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  A est r a t égia d a re v olta: li t e r a t ura  A es t ra t égia da re v ol t a : litera t ur a  A est r a t é g i a d a re v o l ta: l i t e r a t ura  A es t ra t é g i a d a re v o l t a : l i tera t ur a  A e s t ratégia da r e v ol t a: li t eratura marginal e construção da identidade marginal e construção da identidade marginal e construção da identidade marginal e construção da identidade marginal e construção da identidade Ângela Maria Dias Albert Camus, ao refletir sobre o valor que mobiliza o homem revolta- do, argumenta que deve tratar-se de algo que, mesmo ainda confuso, envolve o que é comum a todos, já que “a afirmação implícita em todo ato de revolta se estende a qualquer coisa que ultrapassa o indivíduo, na medida em que essa mesma revolta o arranca à sua suposta solidão e lhe fornece uma razão para agir” 1 . A implicação entre revolta e solidariedade, fundada no reconheci- mento de que há uma integridade de ser a preservar, vai diferenciar a ação revoltada do ressentimento que, tendo um caráter passivo e invejo- so, ao invés de defender algo que já se possui, deseja, em primeira instân- cia, possuir o que atribui ao outro. Por isso, como o considera o filósofo, em sua natureza genuinamente afirmativa, a revolta, “de princípio não pensa em conquistar, mas em impor” 2 . Neste ensaio, pretendo testar o rendimento do conceito camuseano de revolta e de homem revoltado para pensar o estatuto político-existencial da literatura marginal como movimento comprometido com a afirmação identitária das comunidades periféricas e engajado no seu auto-reconheci- mento como grupo, dotado de uma determinada cultura e de projetos co- letivos. Nessa direção, a linguagem heterogênea desses escritos, cujas bali- zas poderiam ser, de um lado, os textos sagrados “ sobretudo, a Bíblia “ e, de outro, o hip-hop e a arte dos grafiteiros, busca encarnar uma língua geral capaz de absorver as dicções díspares recolhidas no meio, num empenho aglutinador de dignificação contra os apelos da miséria e do crime.  Justamente esta suposta unicidade de princípios do movimento, ape- sar do pluralismo das dicções nas quais se multiplica, pode ser avaliada a 1  Camus, O homem revoltado, p. 28. 2  Id., p. 31.

A Estrategia Da revolta

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Literatura Marginal

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  • A estratgia da revolta: literaturaA estratgia da revolta: literaturaA estratgia da revolta: literaturaA estratgia da revolta: literaturaA estratgia da revolta: literaturamarginal e construo da identidademarginal e construo da identidademarginal e construo da identidademarginal e construo da identidademarginal e construo da identidade

    ngela Maria Dias

    Albert Camus, ao refletir sobre o valor que mobiliza o homem revolta-do, argumenta que deve tratar-se de algo que, mesmo ainda confuso,envolve o que comum a todos, j que a afirmao implcita em todoato de revolta se estende a qualquer coisa que ultrapassa o indivduo, namedida em que essa mesma revolta o arranca sua suposta solido e lhefornece uma razo para agir1.

    A implicao entre revolta e solidariedade, fundada no reconheci-mento de que h uma integridade de ser a preservar, vai diferenciar aao revoltada do ressentimento que, tendo um carter passivo e invejo-so, ao invs de defender algo que j se possui, deseja, em primeira instn-cia, possuir o que atribui ao outro. Por isso, como o considera o filsofo,em sua natureza genuinamente afirmativa, a revolta, de princpio nopensa em conquistar, mas em impor2.

    Neste ensaio, pretendo testar o rendimento do conceito camuseano derevolta e de homem revoltado para pensar o estatuto poltico-existencialda literatura marginal como movimento comprometido com a afirmaoidentitria das comunidades perifricas e engajado no seu auto-reconheci-mento como grupo, dotado de uma determinada cultura e de projetos co-letivos. Nessa direo, a linguagem heterognea desses escritos, cujas bali-zas poderiam ser, de um lado, os textos sagrados sobretudo, a Bblia e, deoutro, o hip-hop e a arte dos grafiteiros, busca encarnar uma lngua geralcapaz de absorver as dices dspares recolhidas no meio, num empenhoaglutinador de dignificao contra os apelos da misria e do crime.

