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1 A ESTRATÉGIA NACIONAL E A ENERGIA Darc Costa A história do mundo industrial é uma história recente. É a história da apropriação da natureza através de uma forma nova de mediação. A partir do século XVIII, a apropriação da natureza deixou- se de fazer exclusivamente pela interação física do corpo humano ou do corpo das bestas com a natureza. A apropriação da natureza deixou de ser fruto exclusivo de trabalho humano ou animal. O homem havia descoberto que tinha capacidade de dar a natureza uma representação numérica razoavelmente satisfatória e ao fazê-lo poderia vir a utilizar-se desta nova capacidade para também se apropriar da natureza. O homem podia fazer ciência e com a ciência era capaz de criar tecnologia. Tudo isso levou a uma aceleração na Inglaterra, também, na primeira metade do século XVIII, tanto no número de invenções, quanto na sua importância. Contudo, é bom lembrar que teve grande influência para esta aceleração a adoção pelos ingleses de medidas protecionistas, como os éditos reais de 1700 e 1719, que proibiam a importação das tecelagens indianas. Com essas medidas a autoridade inglesa alcançava de um só golpe dois resultados: evitava a competição de um artesanato perfeitamente estruturado e incentivava uma indústria nascente. Essas medidas protecionistas tiveram grande alcance, pois não apenas reservaram o mercado inglês para a sua

A ESTRATÉGIA NACIONAL E A ENERGIA Darc Costa A história do

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A ESTRATÉGIA NACIONAL E A ENERGIA

Darc Costa

A história do mundo industrial é uma história recente. É a

história da apropriação da natureza através de uma forma nova de

mediação. A partir do século XVIII, a apropriação da natureza deixou-

se de fazer exclusivamente pela interação física do corpo humano ou

do corpo das bestas com a natureza. A apropriação da natureza

deixou de ser fruto exclusivo de trabalho humano ou animal. O

homem havia descoberto que tinha capacidade de dar a natureza uma

representação numérica razoavelmente satisfatória e ao fazê-lo poderia

vir a utilizar-se desta nova capacidade para também se apropriar da

natureza. O homem podia fazer ciência e com a ciência era capaz de

criar tecnologia.

Tudo isso levou a uma aceleração na Inglaterra, também,

na primeira metade do século XVIII, tanto no número de invenções,

quanto na sua importância. Contudo, é bom lembrar que teve grande

influência para esta aceleração a adoção pelos ingleses de medidas

protecionistas, como os éditos reais de 1700 e 1719, que proibiam a

importação das tecelagens indianas. Com essas medidas a autoridade

inglesa alcançava de um só golpe dois resultados: evitava a competição

de um artesanato perfeitamente estruturado e incentivava uma

indústria nascente. Essas medidas protecionistas tiveram grande

alcance, pois não apenas reservaram o mercado inglês para a sua

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indústria têxtil como permitiram a exportação do tecido manufaturado

da metrópole para a Índia, aonde o artesanato têxtil ia sendo

gradualmente desmantelado. A proteção levava a acumulação e a

acumulação levava a inovação. Surgiu em 1733, por invenção de John

Kay, a lançadeira volante que revolucionou a indústria têxtil. A esta

invenção seguiram várias outras inovações onde John Wyatt, Lewis

Paul, Daniel Bourn, Hargreaves, Arkwright, Samuel Crompton e

Cartwright revolucionaram a indústria têxtil confirmando o primado

industrial têxtil inglês.

Um elenco de invenções equivalentes, inovações, pode ser

arrolado para a indústria metalúrgica a partir do carvão, cujo interesse

só veio a crescer quando se descobriu uma maneira de transformá-lo

em coque. Em 1784, Cort deu um passo decisivo ao definir a pudelage,

como havia dado, em 1750, Huntsman ao apresentar o aço fundido.

Avanços como estes, que solucionaram a carência do carvão vegetal

decorrente do desflorestamento rápido, permitiram a criação por

ativos empresários como Darby, Wilkinson, Bradley, Crawshay (o rei

do ferro) e outros, de importantes complexos industriais, empresas

familiares que trocavam, a partir de então, apoio mútuo com o

parlamento e a coroa britânica.

A fisionomia tradicional da Inglaterra alterou-se.

Rapidamente o país se urbanizou com as conseqüências conhecidas:

superpopulação, insalubridade, exploração, alcoolismo, violência. No

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campo esboroou-se o quadro aprazível do passado, dos relvados

pitorescos, da caça em grande estilo, da abundância despreocupada

mesmo entre os pobres. Estávamos entrando na idade do capitalismo;

a atividade produtiva fazia-se em lugares afastados e inóspitos cuja

principal qualidade era a proximidade da matéria-prima ou da fonte de

energia, mais esta que aquela. Energia, com efeito, era algo

indispensável na nova idade. De forma geral o recurso havia sido o de

apelar para o método eólico ou hidráulico ou de tração animal, até que

em 1769, James Watt patenteou sua máquina a vapor, que iria

substituir, de forma muito mais prática, todas as alternativas anteriores.

A invenção foi de tal forma conveniente, que seu uso já estava

generalizado por volta de 1786; isto é, menos de vinte anos após.

Houve, a partir do século XVIII, uma revolução na maneira de agir do

homem e o seu motor foi a energia e a inovação.

O intenso movimento expansivo que a Grã-Bretanha

experimentou durante o período que se seguiu fez com que ela

ampliasse de muito o nível econômico de sua sociedade e que ela

alcançasse a dianteira industrial sobre os demais países. Tudo isto

baseado na energia e na inovação.

Tinha havido uma ruptura central em um paradigma

estabelecido. Durante séculos, processos de crescimento rápido

haviam ocorrido basicamente em regiões que dispunham de

abundantes recursos naturais (potencial agrícola, minérios),

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eventualmente valorizados. Quando esses recursos se esgotavam ou

perdiam importância, suas regiões produtoras caminhavam para a

decadência. A industrialização na Inglaterra, no final do século XVIII e

início do século XIX, havia rompido o antigo paradigma e alterado

significativamente esse padrão. Passava a ser possível que algumas

economias não centrais conhecessem casos notáveis de crescimento

que não se baseavam na exploração extensiva de recursos naturais

abundantes, mas sim em processos intensivos de industrialização. E

intensivos em industrialização por que, na verdade, eram intensivos em

energia. Por diferentes caminhos, diversas economias retardatárias

puderam se beneficiar da capacidade de obter ganhos acelerados de

produtividade através de estratégias — relativamente simples —

baseadas na difusão de técnicas já conhecidas e na produção de mais

energia. A energia passou a ser base de qualquer desenvolvimento.

