

    Dadas as limitaes estruturais da dissertao, temos conscincia que este um dos aspec-tos mais vulnerveis da presente indagao. Vale como justificao o facto do objecto de estudo se encontrar espacialmente limitado ao municpio do Porto, o que significa uma importante reduo do campo, se comparado, por exemplo, com a obra de Joaquim Saial7 que apesar de circunscrita dcada de trinta, e na prtica um pouco mais do que isso, abarca todo o territrio portugus da poca, estendendo-se, portanto, tambm, ao ento designado, ultramar.

    Por outro lado, para formular uma sntese e testar o sistema de classificao, uma dcada no era suficiente. que, a evoluo da arte portuguesa durante o sculo XX foi muito lenta e as persistncias muito fortes. Apesar dos pontos altos (1915-17) e (1947-49) e baixos (1918-35) e (1940-45) j genericamente assinalados por Jos-Augusto Frana8, a es-cultura no tem correspondncia directa com a tendncia geral, no se registando na 1

    7 SAIAL, Joaquim, Estaturia Portuguesa dos Anos 30, Bertrand, Lisboa, 1991. 8 Vide, FRANA, Jos-Augusto, A Arte e a Sociedade Portuguesa no Sculo XX, Livros Horizonte, s/d, Lisboa, pp. 92-108.

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    Gerao de escultores modernos Francisco Franco, Diogo de Macedo e Antnio de Azevedo fenmenos equivalentes ao de Amadeo, Santa-Rita e Almada, e justificando-se outras segmentaes, segmentaes essas que se particularizam ainda mais se se proceder, como o caso, a um estudo de mbito local.

    Perdia-se essa viso, se a investigao no fosse empreendida em bloco. E pior do que isso, sem uma viso macro, como proceder a nvel micro?

    Nem tudo o que inicialmente pretendamos pode ser alcanado9. Em compensao, aspec-tos que no tnhamos previsto, a partir de determinada altura comearam a insinuar-se de tal forma, que no fim nos conduziram a concluses que partida no supnhamos.

    Comeando, portanto, por realizar um inventrio informatizado, que naturalmente fomos aperfeioando e enriquecendo com o tempo, foi o texto que se segue escrito em menos de um ano, pelo que no tivemos oportunidade de lhe introduzir todos os acertos que ele ainda requer, nomeadamente, acertos de simplificao e de equilbrio das partes, uma vez que, como poder verificar-se, a pesquisa documental de um modo geral mais abundante para as obras da primeira metade do sculo XX do que para as mais recentes. Se por um lado isso desequilibrou formalmente o trabalho, por outro a ter de escolher, obviamente prioritrio salvar a memria das obras mais antigas do que das mais recentes.

    Prejudicada ficou, em parte, a interpretao fenomenolgica da escultura, que aqui se reduz anlise intencional e insero urbana, enquanto espaciar. Para l do belo manuscrito em pedra litogrfica Die Kunst und Der Raum10, de Martin Heidegger, publicado, em 1969, com litogravuras do escultor basco Eduardo Chillida, e especificamente consagrado escultura, falta-nos outro material terico de base. Para a arquitectura, o trabalho iniciado tambm por Heidegger, com a Conferncia de Darmstadt de 1951, subordinada ao tema Bauen-Whonen-Denken11, publicada no ano seguinte, teve continuidade, graas obra de Christian Norberg-Shulz, de Gaston Bachelard e de Eduard Hall, a primeira das quais entre ns estudada por Victor Consiglieri.

    Pareceu-nos que um estudo de insero da escultura no espao pblico, deveria intentar transpor quer uma concepo gestltica do espao, unilateralmente entendida a partir das estruturas perceptivas do sujeito, tal como a empreendeu Kelvin Lynch, em The Image of The City, M.I.T., 1960, quer uma concepo topolgica, unilateralmente entendida a partir das estruturas fsicas do lugar, abrindo-se, radicalmente, num segundo tempo, a uma concepo fenomenolgica, pela assuno da noo de espao vivido: a nica que permite significar o espao e construir lugares que domiciliam el estar del hombre.12 Concentrar todas as energias neste aspecto particular, alm de um resultado incerto, no era obviamente sensato. Com tanto por estudar e por documentar no captulo da escultura a montante da reflexo filosfica, seria absurdo faz-lo. Por isso, aceitmos comear pelo princpio: levantamento, apuramento dos factos, cruzamento de informaes, estudo de casos, discusso de hipteses, registo de concluses nem sempre, j se v, linearmente, segundo esta ordem.

    9 Referimo-nos nesta passagem aos estudos de opinio (inquritos) que inicialmente pretendamos realizar, mas que a necessidade de proceder a outros estudos, por assim dizer, a montante, no nos permitiu empreender. Por isso, na falta desses instrumentos de investigao, a abordagem fenomenolgica da escultura pblica, ficou incompleta, reduzindo-se anlise intencional das obras e sua espacialidade, a que nos referiremos. 10 vide BARAANO, Kosme Mara de, Husserl-Heidegger-Chillida, Universidad del Pas Vasco, 1990, pp. 47-61. Traduo a partir do castelhano no Anexo I. 11 Construir-Habitar-Pensar, vide, idem, pp. 125-159. 12 HEIDEGGER, Martin, Construir-Habitar-Pensar, In, Baraano, Kosme Mara de, op. cit., p. 151.

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    Sacrificada, ficou a estaturia tumular, no pelo facto da estrutura de interpretao no permitir a sua incluso poderia inserir-se na classe lugares de memria mas por considerarmos que, devido singularidade da sua intencionalidade e sacralidade do es-pao em que se instaura, ela requeria uma abordagem de carcter monogrfico, apesar de um primeiro levantamento j existir13.

    O mesmo sucede com os relevos de fachada cujo estudo, na presente indagao, circuns-crevemos aos edifcios pblicos, e que, ao nvel da arquitectura particular, oferece produ-es muito diversificadas, algumas de aprecivel qualidade, e que pela sua especificidade com propriedade justificariam, tambm, um estudo monogrfico.

    As obras paradigmticas so todas includas no 1 grau de tratamento, Nvel 1, procedendo-se sua histria, descrio e anlise, na segunda parte, limitando-nos a assinalar aqui alguns exemplos que recolhemos.

    Em Anexo, figuram as fichas das obras inventariadas.

    Resta-nos, enfim, agradecer a todos quantos nos ajudaram a realizar este trabalho.

    Em primeiro lugar, dirigimos uma palavra de apreo e reconhecimento ao Prof. Doutor Antnio Cardoso que nos orientou nesta empresa. Queremos reconhecer e agradecer a abertura que sempre patenteou relativamente ao nosso projecto, quer incitando quer acon-selhando ponderao, e sobretudo pelo facto de se ter mantido ao mesmo ligado apesar das contrariedades da sua sade.

    Em segundo lugar devemos agradecer aos artistas e herdeiros de escultores j falecidos o apoio e as facilidades concedidas na reproduo de imagens e documentos dos referidos esplios. Nomeadamente, agradecer a Mestre Jlio Resende pelo seu amvel acolhimento no Lugar do Desenho, e aos escultores Zulmiro de Carvalho e Jos Rodrigues pelas sua declaraes bem como pelas correces que fizeram aos nossos dados. Aos familiares do escultor Henrique Moreira, arq. Hernni Moreira e eng. Fernando Moreira e respectivas esposas devemos de forma muito particular agradecer o simptico acolhimento e as foto-grafias e a documentao disponibilizada.

    A inmeras instituies devemos tambm agradecer, nomeadamente ao Atelier-Museu de Antnio Duarte nas Caldas da Rainha, onde pudemos visitar e fotografar o esplio do escultor Barata Feyo e Joo Fragoso, sua guarda. Casa-Museu de Teixiera Lopes na pessoa da sua Ex Directora, escultora Teresa Lapa, devemos agradecer tambm as consultas que nos permitiu ali realizar. Dr Lcia Almeida-Matos da Faculdade de Belas Artes do Porto, por nos ter facultado o acesso ao arquivo do museu. Ao director do Museu Militar do Porto Tenente-coronel Carvalho devo agradecer a autorizao para fotografar a esttua a Sentinela e a maquete do MMGG. Tambm ao Museu Nacional Soares dos Reis devemos agradecimentos, nomeadamente Ex responsvel pela Biblioteca, D Vera Clem, que ps nossa disposio o precioso lbum O Homem do Leme, permitindo-nos fotograf-lo. Mairie de Maisons-Alfort e ao Instituit Franais de Porto, que nos forneceu o contacto com a primeira, devemos agradecer a colaborao e informaes prestadas, e, por parte da primeira, o envio das imagens do MMGG da referida localidade dos arredores de Paris. Aos funcionrios do Arquivo Geral da Cmara Municipal do Porto, devemos tambm agradecer a paciente colaborao na pesquisa realizada, nomeadamente D Teresa e Dr Isabel. Ao Centro Nacional de Fotografia, devemos tambm agradecer a mostra do extenso esplio fotogrfico de Aurlio da Paz dos Reis, j informatizado. Fundao Engenheiro Antnio de Almeida e ao seu Director Dr. Fernando Aguiar-Branco queremos tambm

    13 vide, Catlogo da Exposio Arte e Silncio, CMP, 1989.

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    agradecer a ateno dispensada e os livros que amavelmente nos ofereceu sobre as iniciativas da Fundao no campo da escultura. Ao Ateneu Comercial do Porto devemos tambm agradecer as facilidades de consulta e de trabalho, na sua belssima biblioteca. Cooperativa dos Pedreiros Portuenses devemos tambm agradecimentos, nomeadamente ao seu Director Sr. Joaquim de Oliveira Guedes pelos boletins que nos ofereceu e pelo seu testemunho mpar. Associao Amigos de Gaia, pelas facilidades concedidas. Em todas as bibliotecas em que trabalhamos e aos seus funcionrios, Biblioteca Pblica Municipal do Porto, de Gaia, da Faculdade de Letras do Porto e da Faculdade de Arquitectura do Porto devemos tambm agradecer, bem como s Juntas de Freguesia, nomeadamente de Ramalde, de Massarelos e de Nevogilde, pelos materiais disponibilizados.

