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"1893, iniciava-se o povoamento de Belo Monte ou Canudos como é mais conhecido o palco do drama histórico que nos interessa neste momento. A pré-história desse povoamento parece seguir muito de perto as pegadas de um certo Conselheiro, nascido Antônio Vicente Mendes Maciel, um homem cuja história – que muita tinta já fez correr – constitui-se numa espécie de emblema significativo do agrupamento humano que se instalaria naquela que, nosdizeres euclidianos, era uma espécie de “Tróia de barro”. As primeiras notícias das andanças de Maciel – ainda conhecido pela alcunha de Antônio dos Mares – datam de 18741, quando, no interior de Sergipe, protagonizava junto a uma primeira formação de ajudantes/seguidores, uma série de esforços voltados para a construção e o soerguimento de capelas, igrejas e muros de cemitérios..."
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A esperança nas entrelinhas
Vanderlei Costa
UFBA
Pistas positivas para novos estudos dos elementos religiosos em Belo Monte
1893, iniciava-se o povoamento de Belo Monte ou Canudos como é mais conhecido o
palco do drama histórico que nos interessa neste momento. A pré-história desse povoamento
parece seguir muito de perto as pegadas de um certo Conselheiro, nascido Antônio Vicente
Mendes Maciel, um homem cuja história – que muita tinta já fez correr – constitui-se numa
espécie de emblema significativo do agrupamento humano que se instalaria naquela que, nos
dizeres euclidianos, era uma espécie de “Tróia de barro”. As primeiras notícias das andanças de
Maciel – ainda conhecido pela alcunha de Antônio dos Mares – datam de 18741, quando, no
interior de Sergipe, protagonizava junto a uma primeira formação de ajudantes/seguidores, uma
série de esforços voltados para a construção e o soerguimento de capelas, igrejas e muros de
cemitérios.
É nessas experiências – interrompidas temporariamente em 1877 – que, acredito deve-se
encontrar um dos “fios vermelhos” da conturbada historiografia do movimento de Belo Monte2.
É em tais esforços baseados numa esperança que se volta para o conserto do mundo circundante
imediato - esperança esta que, ao sabor da ventania do progresso3, voltar-se-á para mudanças
1 "A bons seis meses que por todo o centro desta e da Província da Bahia, chegado, (diz elle,) da do Ceará infesta um aventureiro santarrão que se apellida por Antônio dos Mares: (...) O fanatismo do povo tem subido a ponto tal que affirmão muitos ser o próprio Jesus Christo (...) Pedimos providencias a respeito: seja esse homem capturado e levado a presença do Governo Imperial , a fim de prevenir os males que ainda não forão postos em prática pela auctoridade da palavra do Fr. S. Antonio dos Mares moderno. Dizem que elle não teme a nada, e que estará a frente de suas ovelhas. Que audácia! O povo fanático sustenta que n’elle não tocarão; Já tendo se dado casos de pegarem em armas para defende-lo." (O Rabudo, 22 de novembro de 1874. Trecho disponível em <http://www.portfolium.com.br/antonio.htm>. Acesso em: 2 ago. 2003. Também citado, aos pedaços, por: CALASANS, José. “Aparecimento e prisão de um messias”. In: Cartografia de Canudos. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia/Conselho Estadual de Cultura/EGBA, 1997.)2 Em tempo, importa esclarecer que o que se consigna aqui sob o termo “movimento de Belo Monte” é o trajeto constitutivo e a luta pela preservação da comunidade canudense.3 “A imagem que se faz do anjo da história é a seguinte: sua face está voltada para o passado. No lugar onde percebemos uma cadeia de efeitos, ele vê uma única catástrofe que não pára de despejar destroços diante de seus pés. O anjo gostaria de ficar, despertar os mortos, e recompor o que foi esmigalhado. Mas uma tempestade sopra do Paraíso; ela atinge-lhe as asas com tal violência que ele não mais pode fechá-las. Esta tempestade é o que chamamos de progresso.” (BENJAMIN, Walter. “Theses on the philosophy of history”. in Illuminations. New York: Schocken, 1969, p. 258.) [“This is how one pictures the angel of history. His face is turned toward the past. Where we perceive a chain of events, he sees one single catastrophe which keeps piling wreckage upon wreckage and hurls it in front of his feet. The angel would like to stay, awaken the dead, and make whole what has been smashed. But a storm is
relativamente radicais - que se faz possível a compreensão de uma grande parcela dos agentes
motivadores do movimento de Belo Monte.