A ruptura central do paradigma centrou-se, portanto, na

disponibilidade de energia. Energia para o aumento da produtividade

primeiro e depois energia para a melhoria da qualidade de vida. Gerar

energia passou a ser o objetivo primordial daqueles que entendiam a

nova época. A busca às fontes de energia passou a ser o objetivo

central de todos os que queriam o progresso. Esta busca transformou-

se — também, em paralelo, a busca dos insumos industriais — no

objetivo central da Inglaterra e dos outros países que buscavam com

ela rivalizar no comando dos negócios mundiais.

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Ao final do século XIX e ao longo do século XX,

basicamente pela multiplicação do poder gerador de energia criou-se

um pequeno número de novos países bem sucedidos nesta busca,

aqueles que alcançaram o centro, como havia feito a Inglaterra já no

século XVIII e um grupo um pouco maior de países intermediários, ou

digamos semiperiféricos, alguns de grande porte, entre os quais o

nosso país, que vinham sendo bem sucedidos nesta busca e que

caminhavam em direção ao centro. Aparentemente, esses últimos

países encurtavam a distância que os separava dos líderes.

Um dos fatos mais importantes dos vinte últimos anos,

no cenário mundial, foi a desarticulação sucessiva de todas essas

aproximações dos semiperiféricos ao centro (na América Latina no

início da década de 1980, no leste da Europa no fim da mesma

década, entre os tigres asiáticos na década de 1990), com a exceção —

pelo menos, por enquanto — da China, cujo surto de crescimento

acelerado é recente. Essa desarticulação teve várias causas, mas, uma

das mais relevantes, sem dúvida, tem a ver com o contingenciamento

da geração de energia nos países semiperiféricos, que foi causada

nesses países tanto pela quebra dos modelos de financiamento que

suportavam a expansão energética quanto pela criação de barreiras

ecológicas ao aumento da oferta energética.

Mas, neste contingenciamento há uma determinante

central que repousa no controle do espaço. Algo antigo e que não

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mudou: o controle das fontes de energia. E isto pressupõe muitas das

vezes o controle do território, explicito ou implícito, pressupõe a ação

política sobre a geografia, pressupõe geopolítica. A busca ao controle

físico das fontes de energia esteve presente direta ou indiretamente

nos grandes conflitos que fizeram a história dos séculos XIX e XX.

Alguns exemplos da importância vital que o tema da energia adquiriu

no planejamento e na vida das nações são as duas guerras mundiais

envolvendo a França e a Alemanha e a contenda anterior franco-

prussiana de 1870 pelo controle do carvão das regiões próximas ao Rio

Reno; a busca ao carvão e depois ao petróleo pelo império russo no

Cáucaso e nos Bálcãs; o avanço japonês em direção a Manchúria em

busca do carvão e sua ação no sudeste da Ásia em busca do petróleo;

ação franco-britânica pelo desmembramento do Império Otomano e

pelo controle das regiões petrolíferas do Golfo Pérsico; as ações norte-

americanas no Caribe e na América Central pelo controle das reservas

de petróleo do Golfo do México e da Venezuela; o bloqueio norte-

americano ao acesso japonês a fontes de petróleo, as vésperas da

inserção dos dois países na segunda guerra mundial; e mais

recentemente a Guerra do Iraque.

Portanto, geopolítica, a política aplicada sobre os espaços,

tem na variável energética uma componente central na sua formulação.

O excedente de poder gerado pelo domínio do espaço geográfico, que

falam Ratzel, Mackinder, Haushofer, Spykman e outros, tem na

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capacidade de geração de energia um elemento fundamental. A

energia, o controle de suas fontes, é elemento central de poder e de

riqueza, é elemento central no jogo das relações internacionais.

Mas, também, é sobejamente conhecido que nas relações

econômicas internacionais obtêm vantagens os países que conseguem

controlar uma parte maior do excedente produzido no conjunto do

sistema mundial. Para ocupar uma posição de vanguarda, um país deve

estruturar sua economia buscando as atividades geradoras de um

ganho diferenciado, situado acima — preferencialmente, muito acima

— da média. Tais posições são, por definição, excludentes. A inovação

trouxe isto para a Inglaterra no século XVIII. Isto também não

mudou passados mais de duzentos anos. Assim como outras coisas

não mudaram... Assim como era no século XVIII, tal como está

organizado, o sistema econômico internacional continua

estruturalmente assimétrico. Continua a dualidade centro e periferia. A

idéia de um mundo regido pela cooperação – ou por meras relações de

mercado, que não expressem relações de poder – é utópica, pois a

competição está há muito inscrita na estrutura do sistema em vigor,

não sendo possível eliminá-la.

Como as atividades que garantem ganho diferenciado

modificam-se ao longo do tempo, a conquista e a manutenção de uma

posição de vanguarda não podem depender do controle de um setor,

uma tecnologia ou uma mercadoria específica, pois tudo flui. Ë

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necessário se ter a liderança sobre o processo de inovação, ou seja,

capacidade permanente de criar novas combinações produtivas, novos

processos, novos produtos. Assim, também, como no século XVIII, o

núcleo do sistema internacional é composto dos espaços nacionais que

concentram em si a dinâmica da inovação. Isto, portanto, também,

não mudou.

Mas algo mudou....

Não é mais a simples ligações de empresas familiares com

um estado nacional se apoiando mutuamente para exercer a

hegemonia mundial como no modelo inglês do início do século XIX.