    Em termos de agradecimentos pessoais, em primeiro lugar queremos agradecer ao arqui-tecto Joaquim Massena pela disponibilizao dos resultados do estudo de materiais realiza-do no grupo Comrcio e Agricultura do Mercado do Bolho. Aos procos das igrejas de Al-doar, P.e Mrio Lino; Sr da Boavista, P.e Giulio Carrara; S. Martinho de Cedofeita, P.e Orlando; Sr do Porto, P.e Incio e de St Antnio das Antas, Cnego Joaquim Carvalho de Sousa, devemos agradecer todas as facilidades concedidas. A todos quantos nos foram dando notcia de esculturas e de relevos em lugares recnditos da cidade, devemos tambm agradecer, nomeadamente ao nosso colega Carlos Alberto Matos com quem trocmos e partilhmos vrias informaes e que alm do mais foi um excelente camarada nos longos meses de consulta no Arquivo Geral da Cmara Municipal do Porto. Para finalizar, uma palavra muito especial a todos os meus familiares que souberam com-preender e desculpar os transtornos que um trabalho destes causa vida familiar, nomea-damente o meu Pai que no se rogou a prestar todo o apoio aos netos, e a quem dedico agora este trabalho.

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    Primeira Parte

    Escultura e Espao Pblico

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    Estaturia monumental, encomenda pblica, arte oficial. No so temas encerrados e h muito resolvidos? No foram j escritos a fogo os ditames deste sculo portugus? Natura-lismo, modernismo, resgate, contestao, internacionalizao, individualizao (?). No so estes os modos deste tempo? Apesar de tudo o que, no mbito da histria da arte em Portugal no sculo XX, j foi escrito sobre o tema da arte no espao pblico e nomeadamente sobre a estaturia e a es-cultura, estudos exclusivamente consagrados a este tema e organizados em funo do seu objecto especfico tm sido, entre ns, raros14, privilegiando a abordagem cronolgica ou circunscrevendo-se s controvrsias geradas em torno de concursos e inauguraes de mo-numentos e outras obras escultricas.

    No obstante, a arte no espao pblico constitui uma das vertentes da criao artstica que actualmente recrudesce com maior vigor e donde nos parece lcito esperar desenvolvimen-tos cada vez mais importantes, pelo que abordar esta temtica significa confrontar-se com um manancial de informao e de problematizao com particular interesse para a Histria da Arte, na medida em que, pelo estudo desse recrudescimento, poder-se- perspectivar melhor a situao real em que se encontra presentemente a criao artstica.

    Neste mbito, tm sido dados, no terreno da produo escultrica, bem como no do seu estudo, alguns passos importantes, recentemente, em Espanha e no Reino Unido.

    Em 1996, realizou-se em Barcelona um Seminrio Internacional sobre a Arte Pblica nos Espaos Pblicos15, organizado sob a direco do professor Antoni Remesar16 pelo Departamento de Escultura da Universidade de Barcelona, e contando com a participao de estudantes da Faculdade de Belas Artes e da Fundao Tpies. De mbito internacional, o Seminrio registou a presena de artistas, arquitectos, psiclogos, economistas, e historiadores de arte, provenientes de universidades de Espanha e de Inglaterra.

    Decorrendo num quadro transdisciplinar e internacional, o Seminrio foi um encontro des-tinado a lanar as bases de uma reflexo de fundo e de longo prazo, centrada em ideias fortes, comprometidas e diferenciadas17. No Seminrio, a temtica da Arte no Espao Pblico foi abordada das mais diversas for-mas e sob os mais diferentes pontos de vistaA, como sempre sucede quando se encontram em fase de discusso preliminar as abordagens e as metodologias mais adequadas a uma nova disciplina.

    Da anlise dos motivos de reflexo desse Seminrio, possvel tematizar as principais questes: o impacte econmico da obra de arte pblica; o seu carcter social; o seu contri-buto para a identidade e a legibilidade urbanas; a relao entre os artistas, os poderes pbli-cos e o pblico questes cujo exame e debate configuram a especificidade desta moda-lidade de criao artstica, modalidade essa que, curiosamente, tem a particularidade de interpelar e confrontar, conjuntamente, os artistas, os estudiosos e os poderes pblicos, convocando-os na dupla qualidade de profissionais e de cidados.

    14 O livro Cermica Mural Portuguesa Contempornea, Quetzal, Lisboa, 1996, de Suraya Burlamaqui uma obra de referncia 15 vide, Colquio-Artes, Lisboa, n 108, Jan-Mar de 1996, p. 69. 16 Importa assinalar que o nome deste investigador se encontra associado a vrias iniciativas de regenerao urbana em Espanha e que a esse ttulo mantm presentemente na Internet um Forum de discusso exclusivamente consagrado temtica da Arte e da Escultura nos espaos pblicos 17 vide, Colquio-Artes, Lisboa, n 108, Jan-Mar de 1996, p. 69: "des ides fortes, c'est-a-dire de l'ordre d'un engagement, se sont retrouves, exprimes de faon diffrente, chez plusiers auteurs"

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    que, a presena da obra de arte no espao pblico constitui, como costume actu-almente dizer-se no discurso institucional, uma mais-valia que particulariza, promove e... atrai investimentos, funcionando como um instrumento de afirmao cultural e de cresci-mento econmico, particularmente importante para as cidades mais pequenas.

    Esta deslocao do campo cultural para o econmico que se verifica em certo discurso te-cnocrtico/meditico sobre a arte pblica, no ocorre por acaso. Ela denota a nova uti-lizao que os poderes pblicos pretendem consagrar arte e cultura, ao apropriar-se des-sa mesma mais-valia, integrando-a no sistema socioeconmico com vista sua rentabiliza-o. Por outro lado, a arte pblica, enquanto destinada a uma determinada comunidade, comporta potencialmente uma dimenso social, convocando-a e confrontando-a com a sua prpria identidade e, potencialmente, desalienando-a. Mais ainda contribui a arte pblica para o ordenamento e qualificao dos espaos, logo, das vivncias, urbanas. Muitas das grandes urbes experimentam actualmente um processo de reabilitao da imagem e de re-formulao dos conceitos a que tem estado vinculado o seu crescimento, afastando-se da lgica funcionalista, e procurando conciliar o respeito pelo patrimnio e pelo ambiente, com a realizao e valorizao de intervenes, por vezes de escala monumental (ex: La Dfense, Paris, 1989; Vil.la Olmpica, Barcelona, 1992; Expo-98, Lisboa, 1998, Bilbao Metropoli-30, Bilbau, 1998-, etc.). Em termos de identidade e legibilidade da cidade, a integrao da arte pblica no espao urbano permite obter intervenes mais valiosas, quando na sua gnese as mesmas se prevem nos planos e fazem parte integrante dos programas, deixando as obras de arte de ser encaradas como prtese aditiva e integrando-se no espao com carcter e coerncia. En-fim, para poderem introduzir-se estas transformaes, um novo relacionamento entre os artistas, os poderes institudos e o pblico requerido, o que coloca por sua vez a questo da tomada de decises e da partilha de responsabilidades, ou seja a problemtica da articu-lao dos poderes pblicos, polticos e financeiros locais, nacionais e supranacionais.

    Em sntese, aquele Seminrio denotou uma consciencializao crescente, e nem sempre inocente, do valor, dos benefcios e dos objectivos da presena da arte no espao pblico, e o debate que decorre em torno desta matria, ainda demasiado recente para agarrar todos os aspectos do problema e incorpor-los numa teoria consistente, em termos de histria da arte.

    Para tanto, requer esta temtica a formulao de novas abordagens de apreenso e de inter-pretao das obras de arte pblica, sendo importante desde j chamar a ateno para o es-tudo de psico-sociologia da arte levado a acabo por Frederico Revilla18, pela sua relevncia e importncia cientfica.

    Embora pontual, destinava-se aquele trabalho a avaliar e interpretar el impacto sobre la gente corriente (el paseante indiscriminado) de las obras ubicadas en la via pblica, sto s, accesibles a la contem-placin de todos19. Em causa encontravam-se duas obras escultricas: Mujer y pjaro, de Joan Mir e Homenatge a Picasso de Antoni Tpies. A metodologia usada foi o inqurito, sendo para o efeito preenchidas tabelas com dados pessoais e realizados questionrios aos transeuntes.

    Passando directamente s concluses do estudo, os resultados so estimulantes: La primera nota que subrayar es que los resultados obtenido, por lo general, son superiores a lo que se suele estimar acerca del critrio del hombre de la calle. Una consecuencia

    18 vide, Colquio-Artes, Lisboa, n 88, Maro de 1991, pp. 30-35. 19 idem, p. 30.

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    cientifica inmediata es la desconfianza hacia las estimaciones y prejuicios: todo juicio de valor debe hallarse refrendado por estudios objetivos. Una consequencia politico-social consiste en que la madurez detectada en unos percentejes sumamente apreciables de la poblacin justifica iniciativas tales como la instalacin de obras de arte en la via pblica, aqui amplamente refrendada. [...] Los poderes pblicos debieran apoyarse en esta receptividad para ser an ms atrevidos en sus acciones de difusin del arte. [...]

    [...] la actitud es favorable y de este modo se desmiente la suposicin de que el gran pblico sea, por definicin, adverso al arte contemporneo20.

