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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X A ESCUTA EM DESLOCAMENTO: UMA CONVERSA SOBRE CRIAÇÃO MUSICAL Valéria Bonafé 1 Lílian Campesato 2 Resumo: Neste artigo propomos estabelecer uma reflexão a partir de uma conversa sobre duas peças feitas em 2015: de perto, de Lílian Campesato, e Trajetórias, de Valéria Bonafé. Ainda que as artistas possuam práticas distintas e que seus trabalhos se situem em campos marcados por um certo grau de especificidade, as duas peças buscam, cada uma à sua maneira, provocar o que chamamos aqui de deslocamentos da escuta. As peças tensionam a ideia de uma escuta generalizada, entendendo que a escuta sempre é modulada por um sujeito. Nesse contexto, exploramos aspectos como: escuta pública e escuta privada, escuta habitual e não- habitual, escuta íntima, e escuta fragmentada. Através das ideias de conversa e de escuta ampla, um deslocamento é experimentado no próprio processo de feitura deste trabalho. Não se trata exatamente de um desvio, mas sim de uma abertura de foco: os trabalhos são tomados como mote para um percurso maior de incursão no processo criativo do outro. A escuta é assim marcada pela experiência da alteridade. Palavras-chave: criação musical, performance, deslocamentos da escuta. "Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas". (Clarice Lispector) 1. Uma conversa improvável 1 Sonora: musicas e feminismos e NuSom: Núcleo de Pesquisas em Sonologia da Universidade de São Paulo, Brasil. 2 Sonora: musicas e feminismos e NuSom: núcleo de Pesquisas em Sonologia da Universidade de São Paulo, Brasil.

A ESCUTA EM DESLOCAMENTO: UMA CONVERSA SOBRE … · habitual, escuta íntima, e escuta fragmentada. Através das ideias de conversa e de escuta ampla, um deslocamento é experimentado

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

A ESCUTA EM DESLOCAMENTO: UMA CONVERSA SOBRE CRIAÇÃO MUSICAL

Valéria Bonafé1

Lílian Campesato2

Resumo: Neste artigo propomos estabelecer uma reflexão a partir de uma conversa sobre duas peças feitas

em 2015: de perto, de Lílian Campesato, e Trajetórias, de Valéria Bonafé. Ainda que as artistas possuam

práticas distintas e que seus trabalhos se situem em campos marcados por um certo grau de especificidade, as

duas peças buscam, cada uma à sua maneira, provocar o que chamamos aqui de deslocamentos da escuta. As

peças tensionam a ideia de uma escuta generalizada, entendendo que a escuta sempre é modulada por um

sujeito. Nesse contexto, exploramos aspectos como: escuta pública e escuta privada, escuta habitual e não-

habitual, escuta íntima, e escuta fragmentada. Através das ideias de conversa e de escuta ampla, um

deslocamento é experimentado no próprio processo de feitura deste trabalho. Não se trata exatamente de um

desvio, mas sim de uma abertura de foco: os trabalhos são tomados como mote para um percurso maior de

incursão no processo criativo do outro. A escuta é assim marcada pela experiência da alteridade.

Palavras-chave: criação musical, performance, deslocamentos da escuta.

"Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas".

(Clarice Lispector)

1. Uma conversa improvável

1 Sonora: musicas e feminismos e NuSom: Núcleo de Pesquisas em Sonologia da Universidade de São Paulo, Brasil. 2 Sonora: musicas e feminismos e NuSom: núcleo de Pesquisas em Sonologia da Universidade de São Paulo, Brasil.

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Este artigo inaugura um projeto de pesquisa conjunto entre duas artistas-pesquisadoras. Ele

parte de uma investigação prático-teórica a respeito da ideia de escuta, em sentido amplo. O projeto

tem caráter experimental e especulativo, e propõe pensar o método não a partir de universais, mas

de particulares que façam ressoar as singularidades do próprio objeto pesquisado. Com enfoque na

área de processos de criação musical, o projeto dialoga não apenas com o campo dos estudos do

som, mas também com a filosofia, a antropologia, a psicanálise, os estudos de gênero, a literatura e

outras manifestações no campo das artes.