Hoje é algo bem mais complexo. No início do século XXI, nos países

centrais, tanto a economia e da técnica, de um lado, quanto as

decisões políticas, de outro, estão estreitamente ligadas, pelo forte

vínculo que une as grandes corporações empresariais transnacionais

com os estados nacionais efetivamente soberanos. Já no caso dos

países semiperiféricos e periféricos esses âmbitos se dissociam

fortemente, pela dispersão geográfica das cadeias produtivas, em escala

mundial, feita sob o comando das transnacionais que não têm

compromissos com os estados e sociedades mais frágeis, onde apenas

instalam filiais. Mas a razão de tudo é que os países centrais capturam

sucessivamente as posições de comando justamente porque

conseguem recriá-las, mantendo-se monopolistas pelo controle da

ciência e da informação, ou seja, da técnica, obtendo dessa forma

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benefícios extras na divisão mundial do trabalho. Aos excluídos o que

se tem proposto é a tão falada dependência que também se repõe

dinamicamente. Isso se tornou mais evidente com o avanço da

chamada “globalização”, que atinge países centrais e periféricos de

forma completamente diversa.

Tudo isto torna claro porque o esforço

desenvolvimentista brasileiro (1930-1980) está frustrado. Ele nos

manteve preso aos limites de uma modernização periférica e nunca

nos aproximou, de fato, de uma posição central no sistema mundial.

Conseguimos internalizar progressivamente atividades produtivas, de

tipo industrial, que, em algum momento da história, sustentaram a

liderança dos países centrais. Mas o problema é que tais atividades

perdiam essa característica de maior acumulação justamente quando

conseguíamos internalizá-las, pois elas já se encontravam sujeitas a uma

intensa competição internacional que diminuía sua importância e sua

rentabilidade. É o caso do aço ou da celulose que escorregaram para a

categoria de “commodities”. Quando acontecem de virar

“commodities”, as atividades industriais são relegadas a um segundo

plano pelas economias centrais. Os países centrais sempre renovam

suas posições privilegiadas buscando a industrialização de atividades

mais complexas e dotadas de maiores componentes tecnológicos. A

desigualdade se repõe e nada muda....

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Uma impossibilidade estrutural impede que a lógica de

aproximação ao centro, do tipo das usadas pelo Brasil e por outros

países, altere as posições relativas no interior do sistema. Não se

consegue superar a condição periférica apenas mediante a cópia de

produtos e tecnologias que já estão maduros nos países centrais. A

experiência recente, aliás, nos diz algo ainda mais grave: processos de

destruição de projetos de desenvolvimento são muito mais rápidos que

os de construção. A distância entre o Brasil e os países centrais, por

exemplo, diminuiu passo a passo durante a maior parte do século XX,

mas voltou a ampliar-se dramaticamente nos vinte últimos anos.

Disso tudo se deduz que o Brasil têm diante de si um

duplo desafio, muito difícil: internalizar seletivamente as técnicas mais

importantes do paradigma vigente e, ao mesmo tempo, preparar

condições para um salto que lhes permita romper a lógica da

dependência, lançando-as na vanguarda de um novo paradigma.

Portanto, internalizar e aplicar intensivamente a ciência e a técnica

universais, buscar a inovação gerando crescentemente energia, de um

lado, e identificar lucidamente as vantagens comparativas locais, de

outro, são componentes gêmeos de um projeto para este vir a ser bem

sucedido.

Mas há uma outra causa talvez mais séria para a

desarticulação recente que não a escolha de um modelo limitado de

desenvolvimento. Houve como já colocamos, também, nos últimos 20

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anos, a desmontagem dos modelos energéticos que suportavam essas

aproximações ao centro dos países semiperiféricos. Seja pela elevação

dos gastos com insumos energéticos, seja através da criação de

barreiras não econômicas ao aproveitamento de potenciais, tais como

barreiras ecológicas, seja através da desvinculação de recursos para o

setor. O Brasil foi vítima concomitantemente dessas três causas, o que

levou nas duas últimas décadas a desarticulação completa do seu

modelo energético, sem dúvida, o mais bem sucedido do terceiro

mundo. Sem rearticularmos nosso setor energético, seu planejamento e

sua forma de financiamento, não nos será possível almejar o progresso,

mesmo que criemos um novo modelo de desenvolvimento e

consigamos avançar no campo da inovação.

Mas, tudo isto é muito recente. Lembremos que, até o

século XVI, a idéia dominante era que a humanidade avançava

passando em estágios sucessivos e a passagem de um estágio a outro

resultava de um milagre. De estágio em estágio, ou seja, de milagre em

milagre, chegaríamos ao Millenium - o último e prometido dos estágios:

o reino dos céus, o paraíso.

Nessa forma de ver o mundo tudo encontrava sua

explicação nos dogmas. Porque contestar? Para que racionalizar? Nada

disso faria sentido, pois só o milagre era criador. A resignação tornava-

se, nesse mundo das verdades postas, a maior das virtudes. A

natureza, nesse mundo conformado, sempre se mostraria vencedora.

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Ao homem, só restava subordinar-se as estruturas responsáveis pelo

estágio atingido - na época, a Igreja e a monarquia absoluta.

São do início do século XVII as primeiras formulações

que sustentam a ruptura dessa maneira de ver o mundo. Dos primeiros

capazes de construir discursos de ruptura, merecem destaque Leibnitz

e Pascal. Ambos matemáticos, lidando com a ordem em sua posição

mais primitiva, a ordem numérica, entenderam que a desordem era a

origem da evolução. Entenderam que a desordem tem sua origem na

natureza. Entenderam que o homem, ao interferir na natureza, na

busca da ordem, cria o progresso. Entenderam que todos os homens,

ao longo de todos os séculos, são o mesmo homem que subsiste e

aprende sempre. Criaram o espaço da razão. Cooptaram a natureza.

Não pela sua mediação através do trabalho, e sim pela sua delimitação

e explicação. A força de suas idéias foi tal que conduziu no século

XVIII à queda da monarquia absoluta e ao afastamento da Igreja das

questões materiais. Conduziu à revolução francesa. Conduziu à

moderna democracia. Conduziu aos princípios, desde então,

universais, de igualdade, de liberdade e de fraternidade. Conduziu ao

predomínio do homem e da sua razão.