    Justamente esta suposta unicidade de princpios do movimento, ape-sar do pluralismo das dices nas quais se multiplica, pode ser avaliada a

    1 Camus, O homem revoltado, p. 28.2 Id., p. 31.

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    partir do volume Literatura marginal Talentos da escrita perifrica3, colet-nea recentemente publicada como desdobramento das trs edies darevista Caros Amigos sobre o tema e coordenada por Ferrz.

    Na introduo, intitulada Terrorismo literrio, o organizador bemcaracteriza a palavra coletiva como revoltada, na acepo camuseana.Primeiro, sublinhando a sua afirmatividade, quando diz: no somos nada,nem pobres, porque pobre, segundo os poetas da rua, quem no tem ascoisas. Ou seja, no se trata de encenar o drama ressentido do cobradorrubemfonsequiano ansiando pelos consolos consumistas da classe mdiaalta, mas de enunciar que o sonho no seguir o padro porque aquiningum quer humilhar, mas, ao mesmo tempo, somos o contra suaopinio (LM4, 9).

    E depois, anuncia as condies histrico-sociais para o surgimento daprpria revolta numa interessante convergncia com o comentrio de Camusa respeito da contextualizao do homem revoltado, no mago das socieda-des ocidentais. Segundo o pensador, no ocidente, uma igualdade tericaoculta grandes desigualdades reais, ao passo que o carter holstico dassociedades orientais impede que tais desigualdades sejam questionadas5.

    A necessidade de uma fundamentao histrica do movimento levaFerrz a explicitar, na sociedade brasileira, os mesmos sintomas observa-dos pelo escritor francs:

    Um dia a chama capitalista fez mal a nossos avs, agora faz mal a nossos pais e no futurovir fazer a nossos filhos, o ideal mudar a fita, quebrar o ciclo da mentira dos direitosiguais, da farsa do todos so livres, a gente sabe que no assim, vivemos isso nasruas, sob os olhares dos novos capites do mato, policiais que so pagos para noslembrar que somos classificados por trs letras classes: C, D, E (LM , 10).

    Esta contestao da violncia da histria, em nome de uma fora devida e criao, constitui, certamente, o que o filsofo do absurdo deno-

    3 Ferrz (org.), Literatura marginal: talentos da escrita perifrica. O livro uma coletnea que rene textos

    selecionados das trs edies especiais da revista Caros Amigos Literatura Marginal.4 A sigla LM, acompanhada do nmero da pgina, ser utilizada no decorrer deste artigo toda vez

    que se fizer referncia obra de Ferrz, Literatura marginal: talentos da escrita perifrica.5 A respeito do assunto, o filsofo menciona, por exemplo, o regime de castas hindu, ou certas

    sociedades primitivas, para reconhecer a inviabilidade da revolta como fenmeno histrico nesses

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    mina sabiamente de a longa cumplicidade dos homens em luta com oprprio destino, e que considera o nico valor que os pode salvar doniilismo6. No outra a inteno do organizador da coletnea marginal,quando a apresenta: Literatura de rua com sentido, sim, com um princ-pio, sim, e com um ideal, sim, trazer melhoras para o povo que constriesse pas mas no recebe sua parte ((LM, 10).

    A tematizao da histria como servido, mentira e terror, consideradospor Camus como os trs flagelos que fazem reinar o silncio entre os homens7, tambm literal no texto de Ferrz, em pleno exerccio de sua revolta:

    Ao contrrio do bandeirante que avanou com as mos sujas de sangue nosso territrio,e arrancou a f verdadeira, doutrinando nossos antepassados ndios, ao contrrio dossenhores das casas-grandes que escravizaram nossos irmos africanos e tentaram domi-nar e apagar toda a cultura de um povo massacrado mas no derrotado.Uma coisa certa, queimaram nossos documentos, mentiram sobre nossa histria,mataram nossos antepassados.

    (...)Jogando contra a massificao que domina e aliena cada vez mais os assim chamados poreles de excludos sociais e para nos certificar de que o povo da periferia/favela/guetotenha sua colocao na histria (...) a literatura marginal se faz presente para representara cultura de um povo, composto de minorias, mas em seu todo uma maioria (LM, 11).

