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ANO 4 11 outubro 2003 A ÉTICA E A FORMAÇÃO DE VALORES NA SOCIEDADE por Leonardo Boff

A ética e a formação de valores na sociedade

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Ética

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ANO 4 — Nº 11

outubro 2003

A ÉTICA E A FORMAÇÃODE VALORES NA SOCIEDADE

por Leonardo Boff

capa Reflexão 11 10/2/03, 10:543

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Instituto Ethos Reflexão é uma publicação doInstituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social,distribuída gratuitamente a seus associados.

A mesa-redonda Reflexões sobre a Ética e a Formação de Valores na Sociedade,transcrita neste documento, realizou-se em 12 de junho de 2003, durantea Conferência Nacional 2003 — Empresas e Responsabilidade Social,do Instituto Ethos, no Novotel Center Norte, em São Paulo, SP.

Colaboradores do Instituto EthosBenjamin S. Gonçalves (coordenador), Carmen Weingrill,Leno F. Silva e Paulo Itacarambi

EdiçãoBenjamin S. Gonçalves e Célia Cassis

RevisãoMárcia Melo

Transcrição de VídeoDenise Gold (Comunicarte)

Projeto Gráfico e Edição de ArtePlaneta Terra Criação e Produção

Tiragem: 4 mil exemplares

São Paulo, outubro de 2003.

Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade SocialRua Francisco Leitão, 469, 14º. andar, Conj. 140705414-020 — São Paulo, SPTel.: (11) 3897-2400 — Fax: (11) 3897-2424Site: www.ethos.org.br

É permitida a reprodução desta publicação, desde que previamenteautorizada por escrito pelo Instituto Ethos.

Esclarecimentos importantes sobre as atividades do Instituto Ethos:

1. O trabalho de orientação às empresas é voluntário, sem nenhuma cobrança ou remuneração.2. Não fazemos consultoria e não autorizamos nem credenciamos profissionais a oferecer

qualquer tipo de serviço em nosso nome.3. Não somos entidade certificadora de responsabilidade social nem fornecemos “selo” com essa função.4. Não permitimos que nenhuma empresa (associada ou não) ou qualquer outra entidade utilize a logomarca do

Instituto Ethos sem nosso consentimento prévio e expressa autorização por escrito.

Para esclarecer alguma dúvida ou nos consultar sobre as atividades de apoio do Instituto Ethos, contate-nos, por favor,pelo link Fale Conosco, do site www.ethos.org.br, no qual será possível identificar a área mais apropriada para atendê-lo.

Impresso em Reciclato — capa 180 g/m2, miolo 120 g/m2 — da Cia. Suzano, o offset brasileiro 100% reciclado.

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O movimento de responsabilidade social empresarial se fundamenta na ética. Nenhuma

empresa pode ser socialmente responsável se não tiver um comportamento ético em relação

aos públicos com os quais se relaciona e um declarado compromisso com a sustentabilidade social

e ambiental da comunidade em que atua, do país e do mundo. Por essa razão, a ética é assunto

recorrente nesta publicação e foi o tema central da Conferência Nacional 2003

do Instituto Ethos: Ética e Responsabilidade Social.

Entre as várias questões discutidas durante o encontro estava o modo como as empresas

devem enfrentar dilemas éticos nas relações com seus diversos públicos. Para debater o assunto,

organizaram-se duas mesas-redondas que, não sem motivo, estiveram entre os eventos mais

concorridos da programação. A primeira delas, cujo conteúdo publicamos na edição anterior

de Instituto Ethos Reflexão, desenvolveu-se em torno da palestra sobre ética nas empresas

proferida pelo consultor organizacional Victor Pinedo.

A segunda, intitulada A Ética e a Formação de Valores na Sociedade, permitiu

aos participantes um inesquecível contato com o carisma do teólogo Leonardo Boff. É a íntegra

dessa mesa-redonda que temos o prazer de apresentar nesta edição, incluindo o debate que a ela

se seguiu, sob o comando de Helio Mattar, presidente do Instituto Akatu pelo Consumo Consciente,

com a participação dos debatedores Maria Rita Kehl, psicanalista e escritora, Sueli Carneiro,

diretora-executiva do Geledés — Instituto da Mulher Negra, e Mário Sérgio Cortella,

consultor organizacional e professor nas áreas de teologia e educação da PUC-SP.