Mas, como diria Hegel, todos os processos trazem dentro

de si a contradição. A civilização traz dentro de si várias contradições.

Uma clássica e já vista neste texto é a que opõe o centro a periferia.

Estávamos ao final do século XVIII, no momento em que o centro da

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civilização estava dividido pelo canal da Mancha. Estava dividido e

estava rompido. Duas rupturas, como colocamos, haviam se

processado. A primeira na maneira de agir, na Inglaterra, pelo nascente

processo de industrialização. A segunda, na França, na maneira de

pensar, em decorrência do bafejar da abertura proporcionada pela

prevalência das idéias sobre os dogmas. A primeira dessas rupturas é

conhecida como revolução industrial e gerou o que veio, mais tarde, a

se denominar sociedade industrial. A outra ruptura deu origem à

revolução francesa e, com a derrubada do absolutismo, deu origem ao

moderno estado nacional. A periferia do processo da civilização,

naquele instante, englobava toda a Europa continental, excluída a

França e todos os demais continentes.

Mas aqui cabe lembrar o velho romano Cicero que

afirmava ser a história a mestre da vida. Olhemos a história Toda

periferia busca o centro, toda a barbárie busca a cultura. Cada país

almejava acelerar a transição, deixar de ser periferia e buscar ser centro,

como mostra a conhecida anedota de Pedro, o Grande, estudando

nos centros ocidentais os processos que convinha introduzir na sua

Rússia. Não é de admirar que os novos métodos e as novas inovações

aos poucos se tornassem do domínio público: a maneira italiana de

tecer, a técnica de construção naval holandesa, o processo siderúrgico

inglês. O desenvolvimento é comunicativo e ao ser conhecido em

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outros pontos emula. Mas esta emulação não coloca nenhuma periferia

no centro. Ë preciso algo mais. Olhemos de novo a história.

Como se comportaram, aquela época, as nações que

buscavam o centro? Como se comportaram os antigos retardatários,

aqueles que tinham, além dos meados do século XIX, um amplo

mercado interno e que buscavam viabilizar antigos estados nacionais

estruturados? Como se posicionaram o Império Austro-Húngaro, a

Rússia, a Alemanha, o Império Otomano, a Itália, os Estados Unidos e

o Japão, que aqui nomearemos como os antigos retardatários? Em

primeiro lugar, estabeleceram como seus principais objetivos ter um

estado nacional moderno e criar uma sociedade industrial. Estes eram

e são os paradigmas: ser sociedade industrial e ser estado nacional

moderno.

Contudo, o entendimento do que vem a ser um estado

nacional moderno e uma sociedade industrial é de extrema

importância para essa exposição. Entendemos como estado nacional

moderno aquele em que a sua vontade é coincidente com a dos seus

habitantes e que tem como contraponto o antigo estado nacional, em

que a vontade resultava exclusivamente da sua casa reinante ou de sua

elite dirigente. Entendemos como sociedade industrial não

exclusivamente criar um sistema industrial dentro das fronteiras de um

território nacional, mas ir muito além, dando condições da população

que habita aquele território, participar dessa criação, ao usufruir, dos

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bens que vierem a ser gerados por esse sistema. Mas a análise

procedida daqueles antigos estados nacionais nos leva a concluir que se

buscavam como política criar um estado nacional moderno e uma

sociedade industrial, eles necessitavam dotar-se, para atingir esses

objetivos, de uma concepção estratégica e de uma vontade nacional.

Passados dois séculos das rupturas, no final do século XX,

três desses retardatários disputam o centro: os Estados Unidos da

América, a Alemanha e o Japão. Todos dotados de concepção

estratégica, todos dotados de vontade nacional. Mas também todos os

três adeptos da doutrina do nacionalismo econômico. A economia,

para eles, sempre foi vista como uma ferramenta a ser utilizada pelo

estado na busca de uma concepção estratégica, ou como um elemento

primordial para a formatação de sua política. Nunca foram liberais. O

liberalismo econômico que hoje praticam coaduna-se perfeitamente

com os postulados desta doutrina, como está perfeitamente

sintetizado no trecho abaixo, do livro “Sistema Nacional de

Economia”, do economista alemão List, escrito no início do século

XIX:

“A história ensina que as nações... Podem e devem modificar seus sistemas de acordo com o estágio de seu próprio progresso: no primeiro estágio, adotando o comércio com nações mais adiantadas como meio de saírem de um estado de barbárie; no segundo estágio, promovendo o crescimento das indústrias, pesca, navegação, adotando restrições ao comércio; e no último estágio, após atingir o mais alto grau de riqueza e poder, retornando ao princípio de comércio livre... De maneira a que seus comerciantes e industriais possam ser preservados da benevolência e estimulados a conservar a supremacia que adquiriram.”

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Para preservar o sonho de Brasil temos, mergulhados nas

lições da história, tiramos duas lições: a primeira é que temos de fugir

ao canto da sereia dos países centrais, do seu discurso de liberalismo

econômico e depois, é que temos de pensar em ter concepção

estratégica e vontade nacional. Não mudaram os paradigmas. Toda

sociedade busca ser uma sociedade industrial e um estado nacional

moderno. Para tanto temos de voltar a pensar o Brasil com concepção

estratégica, temos de dotar o país de uma estratégia nacional, temos de

ter diretrizes para sua inserção internacional.

E qual deve ser nossa concepção estratégica? O Brasil é a

América Portuguesa. Salta aos olhos que nossa concepção estratégica é

de levar ao cabo a mundialização que os portugueses começaram, pois

só nós temos as mágicas capazes de levar este processo ao seu

término: a tolerância e a antropofagia. A mundialização é algo muito

além da montagem de um mercado mundial como deseja a

globalização. A mundialização é a montagem de uma pátria humana.

Para tanto, olhando de forma geopolítica, o Brasil detém

duas propriedades: a sua importantíssima inserção na massa

continental de um espaço periférico, a América do Sul (a

continentalidade do Brasil) e a sua projeção e acesso a um amplo

espaço marítimo, o Atlântico Sul (a maritimidade do Brasil). Deve ser

acrescentada a estas propriedades a importância da nossa capacidade

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de polarização no subcontinente sul-americano (fronteiras com nove

dos onze países restantes da América do Sul). Destas colocações

resultam os dois princípios centrais de nossa estratégia nacional:

O primeiro princípio da estratégia nacional do Brasil é a

estruturação de um espaço de prevalência da mundialização no

hemisfério sul, que observe as características de continentalidade e de

maritimidade do Brasil.