Um dos pontos em que se apoiam os autores que rechaçam a possibilidade de existência de
milenarismo e apocalipsimo em Belo Monte é a alegada ausência de conflitos significativos entre
Canudos e a sociedade circundante até o ano de 18964 - argumento reforçado pela existência
mesma de determinada margem de intercâmbio comercial entre um e outro ambiente. A título de
questionamento pode-se apontar para alguns pontos encobertos por esta argumentação: (1) não é
a presença de negociação que exclui o conflito, uma vez que (2) o conflito não necessariamente
deve sempre ser aberto, explícito, assim (3) nem todo movimento milenarista carrega em seu
nascedouro as feições mais ou menos típicas que nos permitem caracterizá-lo. É sempre
pertinente lembrar que os movimentos milenaristas são historicamente formados e vivenciados,
portanto sua compreensão só se faz possível quando olhamos para a história como um processo,
no qual os objetos talvez não tenham jamais uma forma definitiva.
Aqui cabe um parêntese para que se delimite com certa margem de clareza o que está aqui
entendido por milenarismo, uma vez que creio ser a falta de uma conceituação precisa uma das
causas do desacordo nas interpretações no tocante aos aspectos religiosos do movimento de Belo
Monte. Depreende-se daí o fato de para os adeptos da negação do Belo Monte milenarista bastar
que não se detecte na documentação explorada uma manifestação explicita de qualquer elemento
que se venha a considerar como um fato fundamental do milenarismo, para se afirmar que é
engano vê-lo naquele movimento. Exemplos claros disso são os trabalhos Os anjos de Canudos,
de Eduardo Hoornaert, Canudos: o povo da terra, de Marco Antonio Villa e em menor
incidência – visto que deixa em aberto a possibilidade de haver ou não alguma espécie de
milenarismo em Belo Monte – O império do Belo Monte, de Walnice Galvão5.
A partir do que foi elaborado por autores como Henri Desroche, Maria Isaura Pereira de
Queiroz, Yonina Talmon e Norman Cohn6, reunindo elementos de suas conceituações do
milenarismo, adoto as seguintes idéias: o milenarismo é a crença na instauração de uma ordem
que é comumente chamada de Reino, sendo que este Reino deve emanar do alto, da intervenção
divina antes ou após a ação humana; é um fenômeno sócio-religioso porque nasce no ambiente
religioso – o que nos permite, com uma determinada dose de cuidados, afirmar que o
blowing from Paradise; it has got caught in his wings with such violence that the angel can no longer close them. This storm irresistibly propels him into the future to which his back is turned, while the pile of debris before him grows skyward. This storm is what we call progress.”] 4 Ano em que se dá a derrota da expedição dirigida pelo legendário Coronel Moreira César.5 HOORNAERT, Eduardo. Os anjos de canudos. Rio de Janeiro: Vozes, 1997. GALVÃO, Walnice Nogueira. O Império do Belo Monte: vida e morte de Canudos. São Paulo; Fund. Perseu Abramo, 2001. VILLA, Marco Antonio. Canudos: o povo da terra. São Paulo: Ática, 1999.6 DESROCHE, Henri. Sociologia da esperança. São Paulo: Paulinas, 1985. QUEIROZ, Maria Isaura P. de. O messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 3ª ed, 2003. TALMON, Yonina. “Millenarianism”. In: SILLS, David L (ed.). International Encyclopaedia of the Social Sciences. New York, Macmillan/Free Press, 1979, t. 10, pp. 349-360. COHN, Norman. Na senda do milênio: milenaristas revolucionários e anarquistas místicos da Idade Media. Porto: Editorial Presença, c1970.