O envolvente discurso de Leonardo Boff revela sua esperança num salto de qualidade resultante

da cooperação entre o governo e a sociedade organizada em direção a um novo Brasil —

“um país com um novo rosto, com mais justiça e inclusão social”. Para isso, segundo o teólogo,

“a ética da responsabilidade, centrada na vida, é um imperativo. Responsabilidade, cuidado

e solidariedade poderão estabelecer um patamar mínimo para que alcancemos um padrão

de comportamento que seja humanitário”.

APRESENTAÇÃO

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A ÉTICA E A FORMAÇÃODE VALORES NA SOCIEDADE

Por Leonardo Boff

Palestra proferida em 12 de junho de 2003, na Conferência Nacional 2003 —Empresas e Responsabilidade Social, promovida pelo Instituto Ethos, em São Paulo.

importante que empresários de nosso país comecem a cami-nhar, como também o fazem empresários na Europa e nosEstados Unidos, na direção de suscitar e debater questõesde ética, responsabilidade social e outros campos, como asubjetividade humana e a espiritualidade.

Quero situar esta minha reflexão sobre ética, formaçãode valores e responsabilidade social no contexto de uma criseque afeta todas as sociedades do mundo. Essa crise não éconjuntural, é estrutural. Isso significa que atinge os funda-mentos da civilização que construímos nos últimos séculos eque hoje é globalizada. Essa crise alcançou níveis tão agudosque nos obriga a pensar e a encontrar saídas inovadoras sequisermos dar conta, de forma responsável, das intimidaçõese dos desafios que a realidade nos apresenta e que envolvemtanto o presente quanto o futuro da humanidade.

Apartação socialVejo três eixos fundamentais nessa crise. O primeiro

diz respeito à pobreza, à miséria, ao que podemos chamarde apartação social. Os indicadores são conhecidos, não pre-ciso salientá-los. Basta considerar que grande parte da hu-manidade vive na pobreza e na miséria. Basta lembrar quese desenvolve em todo o mundo um processo devastador deapartação. O resultado são os excluídos, os milhões conside-rados “zeros econômicos” que sobrevivem à margem da so-ciedade e, por também serem humanos, gritam querendoviver, participar, e cada vez mais repudiam o veredicto demorte que pesa sobre sua vida.

O Brasil também vive essa grave crise social. Ela é his-tórica. O presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva,herdou na verdade um dilúvio no qual um Noé apenas não

É com satisfação que participo desse tipo de reflexão queo Instituto Ethos conduz já há vários anos. Considero

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é suficiente para pilotar a arca. Daí a importância dos em-presários, da sociedade organizada, para encontrarmos ummínimo de estabilidade e sustentabilidade e podermos darum salto de qualidade e gerar um Brasil de “outros quinhen-tos”, um país com um novo rosto, com mais justiça e inclu-são social.

Há hoje um risco de bifurcação na família humana, ode que os desiguais deixem de ser desiguais, mas passem aser considerados dessemelhantes e, portanto, não mais per-tencentes à família humana. Esse alerta vem sendo feito háanos pelo sociólogo francês Alain Touraine e tem sido repe-tido aqui por Cristovam Buarque, nosso ministro da Educa-ção, que além de educador é um grande humanista.

Existe, pois, o risco de que efetivamente a humanida-de aceite como inevitável essa apartação mundial entre ri-cos e pobres, entre aqueles que têm abundância de bens eserviços e aqueles que estão à margem de tudo isso, sobrevi-vendo com enorme dificuldade — o que leva à percepçãode que os laços de cooperação e solidariedade são mínimosem todo o mundo. O fato é que a política mundial retroce-deu a níveis de barbárie nunca antes observados nos últimosquinhentos anos.