O detalhamento deste primeiro princípio é:

1) o aproveitamento da continentalidade mediante a

formatação de um processo de cooperação sul-americana,

aproveitando as componentes estruturais já apontadas,

como instrumento de organização do processo de

mundialização;

2) o aproveitamento da maritimidade como instrumento

de dominação do espaço marítimo do atlântico sul e

condução do processo de mundialização ao golfo da

Guiné e costa ocidental da África.

3)a criação de uma nova maritimidade a vinculada ao

oceano Pacífico que conduza a mundialização à Nova

Zelândia a Austrália e a costa oriental da África.

O segundo princípio é a extensão deste espaço

estruturado a todo hemisfério norte de forma a efetivar a

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mundialização. O detalhamento deste segundo princípio pressupõe a

montagem das parcerias estratégicas e alianças com potências do

hemisfério norte para a penetração da mundialização neste espaço e

será fruto das circunstâncias conjunturais do balanço de poder neste

hemisfério. Contudo, está claro que a hegemonia completa de uma

potência no hemisfério norte não é de interesse de nossa estratégia

nacional, devendo todo o movimento pretendido considerar o apoio à

contestação a essa possível hegemonia.

Pensemos o longo prazo. A América do Sul está

geograficamente apartada das rotas centrais do comércio mundial.

Neste espaço nós e os demais países da região detemos vantagens

comparativas de localização. Aqui todos nós somos competitivos. Mas

para o nosso progresso temos de ir além temos de ser cooperativos.

Isto explica porque o primeiro passo da concepção estratégica

proposta é a cooperação sul-americana. E nesta cooperação a energia

elétrica sendo um bem não constante nas transações externas a

continentes adquire especial atenção. E mais, a energia é elemento

primordial para a elevação da qualidade de vida da população da

América do Sul.

Portanto, para o plano de cooperação proposto, a energia

nos parece merecedora das maiores atenções. Com seus recursos, a

América do Sul é uma das regiões mais ricas do mundo. Não carece

nem de alimentos, nem de potencial para produzir energia, nem de

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recursos abundantes para o desenvolvimento industrial. Foi a carência

de uma mobilização adequada destes recursos, em nossa opinião, em

especial de energia, que condenou a maioria da população sul-

americana a seu estado atual de penúria.

A tabela adiante compara cifras de densidade energética,

densidade demográfica e PIB por quilômetro quadrado de países da

América do Sul e de várias nações do setor industrializado e mostra

uma estreita correlação entre o consumo de energia comercial e o PIB,

quando medidos por quilômetro quadrado.

ENERGIA, PIB E DEMOGRAFIA

Diversos países 1995

Per capita (tce*) Energia por km2 (tce*)

Densidade Demográfica (hab por km2)

Pib por km2 (em dólares}

Argentina 2,1 26,7 11,0 50,4 Brasil 1,1 20,4 18,3 80,8 Colômbia 1,1 34,4 35,0 51,0 Chile 1,1 20,0 16,4 59,0 México 1,9 88,3 48,5 79,0 Peru 0,8 14,1 18,0 27,0 Venezuela 3,3 81,3 25,0 95,0 Coréia do Sul 1,7 743,0 480,0 1130,0 Espanha 2,7 204,3 75,7 552,0 Itália 3,6 674,2 188,8 1.432,9 França 5,0 499,4 99,8 1245,0 Alemanha 6,0 1466,4 243,3 2.822,8 Japão 4,3 1421,7 338,0 4.112,4 EUA 10,2 285,9 28,0 542,7

1�Dados que correlacionam energia, população e PIB.

Isso certamente não deve se constituir numa grande

surpresa, pois a energia por quilômetro quadrado reflete a densidade da

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indústria e a intensidade da atividade agrícola. Incrementando-se estas,

certamente estar-se-á criando as condições necessárias para erradicar-

se a pobreza. Desenvolvimento é energia. Aumentando a produção de

energia a densidade da indústria e a intensidade da atividade agrícola,

começaremos a nos aproximar dos níveis de desenvolvimento da

Europa Ocidental. Para isto, teremos que obter a inversão de capital

necessária. Contudo, o problema que nos parece mais grave é

encontrar o número de pessoas capacitadas adequadamente para levar

a cabo o programa de energia e de industrialização que se deseja.

Mas, foi no campo da energia que a América do Sul

conseguiu os maiores avanços, nos últimos 20 anos, dos quais alguns

realmente importantes, que incluem o domínio do ciclo nuclear

completo por parte da Argentina e do Brasil; a construção da represa

de Itaipu, construída pelo Brasil e Paraguai; o desenvolvimento da

indústria petrolífera, em especial, o domínio tecnológico da prospecção

e exploração em águas profundas obtido pela Petrobrás, no Brasil. No

entanto, nesta mesma área, a América do Sul foi incapaz de atuar nas

necessárias ações conjuntas para fazer frente às necessidades

energéticas que enfrentará a médio e longo prazo.

Como sabemos a região é bem dotada de combustíveis

energéticos. Para a sua atual necessidade econômica, a América do Sul

é rica em recursos energéticos; possui abundantes reservas de petróleo

na Venezuela; possui recursos hidrelétricos praticamente em toda a sua

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extensão; reservas de gás natural no Peru, na Argentina e em outros

países; carvão na Colômbia e no Brasil; reservas consideráveis de

urânio e tório no Brasil, Colômbia e Argentina.

Mas voltemos a nossa questão. Postas as três idéias

centrais deste artigo: a primeira, vinculada à busca ao desenvolvimento

rompendo com os paradigmas passados, a segunda, pautada na

concepção estratégica nacional que tem como escopo inicial a

cooperação sul-americana, e a terceira, da potencialidade energética da

América do Sul, podemos começar a concluir inserindo a questão

energética na discussão da estratégia nacional do Brasil.