    A partir dos exemplos citados, possvel enquadrar-se a problemtica da integrao da arte no espao pblico, sob novas perspectivas. Perspectivas que salvam, queremos crer, as obras destinadas a esse fim de uma incontornvel rotulao pejorativa.

    Ainda em Espanha, e no campo da produo escultrica, afigura-se-nos exemplar a pro-duo do escultor basco Eduardo Chillida (San Sebastin,1924- ). Exemplar, pelo peso que a escultura pblica tem no conjunto da sua obra21. Uma obra que se impe pela intemcio-nalidade potica e pela carga expressiva que esto na sua gnese, e que enformam uma arte de identidade, a partir de uma pesquisa formal e existencial, coerentemente puxada at aos limites, como acontece com a obra Peine del Viento, San Sebastin, 1976, (figura n 1) que agrega a escultura de Eduardo Chillida (n. 1924) e o projecto de arquitectura de Lus Pea Ganchegui, ambos artistas bascos.

    Figura n 1 Eduardo Chillida com os filhos junto obra Peine del Viento, San Sebastin, 1976

    No Reino Unido, importantes passos tm sido dados no sentido de proceder ao estudo da escultura pblica, nomeadamente atravs da criao, em 1991, de uma instituio inteira-

    mente consagrada promoo e proteco dos monumentos e da escultura pblica, cuja si-gla, PMSA, significa Public Monuments and Sculpture Association uma instituio que tem um site na Internet, que publica regularmente um Jornal, The Sculpture Journal, e que promo-ve e divulga a publicao de bibliografia sobre escultura urbana, tendo nesse mbito sido publicado pela Universidade de Liverpool, as seguintes obras: Public Sculpture of Liverpool, em 1997 e Public Sculpture of Birmingham, em 1998. Ainda no Reino Unido, importa mencionar o projecto NRP National Recording Project cujo objectivo catalogar cada obra de escultura pblica e cada monumento nas Ilhas Britnicas e

    20 idem, p. 35. 21 Ver uma listagem de Monumentos Pblicos no Anexo n 3.

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    manter essa informao em forma digital para acesso pblico22, tendo sido para tanto dividido o pas em Centros de Arquivo Regional, a maior parte dos quais dependentes no de servios administrativos, como usual entre ns, mas de instituies acadmicas, conduzindo cada um desses centros regionais a informao resultante dos levantamentos efectuados para o NAC National Archive Centre para verificao, comparao, armazenamento e disse-minao, em forma digital.

    Uma das cidades que aderiu a esta dinmica foi, uma vez mais, Barcelona, onde j funciona um Observatrio Internacional de Arte Pblica que mantm na Internet23 uma base de dados sobre a escultura pblica de Barcelona, cujos registos podem ser consultados e imprimidos pelo pblico. Os objectivos deste Observatrio so de mbito internacional, sendo a sua primacial prioridade ajudar os investigadores a conhecer os desenvolvimentos da arte pblica em diversas partes do mundo, dando ao mesmo tempo apoio aos grupos locais para analisar as implicaes dos trabalhos e dos programas24 Tudo se passa como se, pelo seu carcter no privado, nem em termos de propriedade nem em termos de direitos de autor, a arte pblica se adequasse de forma particularmente harmoniosa a estas novas modalidades abertas de informao e de comunicao.

    Em Portugal, a recolha, o tratamento e a disponibilizao de dados referentes arte pblica contempornea encontram-se bastante mais atrasados e de um modo geral esse trabalho prossegue no mbito dos servios do Estado e das instncias da Igreja que so directa-mente responsveis pela tutela das respectivas obras, no se encontrando a comunidade ci-entfica dotada de poderes nem, to-pouco, parece-nos, mobilizada para o acompanha-mento, anlise e discusso dos seus desenvolvimentos. Por isso, porque ainda no se verifi-cou a adeso de todos os intervenientes a estas modalidades abertas de informao e de comunicao, a partilha e o intercmbio das bases de dados j organizadas25 necessrias ao desenvolvimento dos estudos de Arte Pblica, no se pratica ainda entre ns, no se en-contrando facilitado o acesso dos dados ao pblico, nem mesmo aos investigadores, o que no deixa de ser, alm de errado, muitas vezes revoltante.

    Mas mesmo assim, ao nvel da produo, Portugal acompanha a tendncia a favor da devo-luo da arte ao espao pblico, nomeadamente, e de forma particularmente sensvel, no campo da escultura, verificando-se aqui a afirmao de uma prtica crescente por parte de numerosos escultores cuja obra parece vocacionada para intervir no espao pblico, j no com funes de celebrao ou de decorao, mas enquanto ncleos de unificao e de identificao social26. Embora de explicitao recente, as razes desse movimento remontam a 1973, data que se tornou charneira da estaturia em Portugal, devido implantao da esttua de D. Sebastio, em Lagos, de Joo Cutileiro, ainda por encomenda municipal27. Da em diante, a tendncia foi-se afirmando lenta e localmente28, at se fortalecer a partir de uma srie de consagra-

    22 Traduzido do site da Internet do NRP. 23 Endereo: http://www.ub.es/escult/pao/Database.htm 24 vide, Internet, http://www.ub.es/escult/pao/Database.htm 25 A Direco Geral dos Edifcios e dos Monumentos Nacionais tem inventariados informaticamente alguns dos principais monumentos do pas, mas esses dados s podem ser visualizados em fichas singulares no-interactivas, no sendo permitida a sua impresso. 26 ALMEIDA-MATOS, Lcia, Escultura Humana, In, Catlogo da Exposio A Figura Humana na Escultura Portuguesa do Sculo XX, Porto, 1998, p. 19. 27 A inteno inicial da Cmara era encomendar uma medalha, mas o escultor sugeriu uma esttua que ofereceu, limitando-se a Cmara a custear as despesas. 28 Registe-se a esse ttulo a criao em Lagos do Centro da Pedra, no ano de 1978, por Joo Cutileiro, local

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    es pontuais, pela organizao dos chamados Simpsios de escultura: ateliers abertos reunin-do artistas, empresas e poderes pblicos, que tm constitudo momentos privilegiados de encontro e de confronto de experincias e de tcnicas, a nvel internacional, iniciado, em 1981, em vora29, sob a iniciativa de Joo Cutileiro e depois, em 1985, no Porto30, sob a iniciativa da Ar.Co.

    Mesmo depois de desactivado o Centro da Pedra em Lagos, que havia sido criado por Joo Cutileiro, o movimento no parou, acabando por criar razes e diversificando-se. Actual-mente em St Tirso31, nas Caldas da Rainha32 e noutras localidades, tm sido organizados Simpsios, embora de concepo diversa, cabendo actualmente ao primeiro a primazia do rigor da concepo e do impacte urbano favorvel das obras, passado que foi o prota-gonismo de Vila Nova de Cerveira e das suas bienais de arte, durante os anos 80. A um ou-tro nvel, por assim dizer, mais institucional, tambm no se pode ignorar a presena das obras de arte no recinto da Expo-98, com intervenes interessantes de escultores como Alberto Carneiro, Amy Yoes, Antony Gormley, Joo Cutileiro, Jorge Vieira e Rui Chafes.

    portanto como modesta e preliminar contribuio para o estudo do fenmeno da escul-tura inserida no espao pblico, que empreendemos o presente trabalho, propondo, para o efeito, uma estrutura de interpretao, propositadamente concebida para esse fim.

    Antes de mais, consideramos que a abordagem desta matria, reclama uma sntese e um re-torno s coisas: o real precisamente aquilo que ns percebemos (Merleau-Ponty). Da, o levan-tamento minucioso e a paciente inventariao. Uma inventariao que obriga a classificar. Uma classificao que obriga a observar, comparar, agrupar e descrever, mas que, acima de tudo, pretende interpretar.

    Em histria da arte a interpretao sempre problemtica, pois, como observa Henri Zer-ner, le discours sur l'art, se trouve pris, pour ne pas dire coinc, entre l'histoire et la critique. Empirique et positiviste l'histoire de l'art traditionnelle se trouve extrmement mfiante l'gard de toute thorie et mme de toute interprtation approfondie des oeuvres.33 Mas interpretar aprofundadamente no dispensa o conhecimento aprofundado das obras, na medida em que, como Zerner afirma, ce qu'on raproche a cet empirisme n'est pas sa mfiance mais sa naivet, relle ou fainte; c'est d'apporter subrepticement une interprtation, un systme de valeurs, une idologie34. No a prtica da inventariao, da datao, da classificao e da restituio das obras, pelo museu, pela exposio ou pelo catlogo que so reprovveis, em si, mas o facto de que os sistemas de classificao, par artistes, par coles nationales ou regionales, par genres [...] impli-quent une conception prcise de l'art et une interprtation35, interpretao que no apresentada como tal, e que, dessa maneira, pretende colocar-se a salvo de interpelaes.

    onde iniciaram a sua actividade escultores da nova gerao como Jos Pedro Croft e Antnio de Campos Rosado. 29 vide, CHIC, Slvia, Joo Cutileiro, INCM, Lisboa, 1981, p. 19. 30 vide, Catlogo da Exposio Escultura em Pedra, CMP, Porto, 1985. 31 vide, Catlogos do 1 e 2 Simpsio Internacional de Escultura, St Tirso, 1991, 1993. 32 vide, O Pblico, 2 de Agosto de 1998, p. 20 33 ZERNER, Henri, L'Art, In, Le Goff, Jacques et Nora, Pierre (dir), Faire l'Histoire II, Gallimard, Paris, 1974, p. 183. 34 idem, p. 184 35 idem, ibidem.