Sistema de trabalhoO segundo eixo da crise mundial está, a meu ver, no

sistema de trabalho. Em quase todas as sociedades, tanto asde países ricos quanto as de países retardatários como o nos-so, há uma grave crise de emprego. Suas causas se devem,fundamentalmente, à hegemonia que o capital especulativotem sobre o capital produtivo, fenômeno determinado pelaprópria lógica da economia de mercado mundial, parcamen-te cooperativa e vastamente competitiva. Esse desequilíbrioleva a grandes diferenças, a lutas internas, a uma fantásticaacumulação de riqueza, que é extremamente mal distribuí-da, o que faz com que milhões de pessoas em todo o mundose sintam excluídas e não encontrem seu espaço dentro denossas sociedades.

Outro problema grave relacionado à questão do traba-lho, que atinge também nosso país, diz respeito à mudançana natureza do processo tecnológico. No Brasil, esse processoé evidente na indústria de ponta, na sociedade da comunica-ção, da informação, da automação e da robotização. É umcaminho inevitável e representa um avanço para a humanida-de. Mas suas conseqüências sociais devem ser pensadas, por-que esse caminho não apenas cria desemprego como destróipostos de trabalho. Até hoje todas as sociedades se construí-ram baseadas no trabalho; a partir de agora, o que se observaé um desenvolvimento sem trabalho. E aqueles que estão noócio vão se multiplicar aos milhões. O desafio é descobrir comopassar de uma sociedade de pleno emprego para uma socie-dade de plena ocupação; é saber como tornar criativo o ócio,resgatando o sentido originário do trabalho como forma hu-mana de plasmar o mundo, liberando-nos da nossa condiçãode cativos, de assalariados pelo processo de produção, e dan-do sentido à nossa vida, ao recuperar nossa dignidade e nossacondição de seres criativos.

O trabalho é isso, é obra. Nós nos autoconstruímos pelotrabalho. Então, o que fazer para que essa realidade ganhenova configuração? É preciso criar outro padrão de civiliza-ção. As civilizações históricas não dão conta disso. Devemosbuscar outro tipo de relação social, de relação com a nature-za, e encontrar outra forma de interpretar o trabalho. Tudoisso suscita um enorme problema ético: como organizar asociedade para que as pessoas não se sintam excluídas, des-tituídas dela.

Alarme ecológicoO terceiro eixo da crise, que também levanta questões

éticas, está no que se pode chamar de alarme ecológico. ATerra sofre um estresse fantástico em todos os seusecossistemas. A espécie humana ocupa 83% do planeta, eeste, dada a voracidade do processo industrialista, já ultra-passou em 20% sua capacidade de resistência e de regenera-ção, segundo constatam vários órgãos de acompanhamento

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ecológico mundial. Esse estresse enorme afeta todos osecossistemas, mas transparece fundamentalmente em doispontos. Um deles é a falta de alternativas para a energia fós-sil, que possivelmente se esgotará nos próximos trinta ouquarenta anos. O outro é a crise da água potável. Pude par-ticipar de um dos vários congressos que a Organização dasNações Unidas (ONU) propôs sobre o assunto. Neles cons-tatou-se a dramaticidade da situação. Um dos relatórios dizque entre os anos de 2005 e 2007 poderão ocorrer guerrasde grande devastação para garantir acesso a fontes de águapotável. De toda a água do mundo, apenas 3% é potável, edesses 3% apenas 0,7 % é acessível ao uso humano. O risco éque nos próximos anos haja a conjugação do aquecimentodo clima do planeta com escassez de água. Caso isso ocorra,haverá uma crise alimentar fantástica, com ameaça a milhõesde famílias, as quais se somarão ao imenso contingente deimigrantes que vagam pelo mundo, desestabilizando o frá-gil equilíbrio do planeta.