    Por outro lado, a determinao em apresentar as muitas faces da ca-neta que se faz presente na favela continua priorizando a idia domutiro, tal como definida por Benito Rodriguez8, para caracterizar umaliteratura feita por minorias, sejam elas raciais ou socioeconmicas (...)feita margem dos ncleos centrais do saber e da grande cultura nacio-nal (LM, 12), literatura voltada para uma construo auto-identitria,justamente na contramo dos ncleos e das imagens hegemnicas.

    Contra a exclusividade autoral, a publicao em livro de contos se-lecionados dos trs atos da Revista Caros Amigos, na apresentao dacultura da periferia, reafirma o controvertido hibridismo de uma escritatosca, dspare e desigual.

    6 Camus, op. cit, p. 383.7 Id. ib.8 Rodriguez, Mutires da palavra: literatura e vida comunitria nas periferias urbanas, pp. 47-61.

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    Muito se tem discutido sobre a perplexidade da crtica diante de seuestatuto indefinido entre testemunho de uma condio social, biografiade uma experincia subjetiva e criao intencionalmente ficcional e ouliterria, bem como sobre o estranhamento causado pelo seu acento delngua coletiva, arrebanhando vozes e verses de uma comunidade, nointuito de formar o mosaico de uma lngua geral. O que aqui proponho pensar esta amostragem da literatura marginal, segundo sua lgica inter-na, que a do hibridismo, e partindo de dois pontos de vista.

    O primeiro privilegia a fronteira j aludida, e tomada ao ensaio deCamus, entre revolta e ressentimento, na medida em que determinadosrelatos ou depoimentos da experincia espoliada manifestam diante doopressor, uma perspectiva mais raivosa, substituindo a notao crtico-sensvel da circunstncia precria pela ameaa rancorosa e ideolgica deajuste de contas. Talvez se possa pensar o contraponto entre as duas pos-turas pela mediao de um espectro de cores em que os tons de vermelhose acentuam, quanto mais a dico se aproxima de um acento ressentido.

    A segunda perspectiva pretende centrar-se propriamente no rendi-mento estilstico da fatura deste hibridismo que, alm de misturar gne-ros, enlaa gria, oralidade, neologismos e uma intencionalidade explici-tamente literria, apoiada em formas de expresso de registro culto, re-colhidas, freqentemente, de textos religiosos.

    No que tange primeira abordagem, talvez seja interessante acres-centar a diferena estabelecida por Camus entre revolta e revoluo,quando considera que, enquanto a primeira realista e parte das situa-es mais concretas, no corao vivo das coisas e dos homens9, em dire-o idia; a segunda apia-se numa ideologia e por isso representa atentativa de moldar o mundo dentro de um caixilho terico10.

    Assim, no volume em questo, com grande maioria de paulistas e in-tegrantes de movimentos os mais diferenciados, sejam eles, musicais, po-ticos, polticos, tnicos, culturais ou outros11 , os textos se distribuem

    9 Camus, op. cit., p. 402.10 Id., p. 150.11 Cada um dos autores escolhidos pertence a movimentos, sejam eles culturais, comunitrios, poticos,musicais ou outros. Assim, enquanto Preto Ghez militante do Quilombo Urbano e vocalista do grupo derap Clnordestino, alm de integrar o movimento cultural-comunitrio Idasul, Dona Laura, por exemplo,apresenta-se como porta-voz de sua comunidade na Colnia de Pescadores 2-3, em Pelotas, RS. Muitosdeles pertencem a diferentes grupos de rap e tambm ao Extremamente, um movimento de cordel urbano.

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    dentro de uma moldura heterclita, entre o memorialismo ou o testemu-nho de experincias da vida perifrica, a pedagogia de comportamentos eestilos de vida e a ficcionalizao maior ou menor dos enredos. Suaheterodoxia e interesse residem justamente no fato de que uma modali-dade no exclui a outra, de tal forma que a maioria dos relatos podeperfeitamente partilhar das trs disposies, ao mesmo tempo.