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    Por isso, a infraestrutura deste estudo assenta sobre uma inventariao, por assim dizer, museogrfica, sendo, no fundo, a cidade equiparada a um vasto museu de ar livre, cujos espa-os expositivos deixam de ser meros receptculos mais ou menos neutros ou cenogrficos das obras, e passam eles mesmos a constituir objectos de indagao, em termos de histria e morfologia urbanas.

    Para as interpretar, no basta, porm, conhecer empiricamente as obras. necessrio ana-lis-las a partir de um corpo terico, cujas chaves elucidem uma coerente apreenso. Henri Zerner, na reflexo que temos seguido, prope como teorias interpretativas a lingustica estrutural e a anlise freudiana, porque na sua opinio ensemble ils constituent la base la plus satisfaisante aujourd'hui pour une thorie de la representation36. No concordamos inteiramente com esta assero, um tanto ou quanto j datada, proferida ainda durante o optimismo da modernidade. Pelo menos, no cremos que nem uma nem a outra constituam, presentemente, a matriz interpretativa que melhor apreenda nos seus diferentes aspectos o objecto de estudo em questo.

    Para transpor as dificuldades que o presente estudo nos coloca, e para no cair na redun-dncia de explicaes sociolgicas37 ou polticas38, e ainda porque mais do que explicar a causalidade dos factos artsticos em geral, nos interessa desenvolver uma abordagem globa-lizante da escultura inserida no tecido urbano, escolhemos perspectivar a sua interpretao a partir de um entendimento fenomenolgico, sondando a intencionalidadeB com que as obras se insurgem na conscincia, a partir do seu locus concreto. Depois do trabalho pioneiro de Ernesto de Sousa, Para o Estudo da Escultura Portuguesa, (2 edio, 1973) onde uma abordagem de tipo fenomenolgico encetada, no se registaram, entre ns, posteriores desenvolvimentos nesta direco.

    Importa assinalar que aquela foi, como muitas outras elaboraes suas, uma obra concep-tual. Nela, Ernesto de Sousa traa um rumo, expe um programa. No o realiza, nem to pouco, em salutar conformidade com o genuno vanguardismo que o inspirava, se empenha em empreend-lo.

    Mas a conotao fenomenolgica est a bem presente, implcita e explicitamente. Implici-tamente, como se v, na seguinte passagem:

    Uma escultura , antes de mais, um objecto em aco. Onde quer que seja colocada, define e organiza o espao sua volta. Independentemente da contemplao que lhe conceder-mos, ela impregna logo os nossos gestos, contamina as nossas intenes. Em rigor, eu sou outro desde que coloquei este quadro na parede, revs da minha mesa de trabalho mas ainda assim necessrio rodar a cabea e deixar que o quadro me invada com o seu com-promisso espacial, ou melhor, que eu voluntarimente entre dentro dele. Mas j no acontece o mesmo com esta 'cabea de Cristo' da Rosa Ramalha que coloquei em cima da mesma mesa. No s a sua vtrea esfericidade me fascina... todo o espao volta se amoldou, e quando levanto a mo o meu gesto desliza em trs dimenses, outras, necessriamente. claro que no h fronteiras ntidas para estas coisas. Tudo impuro compromisso. Em to-do o caso, se se tratar de uma escultura de grande fora expressiva, ela que entra dentro de mim.39

    36ZERNER, Henri, op. cit, p. 189. 37 cf, FRANA, Jos-Augusto, A Arte e a Sociedade Portuguesa no Sculo XX, Livros Horizonte, s/d, Lisboa, p. 92-108 38 cf, GONALVES, Rui Mrio, Pintura e Escultura em Portugal, 1940-1980, 3 Ed., 1991, Lisboa, pp. 9-13 39 SOUSA, Ernesto de, Para o Estudo da Escultura Portuguesa, Livros Horizonte, 2 edio, Lisboa, 1973, p. 15.

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    Comparemos a passagem anterior com um trecho de Eduardo Loureno, onde o filsofo expe nos seus traos fundamentais a ideia chave da fenomenologia:

    Com a Fenomenologia a 'imagem' mesma da razo que se altera pelo facto da nova pers-pectivao das relaes entre sujeito e objecto. O objecto (real ou ideal), em lugar de ser a ocasio da actividade 'redutora' da Razo, tal como ela se exerce nas cincias da natureza, originariamente 'o outro visado pela conscincia' e esta ltima descobre-se como o acto de visar o objecto que permite constitu-la como 'conscincia'. Assim desaparece a conscincia como transcendncia ou como poder transcendental e se manifesta a sua realidade finita (como Malebranche antevira), cujo ser no medida do ser, nem a sua kantiana possibilida-de, mas se esgota na relao com o objecto de que ela , justamente, 'conscincia'.40

    Torna-se clara, assim, a fenomenologia da apreenso do objecto por parte do sujeito, em Ernesto de Sousa. A existncia da escultura, pela sua presena fsica e pela irradiao lumi-nosa que comporta, transforma o espao volta e contamina o ser do prprio sujeito. De facto, o sujeito constitui-se como sujeito, na medida em que se esgota na relao com o objecto que entra dentro de si e de que ele , por isso mesmo, conscincia. Quanto a referncias fenomenolgicas explcitas, para alm do emprego do conceito hus-serliano de atitude natural41 para caracterizar a arte ingnua, Ernesto de Sousa invoca ainda a fenomenologia, como auxiliar da anlise formal, em escultura, na seguinte passagem:

    O conhecimento da escultura exige ainda a assuno doutras disciplinas. Deixaremos para o fim o problema da anlise esttica formal (formas do primeiro e do segundo grau de-terminaes sensoriais e perceptivas, e investigao fenomenolgica da forma escultrica) por se confundirem mais com os processos de estudo que a fotografia pode especficamen-te facilitar.42

    Em sntese, a fenomenologia , ento, a teoria, ou melhor, a teorizao desse mesmo retor-no s coisas. Retorno s coisas, para nas coisas se (re)constituir mais profundamente como conscincia. Conscincia, neste caso, j se v, do prprio fenmeno artstico.

    Em sntese, a fenomenologia situa-se no centro da nossa indagao maneira de uma ideo-logia, fornecendo-lhe os fundamentos ontolgicos da sua prpria constituio. Desde logo, a ela se deve a gnese e a configurao do sistema de classificao, com os agrupamentos temticos, os planos de considerao, os graus de tratamento e os vectores de descrio das obras, a se-rem estabelecidos a partir de um entendimento e de uma prtica da fenomenologia e das suas ramificaes ontolgicas, existenciais e, irremediavelmente, ps-modernas.

    Concebemos uma estrutura de interpretao esquematizada da seguinte forma:

    1 Agrupamentos Temticos 1.1 Lugares de Memria 1.2 Elementos de Animao Arquitectnica 1.3 Elementos de Qualificao Urbana 1.4 Lugares de Devoo

    2 Planos de Considerao43

    40 LOURENO, Eduardo, Introduo Traduo Portuguesa de As Palavras e as Coisas de Michel Foucault, Edies 70, Lisboa, s/d, p. 11. 41 cf HUSSERL, Edmund, Ides Directrices pour une Phnomnologie, Gallimard, Paris, 1950, pp. 87 e segs. 42 Sousa, Ernesto de, op. cit., p. 45. 43 cf, HEIDEGGER, A Origem da Obra de Arte, Edies 70, s/d, Lisboa, pp. 14-30; pp. 30-46 e pp. 46-63

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    2.1 A obra de arte como coisa (Dingsein, em Heidegger) 2.1.1 Materiais 2.1.2 Tipologias 2.1.3 Implantao

    2.2 A obra de arte como processo (Geschaffensein, em Heidegger) 2.2.1 Produo 2.2.2 Aquisio 2.2.3 Histria

    2.3 A obra de arte como instaurao da verdade (Ins-Werk-Setzen-der Warheit, em Heidegger) 2.3.1 Carcter 2.3.2 Expresso 2.3.3 Significao

    3 Vectores de Descrio 3.1 Concepo 3.2 Composio 3.3 Expresso

    4 Graus de Tratamento 4.1 Nvel 1 4.2 Nvel 2 4.3 Nvel 3 4.4 Nvel 4

    5 Periodizao 5.1 Fin-de-Sicle 5.2 Proto-Modernismo/Neo-Academismo 5.3 Resgate 5.4 Compromisso/Contestao 5.5 Renovao 5.6 Internacionalizao/Individualizao

    Como se v, os diferentes itens no foram definidos em funo de tipologias, assuntos, pe-rodos, tendncias ou autores, mas sim a partir do carcter evidenciado pelas obras concre-tas, carcter esse que se obteve por reduo fenomenolgica44, eliminando atravs de uma exclu-so radical de toda a posio de transcendncia45 todos os aspectos contingentes, at chegar ao res-duo fenomenolgico, a essncia do visar da conscincia, uma vez que ao pr fora de circuito a doxa natural (posio espontnea da existncia do objecto) a reduo revela o objecto enquanto visado, ou fe-nmeno46, passando este a no ser mais do que um face-a-face (Gegenstand), e a minha conscincia

    44 Sobre a reduo fenomenolgica, Husserl diz: "S mediante uma reduo, que tambm j queremos chamar reduo fenomenolgica, obtenho eu um dado (Gegebenheit) absoluto, que j nada oferece de transcendncia. [...] A fim de obter o fenmeno puro [...] posso tambm, ao percepcionar, dirigir o olhar para a percepo, para ela prpria tal como a est, e omitir a referncia ao eu ou dela abstrair: ento a percepo visualmente assim captada e delimitada uma percepo absoluta, privada de toda a transcendncia, dada como fenmeno puro no sentido da fenomenologia." In, Husserl, Edmund, A Ideia da Fenomenologia, Edies 70, s/d, Lisboa, p.71 45 KELEL, Arion e Schrer, Ren, Husserl, Edies 70, s/d, Lisboa, p. 37. 46 LYOTARD, Jean-Franois, A Fenomenologia, Edies 70, s/d, Lisboa, p. 33