Esta é uma nova questão, que nasce essencialmente damaneira como nós seres humanos nos relacionamos nos úl-timos séculos com a natureza: de forma predatória, não res-peitando a alteridade, não nos dando conta de que tambémsomos Terra e pertencemos aos seus ecossistemas. Esquece-mos que o capital biológico natural pertence à vida, e nãoapenas aos seres humanos. Além de nós, que nos ocupamosdo meio ambiente e precisamos dos meios de sobrevivência,existe toda uma comunidade viva — animais, plantas,microorganismos e outros seres — que conosco comparti-lha essa aventura. É preciso elaborar uma nova benevolên-cia, um novo tipo de relação com a natureza, cujo desenvol-vimento não se faça contra ela, mas com ela, e que haja umapercepção de justa medida da escassez de seus recursos. Casocontrário, poderemos ir ao encontro do pior. E desta veznão será uma arca de Noé que salvará alguns e deixará pere-cer os outros. Ou nos salvaremos todos, ou morreremos to-dos. Seres humanos e Terra comparecem juntos diante dofuturo. E juntos devemos encontrar uma solução que sejajusta, que garanta a sustentabilidade.

Essas questões são incômodas. Ninguém gosta de pen-sar em catástrofes pesando sobre sua cabeça. Mas é necessá-rio honrar a realidade e pensá-las enquanto é tempo, por-

que o tempo corre contra nós; tomar medidas agora, paranão nos arrependermos depois. Há o risco de que nossosfilhos e netos se levantem, com o dedo em riste, e nos di-gam: “Vocês sabiam da gravidade da situação, poderiam terencontrado soluções, e não encontraram. Vejam que mun-do vocês nos deixaram, que águas poluídas, que ares pesti-lentos, que instituições desumanizadas!” Porque eles tam-bém têm direito a uma Terra habitável e saudável.

Então temos de pensar na importância da alfabetiza-ção ecológica. Durante o Fórum Social Mundial de PortoAlegre, agora em 2003, conversei com Fritjof Capra1 e comMarina Silva, ministra do Meio Ambiente, a respeito de ini-ciar a alfabetização ecológica no Brasil. Capra, que dirigeum instituto na Califórnia voltado para isso, me deu a se-guinte resposta: “Eu me prontifico a vir ao Brasil, mas prefi-ro começar a alfabetização ecológica pelos empresários, enão nas escolas, porque são eles que mais necessitam dela”.Sem dúvida, há a necessidade de uma nova relação da pro-dução com a natureza, com a poesia, com a qualidade devida, e não só com a qualidade dos produtos. Estou certo deque este é o objetivo do Instituto Ethos, ao se preocuparcom a qualidade global da vida, de toda a corrente da vidada qual somos apenas um elo, uma parte, e não a totalidade.

Razão e afetoNossos problemas são globais e demandam uma solu-

ção global. Poderíamos dizer que é um cenário que pedeuma revolução. Não bastam reformas nem cabem processospedagógicos muito longos, porque o tempo é curto. CarlSagan 2 diz, em seu testamento: “Nós criamos o princípio daautodestruição. Temos meios de devastar profundamente abiosfera e impossibilitar o projeto planetário humano”. Por-que nós temos demasiado poder. Está em nossas mãos essepoder destruidor. O futuro não depende mais da Terra, dasforças diretivas do universo. Depende, diz Sagan, de umadecisão política nossa. Temos de decidir viver e nos organi-zar para isso. Por isso, em contraponto ao princípio da

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“A razão culminana contemplação

e funda suas raízesna afetividade.

Assim, a experiênciade base não é

‘penso, logo existo’,mas ‘sinto, logo existo’.”

autodestruição, devemos instituir o princípio da responsabi-lidade, pela humanidade e pela casa comum que é o planetaTerra.

O tempo das revoluções pertence a outra história. Sãoimpossíveis revoluções hoje, porque supõem uma ideologiacoletiva global, atores históricos globais. Precisamos, sim, éde uma nova base para as mudanças necessárias. E essa base

aí já não fazemos o trabalho da razão, e sim contemplamos.A razão, portanto, culmina na contemplação e funda suasraízes no afeto, na afetividade. Assim, a experiência de basenão é “penso, logo existo”, mas “sinto, logo existo”.