O novo modelo energético para o Brasil deve ser

proposto dentro de uma visão que se insira dentro de sua concepção

estratégica, ou seja, temos de conceber um modelo energético que

sustente o desenvolvimento da América do Sul.

Contudo, a América do Sul crescendo o que deve deverá

estar, nos meados do século XXI, exigindo demasiadamente das

fontes energéticas disponíveis, e enfrentará uma crise capaz de cercear

as suas possibilidades de crescimento no final deste século.

Simplesmente, teremos chegado ao ponto em que as capacidades

termelétricas e hidrelétricas do continente sul-americano já não

poderão crescer de modo significativo.

Alguns “especialistas”, entre eles os do Clube de Roma,

estão aproveitando este fato evidente para argumentar que, sendo

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22

assim, deveríamos limitar nosso crescimento econômico para não

esgotar nossos limitados recursos energéticos. Mas a forma correta de

abordar o problema é não limitar nosso possível crescimento e garantir

que, quando os recursos hidráulicos e fósseis se esgotarem, contemos

com a capacidade elétrica de outras fontes com capacidade suficiente

para manter o crescimento energético e o crescimento econômico

geral.

Ainda que seja difícil vislumbrar com precisão a

magnitude do consumo de energia ou eletricidade que será necessária

no futuro, é possível fixar critérios gerais que permitam o planejamento

de modo competente. A proposta é chegar a um total de 7,0 bilhões

de MWH produzidas no ano 2030, o que fixa um curso de ação muito

bem definido. A dificuldade no cálculo do consumo de energia elétrica

da América do Sul nasce do fato de que a relação entre energia e

produção se modificará drasticamente nos próximos 30 anos devido à

introdução de técnicas avançadas. Ainda que historicamente a geração

de energia elétrica tenha crescido com maior rapidez que o PIB total

(na América do Sul, nos últimos 15 anos, cresceu o dobro no mesmo

período), é um fato que a nova tecnologia implicará aumentos notáveis

tanto na eficiência como na intensidade energética (um bom exemplo

disto é o fato de que a indústria siderúrgica japonesa, mais moderna,

consumia por tonelada de aço somente a metade de energia que a

indústria siderúrgica americana, nos anos oitenta, quando esta era

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relativamente mais atrasada). Portanto, do ponto de vista da elevação

da intensidade energética, consideramos os seguintes fatores:

• Os processos industriais orientam-se no uso de

eletricidade em vez de energia térmica direta de

combustíveis fósseis. Esta tendência se acentuará à

medida que se desenvolva o uso de plasmas.

• A eletricidade será utilizada para produzir combustíveis

como o hidrogênio, que começarão a substituir a

gasolina e outros hidrocarbonetos.

• O transporte utilizará cada vez mais a energia elétrica

(redes de metrô, trens elétricos interurbanos e ferrovias

de carga eletrificadas).

Mas, por sua vez, nos próximos 30 anos, presenciaremos

o auge de novas técnicas que diminuirão o consumo de energia elétrica

por unidade de produto; ou seja, aumentarão a eficiência energética.

De fato, em anos recentes, foram obtidas poupanças muito

significativas de eletricidade na indústria. E, no futuro, contaremos

com tecnologias como a transmissão sem atrito, as aplicações de

supercondutividade elétrica à baixa temperatura, e uma ampla gama de

outras tecnologias.

Considerando todos estes fatores nosso cálculo é que o

setor elétrico na América do Sul terá que crescer, daqui para o ano

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2030, em média, à razão de 8% ao ano. Este cálculo está de acordo

com uma extrapolação baseada no consumo industrial de energia

elétrica por trabalhador industrial. A meta de geração elétrica que

propomos para o ano 2030, de 7,0 bilhões de MWH, nos leva a

alcançar o nível atual de consumo industrial europeu, de 20.000 KWH

por trabalhador industrial. Isto significa que a capacidade instalada terá

que crescer 8,0% ao ano para chegar no ano 2030 com 1.100.000 MW,

o que equivale a oito vezes a capacidade atual (tomando em conta a

capacidade total de Itaipu e Guri). É interessante observar que este

ritmo de crescimento permanece sendo o dos últimos 20 anos.

Outro ponto fundamental é que não há nenhuma

justificativa racional para o abandono do potencial hidrelétrico da

Amazônia, sendo que aí reside uma grande perspectiva energética para

a América do Sul. Mais que uma perspectiva energética a Amazônia é o

espaço central para uma articulação energética na América do Sul. No

caso da hidroeletricidade, para o Brasil e os demais países amazônicos,

é de fundamental importância dotar de energia a calha do Rio

Amazonas e de seus afluentes, algo que pode ser feito pelo mero

aproveitamento do potencial hidroelétrico existente na Bacia

Amazônica. Isto poderia ser feito mediante um planejamento

geográfico que fizesse a incorporação progressiva dos territórios

eletrificados aos ecúmenos do continente.

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Ao planejarmos os próximos 30 anos de investimentos na

produção de eletricidade para a América do Sul, existem três elementos

fundamentais a serem examinados: as fontes e suas disponibilidades, a

fabricação e instalação dos bens de capital necessários, e a

disponibilidade da força de trabalho especializada e qualificada para

instalar e operar as centrais elétricas e as redes de distribuição de

energia.

As melhores estimativas indicam que a região possui um

potencial de pouco mais de 600.000 MW de energia hidrelétrica

aproveitável, e considerando um fator de geração de 5.000 horas por

ano, poderá chegar a gerar 3,0 bilhões de MWH por ano. A geração

termelétrica deve compensar o que falta para cobrir as necessidades

totais, quando muito até o ano 2015, momento no qual outra forma

de energia terá que se incorporar em grande escala para satisfazer à

maior parte da nova demanda de energia. Para 2030, toda a geração

adicionada terá que ser de outra origem que não convencional. O

quadro adiante explica o porque da opção que adotamos pela energia

de origem nuclear.