O artigo nasce a partir do encontro improvável entre duas artistas e suas práticas musicais.

Essas práticas são localizadas em nichos que, além de distintos, frequentemente não dialogam. São

parte de tradições e métiers específicos que, não raro potencializam um discurso autocentrado que

opera em vista da manutenção de fronteiras rígidas e do silenciamento daquilo que lhes é estranho.

Desse modo, propomos um exercício de deslocamento, no qual a escuta é o ponto central. O

deslocamento implica numa experiência de alteridade na qual cada uma de nós pode se confrontar

com o estranho, isto é, com aquilo que não lhe é habitual ou familiar. É nesse contato que se pode

compreender tanto o outro quanto a si próprio. E é nesse processo que se configura um ambiente de

valorização das vozes singulares.

O cerne deste trabalho é estabelecer uma reflexão a partir de uma conversa a respeito de

duas peças: de perto de Lílian Campesato e Trajetórias de Valéria Bonafé. A motivação para esta

conversa se dá a partir de vivências anteriores compartilhadas no âmbito da rede Sonora: músicas e

feminismos3 e do NuSom - Núcleo de Pesquisas em Sonologia4 da USP.

O processo de construção deste artigo compreendeu três fases: 1) conversa entre duas

artistas tendo como foco um trabalho de cada uma delas; 2) reflexão posterior e conjunta sobre esta

conversa; e 3) redação do artigo.

Na primeira fase do trabalho realizamos uma conversa informal, gravada em áudio, que se

alongou por dois dias e resultou em aproximadamente sete horas de gravação. Mesmo sem uma

estruturação prévia bem definida, a conversa acabou delineando duas grandes seções, cada uma

delas focada em uma das peças. Em cada seção uma artista se pôs a narrar enquanto a outra se pôs a

escutar e a tomar nota com palavras-chave ou frases curtas, tarefa que resultou numa espécie de

guia para navegação posterior nas gravações.

3 www.sonora.me 4 http://www2.eca.usp.br/nusom

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Na segunda fase, revisitamos individualmente as gravações, ainda de modo cruzado, isto é,

cada uma percorrendo novamente a narrativa da outra. A tarefa era selecionar trechos que nos

parecessem potentes e transcrevê-los para que pudessem figurar no corpo do texto. Esta estratégia

visava extrair da própria conversa os focos de discussão, respeitando as especificidades de cada

peça ao invés de submetê-las a uma adequação a temas forçosamente comuns ou genéricos. Porém,

para além dos assuntos que cercam cada uma das peças, esse retorno à conversa propiciou – em

função de uma escuta ampliada – a constatação de que o próprio processo de feitura deste trabalho,

ou seja, a conversa enquanto meio, seria lugar de reflexão.

2. Conversa: vocalização e escuta

O artigo propõe não apenas revelar como a escuta é problematizada por dois trabalhos

musicais de natureza distinta, mas também criar um discurso que esteja em ressonância com eles e

com o modo de expressar suas marcas éticas e estéticas. Ao invés de usar os métodos tradicionais

de apresentação e análise, comumente praticados na pesquisa/escrita acadêmica, em que se busca

um certo distanciamento do objeto, descrições explicativas, e generalizações que possam ser

aplicadas a outros contextos semelhantes, propomos um percurso particularizado.

A conversa enquanto meio

Neste trabalho a ideia de conversa (vocalização e escuta simultâneas) surge como

possibilidade de um exercício pelo qual nos experimentamos por diferentes modos no ato em que

nos dispomos a nos contar. A conversa e as reflexões sobre ela são o cerne deste trabalho, a espinha

dorsal que estrutura a investigação. A oralidade trouxe a riqueza desse momento, com o

estabelecimento de um ambiente favorável e de um tempo alongado que permitiu manter a

espontaneidade natural em uma conversa. Não havia um roteiro planejado previamente, tampouco

uma dinâmica dialógica muito comum em entrevistas, em que um sujeito pergunta e apenas espera

pela resposta do outro para propor uma nova pergunta. A conversa fluiu naturalmente, com suas

sobreposições, cortes e interferências característicos.