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    aquilo para quem h nesses face-a-face.47 Posio negativa, mas extremamente fecunda, porque constitui um absoluto, um dado apo-dctico que simultaneamente ultrapassa o psicologismo e o idealismo, porque a minha consci-ncia no pode ser pensada se imaginariamente lhe retirarmos aquilo de que conscincia; e nem se pode sequer dizer que seria, nesse caso, conscincia de nada, porque este nada seria automaticamente o fenmeno de que seria conscincia.48 A conscincia contm, portanto, o mundo. Um mundo que, pela incluso intencional, se con-verte em conhecimento, porque ao proporcionar-nos a anlise intencional, a reduo permite descre-ver rigorosamente a relao sujeito-objecto. Esta descrio consiste em pr em aco a filosofia imanente conscincia natural, e no em desposar passivamente o dado. Ora, a prpria intencionalidade que define esta filosofia. A anlise intencional (da deriva o seu nome) deve, ento, esclarecer como constitudo o sentido de ser (Seinssin) do objecto; porque a intencionalidade um objectivo, mas igualmente uma doao de sentido. A anlise intencional apodera-se do objecto constitudo como sentido e revela essa constituio49. A anlise fenomenolgica da obra de arte , ento, a anlise intencional e espacial do objec-to artstico. Por ela, queremos crer, poder-se- em legitimidade construir um conhecimento da arte, no estrito respeito pela especificidade do fenmeno artstico, reivindicada por Jos-Au-gusto Frana na seguinte passagem:

    Seria impossvel pretender estabelecer relaes entre fenmenos artsticos e outros fen-menos culturais e ideolgicos, e entre eles e o contexto histrico, sem considerar a sua especificidade; e tambm a conscincia dessa especificidade que pode evitar o erro de certas relaes imediatas, algo mecanistas, de uma errnea simplicidade. ela ainda que nos leva a compreender que a obra de arte possa antecipar a evoluo social geral, ou definir-se a nveis cuja profundidade seja dificilmente captvel pelos instrumentos culturais de que dispe o pblico contemporneo. A, podemos concluir do papel informador do fenmeno artstico - papel original, no verdadeiro sentido da palavra.50

    Em poucas palavras, eis o plano terico em que nos situamos, e para o qual centriptamente se remetem, e a partir do qual centrifugamente derivam, julgamos ns, na sua gnese, as linhas de fora e os pontos de vista que se articulam na presente indagao. So quatro os agrupamentos, ou classes, temticos. A utilizao da designao Lugares de Memria, em vez de monumentos comemorativos, expresso mais tradicionalista, no ocorre por uma questo de terminologia, mas por um facto incontornvel: a intencionalidade destas obras mudou. Os monumentos, hoje, no surgem conscincia com uma funo come-morativa. Eventualmente, nem com nenhuma outra funo. O sentido que neles se desco-bre, no mais o de um instrumento ao servio de uma determinada ideologia ou conce-po de poder, mas, to s, o de uma presena, porque, como Franoise Choay observa, Dornavant, le monument s'impose l'attention sans arrire-fond, interpelle dans l'instant, troquant son ancien satut de signe pour celui de signal.51 Falvamos, j se v, de monumentos actuais, no de monumentos histricos, porque le monument symbolique rig ex-nihilo aux fins de remmoration n'a pratiquement plus cours dans nos so-cits dvelopes. A mesure qu'elles disposaient de mnmotiques plus performantes celles-ci ont peu peu ces-

    47 idem, ibidem. 48 idem, ibidem. 49 idem, p. 34 50 FRANA, Jos-Augusto, A Arte em Portugal no Sculo XIX, Vol. I, Bertrand, Lisboa, 1966, p. 10. 51 CHOAY, Franoise, L'Algorie du Patrimoine, Seuil, Paris, 1996, p. 16

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    s d'difier des monuments et transfr la ferveur dont elles les entournaient aux monuments historiques52, tornando-se estes objecto de um culto patrimonial, por meio do qual adquirem o estatuto de produits culturels, fabriqus, emballs et difuss en vue de leur consommation. La mtamorphose de leur valeur d'usage en valeur conomique est ralise grce l'engnirie culturelle, vaste enterprise publique et prive, au service de laquelle oeuvre un peuple d'animateurs, communicationistes, d'agents de d-velopement, ingnieurs, mdiateurs cuturels. Leur tche consiste exploiter les monuments par tous les moyens afin d'en multiplier indfinement les visiteurs53. Pela degradao do estatuto de signo em sinal, pela metamorfose do valor de uso em valor econmico e pela predominncia do valor esttico face ao valor rememorativo, fenmeno que se vai impondo a partir de meados do sculo XX, parece poder falar-se de um colapso do monumento, no sentido que Riegl lhe confere de obra realizada por la mano humana y creada con el fin especfico de mantener hazaas o destinos individuales (o un conjunto de stos) siempre vi-vos y presentes en la conciencia de las generaciones venideras.54 Colapso, porm, que no total. Apesar de esvaziado de significado, o monumento no desaparece porque no existe unicamente como instrumento ao servio de um determinado aparelho ideolgico do Estado55. que, para alm de funcionar como caixa de ressonncia das contingncias histricas da edificao, o monumento resulta de um imperativo ontolgico que decorre da propenso humana para fixar e assinalar intencionalidades. Por isso, e esse talvez um dos aspectos mais pertinentes da situao actual, a partir dos anos 90, alm de um re-crudescimento das comemoraes e homenagens a figuras pblicas, paralelamente, como cogumelos, erguem-se monumentos a ttulos desconcertantemente gratuitos, se pensados em funo do conceito convencional de comemorao monumento ao empresrio (Porto, 1992); monumento ao viajante e pracista de Guimares56 (Guimares, 1992); monumento ao caixeiro viajante (Porto, 1995); monumento ao mvel (Paos de Ferreira, 1997); monumento ao fabrico de moldes (Oliveira de Azemis, 1998) ... no que parece constituir no s uma reaco ao perodo de defeso por que passou a estaturia monumental, a partir dos anos setenta, mas tambm uma demarcao face retrica oficial que contaminou estas obras e uma adapta-o a uma pluralidade ps-moderna que, sem se conotar com nenhuma regra fixa, no dei-xa por vezes de assumir uma estranha feio folclrica. Seja como for, esta demarcao afecta, retroactivamente, o conceito de monumento come-morativo, mesmo quando ele foi, ou , originalmente, concebido como tal. De uma uti-lizao viva, passa a uma utilizao arqueolgica, ou seja, de um smbolo presente passa a uma presena simblica, deixando de ter o mesmo significado monumental.

    Dessa mesma mutao do conceito de monumento, logo em 1970, se apercebia Henri Le-febvre, embora em termos ainda ambivalentesC.

    Depurado de valores patriticos, nacionalistas, belicistas, racistas, elitistas, autoritrios, iluministas, ..., o valor do monumento passa a ser, to s, o da memria, ou melhor, o de constituir uma marca, um lugar de memria57. Nos monumentos encontra-se representada a memria, no por uma recordao vivida que efectivamente neles se projecte, mas pelo testemunho, por vezes nostlgico, de uma memria, apenas recupervel como histriaD.

    52 idem p. 20 53 idem, p. 157. 54 cf, RIEGL, Alos, El Culto Moderno a los Monumentos. Caracteres y Origin, Visor, 1987, Madrid, p. 23. 55 cf, ALTHUSSER, Louis, Ideologia e Aparelhos ideolgicos do Estado, Presena, Lisboa, 1974, pp. 41-52 56 cf, Colquio Artes, n 92, p. 54 57 cfl. NORA, Pierre, (dir), Les Lieux de Mmoire I, La Rpublique, Gallimard, Paris, 1984, pp. XVII-XLII,

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    O segundo agrupamento, Elementos de Animao Arquitectnica,58 define-se pela sua integra-o na obra de arquitectura, a cujo programa e funo obedece e, normalmente, comenta, no fazendo sentido a sua leitura independentemente daquela, mesmo quando no se verifica uma ligao fsica directa do trabalho de escultura obra arquitectnica.

    No se trata, portanto, do exerccio de uma funo exclusivamente decorativa, porque o valor decorativo nunca o to-s, pois contm significados que ultrapassam em muito o sentido meramente ornamental.59 Sendo assim, no faz sentido conotar ou desvincular, de forma rgida, a escultura arqui-tectura, circunstncia que se deve a um mal entendido que pode ocorrer de duas maneiras.

    Em primeiro lugar, por excesso, subordinando, em pleno, a escultura arquitectura, devido quela se encontrar a esta agarrada, como acontece no interior das igrejas. Aqui, as imagens e os retbulos apesar de se inscreverem numa mesma lgica comum, tm a particularidade de se autonomizarem, pela instaurao de uma espacialidade e de uma intencionalidade prprias, com o propsito de conotar a conscincia com aspectos particulares e ntimos de vivncia litrgica ou religiosa, e de suscitar os comportamentos inerentes a essa mesma vivncia, constituindo-se, portanto, como lugares de devoo60 que efectivamente so. Em segundo lugar, por defeito, quando a escultura desvinculada da arquitectura, s por-que aquela no est agarrada a esta, apesar de se encontrar sob a inequvoca influncia es-pacial, funcional e existencial da segunda, como por exemplo sucede com a esttua Justia, de Leopoldo de Almeida, implantada na frente do Palcio da Justia do Porto ou com a es-cultura Obelisco de Jos Rodrigues implantada em frente ao edifcio da Faculdade de Econo-mia ou, ainda, no caso das esttuas de Ferno Lopes, Gil Vicente, Lus de Cames e Ea de Queiroz, implantadas junto ao edifcio da Biblioteca Nacional, em Lisboa, e por Srgio Guimares de Andrade ignoradas, como escultura de animao arquitectnica, na obra j citada.