2
milenarismo é antes de tudo um fenômeno que emerge do território religioso7 – mas fatalmente
termina por apresentar implicações de cunho social, visto que é geralmente uma experiência
coletiva, e aí encontramos uma de suas invariáveis: a “reunião de gente”, o “séquito”, o
“ajuntamento”; dentre os fatos mais ou menos constantes do milenarismo estão as profecias, as
críticas violentas ao tempo presente e a esperança voltada para um melhor futuro que não
necessariamente deve ser iminente.
Podem ocorrer casos, e em geral ocorrem, em que o milenarismo se entrecruze com o
messianismo, o que não coincide com uma dependência da componente messiânica para a
configuração de uma crença e de um movimento milenarista. Uma vez que temos no
milenarismo a crença na possibilidade e a esperança na concretização de uma ordem perfeita, é
comum encontrarmos nele uma componente moralizante, espécie de catalisador do devir –
contudo aqui também vale a ressalva de que não se trata jamais de uma lei, e sim de uma
tendência.
Levemos em consideração os fatos de 1896 e voltemos os olhos para os acontecimentos
primordiais de maio de 1893, quando após quebrarem as famosas tabuletas fiscais nas praças de
localidades como Masseté e Natuba (atual Nova Soure - BA), os seguidores do Conselheiro, já
sob a chefia militar do notório João Abade, enfrentaram e puseram, em termos interioranos, a
"dar com os calcanhares nas costas" uma tropa enviada de Salvador com a missão de combatê-
los. À primeira vista, o historiador pode afirmar não encontrar aí qualquer vestígio de
milenarismo – sou obrigado a concordar. Há, contudo, pontos sub-reptícios que se não o
configuram carregam algumas sementes extremamente necessárias e acredito que seja nesse
momento de acinte à autoridade que nasce o movimento de Belo Monte; afinal, em junho, o
Conselheiro e "sua gente" (como já eram claramente identificados os seus seguidores) instalar-
se-iam no decadente povoado dos Canudos8, que a partir de então passaria a ser Belo Monte -
fato que nos chama a atenção a dois aspectos da história do movimento: (1) já de entrada os
novos ocupantes efetuaram uma ressignificação e (2) por motivos diversos provocou-se, no
âmbito externo, um recalque - amplamente introjetado - dessa ressignificação, uma vez que é
pelo primeiro nome que o arraial é conhecido9.
7 É pertinente ressaltar que aquilo que entendemos por “território religioso” às vezes confunde-se com toda a ordem social, econômica e cultural analisada. Portanto, determiner a sua amplitude é uma tarefa, sem dúvida, difícil.8 De acordo com a tradição, o nome Canudos derivaria do canudo-de-pito, espécie de bambu amplamente encontrado e utilizado no povoado como cachimbo.9 A imagem dos canudos-de-pito era evocada para fazer alusão a supostas hordas de desordeiros, alojadas no povoado, que passavam a maior parte do tempo - em que não estavam a infernizar a vida das localidades vizinhas - a fumar com seus cachimbos típicos. Sobre isso, veja-se o testemunho do padre Vicente Ferreira dos Passos vigário do Cumbe, que descreve a antiga população do arraial como “gentes de todo despeadas da terra, lá se aglomerava, agregada à fazenda, população suspeita e ociosa, armada até os dentes...cuja ocupação quase exclusiva, consistia em beber aguardente e pitar uns esquisitos cachimbos de barro em canudos de metro (sic) de extensão...cujos tubos eram naturalmente fornecidos pelas solanáceas (canudos de pito) vicejantes, em grande cópia, à beira do rio”. (CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de janeiro: Laemmert, 1902, p. 187, apud Cartografia de Canudos. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia/Conselho Estadual de Cultura/EGBA, 1997, p. 50.)
3
Voltemos nossa atenção para um fato que em muito importa para a compreensão do
episódio: a missão capuchinha enviada em 1895 a Belo Monte. Liderada por Frei João
Evangelista do Monte Marciano - a quem foi passado o encargo de "fazer o Conselheiro tornar
com sua gente para o grêmio da Igreja, e obediência às leis e autoridades do país"10 - a missão
encarna a postura oficial da Igreja e do Estado - convenientemente unidos uma vez mais - em
relação ao movimento de Belo Monte.