    Nesse quadro, alguns preferem relacionar a vivncia da espoliao perif-rica memria histrica da opresso negra, em chave direta e sem media-es, numa abordagem prioritariamente tnica da interpretao da violn-cia. o caso, por exemplo, da srie de textos engajados do paulista Ridson,atuante no movimento Extremamente, de cordel urbano. Os trs so poemaslongos, com uma metrificao distribuda entre decasslabos e outros versosmaiores, combinados em rimas regulares ou no, ou, ainda, por assonncias ealiteraes, compondo uma musicalidade forte e agressiva.

    No primeiro, o Plano Senzala, o eu lrico, a partir de uma situaocarcerria inicial, termina por estend-la ao Brasil, figurado como umagrande priso dos pobres a serem vingados:

    Barraco cela, cadeia favela / Viela corredor, quarteiro pavilho e vice-versa /Que hora essa? Interminvel era / Mais de cinco sculos de plano Senzala secompletam// (...) Plano Senzala: a lgica do sistema / Pobres gladiadores se matandonuma arena / Irmos divididos a fogo / Viciados, irados, armados. Povo contrapovo. // A diria tortura no me retira a ternura / Resistncia minha herana,minha cultura / Sobrevivo, resisto. preciso / Sou o caco de vidro no prato doinimigo (LM, 72-3).

    Nos outros dois poemas, Epidemia e Fsforo, a perspectiva da re-belio se inscreve ainda com mais clareza, na medida em que o livro e osrecursos intelectuais so frequentemente invocados como meiospossibilitadores do revide:

    Eu sou a podrido que voc abomina. / Seu filho viciado em cocana. / Represento odetento dando tempo ao tempo. / Planejando o retorno, lendo, escrevendo. // (...) Aguerra prolifera, o levante da favela. / No uma ameaa, uma promessa. / Promessade terror, horror, incndio. / Por isso, playboy, tenha medo. // (...) Extremamente,centro de terapia intensiva. / Tratamento de choque contra guetofobia. / Bisturi dacirurgia sem anestesia. / Extirpa o cncer da sua covardia, burguesia.

    .

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    Neste Epidemia, de se notar o quanto a cultura perifrica e suasinstituies, como os movimentos organizados, semelhana do Extrema-mente, so vistas como estgios preparatrios ecloso da violncia dooprimido, insuflada pela memria dos sculos de opresso. Em Fsforo,por fim, a imagem do poro negreiro mais uma vez invocada paraencenar a treva do momento que antecede a rebelio, enquanto a guerra nomeada como guerrilha por abolio e a revolta na alma acompa-nha o heri do gueto, com droga e arma. Sem dvida, significativa aseleo dos elementos caracterizadores do conflito, bem como a celebra-o do revide violento pelo alvar de soltura.

    Alis, a memria histrica da escravido, assim como do herosmode Zumbi, constitui uma constante, quase que uma conveno nos tex-tos, embora o seu tratamento seja variado, tanto em termos de tom,como de fatura.

    Em Gato Preto12, por exemplo, o tema aparece tratado com intensida-de em Favelfrica, uma poesia longa, bastante irregular, de versos li-vres, igualmente preocupada em relacionar o topos navio negreiro coma atual espoliao e sua persistncia atravs de sculos de histria. Otexto acaba em prosa, na medida em que vai ficando cada vez mais toma-do pela argumentao da tese que desenvolve, e conclui com uma enu-merao em que o autor contrape uma srie de nomes histricos opostospor um X. A lista bastante heterognea, pejada de anacronismos, masexplicita o maniquesmo que o autor pretende sublinhar; tanto que comeada pela dupla veneno x antdoto e termina, localmente, com ocontraste Antnio Carlos Magalhes x Altino Gato Preto.

    Mais que a obviedade do arranjo, meio desajeitado, importa conside-rar, da perspectiva em questo, que embora mantenha um tom agressivo,o autor tempera a promessa do revide com a constatao da Falta deorgulho, auto-estima baixa, preconceito atuais:

    Parto pro debate, digo no a todas as grades / Incentivo o ataque, agrupamento procombate / Quero reparao, por todo massacre / E se eu sou oitenta, cota oitenta praminha classe // E pra voc ouvir, eu vou lhe repetir / Quero a parte que me cabe, queroa parte que me cabe / Criaram novos termos, camuflando o preconceito / Fingindo

    12 Gato Preto, segundo nota do livro, nasceu em Ilhus (BA) e pertence famlia do grupo de rap

    Gog e ao grupo Extremamente, de cordel urbano.