    O terceiro agrupamento, Elementos de Qualificao Urbana, de certa forma correlativo do anterior. Tal como a escultura se integra na arquitectura, parafraseando-a e animando-a, tambm a primeira se integra no tecido urbano, conferindo-lhe sentido e qualificando-o, com valores outros que no os dos factos da memria.

    Toda a chamada estaturia decorativa e alegrica, no rememorativa, se inscreve neste agrupamento bem como toda a escultura abstracta ou toda a instalao efmera de nature-za tridimensional. De facto, no obrigatria a presena de uma inteno rememorativa para que uma determinada escultura particularize e valorize um determinado espao pbli-co. Para l do valor rememorativo, como bem mostrou Riegl, existem os valores de arte e de vontade de arte (Kunstwollen) que emergem no presente atravs da obra de arte, e que como tal encerram um sentido potico-cultural, sentido esse que a conscincia, por meio do doublet phnomnologiqueE, integra retentissement e projecta rsonance constitu-indo-se como vivncia, podendo por isso falar-se, mais do que de decorao ornamental ou alegrica, de uma qualificao, (potico-cultural) do espao urbano, a partir da escultura no rememorativa, tendncia esta que, como veremos, tende a tornar-se dominante, em

    58 cf, ANDRADE, Srgio Guimares de, A Escultura Portuguesa, CTT Correios de Portugal, Lisboa, 1997, p. 114-203 59 ANDRADE, Srgio Guimares de, op. cit. p. 114. 60 Alguns autores chamam a ateno para o facto de que o culto dos Santos no catolicismo constituir uma sobrevivncia do politesmo dentro da religio monotesta. Cada um desses cultos particulares, conotados com determinado significado, determinado culto e conferindo determinada proteco, exige portanto um pequeno templo dentro do templo, onde esse mesmo culto pode ser prestado e consagrado.

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    particular atravs de um novo contrato-tipo de aquisio de obras de escultura pblica: os j citados Simpsios. Constitui o quarto agrupamento os Lugares de Devoo. Neles reconhece-se o estatuto de lugar, circunstncia que decorre da sua ligao a monumentos cuja intencionalidade no vi-sa propriamente a rememorao de determinada histria, mas sim a consagrao de uma determinada hierofaniaF. Contrariamente aos lugares de memria, cujo contedo por mais enfatizado que seja na sua origem sempre mundano (profano), nos lugares de devoo esse mesmo contedo sempre extra-mundano (sagrado).

    No basta, contudo, a prtica de um rito. Todas as celebraes so, afinal, ritos e portanto so-no tambm as homenagens cvicas que visam a emulao, mas que comportam inten-cionalidades de cariz distinto.

    Por isso, as figuras de prelados que se erguem nos adros das igrejas ou nas praas da cidade, no so, obviamente, lugares de devoo, mas apenas de memria, e nem a sobrevi-vncia da prestao de um culto a uma determinada figura, como acontece com a esttua do Padre Amrico, bastante para lhe mudar esse carcter.

    Com as imagens de Cristo, da Virgem, da Trindade, dos Anjos, dos Apstolos, dos Santos e dos Beatos, no caso da religio catlica, sucede o oposto. Nelas no habita apenas a me-mria histrica de determinado mistrio, milagre ou martrio, mas uma concretizao da crena na possibilidade da vivncia de uma realidade que, a um tempo, se estende e se entende para l deste mundo. Constituem os quatro agrupamentos ou classes que acabmos de caracterizar as categorias estruturantes da presente indagao.

    Sobre cada um deles exerce-se o estudo nos planos de considerao j referidos: a obra de arte como coisa, a obra de arte como processo e a obra de arte como instaurao potica da verdade, con-vocando, assim, trs tipos de elementos: informativos, histricos e culturais, elementos esses que condensmos, segundo quatro nveis de tratamento, numa base de dados61, cujas fichas figuram em anexo.

    61 Programa Access 7.0 (Microsoft)

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    Notas de fim de captulo:

    A Seminrio Arte Pblica no Espao Pblico, Barcelona, 1996.

    Questes Fundamentais

    Antoni Remesar (professor) - Relaes entre a esttica e a economia:

    Si l'art se situe dans l'espace public, il est aussi ralis avec les fonds publics, ne faudrait-il pas ds lors prvoir la consultation du public? L'art public a une porte conomique dans la mesure o il sert promouvoir une ville.

    John Gingell (Universidade de Barcelona) - Questo do ambiente urbano:

    Il incombe l'artiste de mettre en place la notion duchampienne de "retard", d'inclure le rythme dans l'espace, c'est-a-dire tenir compte de la pratique de l'espace (marcher).

    Ian Rawlinson (Manchester University) - Comparao entre Barcelona e a Gr-Bretanha:

    Il est possible de concvoir et de realiser un art interactif, conviant le public une participation qui rend ainsi l'art public un sens social.

    Montserrat Casanovas (Universidade de Barcelona) - Dimenso social:

    Ncessit d'une conception interdisciplinaire de l'art dans l'espace public.

    Ray Smith (artista) - Prtica pessoal do artista:

    L'artiste dont l'oeuvre se situe hors de la galerie et de l'atelier dans un espace public exigeant nces-sairement des rapports de communication avec les commanditairers et le corps du metier, rapports problmatiques ( position martyre de l'artiste solitaire et vulnrable)

    Mike Satevenson (Plymouth University) - Papel do design nos espaos intervalares:

    ...l'espoir de voir naitre un consensus entre le public et les professionels dont les ides et intentions devraient tre empreintes de authenticit.

    Tony Bovaird (Aston University) - Perspectiva econmica:

    L'art apparait comme un enjeu conomique et politique de taille, tant donn son role social et sa facult d'influentier l'opinion publique. Il fontionne galement comme moyen de legitimation des valeurs. [...] L'art public [...] devrait se faire par des concours publiques. L'art joue un important rle dans la valeur de la ville et contribue influencier les investisseurs. L'art ne devrait pas tre conu pour le public mais pour des groupes spcifiques voulant exprimer leur gut et leurs histoires.

    Mme Paivi Kiiski (Pro Cutura Fundation) - A arte como garantia e legitimao:

    La ville inconnue parfois inexistante sur les cartes, existe dsormais travers de ce project qui la transforme en "European City Sculpture", alliant mmoire du lieu et universalit de l'art

    Chak Matossian (Historiador de Arte) - Noo de pblico e de espao pblico:

    Dgager une hypothse quant au rle de l'artiste en recourant la notion d'atmosphrique mise en place par le psychitre allemand Hubertus Tellenbach

    B De acordo com a fenomenologia, a conscincia sempre a conscincia de qualquer coisa, ela visa um contedo estranho a ela prpria; nisto que consiste a intencionalidade. (M. Gex.). Alis, segundo a Teoria da intencionalidade em Husserl, h, para o homem, duas maneiras diferentes de aplicar o seu esprito ao real, quer se trate de nmeros ou qualidades sensveis, de coisas ou de ideias. Uma consiste em agarrar o objecto directamente, de uma maneira originria, logo que ele se d, por assim dizer, em pessoa. A outra consiste em pens-lo enquanto ele no est presente, em vis-lo sem o alcanar. As nossas simples intenes tiram todo o seu sentido das intuies que podem corre ' ponder-lhes e que podem complet-lo s (in Gaston Berger, La Phnomnologe Transcendantale.). Apud, LOBO, Antnio, Dicionrio de Filosofia, Pltano Editora, Lisboa, 1996, 4 Edio, p. 94. C Contre le monument. Le monument este essentiellement rpressif. Il est le sige d'une institution (l'glise, l'tat, l'Universit). S'il organise autour de lui un espace, c'est pour le coloniser et l'opprimer. Les grands monuments ont t levs la gloire des conqurants, des puissants. Plus raremente la gloire des morts et de la beaut morte (le Tadj Mahall...). Ce furent des palais et des tombeaux. Le malheur de l'architecture, c'est qu'elle a voulu dresser des monuments et que l'habiter a t tantt conu l'image des monuments, tantot

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    nglig. L'extension l'habiter de l'espace monumental est toujours une catastrophe, d'ailleurs cache aux yeux de ceux qui la subissent. En effet, la splendeur monumentale est formelle. En si le monument s'est toujour charg de symboles, il les offre la conscience sociale et la contemplation (passive) au moment o ces symboles, dj dsuets, perdent leur sens. Ainsi les symboles de la rvolution sur l'Arc de triomphe napolonien.