Nós temos a comprovação empírica desse fenômenode base. A tradição vem de Platão, passa por Santo Agos-tinho, São Boaventura, Blaise Pascal e pelo existencialismo

deve apoiar-se em algo fundamental:na essência do ser humano. E deveser compreensível e evidente paratodos, e imediatamente viável. Con-sidero, como outros pensadores, quedeva ser uma base ética da humani-dade. Mais que uma coalizão políti-ca, deverá ser uma comoção éticaque irá mobilizar os seres humanospara que encontremos um novo pa-drão de comportamento, novos va-lores, preocupação e cuidado comnosso futuro, com nossa Terra e seusecossistemas, com as condições danossa sobrevivência e a dos demaisseres vivos.

Essa coalizão de base ética é oobjeto de minha reflexão agora. Osgregos diziam que o fundamento doser humano é a racionalidade. Somosanimais racionais. Esta é a crença bá-sica do Ocidente, que vem dos fundadores da filosofia, pas-sa pelos mestres medievais, culmina em Immanuel Kant eFriedrich Hegel e hoje persiste em Jürgen Habermas 3 e naEscola de Frankfurt, para dar uma referência. Parece-me,porém, uma base muito pequena. Sem a racionalidade nãoconseguimos conduzir nossa vida, é verdade, mas o funda-mento último da existência humana não reside na razão. Arazão não é nem o primeiro nem o último momento da exis-tência, e por isso não explica nem abarca tudo.

A razão se abre para baixo, para algo mais rudimentar,ancestral, que é a afetividade. E também se abre para cima,para a dimensão da totalidade, captada pelo espírito medi-ante o qual nós nos sentimos parcela e parte de um todo; e

moderno. Com Sigmund Freud,Carl Jung, Alfred Adler e outros,o discurso psicanalítico afirma quea base última sobre a qual se susten-ta o ser humano é o afeto — ligadoà parte do cérebro mais ancestralque temos, o sistema límbico, quesurgiu 230 milhões de anos atrás comos mamíferos, sua afetividade, a ges-tação, a intimidade e o cuidado coma cria. Mediante o neocórtex, surgi-do há 4 ou 5 milhões de anos, orga-nizamos nossos conceitos, nossas vi-sões de mundo, calculamos nossasestratégias de sobrevivência. Enrai-zados estamos, no entanto, no cére-bro límbico, no afeto.

O psicólogo americano DanielGoleman, em seu famoso livro AInteligência Emocional, mostrou que aprimeira resposta do ser humano

diante da realidade é a afetividade, e que somente três ouquatro segundos depois entra a razão em funcionamento.Somos essencialmente sentimento e afeto, inteligência emo-cional. Pelo afeto entramos em comunhão com a realidade,fato que o grande filósofo alemão Martin Heidegger 4, emseu O Ser e o Tempo, analisa em detalhe, quando descreve aestrutura básica da existência, o que é estar no mundo. Eestar no mundo não é estar fisicamente no mundo; é estar-mos no conjunto das relações que nos entretêm e que nossustentam; é estarmos junto com os outros, abertos à totali-dade. E, se esse “estar no mundo” é uma relação sem distân-cia, quase uma fusion mystique com a realidade, é porque asentimos.

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“Se a razão reprimeo sentimento, triunfam

a rigidez, a tirania da ordeme a ética utilitária.

Se o sentimento dispensaa razão, vigoram o delírio

das pulsões e a éticahedonista do puro prazer.”

Nós afetamos a realidade e somos afetados por ela. E nessejogo de afeto vamos construindo nossa racionalidade, nossoprojeto de liberdade, nossos projetos históricos. É por meiodessa sensibilidade de fundo que elaboramos nossos valo-res. O valor é o caráter precioso do ser, aquilo que o tornadigno de ser. Nós sentimos, percebemos valores. E é só quan-do sentimos e vivemos com profundidade que podemos nos

tir que esse sentimento profundo — já acentuado por Freude mais ainda por Jung, em sua teoria dos arquétipos — éprofundamente ambíguo, porque é habitado por demônios.Deixada por si mesma, a sensibilidade pode degenerar emformas de gozo destruidor. Todos os valores contam, masnem todos valem para todas as circunstâncias. Essa sensibili-dade de base é um caudal fantástico de energia que, como

movimentar no reino dos valores.É por eles que moldamos a vida esomos.