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    encobrindo, o desastre que causou // Pretinho, moreninho, mulato homem de cor / Noaceito eu sou negro, eu sou afro-brasileiro / Herdeiros de Zumbi, eu tambm souguerreiro / Cartola, Mandela, Portela, Marcus Garvey, Mariguella (LM, 61).

    Em outro texto narrativo, o conto Colombo, pobrema, problemas,Gato Preto, num registro fortemente oral, disposto num fluxo sintticoquase contnuo, dispe-se a narrar como iniciativas culturais envolven-do grafitagem, festas e movimentos culturais, incluindo at mesmo a cri-ao de uma biblioteca so usadas para difundir novas crenas. E,ainda que no mencione explicitamente a identidade afro-brasileira, comoideologia aprendida nos livros, o narrador, numa inflexo fortemente bio-grfica, termina o conto: E eu hoje tenho novas crenas, v se pode. Nadireita trago um livro e na esquerda um revlver (LM, 69).

    Entretanto, nem sempre a afro-brasilidade funciona com esta disposi-o guerrilheira. Preto Ghez, em narrativa de abertura do livro, A pele-ja de Firmino, conta a saga de seu personagem, assassinado no Maranho,a mando do senador Chacina, e embora mencione Zumbi e o hip-hop,constatando o movimento emancipatrio da histria, no adota um pontode vista ressentido, nem um tom de revide. Talvez o nvel de ficcionalidadena organizao do entrecho tenha prevenido uma interveno autoralmais pedaggica, em termos de doutrinao:

    ...Firmino tinha ido longe demais nessa histria de justia, de briga pela terra, essascoisas ningum muda, sempre teve pobre, sempre teve rico, nisso Firmino no acredi-tava, foi lendo uns livros que ele descobriu um tal de Zumbi que tambm se parecia cumele e num acreditava que as coisas sempre foram assim, e se sempre foram assim, algumtinha que mudar isso...Firmino descobriu quando dizem que iam acabar cum tal defeudalismo ningum acreditou, pois num que acabou? (LM, 19).

    Alis, o seu segundo texto, Cultura poder, a esse respeito exemplar.Trata-se de um ensaio, com componentes biogrficas, voltado explicitamen-te para a questo do papel da leitura e do saber na emancipao das comuni-dades perifricas. Entremeando as consideraes do autor, a narrativa devivncias pessoais tempera com muita graa a crtica da romantizao docrime e da espetacularizao da quebrada operada pelo atual cinema so-bre favela e criminalidade, segundo o autor, uma das conseqncias da modafavela circulante no meio intelectual de esquerda e pequena burguesia

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    adjacente. A partir da recuperao da prpria paixo adolescente por cine-ma, sexo e Nelson Rodrigues, o autor passeia pela atualidade clicherizada,que transforma a vida da periferia em national geographic, e aporta nacorrelao entre cultura e poder, para caracterizar como um grande revide oatual movimento de cultura marginal:

    Hoje os escroques pululam na cultura, eles no querem que ns saibamos que cultura poder! Eles nos querem onde estamos, nos querem brutos e tristes, nos daro armas edrogas e escrevero novos roteiros e faro novos filmes sobre nossas vidas em nossohabitat, mal sabem eles que o sangue j transborda na perifa, que existe mo-de-obraexcedente com armas na mo, mas eles nos querem assim como melhor ator coadjuvan-te, no nos querem escrevendo, dirigindo, atuando, no nos querem protagonistas denossas prprias vidas, seus filhos j confundem fico com realidade, e eles nos queremlonge de tudo (...) Mas alguns de ns j sabem: Cultura poder! (LM, 23).

    Alis, so muitos os que celebram o livro, em textos, em que comofonte de prazer ou de cultura, a pedagogia da leitura, abre portas esustenta a maioridade moral e civil. Alessando Buzo, por exemplo, nanarrativa Toda brisa tem seu dia de ventania, prope os textos de JooAntnio, como os grandes companheiros do trabalhador espoliado: En-to virou as costas e partiu, pegou o trem, tirou o livro que lia, pareceque s os textos de Joo Antnio o compreendem, ele chega em casa emesmo desempregado recebido com um sorriso pela mulher e comfesta pelo filho.