Supõe-se que o custo das obras hidrelétricas aumentará

50% para o ano 2010, devido ao fato que os melhores sítios já foram

aproveitados, os mais próximos ou os mais baratos, ao passo que o

custo das usinas termelétricas e elétricas de fonte nuclear diminuirá em

mais de 20%, à medida que se difunda a fabricação em série. Serão

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necessários investimentos consideráveis em redes de transmissão, que

estimamos em 55%, mais ou menos, do custo das usinas geradoras até

o ano 2015, caindo a 42% nos anos subseqüentes, já que a maior parte

da infra-estrutura básica está construída até então. O aperfeiçoamento

de novas técnicas de geração, como magneto/hidro/dinâmica,

reduzirá drasticamente os custos.

COMPARAÇÃO DE FONTES DE ELETRICIDADE, POR DENSIDADE DE FLUXO E EFICIÊNCIA

Densidade de fluxo energético (kw/m²)

Investimento de capital

(dólares por kw)

Período de retorno

energético (anos)*

Eficiência líquida do ciclo

(%)Å

Coletores Solares 0,2 20.000 8,3 2,6 Biomassa 3.200 Combustíveis Fósseis 10.000 850 0,2 30,0 Reatores nucleares De água pesada 70.000 1.300 0,4 42,0 Reatores nucleares De gás de alta temperatura

70.000 1.300 0,4 42,0

Reatores nucleares Rápidos 70.000 1.600 0,4 35,0 Fusão nuclear × 70.000 N.d. 0,4 25,0

• anos de geração necessários para produzir energia que se consome na construção das instalações. Å eficiência térmica (energia elétrica útil em porcentagem do total da energia consumida no processo de conversão). × primeiros protótipos; os modelos posteriores terão maiores densidades fluxo energético. Fonte: Mechanical Engineering, junho de 1976.

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Este cálculo evidencia a absoluta necessidade da execução

de um programa de geração eletro-nuclear de grande magnitude na

América do Sul, que esteja no eixo da política energética nos próximos

30 anos. Devido ao fato de que a América do Sul está ainda

subdesenvolvida nesta área. Nós consideramos que daqui até 2004

poder-se-á instalar, em média, não mais que 4.000 MW nucleares por

ano, mas o ritmo anual aumentaria para 6.000 MW até o ano 2010 e a

12.000 MW por ano no qüinqüênio seguinte. Uma vez que o ritmo de

instalações de centrais nucleares deverá prosseguir até alcançar 105.000

MW no ano 2030, isto somente poderá ser alcançado com métodos

de produção em série.

A quantidade de geração elétrica de fonte nuclear para o

ano 2020 também coloca a questão da suficiência do combustível

nuclear. As reservas de urânio existentes na América do Sul -

principalmente no Brasil, Argentina e Colômbia - são importantes,

porém ainda não muito grandes, se comparadas com as da África do

Sul, dos Estados Unidos ou da Austrália.

Os custos envolvidos para um projeto de trinta anos para

dotar de energia a América do Sul seriam, portanto, os seguintes:

CUSTOS DE INVESTIMENTO EM ENERGIA ELÉTRICA

2000 - 2030

2000 - 2015 2015 - 2030

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Tipo

Custo / 1.000 mw *

Nova capacidade instalada Å

Custo total ×

Custo / 1.000 mw *

Nova capacidade instalada Å

Custo total ×

Hidrelétrica 1.000 115 115 1.500 400 600

Termelétrica 940 210 197 800 286 228

Nucleoelétrica 1.200 35 42 1.000 357 357

Subtotal 360 354 1.043 1.185

Rede de

Transmissão 200 500

Total 554 1.685

* milhões de dólares, Å milhares de mw,× bilhões de dólares. Fonte: Departamento de Energia dos Estados Unidos da América.

Como se vê os investimentos são altos, mas, bem

menores que os US$3,0 trilhões do serviço projetado da dívida e das

remessas que a América do Sul deverá fazer nos próximos vinte anos.

Salta aos olhos que a demanda de bens de capital para

todas as formas de geração elétrica será enorme. De fato, podemos

afirmar que o progresso da indústria fabricante de bens de capital se

definirá à medida que seja satisfeita a demanda do setor energético.

Em paralelo, ao esforço central projetado, especial atenção deverá ser

concedida como veremos adiante a formas alternativas de geração de

energia como a biomassa, dado às características especiais de insolação

do continente. A busca de fontes renováveis de energia competitivas

deve ser um dos principais objetivos dos sul-americanos no início do

próximo século, devido às vantagens de localização geográfica da

região.

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Contudo, tem algo fulcral em qualquer estratégia brasileira

para a integração da América do Sul. Este algo fulcral capaz de realizar

uma catálise é a energia elétrica que é, além de tudo, um bem não

passível de ser comercializado fora do continente. A produção de

energia em países vizinhos para atender o mercado brasileiro é um

fortíssimo elemento de integração desde que seja assim concebido.

Não tem sentido o Brasil comprar gás da Bolívia ou energia de Itaipu,

ou Guri, pagando em dólares. Com isto está gerando mercado para os

americanos do norte e não para os americanos do sul. O Brasil tem de

conceber um projeto de financiamento para a geração de energia na

América do Sul em moeda da América do Sul.

Contudo pensar o longo prazo só não basta. É necessário

agir no curto prazo de acordo com o pensamento. É necessário que se

materialize uma intervenção que redirecione o que aí está colocado em

termos de política interna e de política externa.

E aqui nos voltaremos para o curto prazo. Olhando o

desempenho dos últimos anos estamos desnacionalizando a nossa

economia e piorando o balanço de pagamentos, o que agrava cada vez

mais a vulnerabilidade externa do país. A crise que ora nos assola é

fruto da incompetência. As medidas para solucioná-las como a

priorização da geração elétrica a base térmica tendo como fonte o gás

natural são muito limitadas. A solução correta seria completar o

complexo de barragens da bacia dos rios Araguaia e Tocantins

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reforçando e estabilizando as ligações do sistema de produção norte

com os sistemas de ligação do centro-oeste e do sudeste. O caminho

natural é a marcha para o oeste até os contrafortes da Cordilheira dos

Andes, priorizando sempre a forma de geração hidroelétrica. Temos

de voltar a planejar e executar obras para o setor pensando no longo

prazo. Temos de deter esta marcha de insensatez que estivemos

mergulhados nos últimos anos. Temos de reverter este quadro se

quisermos sonhar com o longo prazo.