Isto leva a uma direção oposta ao que defendem autores como Jacqueline Hermann e segue
na trilha do bacharel Cícero Dantas (o Barão de Jeremoabo), que em 1897 afirmava que desde
"cedo" ter-se-ia compreendido o Conselheiro e por extensão o seu séquito como "elemento
perturbador da ordem e do trabalho" – o mesmo Barão afirmava alarmado que "o povo em massa
abandonava as suas casas e afazeres para acompanhá-lo [ao Conselheiro]" e que "assim foi
escasseando o trabalho agrícola". Portanto, acredito não ser possível sustentar a tese de que o
movimento de Belo Monte não representava real perigo para a sociedade circundante até 1896, já
que antes desta data encontramos esforços no sentido de dispersá-lo e já o Conselheiro era visto
com grandes reservas pelos corredores do Arcebispado e com certeza não o era melhor visto em
alguns corredores das casas-grandes da região circunvizinha. Evidentemente, pode-se
argumentar que os testemunhos do Barão de Jeremoabo encontram-se contaminados pelo "calor
da hora", mas não se pode negar a história pregressa do Conselheiro bem como a própria história
em que se insere a formação de movimento de Belo Monte.
É apenas não deixando de enxergar o movimento de Belo Monte como portador de
elementos censurados pela Igreja - "doutrinas supersticiosas", distintivos de uma "seita" - que
poderemos compreender a razão de ser da missão capuchinha que após pressionar aquela
população à resignação frente aos ditames desnaturalizados por um sistema - ainda imberbe - que
lhes transcendia receberá uma resposta lacônica, mas prenhe de sentido: "nós queremos
acompanhar o nosso Conselheiro".
Belo Monte era o receptáculo de algo que Frei João denominava de "mau pensar" e ainda
"uma doutrina errada"11 e é neste ponto que o próprio Frei João - inconscientemente - responde
uma questão crucial que levantou ao Conselheiro: "Nós mesmos aqui no Brasil, a principiar dos
bispos, até o último católico, reconhecemos o governo atual; somente vós não vos quereis
sujeitar?".
De acordo com Marco Antonio Villa, não houve milenarismo em Belo Monte e Antonio
Conselheiro nunca foi um messias, portanto não houve ali um movimento messiânico ou
milenarista. A fim de sustentar sua tese, Villa afirma não existir qualquer menção a um
10 MILTON, Aristides. A campanha de Canudos, in: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, t63, 1902, p. 19.11 MONTE MARCIANO, Frei João Evangelista de. Relatório apresentado pelo reverendo Frei João Evangelista de Monte Marciano, ao Arcebispado da Bahia, sobre Antonio Conselheiro e seu séquito no arraial dos Canudos. Salvador, Tipografia do Correio da Bahia, 1895 (edição em fac-símile pelo CEB, 1987), p. 4.
4
messianismo ou a um milenarismo nos documentos que sustentam o estudo de Belo Monte,
enfatizando a inexistência mesmo de qualquer indicativo no Relatório do Frei João Evangelista
de Monte Marciano. Afirma ainda que as únicas âncoras que baseiam interpretações como as de
Euclides da Cunha e Maria Isaura Pereira de Queiroz são as quadrinhas do ABC de Canudos e a
famosa profecia (“o sertão vai virar mar...”), ambas coletadas por Euclides da Cunha, fato a
priori negativizado por Villa.
Ao contrário do proposto por este autor, penso que o relatório de frei João é rico em pistas
como, por exemplo, quando em suas exortações à retomada da ‘normalidade’, esbarra no habitus
dos seguidores do Conselheiro que reagem
dando foras aos republicanos, maçons e protestantes, e gritando que não precisavam de padres para se
salvar porque tinham o seu Conselheiro
Para além da nítida separação explícita no trecho, - Belo Monte é uma realidade, a outra é a dos
“republicanos, maçons e protestantes” – há ainda a manifesta preocupação com a salvação, que
prescinde do apoio dos agentes especializados convencionais – a esperança está depositada na
pessoa portadora de carisma - em termos weberianos, um profeta - o Conselheiro.