Os gregos entenderam bem issoquando chamaram esse afeto profun-do de eros. Diz o mito arcaico: “Eros,o deus do amor, ergueu-se para criara Terra. Antes, tudo era silêncio, nu eimóvel. Agora, tudo é vida, alegria,movimento”. É essa realidade em nósa mais profunda, é ela que nos move,e penso que hoje é a que mais faz fal-ta na nossa cultura mundial.

Eu me recordo da última pales-tra que nosso querido Betinho 5 pro-feriu uma semana antes de falecer, naqual dizia que a crise mundial não épolítica, nem econômica, nem espi-ritual: a crise mundial é uma crise desensibilidade. Porque nós não senti-mos os outros como irmãos e irmãs,como seres humanos. Nós os tratamos como objetos e passa-mos ao largo. Se sentíssemos, não deixaríamos milhões depessoas passando fome nem crianças nas ruas, e não permiti-ríamos que nossos idosos enfrentassem as filas dos hospitais edos institutos de pensão. Nós somos cruéis e sem piedade. É arealidade, e devemos aceitar esse veredicto até na comprova-ção de como tratamos a humanidade, com a degradação davida, com conflitos, guerras, de tal maneira que nossa casa setornou estranha a todos nós. Que humanidade somos!

Temos de resgatar o eros, o sentimento profundo, comocondição mínima para estabelecermos um consenso éticomínimo entre os seres humanos. Entretanto, importa adver-

águas represadas de um rio, precisade margens e da justa medida paranão ser avassaladora. É aqui que en-tra a função irrenunciável da razão.A razão não é a base da existênciahumana, mas aponta o caminho paraa afetividade. É próprio da razão verclaro e ordenar, disciplinar e definir,dar direção à afetividade.

E aqui surge uma dialética dra-mática entre razão e sentimento. Sea razão reprime o sentimento, triun-fam a rigidez, a tirania da ordem e aética utilitária. Se o sentimento dis-pensa a razão, vigoram o delírio daspulsões e a ética hedonista do puroprazer. Mas, se vigorar a justa medi-da e o sentimento se servir da razãopara um autodesenvolvimento re-grado, então emerge a ética do equi-líbrio, surge aquilo que compõe e

estrutura de cada um de nós, a dimensão do animus e daanima, do masculino e do feminino. Surgem a ternura e ovigor. Precisamos do vigor para o trabalho objetivo, que su-põe a razão calculatória, instrumental e analítica, a qual uti-lizamos para garantir nossa sobrevida, nossa comida, o futu-ro da nossa civilização. Pascal chamava essa razão calculatóriade esprit de géométrie (o espírito que mede e calcula); mas,dizia ele, se tivermos apenas a razão instrumental e analíti-ca, se não associarmos a ela o esprit de finesse (espírito de gen-tileza), que é o cuidado, a relação que protege, a relaçãoamorosa com a realidade, especialmente com as pessoas, otrabalho será devastador.

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Vigor e ternura. Trabalho e cuidado. Empenho trans-formador e o habitar o mundo com sentimento, poesia, ale-gria, jovialidade, amizade, amor. São essas as forças queestruturam a existência do ser, da comunidade, da humani-dade. Juntos devemos dar um sentido a essa conjugação depovos e raças, criando uma história nova; não mais a históriado Brasil nem a de outro país, e sim a história da humanidadecomo família, como uma espécie junto das outras espécies.

Ética do cuidadoAqui está, eu creio, uma base radicada sobre algo fun-

damental: o afeto profundo que se revela na dimensão hu-mana do cuidado. O cuidado é uma atitude amorosa paracom a vida, protege a vida, quer expandir a vida. E toda vidaprecisa de cuidado. Se não cuidarmos da vida de uma crian-ça que nasce, ela acaba morrendo. Lembro uma tradiçãofilosófica que não teve repercussão na história do pensamen-to do Ocidente, do tempo de César Augusto, quando umdos escravos, Higino, chefe da biblioteca imperial, criou umafábula na qual coloca o cuidado como essência do ser hu-mano. Por que o cuidado? Porque, diz ele, o cuidado é oorientador antecipado de todos os atos. Vem antes do pen-samento, antes da criatividade, antes da liberdade. Tudo oque o ser humano faz tem de fazer com cuidado, senão podeser desastroso, destrutivo.