As peças de perto e Trajetórias funcionaram como mote, ou como disparadores de uma

conversa. Mas neste trabalho elas são apenas o ponto de partida para um percurso maior, uma

incursão no processo criativo do outro. Não é uma tentativa de encontrar o que há em comum nos

dois trabalhos, apesar de existirem pontos em comum. O desafio é entrar no universo particular do

outro. A conversa foi um meio potente que encontramos para estabelecer esse contato.

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Conversar dá espaço à sobreposição, a interferências e também à subjetivação, já que é um

exercício de auto-identificação e de deslocamento. É um esforço de alteridade. Como eu me escuto

no outro e como eu escuto o outro em mim. Eu preciso me deslocar para escutar o outro. Escutar é

experimentar a diferença em nós e também em como produzimos nossas narrativas.

(...) narrativas que façam tocar nossas experiências de modo a dialogar as marcas de quem

escreve com as marcas de quem as lê, de forma que se gere um comum, coletivos, para

pensarmos acerca das questões que nos atravessam e que nos convocam nesses espaços, ou

quem sabe em outros (MACEDO; DIMENSTEIN, 2009, p.1).

A partir desse exercício de alteridade, em que dialogam simultaneamente os traços, as

marcas de quem fala com as marcas de quem escuta, e como essas marcas e vestígios do outro nos

atravessam e produzem em nós diferenças. Decorre daí a geração de um terceiro, um coletivo, que,

nesse caso, é a própria ética envolvida nesse exercício.

Escuta enquanto presença

A escuta se constituiu como aspecto central neste processo não apenas por figurar como

objeto a ser investigado a partir das peças escolhidas, mas também por ter se revelado uma instância

fundamental à metodologia de trabalho. A escuta esteve implicada em dois momentos: durante e

após a conversa. No ato da conversa, a escuta em tempo real fazia emergir um potencial de

presença.

Pois bem, no âmbito da escuta, podemos pensar que esta tanto pressupõe quanto impõe uma

presença (...). Ao contrário do ouvir, a escuta pressupõe uma disponibilidade à presença do

outro, um deixar se afetar e afetar o outro com sua presença. A escuta seria então a escuta

daquilo que me afeta tanto no que me reconheço quanto naquilo que me faz desconhecer-

me (KANAAN, 2002, p.37).

A escuta-presente impunha um outro que, para além de tomar nota, acabava por modular a

elaboração oral de quem se punha a narrar, fosse através de interferências orais – uma pergunta, um

comentário ou alguma interjeição –, fosse através de gestos corporais – um olhar ou um chacoalhar

de cabeça –, fosse apenas mantendo silenciosamente um canal de escuta aberto.

Após a conversa, a escuta em tempo diferido abriu uma dimensão de escuta distinta: um

reencontro auditivo não somente com a narrativa do outro, mas também com a escuta de si

enquanto sujeito-escutador-agente de uma conversa. Imbuída da tarefa de buscar nos registros

alguns segmentos que pudessem ser lembrados e transcritos para o texto escrito, essa escuta -

solitária e realizada com fones de ouvido - se ocupou da seleção e da decupagem de detalhes,

adquirindo caráter mais analítico.

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Entrelinhas de um pensar em voz alta

Falar para um outro é pensar em voz alta. De certa forma, a postura frente à escuta pode

despertar um duplo papel, o da auto-identificação na fala do outro, mas também o seu

estranhamento. Além da vocalização, de tornar audível um pensamento, é necessário a presença de

um outro sujeito para que a escuta de si5 se efetive. Nesse sentido há uma projeção indispensável.

Há que se colocar no lugar do outro para se escutar. Por isso a presença de um outro é importante.