    Luiz Alberto Mendes, comparecendo na coletnea com o seu contopremiado, o Cela forte, logo no primeiro pargrafo declara: Estava scom a ponta do nariz do lado de fora. Todo coberto, deitado na cama elendo Luzia Homem, um romance que me prendia a ateno demais.

    Dois escritores, entretanto, escapam a este quadro de pedagogia maisou menos explcita, em direes menos previsveis. O primeiro, o paulistaEduardo Dum-Dum, em textos curtos, fala com amargura na vida daperiferia, onde v apenas vtimas de dor, mas relativiza as vises, numinsight incomum, na medida em que o tom comprometido da maioria visa,muito claramente, persuadir e mais diretamente aconselhar o pblicoalvo. o caso de seu texto, O que os olhos vem, em que as diferentesvises da favela se cruzam, numa perspectiva prismtica, que visa criti-car, oferecendo uma abordagem mais abrangente da favela na sociedade.

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    Seus outros textos abrangem um leque mais amplo de temas, desde odesamparo da velhice, at a crtica da utilizao perversa da tecnologia,sem esquecer o topos da senzala/favela, que aparece desenvolvido naidia do holocausto. Estas duas ltimas peas so estruturadas em frasescoordenadas, curtas e secas, altamente sintticas, com certo impacto:Depois da senzala a tortura na favela, Hitler morreu, mais to numgueto judeu da nova era. (...)... No pra curar Aids, Cncer, a tecnologia pro internauta trocar foto de pedofilia (LM, 31).

    O segundo escritor, cujo estilo gostaria de referir, Erton Moraes. Osarranjos textuais que apresenta levam-me a tentar explorar o segundoponto de vista diante das escritas de periferia, que mencionei antes, semque me detivesse. Trata-se da abordagem do rendimento do hibridismoda linguagem, propriamente dito, a partir da reflexo de Serge Gruzinski.

    Em O pensamento mestio, o ensasta desenvolve uma comparao en-tre hibridaes e mestiagens, preocupada em distinguir um hibridismodesenraizado, cosmopolita e ecltico, da tenso interna que caracterizaas mestiagens, como reao de sobrevivncia a uma situao instvel,imprevista e amplamente imprevisvel13.

    A literatura da periferia tambm pode ser vista como um empreendi-mento de sobrevivncia a uma situao instvel, imprevista e ampla-mente imprevisvel, que a da misria econmica e suas decorrnciassimblicas e afetivas.

    Embora a disparidade dos registros e rendimentos seja considervel noseu mbito, observei, na coletnea em questo, que os textos de vocaoexplicitamente autocrtica, em termos de um esforo reflexivo de corre-lao entre exerccio da escrita e a afirmao identitria, aproximam-semais da mestiagem, como fatura estilstica, onde a tenso da bricolageme a complexidade das combinaes e misturas produzem um amlgamacoeso e mais resolvido.

    o caso, por exemplo, do Cultura e poder do Preto Ghez, de ABahia que Gil e Caetano no cantaram de Gato Preto e, sobretudo, dostextos de Erton Moraes. Em Identidade caipira, por exemplo, o autor,

    13 Em seu livro, O pensamento mestio, Gruzinski procura demonstrar como os ndios da Amrica

    Hispnica, acossados pela Conquista, operaram bricolagens, ao incorporarem uma sensibilidade

    artstica que nascera na Itlia e se associara a uma corrente de pensamento renascentista: a

    tradio dos grotescos e do ornamento maneirista (p.193).

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    num estilo altamente inventivo, discute a americanizao de nossa cul-tura, atravs da comunicao de massa. Cito as trs ltimas estrofes paradar uma noo dos cruzamentos de linguagem, da musicalidade e dosefeitos desconcertantes, entre o crtico e o cmico:

    , dona Sebastiana, seu filho agora bacana / Vai mudar o nome pra ingls / Talvez at ganheuma grana / Vai ser um cara interado com tnis importado / Igualzinho o dos playboy que elechama de viado // Sou a favor de uma grande fuso / Xote, maracatu, coco, rap, rock e baio./ Mas tem moleque que no conhece nosso passado / E pensa que a favela comeou com adiscoteca / E esquece que o repente vem antes do rap. // Essa prosa est margem / Juntocom o povo que se perdeu na viagem / Sou brega, sou caipira, sou cacul, barnab, manpode dizer que nis man. / Mas voc no Paul, nem John, voc Z (LM, 128).