    Pour le monument. C'est le seul lieu de vie collective (sociale) que l'on puisse concevoir et imaginer. S'il contrle, c'est pour rassembler. Beaut et monumentalit vont ensemble. Les grands monuments furent trans-fonctionnels (les cathdrales) et mme trans-culturels (les tombeaux). D'ou leur puissance thique et esthtique. Les monuments projettent sur le terrain une conception du monde, alors que la ville projetait sur le terrain et project encore la vie sociale (la globalit). Au sein mme, parfois au coeur d'un espace dans lequel se reconnaissent et se banalisent les traits de la socit, les monuments inscrivent une transcendance, un aileurs. Ils furent toujours u-topiques. Ils dclaraient, en hauteur ou en profondeur, dans une dimension autre que les parcours urbains, soit le devoir, soit le pouvoir, soit le savoir, la joie, l'espoir...

    in, Lefebvre, Henri, La Rvolution Urbaine, Gallimard, Paris, 1970, pp. 33-34 D Mmoire, histoire: loin dtre synonymes, nous prenons conscience que tout les oppose. La mmoire est la vie, toujours porte par des groupes vivants et ce titre, elle est en volution permanente, ouverte la dialctique du souvenir et de lamnsie, inconsciente de ses dformations successives, vulnrable toutes utilisations et manipulations, susceptible de longues lactences et de soudaines revitalisations. Lhistoire est la reconstruction toujours problmatique et incomplte de ce qui nest plus. La mmoire est un phnomne toujours actuel, unlien vcu au prsent ternel; lhistoire une rprsentation du pass. Par ce quelle est affective et magique, la mmoire ne saccomode que des dtails qui la confortent E Puisqu'elle prtend aller aussi loin, descendre aussi profondment une enqute phnomnologique sur la posie doit dpasser, par obrigation de mthodes, les rsonances sentimentales avec lesquelles, plus ou moins richement que cette richesse soit en nous ou bien dans le pome nous recevons l'oeuvre d'art. C'est ici que doit tre sensibilis le doublet phnomnologique des rsonances et du retentissement. Les rsonances se dispersent sur les diffrents plans de notre vie dans le monde, le retentissement nous appelle un approfondissement de notre propre existence. Dans la rsonance, nous entendons le pome dans le retentissemnt nous le pensons, il est notre. Le retentissement opre un virement de l'tre. Il semble que l'tre du pome soit notre tre. La multiplicit des rsonances sort alors de l'unit du retentissement. Plus simplement dit, nous touchons l une imprssion bien connue de tous lecteur passionn de pomes: le pome nous prends tout entier. Cette saisie de l'tre par la posie a une marque phnomnologique qui ne trompe pas. L'exubrance et la profondeur d'un pome sont toujours des phnomnes du doublet rsonance-retentissement. Il semble que par sont exubrance, le pome ranime en nous des profondeurs.

    in, Bachelard, Gaston, La Potique de l'Espace, PUF, Paris, 1974, pp. 6-7 F - Complexidade do fenmeno religioso primitivo

    1- o sagrado qualitativamente diferente do profano, embora se possa manifestar de qualquer modo e em qualquer lugar no mundo profano, e tem capacidade de transformar todo o objecto csmico em paradoxo por intermdio da hierofania (no sentido de que o objecto deixa de ser ele prprio, como objecto csmico, permanencendo aparentemente inalterado);

    2- esta dialctica do sagrado vlida para todas as religies e no apenas para as pretensas formas primitivas. Esta dialctica verifica-se tanto no culto das pedras e das rvores como na concepo sbia dos avatares indianos ou no mistrio capital da Encarnao;

    3- em nenhuma parte se encontram nicamente hierofanias elementares (as cratofonias do inslito, do extraordinrio, do novo: a mana, etc.) mas tambm vestgios de formas religiosas consideradas, na perspectiva das concepes evolucionistas, como superiores (seres supremos, leis morais, mitologias);

    4- encontramos por toda a parte, e at para alm destes vestgios de formas religiosas superiores, um sistema onde se vm ordenar as hierofanias elementares. O sistema no esgotado nestas ltimas, constitudo por todas as experincias religiosas da tribo (a mana, as cratofanias do inslito, o totemismo, o culto dos antepassados, mas compreende tambm um corpo de tradies tricas impossveis de reduzir s hierofanias elementares: por exemplo, os mitos respeitantes origem do mundo e da espcie humana, a justificao mtica da condio humana actual, a valorizao terica dos ritos, as concepes morais, etc.

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    Segunda Parte

    Ciclos da Escultura Urbana do Porto

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    Prembulo Detm a estaturia o dom de personificar a Histria, porque as esttuas se lhe referem como um alter-ego, representando-a maneira de uma representao.

    Como se conformam, se confrontam, se corrompem e se refazem essas representaes constitui sem dvida um interessante problema de Histria da Arte e neste particular a hiptese que aqui colocamos, apresentar a evoluo da produo escultrica portuense do sculo XX, a partir de um critrio alternativo ao das geraes de escultores, estilos, tendncias ou outras sries cronolgicas estruturantes afins, cuja sistematizao e aplicao prticas invariavelmente do azo a insolveis problemas. Esse ponto de vista alternativo designmos por ciclos de intencionalidade configuradora. Define-se cada um desses ciclos como um horizonte coerente de sentido. Dentro do seu mbito, opera um determinado carcter cujo contedo intencional alterna, consoante os ca-sos1, entre uma unidade ou uma tenso estruturantes, desocultando a sua razo de ser e de parecer e minimizando as eventuais discrepncias expressivas ou estilsticas que podero apontar-se entre autores inseridos num mesmo ciclo.

    Traduz-se esse carcter estruturante, portanto, por um cone. Uma imagem que veicula determinados valores em cuja definio intervm, afinal, uma srie limitada de agentes. Agentes que pela posio dominante que detm no campo das artes, o polarizam e condici-onam, forjando uma imagem to pragmtica quanto idealista, porque em todos os planos de configurao que visa constituir-se (na afirmao ou na contestao) o poder de representao.

    Na impossibilidade de abordar todos os planos, considermos na presente indagao os que advm da histria e os que emanam do terreno sociocultural, realando-se as relaes com os diferentes poderes, as diferentes clientelas, os diferentes meios e os diferentes p-blicos, relaes que se estruturam segundo campos (cf Pierre Bourdieu), nos quais se manifes-tam e se polarizam agentes que constituem os autores e os actores desse espectculo que a estruturao de uma intencionalidade representacional.

    Estruturao que no poderia reduzir-se, por outro lado, a uma mero jogo de tenses e de interaces sociolgicas, porque, como em tudo o mais, a evoluo do campo das artes no se reduz a uma mera gesto de conflitos nem a uma formulao de consensos. Alm de manobrado pelos agentes sociolgicos, o campo das artes condicionado pela histria, encontrando-se a sua durao sujeita s mesmas mudanas e continuidades, progressos e retrocessos que integram a generalidade dos factos humanos e fornecendo aquela os resduos e os enredos socioculturalmente polarizados sobre os quais se dispem e se con-frontam os diferentes agentes.

    Para completar o quadro terico que sucintamente aqui se expe, importa no esquecer a especificidade do presente objecto de estudo: a escultura pblica. Destinada a preencher espaos onde decorre a vida quotidiana, acontece com a escultura pblica o mesmo que sucede com a pintura mural, pois tal como Jos-Augusto Frana, em 54, escreveu a pintura mural, com o seu carcter alegrico, histrico ou fabuloso, com a sua funo mitolgica de catalisadora ou proponente de mitos, existiu sempre que um equilbrio social existiu. Tal equilbrio traduzido pela corres-pondncia entre o iderio social e a arte contempornea. Nessas condies, o Estado, representante do

    1 Como veremos, ao longo do sculo XX, verificam-se dois tipos de ciclos: os estveis, que so constitudos por um paradigma iconolgico consensual, e os instveis que so constitudos por uma tenso entre paradi-gmas iconolgicos divergentes, embora estruturalmente integrados num sistema comum. Os primeiros, desi-gnmo-los por um nico vocbulo (ex: Renovao). Os segundos, designmo-los por duas palavras aglutina-das (ex: Compromisso/Contestao).

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    iderio colectivo, faz encomendas, assegura ao artista uma vida econmica possvel dentro da colectividade.2 Define-se nesta assero o quadro sociolgico e poltico, por assim dizer, favorvel, ao flo-rescimento da pintura mural e, por extenso, da arte e da escultura pblica. Um quadro de equilbrio hoje diz-se consenso sociocultural portanto requerido, na medida em que so os cones intencionais desse mesmo consenso, mesmo que no correspondam a ima-gens concretamente consensuais3, que invariavelmente figuram nas diferentes obras.

    Serve este prembulo para justificar dois aspectos que decorrem da especificidade do presente objecto de estudo. Primeiro, a autonomizao da periodizao face seriao das geraes dos escultores, dos diferentes (?) estilos ou tendncias e dos modelos ou reper-trios formais. Segundo, a formulao de um sistema de periodizao alternativo, baseado no carcter das diferentes obras, critrio que no s respeita a especificidade do tema, como tambm inaugura uma via de ponderao e de interpretao do contedo intencional visado pelas mesmas, contedo esse cuja apreenso no , afinal, outra coisa seno a razo de ser das mesmas obras, aspecto que nos parece tanto mais pertinente, quanto mais ele for sistematicamente aplicado ao presente, contribuindo assim o estudo da escultura, empreendido sobre este ponto de vista, para esclarecer e avaliar a situao actual da criao artstica, como j referimos.

    Assim sendo, corresponde o ciclo Fin-de-sicle fase ps-romntica e historicista iniciada nos finais do sculo XIX, fase essa marcada por uma intencionalidade de teor narrativo e de conotao nostlgica e/ou saudosista, constituindo a esttua O Desterrado (1881) de Soares dos Reis o primeiro e mais paradigmtico cone. O admirvel mundo da cincia e da tcnica, logo celebrado no palco ferico das Grandes Exposies Universais, est porta, mas, em Portugal, inversamente, em vez de um quadro socioculturalmente galvanizado pelo cientismo da 2 revoluo industrial, predomina, mau grado o fontismo, um deprimente desalento, que se deve no s ao atraso industrial e tecnolgico, que um efmero boom financeiro, logo denunciado por Oliveira Martins4, no chegava a encobrir, mas tambm e sobretudo devido percepo do real peso poltico da monarquia portuguesa no concerto das naes europeias, realidade que, algo traumaticamente, a conscincia colectiva logo experimentaria com a questo do Ultimato, questo que de imediato parecia confirmar, afinal, aquilo que a Gerao de 70 no se cansava de procla-mar: a decadncia do pas iniciada com as Descobertas.