Heidegger dedicou o centro de seu genial O Ser e oTempo ao cuidado. Durante uma longa entrevista, poucoantes de sua morte, fizeram uma crítica a ele, dizendo:“Todos os grandes filósofos elaboraram os temas básicos dafilosofia, da epistemologia, da metafísica, da estética efundamentalmente da ética. O senhor é um grande filósofo,mas não elaborou nenhuma ética”. E Heidegger respondeuao entrevistador: “Você está enganado. Leia os parágrafos39 a 44 de O Ser e o Tempo e lá encontrará toda a ética”. É aética do cuidado. Cuidado consigo mesmo, com seu corpo,com sua vida, com seu futuro, com a natureza, com osecossistemas. Portanto, o cuidado é a dimensão fundamen-tal dos seres humanos. Nós cuidamos de tudo aquilo que

amamos, e amamos tudo aquilo de que cuidamos. Hoje,mais do que nunca, precisamos dessa ética mínima ligadaà própria vida.

Ninguém precisa ensinar cuidado a ninguém. Uma cri-ança sabe que não pode pisar em casca de banana e tem decuidar de seu caderno, de sua roupa. E, no entanto, nos da-mos conta de que hoje o mundo é atravessado por uma gran-de falta de cuidado em todos os aspectos. Cidades abandona-das, crianças e jovens desassistidos, a economia devastada porprocessos especulativos, ecossistemas descuidados, o planetaentregue à própria sorte. É preciso elaborar uma ética do cui-dado, que funciona como um consenso mínimo a partir doqual todos possamos nos amparar e desenvolver uma atitudecuidadosa, protetora e amorosa para com a realidade.

Ética da solidariedadeJunto com a ética do cuidado impõe-se uma ética da

solidariedade. Solidariedade não é apenas uma virtude quepodemos ter ou não ter. Solidariedade e cooperação, dizemos estudiosos de física quântica e também os cosmólogos,fazem a lei suprema do universo. Porque no universo tudotem a ver com tudo, em todos os pontos, em todos os mo-mentos. Todos somos interdependentes. É uma lei objetiva,cósmica. Dizem-nos os etnoantropólogos que o salto daanimalidade para a humanidade ocorreu no momento emque nossos ancestrais começaram a levar o que caçavam parao grupo, de modo a dividir o alimento fraternalmente entresi. A solidariedade e a cooperação é que permitiram a socia-bilidade, o surgimento da linguagem, e definem o ser hu-mano como sócio, como companheiro — filologicamente,aquele que comparte o pão.

Somos, portanto, seres de solidariedade. O que impor-ta é transformar esse dado objetivo da cooperação universalnum projeto pessoal, num projeto político. Uma sociedade,uma comunidade ou uma empresa só funcionarão se cria-rem laços de cooperação, de inclusão. Só assim cada um seafinará com a lógica do Universo e se tornará benevolente enão destrutivo.

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Ética da responsabilidadeResponsabilidade é dar-se conta das conseqüências que

advêm de nossos atos. Hoje lidamos com a biotecnologia,com os mistérios supremos da natureza, modificamos a basefísico-química da natureza e não sabemos quais serão as con-seqüências. Impõe-se uma ética da responsabilidade, da jus-ta medida, da cautela e da prevenção. Essa ética diz o se-guinte: “Aja de tal maneira que sua ação não seja destrutiva.Aja de tal maneira que sua ação seja benevolente. Ajude avida a se conservar, a se expandir, a irradiar”. Em sua Ética daTerra, o grande ecólogo americano Aldo Leopold estabeleceque certo é tudo aquilo que defende e protege a vida, e erra-do, tudo o que a ameaça, abrevia e mata.