O sujeito da escuta ou o sujeito à escuta (mas também aquele que está «sujeito à escuta» no

sentido em que pode estar-se «sujeito a» uma perturbação, a uma afecção e a uma crise) (...)

não é talvez nenhum sujeito, excepto ao ser o lugar da ressonância, da sua tensão e do seu

ressalto infinitos, a amplidão do desdobramento sonoro e a magreza do seu dobramento

simultâneo – pelo qual se modula uma voz na qual vibra, dele se retirando, o singular de

um grito, de um apelo ou de um canto (...) (NANCY, 2014, p.42).

Escolhemos esse lugar de pensar em voz alta, contando com a disponibilidade da escuta do

outro e, assim, trazer à tona as entrelinhas, detalhes, ruídos que são frequentemente silenciados na

5 Em livre analogia à noção de escrita de si explorada por Rago (2013) a partir de Foucault (2004).

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elaboração de um discurso escrito, ou mesmo de uma palestra ou conferência. A conversa evidencia

a espontaneidade e traz uma certa instantaneidade para o plano do pensamento. Ela favorece um

espaço de emergência e torna audível uma voz interna.

3. Os trabalhos: disparadores de uma conversa

Enlaçados por uma convergência temporal, de perto (2015) e Trajetórias (2015) são dois

trabalhos que tanto provocam quanto se abrem a uma reflexão sobre a escuta. Ainda que as artistas

possuam práticas distintas e que seus trabalhos se situem em campos marcados por um certo grau de

especificidade, de perto e Trajetórias podem ser lidas como peças que buscam, cada uma à sua

maneira, desestabilizar a escuta habitual e provocar o que chamamos aqui de deslocamentos da

escuta.

de perto é uma criação em performance registrada em mídia fixa (gravação binaural) e foi

projetada para ser difundida numa situação de escuta privada, na qual a pessoa se deita e coloca o

fone de ouvido. Solitariamente, a pessoa se percebe num espaço público, porém numa relação nada

convencional de acentuada intimidade com uma performer que parece tocar diretamente seus

ouvidos e que a captura para dentro de um espaço outro, que ela desconhece.

Trajetórias é uma composição instrumental escrita e foi projetada para ser realizada em

espaços que favoreçam o deslocamento dos público participante. Estando numa situação de escuta

pública, porém sendo convidada/o a percorrer uma trajetória individual por entre oito performers

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distribuídas/os no espaço, a/o ouvinte se percebe como a/o única/o responsável por construir uma

escuta própria, singular.

As dimensões do público e do privado possuem, portanto, diversas inserções nesses

trabalhos. Enquanto de perto parece pesquisar o dentro, Trajetórias parece problematizar o fora.

Porém, em ambas, a/o ouvinte se percebe sujeito central da peça. Ao desestabilizar situações

habituais de escuta, as peças colocam em discussão modelos hegemônicos de apreensão, deslocando

a escuta para o campo da individuação, daquilo que é específico e não-neutro.

Trajetórias, de Valéria Bonafé

O projeto Trajetórias6 lida especialmente com a questão da escuta e do espaço, tendo como

tema central a ideia de fragmentação. A peça implica num conjunto de oito performers

espalhadas/os em um determinado espaço, de modo que tal conjunto não possa ser escutado em sua

totalidade a partir de um único ponto. O público participante é convidado a se deslocar livremente

por entre esse espaço numa espécie de caminha sonora (soundwalk) não-guiada, na qual trajetórias

singulares de escuta podem ser vivenciadas. A partitura7 de Trajetórias também responde à esta

abordagem espacial e se constitui efetivamente como um mapa a partir do qual cada performer pode

navegar com certa liberdade e traçar seus percursos individuais. Ao impor às/aos performers e ao

público participante a impossibilidade de uma apreensão total do espaço sonoro, a peça

problematiza – também para a compositora – o ideal de uma escuta onisciente: é preciso aceitar que

algo se escuta, mas muito se perde, e que a escuta é uma experiência necessariamente marcada por

um acentuado grau de individuação. Trajetórias propõe assim um jogo permanente entre totalidade

e fragmentação, pertencimento e isolamento, foco e desfoco, concentração e dispersão.