Perceba-se ainda, um outro trecho. Este, talvez, venha a ser o mais explicitamente
milenarista de todos os textos relativos a Belo Monte
Os aliciadores da seita se occupam em persuadir o povo de que todo aquelle que quizer se salvar precisa vir
para os Canudos, porque nos outros logares tudo está contaminado pela Republica: alli, porém, nem é
preciso trabalhar; é a terra da promissão, onde corre um rio de leite, e são de cuscuz de milho os barrancos.12
Mais uma vez temos a contraposição entre “os outros lugares” e Belo Monte, aí em todas as
letras chamada de terra da promissão. Seria este trecho uma falsificação? Uma “colagem”, i. e.
uma transposição de fatos feita por frei João? Da minha parte, como não disponho de
instrumentos para julgar o caráter de nosso informante, prefiro encarar seu testemunho como um
testemunho íntegro, que independente de incorrer em falhas, é fruto de sua experiência no
arraial. Melhor dizendo, é fruto do contato conflituoso entre duas experiências distintas.
Penso que é impossível fechar os olhos para o Belo Monte milenarista - mesmo que, em
parte, concordemos com Hoornaert que afirma ao analisar as prédicas do Conselheiro que este
não pratica um "milenarismo trovejante" - a menos que taxemos a obra de Euclides da Cunha
como um mero artefato literário e nos fechemos para os indícios que empertigam os documentos
eclesiásticos. Encontra-se milenarismo e digo mais - a menos que queiramos entrar em uma
discussão acerca da validade das fontes que se estenderia ad infinitum – registra-se também uma
irrupção de apocalipsismo no seio daquela comunidade. Há contudo a necessidade de melhor
examinarmos o leque documental relativo ao movimento a fim de que para além do registro e da
12 MONTE MARCIANO, 1895, p. 5, col. 1.
5
interpretação destes elementos quanto à função que exerceram se faça uma tentativa de datá-los13
- tarefa que por não ter sido tentada, ocasiona, a meu ver, a negação destas ocorrências.
Vejo tais "indícios" primeiramente naquilo que Frei João e outros chamam de "moral
excessivamente rígida" - o que seria uma moral excessivamente rígida para a Igreja naquele
momento senão uma moral ascética, voltada para a emolduração de um novo homem, apto a
viver num ambiente santificado? E que ambiente santificado seria esse senão o tão esperado
Reino? Também – e este talvez seja o ponto crucial da questão - no que chamava de “doutrinas
supersticiosas”. Sabemos através de trabalhos como o do Prof. Cândido da Costa e Silva14 que
nem mesmo as missões estavam isentas a elas e sabemos também que eram consideradas
"supersticiosas" as crenças milenaristas, tão temidas a aquela altura devido às ainda lembradas
experiências da Cidade do Paraíso Terrestre (Serra do Rodeador), de 1817 a 1820, e do sangrento
movimento de Pedra Bonita, de 1836 a 1838, ambos ocorridos nas terras não muito longínquas
de Pernambuco. Pode-se de antemão questionar tal indício com a afirmação de que os
movimentos milenaristas não necessariamente devem ter conteúdo moralista/moralizante,
entretanto deve-se admitir que a presença de elementos moralizantes aumenta as probabilidades
de termos um movimento de bases religiosas milenaristas.
Outro forte indício está no envio de uma missão religiosa a fim de debelar o movimento: é
o uso primeiro da coação que precede à coerção – nítido indicativo de tratar-se de um
movimento que tinha na religião a sua base mais forte, logo, nada mais lógico do que tentar
miná-lo pela via da religião - mais uma vez pode surgir um argumento em contrário que é o da
boa relação entre o Conselheiro e a comunidade canudense com o clero local, argumento que
pode ser devidamente rebatido quando nos questionamos acerca do parentesco qualitativo entre o
clero citadino e esse clero local que, diga-se em tempo, fôra seguidas vezes advertido a combater
o avanço do movimento através da supressão da atividade pregadora do Conselheiro; adicione-se
ainda ao caldo fervilhante que temos em mãos a suspeita que paira sobre um clérigo local - o
padre Cordero y Martinez - de ter sido o fornecedor de material bélico ao arraial.