Ainda no campo da energia muito mais poderemos vir a

fazer na América do Sul. Tudo indica que o petróleo se esgotará ainda

na primeira metade do século XXI. A alteração da matriz energética é

um problema mundial, extremamente complexo, e decisivo para a

reorganização do poder a médio e longo prazo. As maiores

possibilidades de enfrentá-lo estão nos trópicos, através do

desenvolvimento de formas, hoje embrionárias, de utilização das

fontes renováveis representadas pelo sol e a biomassa. Concluída a

usina de Xingó, nenhuma hidrelétrica de grande porte poderá ser

construída no Nordeste, onde a insolação é mais que abundante; a

baixa eficiência dos atuais conversores de energia solar representa um

desafio científico que precisaríamos enfrentar. Ainda nessa área, um

segundo desafio, especialmente importante para um país tropical de

grandes dimensões, é o conhecimento detalhado do mecanismo, ainda

bastante obscuro, de armazenamento biológico da energia solar, ou

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seja, da síntese dos hidratos de carbono no processo de fotossíntese

muito mais intenso no trópico. Quem o conhecer bem e conseguir

torná-lo mais eficiente abrirá novas perspectivas. Um terceiro desafio

diz respeito aos combustíveis líquidos. Com um esforço que está ao

nosso alcance, o Brasil poderia consolidar uma dianteira significativa

no aproveitamento energético da biomassa, em nível mundial.

Resolvidas algumas questões técnicas residuais, a utilização de

palmeiras nativas, como o dendê e a pupunha, pode produzir em

torno de 12 toneladas de óleo de alto teor calorífico por hectare (70%

mais energia por área plantada que o álcool produzido a partir da cana-

de-açúcar). O óleo vegetal assim obtido é o único combustível

renovável conhecido capaz de substituir o diesel. Estima-se que o

plantio de árvores leguminosas mescladas com palmeiras em 35% da

área amazônica já desflorestada poderia sustentar uma produção de

óleo suficiente para substituir todo o diesel que usamos.

Além disso, esgotado o petróleo, o combustível fóssil mais

atrativo é sem dúvida o “turmoil” ou os hidrocarbonetos super

pesados cujas maiores reservas mundiais encontram-se na América do

Sul, mais precisamente na Venezuela e cujo aproveitamento prende-se

as tecnologias para as quebras das suas cadeias complexas de carbono

e cujas pesquisas, para sua materialização, tem grande similitude aos

trabalhos já desenvolvidos pela Petrobrás para o aproveitamento do

xisto betuminoso.

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O Brasil atual não reúne pela crise que vivenciamos neste

instante as condições essenciais para apresentar o programa que

propugnamos aqui. Não reúne as condições para preparar esse salto,

que são de natureza política (projeto próprio) e cultural (identidade

clara e auto-estima elevada). Mas, do ponto de vista estrutural, não lhe

falta potencial para isso. Tendo a concepção estratégica aqui proposta,

em todas as áreas inclusive no que diz respeito à ciência e tecnologia,

diversos campos de pesquisa estão abertos a nós, à espera de um

projeto nacional consistente, que os articule. Isto é possível e não

devemos ter medo de ousar.

Contudo, isto não será uma tarefa fácil nem desprovida

de riscos. No início do século XX, o petróleo era o recurso mais

importante, e suas maiores jazidas estavam depositadas no Oriente

Médio. A história dessa região nos cem últimos anos — com guerras

intermináveis, ocupações estrangeiras, modificações de fronteiras,

extinção e criação de países — testemunha como é explosiva a

combinação de recursos estratégicos e sociedades fracas. O ciclo do

petróleo está chegando ao fim. Inicia-se o ciclo da criação de uma

nova matriz energética, baseada em fontes renováveis. Aparece, de

novo, a antiga assimetria entre países detentores de poder (técnico,

político, financeiro e militar), de um lado, e países detentores de

estoques de recursos energéticos estratégicos para os ciclos

econômicos em gestação. A natureza e a história nos colocaram e a

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América do Sul, no século XXI, nessa segunda condição. Urge adotar

as decisões de criar instituições sul-americanas poderosas, integradas,

inteligentes, como a que resultaria da fusão da Petrobrás(Petróleo

Brasileiro S. A.) com a Petroven(Petróleo Venezuelano S. A.) e de abrir

canais de negociações com o Peru e a Bolívia visando a constituição

de empresas binacionais destinadas a gerenciar o potencial

hidroelétrico e de gás dos contrafortes andinos. Essas ações voltadas

para incorporar e explorar esse potencial teria tanta importância para o

nosso futuro, ou mais, quanto tivera, nas décadas de 1940 e 1950, as

decisões de criar a Companhia Siderúrgica Nacional, a Companhia

Vale do Rio Doce e a Petrobrás. Isso exige, no entanto, um ambiente

político, cultural e ideológico em que possamos nos libertar do discurso

pequeno de país semiperiférico que está dando errado e dos

condicionamentos do curto prazo, voltando a pensar a perspectiva da

nação em uma temporalidade estendida e que nos leve a mergulhar em

um ambiente que nos permita enfrentar as novas grandes questões que

já estão colocadas.

Tornados novamente retardatários, desprovidos de auto-

estima sem estratégia nacional, sem capacidade de utilizar nossos

próprios recursos, nós tenderemos a perder o controle sobre eles. Sob

um pretexto perfeitamente ridículo, a potência dominante já começou

a montar bases na região, pela primeira vez na história. Têm motivos

fortes para agir assim. Quanto a nós, neste século XXI mais de 150

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anos depois da regência, poderemos nos ver às voltas, de novo, com o

problema da unidade nacional. Hoje, em situação muito mais complexa

que no século XIX.

Ao terminarmos não podemos deixar de afirmar que há

uma relação direta entre a energia e o futuro do Brasil e da América do

Sul. Energia é industrialização. Energia é desenvolvimento. Energia está

na base da formulação da estratégia nacional do Brasil. Energia é e está

no futuro do Brasil.