Trajetórias tem 30 minutos de duração e foi projetada para ser tocada em espaços abertos ou

fechados que favoreçam a circulação do público participante, como praças e parques, átrios e

marquises, museus e galerias, subterrâneos, galpões etc. A peça se localiza numa zona híbrida entre

composição, performance e instalação sonora, e dialoga especialmente com a ideia de sítio-

especificidade. Para a realização a peça, o ensemble precisa definir uma proposta de ocupação

espacial e sonora particular para o local escolhido, formando uma espécie de circuito no qual cada

6 Trabalho comissionado pela Americas Society (www.as-coa.org) para integrar a programação da nona edição do

festival Make Music New York (2015). 7 Partitura disponível em: https://www.valeriabonafe.com/i-am-where.

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performer é compreendida/o como uma estação. As estações funcionam como estímulo para uma

caminhada na qual a escuta pode se abrir também ao que há entre elas.

O posicionamento e a distância entre as estações são duas variáveis que devem ser definidas

de acordo com as especificidades de cada local, porém, como diretrizes gerais, deve-se considerar

duas condições: 1) as/os performers devem estar suficientemente separadas/os para que de nenhum

ponto do espaço se escute o conjunto total com clareza; e 2) as/os performers devem estar

suficientemente próximas/os para que o público participante possa se deslocar entre as diferentes

estações em uma velocidade confortável à caminhada, podendo também realizar breves paradas em

cada uma delas, se assim desejar. Há ainda outra condição a ser considerada na distribuição das/os

performers no espaço: as/os performers pertencentes a cada um dos quatro pares instrumentais – Par

A (voz feminina e violoncelo), Par B (viola e acordeão), Par C (flauta baixo e contrabaixo) e Par D

(clarinete baixo e percussão) – devem estar em extremos opostos, constituindo assim duos que são

essencialmente imaginários, virtuais, já que não podem ser escutados efetivamente enquanto duetos.

O material sonoro da peça é constituído por um conjunto de gestos musicais que se

apresentam como estruturas energéticas complexas, condensadas e expressivas, e que partem da

exploração de um corpo-performer-instrumento. O conjunto de gestos propostos na partitura visa

traçar um vocabulário mais ou menos comum ao grupo de performers, porém valorizando

particularidades de cada instrumento. Os gestos em Trajetórias podem ser agrupados em quatro

grandes famílias ou zonas sonoras: a Zona de Fios (Thread Zone) é composta por gestos de

sonoridade lisa; a Zona de Grãos (Grain Zone) é composta por gestos de sonoridade rugosa; a Zona

de Pontos (Dot Zone) é composta por gestos secos e percussivos; e Zona de Pó (Powder Zone) é

composta por gestos de sonoridade mais etérea. As/os performers percorrem essas diferentes zonas

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ao longo da peça, modelando nuvens gestuais ora mais homogêneas, ora mais heterogêneas, ora

mais estáveis, ora mais caóticas.

O projeto Trajetórias se estrutura efetivamente como uma série. A cada vez que o trabalho é

realizado, ele deve receber um título específico na língua local, relativo àquela performance

particular. A peça possui, assim, o seguinte título interativo: Eu estou [onde?] fazendo uma

trajetória pessoal de escuta. O ensemble deve completar o campo [onde?] com o nome do lugar

onde a performance irá acontecer. Em sua estreia mundial, a peça foi divulgada como I am at

Dalehead Arch making a personal trajectory of listening, indicando portanto o nome de uma ponte

situada na área oeste do Central Park, em NY, onde a peça foi realizada. Em sua estreia brasileira8,

a peça será divulgada como Eu estou no Instituto Tomie Ohtake fazendo uma trajetória pessoal de

escuta. O título opera como uma instrução para o público participante, estimulando a percepção do

espaço em questão e sugerindo o deslocamento em busca de trajetórias pessoais de escuta.