Sabemos, de acordo com o que está afixado nos cânones da História do Brasil que a Igreja,
a partir da chamada Questão Religiosa, alinhar-se-ia em torno da causa republicana mas não
sabemos se tal alinhamento pode ser considerado integral. Penso ser esta uma questão não
esclarecida e que não deve ser desprezada neste caso.
É possível ainda apontar para mais um indício quando vasculhamos a documentação em
busca da compleição social do povoado. É ponto pacífico na historiografia relativa ao assunto
13 A hipótese que aqui lanço e tentarei comprovar na pesquisa é a de que em Belo Monte o messianismo –consignado na pessoa do Conselheiro (cf. nota 1 à p. 1) – precede cronologicamente ao milenarismo e ao apocalipsismo que teriam surgido quando do defrontamento da comunidade com a repressão (signo de que o tempo último estava próximo). A tarefa principal a que me proporei no projeto de dissertação é mapear estas idéias, buscando encontrá-las em seus respectivos momentos.14 SILVA, Cândido da Costa e. Roteiro da vida e da morte. Um estudo do catolicismo no Sertão da Bahia. São Paulo: Ática, 1982.
6
que a maioria dos elementos alojados em Belo Monte pertenciam aos estratos mais carentes da
população, não dispondo de moradia ou trabalho fixo, inseridos num modus vivendi
estreitamente próximo ao nomadismo. Há, contudo, que se levar em conta que nem só desses
casos era feito o corpus social canudense. Neste sentido, Ataliba Nogueira15 nos conta -
baseando-se em matérias de jornais da época - que entre os prisioneiros foram encontradas até
mesmo pessoas vindas da região sul do país e pertencentes a famílias bem situadas na escala
social; juntem-se a isto os casos de pessoas da própria região adjacente a Belo Monte que
venderam suas posses e se mudaram para lá doando à comunidade todo o produto resultante das
vendas efetuadas. Fica a título de provocação uma simples pergunta: por quê?
Gostaria de propor preliminarmente algumas questões e considerações a serem levantadas
em torno de um ponto que ainda pode fornecer adendos fundamentais para o estudo do
movimento de Belo Monte: a construção ideológica deste, como de outros movimentos, deve ser
sempre percebida a partir dos espaços externos e internos.
Jacqueline Hermann, em seu texto Canudos destruído em nome da República16 defende a
hipótese de que a amplitude da reação contra Belo Monte não foi resultado do efetivo perigo
restaurador representado pelo arraial e, sim, fruto de uma conjuntura de confirmação do
compromisso com o ideário republicano. Neste sentido Prudente de Morais é taxativo: “A
Republica está firmada na consciência nacional, manifestada pelo consenso unanime dos
Estados; ella será mantida pela Federação, ancora poderosissima, que resistirá a todas as
tempestades que contra ella desencadeiem os seus adversários”.17
Em posse destas idéias, parece-me promissor atrelar à hipótese de Hermann a questão do
impacto dos elementos ideológicos fundamentais do movimento de Belo Monte em um momento
em que ainda não se tinham resfriado os conflitos em torno daquilo que José Murilo de Carvalho
chama de utopias republicanas, sendo este um momento, portanto, de gestação e pré-afirmação
dos elementos fundamentais da ideologia republicana tomada como um bloco mais ou menos
sólido e estável. Um exercício do maior interesse seria, portanto, o de buscar reconstituir o
“curto-circuito” ocasionado pelo choque entre a utopia18 canudense e as utopias19 republicanas,
compreendendo na ideologia de Canudos, além do discurso religioso (que ocupa espaço central),
um discurso sócio-político extremamente incômodo às diversas construções que tentavam se
15 NOGUEIRA, Ataliba. Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica - a obra manuscrita de Antônio Conselheiro e que pertenceu a Euclides da Cunha. São Paulo: Nacional, 1974.16 Revista Tempo, nº 3, 1997.17 MORAES, Prudente de. Mensagem apresentada ao congresso nacional na abertura da terceira sessão da segunda legislatura pelo Presidente da República Prudente J. de Moraes Barros. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1896, p. 5. Disponível em <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1285/000005.html>. Acesso em: 08 set 2003.18 No sentido que Mannheim dá ao termo (utopia como uma idéia ou um conjunto de idéias que se volta para aspirações que não encontram consonância na conjuntura da época em que brotam sendo parcial ou integralmente contrárias à ordem vigente). Ver MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.19 No sentido dado por José Murilo de Carvalho (utopia como projeto/modelo) significativamente diferente do sentido dado por Mannheim, aproximando-se bastante da acepção que este dá à ideologia. Ver CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
7
impor no contexto de maturação da instituição republicana no Brasil. Neste sentido, parece-me
que deve ser relativizada a afirmação de Hermann no tocante à ausência de um efetivo perigo
restaurador uma vez que se ele não era efetivo é certo que pelo menos a partir de um
determinado momento tal perigo era - correta ou equivocadamente - enxergado por alguns
setores da sociedade política a exemplo dos caricaturais jacobinos.