    Uma depresso imensa e um negativismo extremo apoderam-se da conscincia colectiva, ironicamente, medida que se afirma e se propaga o positivismo, triunfante.

    Reflecte-se e aprofunda-se esta conjuntura depressiva no terreno da criao artstica. Os mais promissores estudantes so enviados para Paris como pensionistas, depositando-se nas suas mos a esperana da afirmao de uma arte portuguesa. O fosso sociocultural contudo enorme, e raros so aqueles que no se deixam obedientemente impressionar pelas maravilhas do progresso, falhos de sentido crtico e, pior do que isso, de imaginao potica.

    No caso da escultura, destes condicionalismos resulta uma estaturia descaracterizada que

    2 FRANA; Jos-Augusto, Da no existncia de pintura mural em Portugal, In, Estrada Larga 2, Porto Editora, s/d, p. 47. 3 Esta dicotomia particularmente vlida na contemporaneidade. Encontramo-la, por exemplo, no caso do monumento ao 25 de Abril de Joo Cutileiro, em que a ideia de monumentalizar a revoluo dos cravos, porque consensual, no questionada, sendo, de acordo com determinadas opinies, unicamente questionada a utilizao do cone concreto que o escultor escolheu para o referenciar. 4 Portugal uma granja e um banco. Aonde est a indstria?

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    reflecte e ajuda a construir uma ideia pattica, para no dizer masoquista, de rememorao. Todos os heris so e esto mortos e como mortos so idealisticamente apresentados, en-tendendo-se a celebrao a eles prestada no como glorificao exaltante de uma obra que desemboca no presente, mas que existe apesar do presente, como liturgia fnebre de uma recordao crepuscular relegada para o limbo, como aconteceu, por exemplo, com a comemorao do V centenrio do nascimento do Infante D. Henrique, que veremos. Uma estaturia de que Teixeira Lopes o indiscutvel e todo poderoso mestre. Uma estaturia mole, como ele mesmo no se cansava de repetir, que procurava acordar-se com o repertrio clssico das alegorias pags, que ali funcionavam como vocabulrio expressivo de uma mistificao estereotipada e erudita que se acordava mal com a imagem crist dos homenageados e a limitada cultura dos estaturios5.

    Durante este perodo, pode-se portanto falar de um consenso iconlogico de pendor revivalista, intencionalmente marcado por um carcter nostlgico ou pateticamente celebrativo pairando sobre o conjunto da produo. Uma produo que se estende dcadas adentro pelo sculo XX, sendo uma das personagens mais celebradas no pas o poeta Antnio Nobre, o que no deixa de ser significativo.

    O ciclo Proto-Modernismo/Neo-Academismo nasce do interior do ciclo anterior, funcio-nando como uma sua extenso adaptativa. Fundamentalmente, difere do precedente pela depurao formal que agora se verifica, com o desaparecimento da dispendiosa aparelha-gem simblica e retrica das alegorias que a conjuntura econmica do aps-guerra j no suportava, para em seu lugar e nos seus melhores momentos, serem incorporados elemen-tos de composio e de ornamentao art-dco, como reflexo do xito da exposio pari-siense de 25, e cujo acerto decorativo entrava em contradio com a figurao naturalista herdada do ciclo anterior, facto que acabaria por colocar a produo deste perodo sob o signo de uma ambiguidade bloqueadora.

    Corresponde este ciclo, embora tardiamente, s expectativas reformadoras criadas pela implantao da Repblica, expectativas que nunca foram consensuais, em virtude da laicizao do Estado visada pelo regime, laicizao que se integrava numa estratgia pro-gressista de depurao social, ento, considerada imperiosa luz do mesmo positivismo que a Repblica consagrava, ou pretendia consagrar numa nova tica social.

    Com isto, toma o pas conscincia da sua condio perifrica, sendo j no quadro de um reposicionamento poltico internacional, que Portugal cnscio dos seus interesses econmi-cos e afinidades polticas proclama a interveno na Grande Guerra.

    Grande Guerra que logo daria azo gestao de uma nova monumentalidade, que se no plano formal no deixa de ser de charneira entre o academismo e o modernismo, permanecendo aquela tributria, salvas as devidas excepes6, dos valores naturalistas, no plano intencional j bem distinta a sua intencionalidade, inserindo-se, como mostrou Antoine Prost7, no projecto positivista de instituir uma religio civil.

    Temos assim que a continuidade que se verifica entre a estaturia Fin-de-Sicle e aquela

    5 No podemos deixar de recordar aqui a saborosa gaffe que Teixeira Lopes cita nas suas Memrias (p. 24), quando, em Paris, j depois de admitido cole tendo de, porta fechada, modelar uma esttua de Elektra, apresenta a Cavelier uma figura masculina! 6 Casos do Monumento aos Mortos da Grande Guerra de Abrantes do escultor Rui Gameiro, de 1930, e o Monumento aos Mortos da Grande Guerra de Loureno Marques, tambm de Rui Gameiro, em parceria com o arqt Veloso Reis Camelo. 7 Vide, PROST, Antoine, Les Monuments aux Morts, In, Nora, Pierre (dir), Lieux de Mmoire, La Rpublique, Gallimard, Paris, 1988.

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    que sob o nome de Proto-Modernismo se lhe sucede, meramente formal, facto que tem ofuscado significativas e no-acidentais discrepncias que se descobrem ao nvel da intencionalidade, por um lado, entre uma lgica de representao narrativa, centrada no vocabulrio simblico das alegorias clssicas a que so idealisticamente equiparadas as figuras homenageadas, residindo nessa equiparao a essncia da prpria homenagem, e, por outro, uma lgica de representao decorativa, construda a partir de uma tenso compositiva, depurando-se e desdobrando-se em duas componentes expressivas: ornamento e figurao.

    Neste sentido, no se pode falar de uma intencionalidade consensual. Uma subtil tenso entre arbitrariedade e banalidade decorativas do desenho e verdade e conformidade realistas da figura, estrutura o carcter desta estaturia. Uma estaturia neo-acadmica que desconhece os excessos futuristas do primeiro modernismo pictural portugus, mas que, sua maneira, no deixa de ser interessante.

    Interessante, porque essa mesma tenso imprimir estaturia portuense um cunho, seno de resistncia, pelo menos de distanciao, relativamente unanimidade do cnon zarquiano de Franco, logo apropriado pelo Estado Novo como cone a adoptar para a celebrao das glrias de um Passado que o regime dizia resgatar do limbo da nostalgia. O carcter preponderante da estaturia portuense dos anos 30 e 40 no denota essa in-tencionalidade soteriolgica, quedando-se por exerccios menos ambiciosos e sobretudo bastante menos grandiosos quer no plano formal, quer no intencional. Alis, alm de resis-tir a uma modernidade de inspirao primeiro italiana e germnica depois, durante este pe-rodo a estaturia local ainda teve de afirmar-se perante o academismo fin-de-sicle que teima-va em resistir, continuando Teixeira Lopes, Marques da Silva, Jos de Oliveira Ferreira, Toms Costa e Joo da Silva a projectar obras e mesmo a erguer pequenos monumentos.

    Tudo se passa como se, por um lado devido ao carcter liberal e burgus, ou, mais exac-tamente, pequeno burgus, da mentalidade dominante, de que a novelstica de Jlio Dinis elucidativo testemunho e, por outro, em virtude da vinculao plebeia da estrutura social portuense que a narrativa de Raul Brando to bem retracta, aqui a lio do positivismo que em boa verdade, em Portugal, na sua verso racionalista, apenas havia sido entendida por uns poucos, circunscritos em torno do grupo da Seara Nova em vez de evoluir ideologicamente no sentido da afirmao de uma governao forte e iluminada, como pre-tendia o professor de Santa Comba Do, tivesse desembocado numa espcie de simbo-lismo social, tentando utopicamente configurar, em vez de uma nova ordem, uma nova crena de inspirao pascoaliana de que viriam a constituir-se como instrumentos de gesta-o e difuso a Renascena Portuguesa a revista A guia, primeiro, e a primeira Faculdade Letras do Porto, depois.

    Com esta vinculao genrica se prende, muito pragmtica e silenciosamente, isto , sem fundar-se em elucubraes verbais, a estaturia de Henrique Moreira. Uma estaturia iconologicamente distante do nacional-historicismo definido pelo regime como encarnao dos superiores desgnios da arte nacional, facto que torna aquela estaturia e a que Antnio Cruz, Amrico Gomes e, por vezes, Sousa Caldas praticam, por assim dizer, refractrias, inaugurando um entendimento sui generis de realismo. Uma estaturia que no efectivamente moderna mas que tambm no revivalista ou historicista, permanecendo margem dos grandes encomendas comemorativas, e preferindo dar resposta a programas decorativos e retractar temas sociais e religiosos, do que representar figuras e feitos de um passado nacional idolatrizado.

    O ciclo Resgate surge, localmente, com a Exposio Colonial Portuguesa de 34, de que o jovem capito Henrique Galvo o Director Tcnico, correpondendo em termos de paradigma iconolgico a uma reaco contra o revivalismo fin-de-sicle e o realismo e

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    decorativismo pequeno burgus do academismo depurado e vulgarizado, e formulando-se a partir de um todo poderoso consenso intencional.

    Trata-se de uma estaturia que coexiste durante o mesmo perodo cronolgico da ante-cedente e se a sua produo , em termos de volume, menor, em termos de impacto, ela bastante mais ruidosa. Uma estaturia que funda a temtica nacional-historicista da estaturia oficial, inaugurando uma insistente liturgia poltico-cultural em que os escultores modernos so chamados a participar, e cuja idade do ouro correspondeu s dcadas de trinta e quarenta, sobr