Trajetórias evidencia, talvez de modo mais explícito, um gosto por uma escuta já presente

em trabalhos anteriores da artista, norteada menos por uma temporalidade cronológica e mais por

uma temporalidade que se espacializa numa determinada imagem sonora.

de perto, de Lílian Campesato

Realizada em gravação binaural, de perto9 foi feita em mídia fixa para ser escutada em uma

estrutura escultórica intitulada módulo de escuta de Ricardo Basbaum, uma espécie de poltrona em

que a pessoa pode se deitar, colocar o fone de ouvido e escutar a peça. Foi exibida na galeria A

Gentil Carioca no Rio de Janeiro entre os meses de julho e agosto de 2015. O público visitante teria

necessariamente que se relacionar com o trabalho de maneira individual, sem compartilhar a escuta

com outras pessoas, o que tornava o instante de escutar a peça um momento de intimidade e

isolamento. Esse momento era contrastado com a profusão sonora e visual próprias do lugar onde o

trabalho acontecia, já que a galeria se localizava em uma rua de comércio popular bastante

frequentada do centro do Rio de Janeiro.

de perto é um trabalho que lida com a relação entre uma performer inventora e seu/sua

ouvinte, em especial, no que diz respeito à proximidade entre eles. Trata-se de uma espécie de

“concerto” privado para um ouvinte desconhecido, em que a gravação em estúdio impõe um

distanciamento entre os dois. Essa esfera privada é sugerida desde o início da peça, já que a entrada 8 Prevista para 20 de agosto de 2017 no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. 9 Registro em áudio disponível em: https://soundcloud.com/l-lian-campesato/deperto-campesato-48k-24bits.

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da performer no estúdio, os sons de seus passos, do abrir e fechar da porta, ambientam essa

dimensão. Cria-se uma cena sonora que localiza o ouvinte num duplo lugar: o lugar de um voyeur

que ‘observa’ o que a performer se propõe a mostrar, e o de um espectador acuado pela invasão que

o realismo inesperado da gravação binaural pode ocasionar.10

Assim como em trabalho anteriores da artista, a criação se dá em performance. Apesar de

existir uma elaboração prévia quanto à escolha do tipo de gravação a ser usada e as especificidades

próprias dessa escolha, todo o desenrolar do trabalho acontece no instante da experimentação

durante a performance e não em tempo diferido. A peça obedece temporalmente o desenrolar da

gravação em sessão aberta, com edições mínimas, para que a potência da dimensão improvisatória

permaneça tal qual em situação ao vivo, com seus erros e reticências.

As sessões de gravação aconteceram no estúdio do LAMI na Universidade de São Paulo11

em um único dia. As ações sonoras foram realizadas na forma de improvisos captados por

uma dummy head colocada no centro do estúdio12. Em torno desse microfone antropomórfico se

desenrola toda a performance que resultou na peça. A voz da performer e seus gestos sobre os

elementos que compõem o estúdio representam a totalidade dos materiais sonoros usados. O ranger

da pesada porta que isola a sala de qualquer outro ambiente externo, o atrito de uma baqueta nas

superfícies de tratamento acústico da sala, o quicar de objetos que caem no piso de madeira, o

tilintar de correntes, revelam ao mesmo tempo um espaço possível (longe ou perto, esquerda ou

direita, à frente ou atrás), mas também os gestos que geram cada som (rápido ou lento, abrupto ou

delicado). Não há como deixar de relacionar a escuta da peça com uma escuta de imagens. Ela foi

criada para uma escuta íntima, individual, quase como se os sons fossem imagens que não estão lá

fora no mundo, mas dentro da cabeça de quem escuta.