À visão interna do ideário canudense pode-se levantar em primeiro lugar uma questão que
me parece não ser levada em conta nos estudos sobre o movimento: é apenas em Conselheiro
que devemos buscar o ideário em questão? Por sua vez, diante da repetida afirmação que dá
conta de um revivalismo sebastianista em Belo Monte impõem-se as seguintes perguntas: por
que motivos recai sobre a legendária figura de D. Sebastião a incumbência de encarnar a
esperança em ultrapassar aquele momento histórico particular? Quais os caminhos percorridos e
que veículos conduziram o mito sebastianista até as redondezas de Belo Monte? Tal mito é
constitutivo do movimento ou - seguindo uma hipótese colocada por Hermann ao movimento da
Serra do Rodeador20 - é um elemento a que se recorreu num momento crítico? Qual o valor
simbólico da monarquia para a coletividade canudense? É possível localizar nos vestígios do
movimento alguma forma de associação da forma monárquica ao governo celeste? A visão da
República como o “Reino do Mal” era um aspecto encontrado - à época - apenas em Canudos?
Gostaria de encerrar este texto lembrando algumas palavras proferidas por Duglas Teixeira
Monteiro em uma análise conjunta dos episódios do Belo Monte, Contestado e Padre Cícero.
Numa grande mostra de clarividência, o autor deixou-nos a seguinte reflexão: “o que se propõe à
discussão é o reconhecimento nos movimentos estudados, de alguma coisa que, de uma
perspectiva negativa, pode ser referida como marginalidade, e de uma perspectiva positiva,
como autonomia”.21 Penso que é exatamente este o problema que se põe à análise do episódio de
Belo Monte, e é com ele que temos de nos resolver.
20 Hipótese sugerida por Hermann em comunicação no XXII Simpósio Nacional da ANPUH.21 MONTEIRO, Duglas Teixeira. “Um confronto entre Juazeiro, Canudos e Contestado”. In: História Geral da Civilização Brasileira. Tomo III, vol, II, Rio de Janeiro/São Paulo: DIFEL, 1977, pp. 86-87.
8
BIBLIOGRAFIA
CALAZANS, José. Cartografia de Canudos. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo do
Estado da Bahia/Conselho Estadual de Cultura/EGBA, 1997.
GALVÃO, Walnice Nogueira. O Império do Belo Monte: vida e morte de Canudos. São Paulo:
Fund. Perseu Abramo, 2001.
HERMANN, Jacqueline. “A terra dos homens de Deus”. In: Estudos Sociedade e Agricultura, nº
9, outubro de 1997.
____________________ “Canudos destruído em nome da República”. In: Revista Tempo, nº 3,
1997.
HOORNAERT, Eduardo. Os anjos de Canudos. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
MILTON, Aristides. “A campanha de Canudos”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Rio de Janeiro, t63, 1902.
NOGUEIRA, Ataliba. Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histórica - a obra manuscrita de
Antônio Conselheiro e que pertenceu a Euclides da Cunha. São Paulo: Nacional, 1974.
SILVA, Cândido da Costa e. Roteiro da vida e da morte. Um estudo do catolicismo no Sertão da
Bahia. São Paulo: Ática, 1982.
VILLA, Marco Antonio. Canudos: o povo da terra. São Paulo: Ática, 1999.
9