    Aqui, a mestiagem assume o emblema caipira e sem negar a alegadabatida da carne negra, vai mais adiante na direo plural dos muitosSeverinos e Mans. Por outro lado, seus outros textos, a narrativaconhecida A peregrinao da varejeira e duas outras poesias, a Seis doseis de sessenta e seis e Guilhotina de pelica, embora bem diferencia-dos em assuntos e finalidades, guardam uma caracterstica em comum.

    Para usar palavras do autor, trata-se das buscas dos homens entre oabstrato e o concreto, bem explicitadas na moral da narrativa, desenvol-vida como uma fbula esdrxula. A tenso interna aludida como ineren-te temperatura da mestiagem do estilo realiza-se, nesse conjunto deescritos, delineando a dinmica contraditria do pensamento revoltado,tal como proposta por Camus.

    Ainda segundo o filsofo, a lei do equilbrio que regula vida, segundoa longa tradio do pensamento solar dos gregos, realiza-se como umbalanceamento entre natureza e devir. Ao contrrio da desmedida dohomem em busca de um absoluto, ou em deus ou na Histria, o homemrevoltado parte do real, prefere o homem de carne e osso, ao invs doideal abstrato, e por isso mesmo, vive mergulhado na intransigncia ex-tenuante do equilbrio, que supe uma tenso interminvel14.

    Cada um dos escritos encena, de maneira bem dosada, a sua contradi-o. Em Identidade caipira, a conscincia da fuso no esquece que o

    14 Camus, op. cit., p. 408.

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    repente vem antes do rap. Seis do seis de sessenta e seis faz um depo-imento forte sobre o a converso tensa e conflituosa do eu lrico:

    Falei pra Jesus que seu amor me invade / Descobri que ele era um extraterrestre / Talvezde Marte / Ele no gostou muito / Entramos em debate / Me respondeu que ele veio dasEscrituras / Alm do que podemos enxergar / Eu tambm vejo alm da ponte / Onde elaestiver (LM, 130).

    E, finalmente, Guilhotina de pelica, com as imagens de uma cabe-a com pimenta malagueta, apresenta a revolta como prtica de comba-te e princpio de equilbrio que mantm o eu lrico de p:

    Uma cabea que parece um tufo, um tornado / Um vulco em erupo / (...) Umacabea dividida / Entre o po e a bebida / Uma cabea de bicho cheia de amor e lixo /Uma cabea reciclada entre o tudo e o nada / Uma cabea sonhadora que parte voa / Eoutra parte na masmorra / Uma cabea cheia de memrias de fotos e fatos / Uma cabeade negro, de branco, de mulato / Uma cabea feliz que sofre, deseja e desafia o dia-a dia/ (...) Uma cabea urbana, freudiana, pernambucana / (...) Uma cabea amiga que aomesmo tempo briga / Em parte com todos, com sonhos e pesadelos / Enfim, uma cabeaque no pode ser modelo (LM, 131-2).

    O homem revoltado sabe que no pode ser modelo, porque, com suarevolta, ele insiste em afirmar algo que todos e cada um j tm, mas, porvezes, no podem lembrar.

    Referncias bibliogrficasCAMUS, Albert. O homem revoltado. Trad. de Virgnia Motta. Lisboa: Edi-

    o Livros do Brasil, s/d.FERREZ (org.). Literatura marginal: talentos da escrita perifrica. Rio de Ja-

    neiro: Agir, 2005.GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestio. Trad. de Rosa Freire dAguiar.

    So Paulo: Cia.das Letras, 2001.RODRIGUEZ, Benito Martinez. Mutires da palavra: literatura e vida co-

    munitria nas periferias urbanas. Estudos de Literatura Brasileira Con-tempornea, n. 22. Braslia, jul. /dez. 2003, pp. 47-61.

    Recebido em novembro de 2005.

    Aprovado em fevereiro de 2006.