Mas é a voz que assume uma posição central no que se escuta, já que é por meio dela que

toda ação é construída. A voz cria um jogo semelhante, mas seu efeito é bem distinto. Ao contrário

dos sons gerados pelos, ou nos, objetos e superfícies do ambiente, mostrando o que está fora do

performer, a voz revela o lado de dentro, o que é mais íntimo, mais pessoal. Os sons são produzidos

como uma conversa com um ouvinte imaginário que se personifica na materialidade da dummy

head. Os sons vocais, embora improvisados, fazem parte de um vocabulário que foi sendo

10 Os registros binaurais são baseados em técnicas que simulam a maneira como nossos ouvidos percebem a localização

das fontes sonoras, produzindo um efeito realista e imersivo, especialmente quando são ouvidos por fones de ouvido. 11 Gravação e mixagem realizadas por Fernando Iazzetta. 12 Esse sistema de gravação consiste de um manequim formado por torso e cabeça produzido em um material que

simula a consistência dos tecidos do corpo humano. Dentro dos dois ouvidos do manequim estão dois microfones

usados na captação. Ou seja, o ouvinte imaginário se personificava na figura do microfone manequim.

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construído ao longo tempo. São sons que não se separam da pessoa, da performer, porque se

referem o tempo todo à sua existência: os sons da respiração, das falas, dos gemidos. Ou seja, os

sons fisiológicos que fazem parte de um dicionário particular que confere a cada pessoa sua

singularidade. Essa relação entre os sons de dentro e os sons de fora são reforçadas pela gravação

binaural que funciona como uma lente de aumento, revelando o espaço íntimo pelo qual a performer

se desloca, sua respiração, seus passos e seus erros.

À medida que esse espaço vai sendo revelado, transpõe-se a fronteira que separa o som da

música: o que se escuta é ao mesmo tempo o ensaio e a performance, o erro e a música, o

intencional e o acidente. Neste trabalho, essa fronteira deixa de ser relevante. O que importa é a

intimidade, que se rompe apenas quando o ouvinte é despertado pelo basta clamado no rádio de

Ataúlfo Alves ... “nunca mais”.

4. Lugar de escuta

de perto e Trajetórias tensionam a ideia de uma escuta generalizada. Nesses trabalhos a

escuta passa necessariamente pelo reconhecimento de um corpo e de uma biografia. Tendo que

levar seus ouvidos para um passeio em busca de escutas ou tendo que envolvê-los com um fone de

ouvido para trazer a escuta para perto de si, a/o ouvinte é convidada/o a reconhecer seu lugar de

escuta, a se perceber sujeito de uma ação particular. Nesse encontro com as peças - com o outro,

com o estranho - ela/ele se escuta a si mesma/o. E é nessa experiência de alteridade, de

deslocamento, que uma individuação através da escuta se faz possível.

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5. Referências

FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos V. Ética, sexualidade e política. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2004.

KANAAN, Dany Al-Behy. Escuta e subjetivação: a escrita de pertencimento de Clarice Lispector.

São Paulo: Casa do Psicólogo; EDUC, 2002.

MACEDO, João Paulo; DIMENSTEIN, Magda. Escrita acadêmica e escrita de si: experienciando

desvios. Mental, Barbacena, v. 7, n. 12, p. 153-166, jun. 2009.

NANCY, Jean-Luc. À escuta. Belo Horizonte: Chão da Feira, 2014.

RAGO, Margareth. A aventura de contar-se: feminismos, escrita de si e invenções da subjetividade.

Campinas: Editora da Unicamp, 2013.

The listening in displacement: a conversation about music creation

Astract: In this article we propose to establish a reflection from a conversation about two pieces

made in 2015: de perto, by Lílian Campesato, and Trajetórias, by Valéria Bonafé. Although the

artists have different practices and their works are located in fields marked by a certain degree of

specificity, the two pieces seek, each in their own way, to provoke what we call here displacements

of listening. The pieces problematize the idea of a generalized listening, understanding that listening

is always modulated by a subject. In this context, we explore aspects such as: public and private

listening, habitual and non-habitual listening, intimate listening, and fragmented listening. Through

the ideas of conversation and wide listening a displacement is experienced in the very process of

making this work. It is not exactly a deviation, but an opening of focus: the works are taken as

motto for a greater path of incursion into the creative process of the other. Listening is thus marked

by the experience of otherness.

Keywords: music creation, performance, listening displacements.