Nós sabemos o que é bom e o que é mau para a vida. Aética da responsabilidade, centrada na vida, é um imperati-vo. Responsabilidade, cuidado e solidariedade poderão es-tabelecer um patamar mínimo para que alcancemos um pa-drão de comportamento que seja humanitário. Como tratarhumanamente os seres humanos, como tratar bem a vidaque vai além da nossa vida pessoal? Essa é a questão de fun-do. Na resposta, temos de superar a visão antropocêntrica, avisão radicada somente no ser humano. Temos de nos tor-nar ecocêntricos, vale dizer, centrados naquilo que está pre-

sente na palavra “ecologia”: “a casa” (oikos), que pode ser acasa em que moramos, a cidade na qual residimos, o Estadoa que pertencemos e o país que é nossa pátria. Hoje, a Terraé o grande desafio, a Terra como Gaia, como ser vivo. E nós,como seres humanos, somos a própria Terra. Não sem ra-zão, a palavra “homem” vem de humus, terra fértil; e “Adão”(adam), o Adão bíblico, significa “filho da Terra”, e vem deadamah, “terra fecunda”, “terra fértil”.

Todos nós devemos fazer nossas revoluções mole-culares, o que significa que cada um pode começar por simesmo. Se olharmos a magnitude dos problemas, nós nossentiremos impotentes. Mas, se começarmos conosco mes-mos, a mudança que fizermos não ficará restrita a nós. Obem que fazemos contamina, é como uma luz que se irra-dia, que vai acendendo as velas já apagadas, mas sensíveis aessa luz. Então, cada um deve desafiar-se a começar por simesmo — agora, já — a ter cuidado, a viver com mais solida-riedade na fábrica, na produção, nas relações com os ou-tros; a ser mais responsável na palavra que pronuncia, nogesto, nas medidas que toma, no processo produtivo. Então,sim, poderemos conviver como irmãos e irmãs, companhei-ros na mesma casa, sobre a qual nós cremos que, segundo omito bíblico, está o arco-íris da graça, que nos dá esta pro-messa: nunca mais o dilúvio, nunca mais a destruição, mas avida na sua perenidade e na sua glória.

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Para debater com o teólogo Leonardo Boff, foram convidadoso diretor-presidente do Instituto Akatu pelo Consumo Consciente,Helio Mattar (coordenador), a psicanalista e escritora Maria RitaKehl, a diretora-executiva do Geledés — Instituto da Mulher Ne-gra, Sueli Carneiro, e o professor Mário Sérgio Cortella, do Depar-tamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP.

Helio Mattar — Após esse caloroso abraço da platéiaem forma de aplausos, me parece desnecessário cumprimen-tar o frei Leonardo Boff. Assim, vou pedir licença para ini-ciar o debate. Para fazer perguntas ao frei Boff, temos o pri-vilégio de receber aqui Maria Rita Kehl, psicanalista e escri-tora, Sueli Carneiro, diretora-executiva do Geledés — Insti-tuto da Mulher Negra, e o professor Mário Sérgio Cortella,da PUC-SP. Passo então a palavra a Maria Rita, para sua pri-meira pergunta.

Maria Rita Kehl — O senhor fala de sentimentos e ati-tudes como delicadeza, ternura, vigor, cuidado e solidarie-dade, e faz um apelo para começarmos a mudança por nósmesmos. Como psicanalista, tenho percebido na sociedadeuma maior disposição de transformação individual, de ade-são a valores de solidariedade, de consideração com o ou-tro. Mas, mesmo nos transformando, temos dificuldade emexercer no mundo os valores que passamos a adotar. Porqueo que rege o mundo de hoje é a lógica da concentração decapital, que é absolutamente contrária ao exercício de qual-quer ética da delicadeza. Então, para além dessas mudançasindividuais, que grande mudança seria possível fazer parabarrar essa lógica que não permite nenhuma delicadeza, nemhumana nem ecológica, apesar das nossas boas intenções?

Leonardo Boff — Em sua Filosofia da História, Hegel dizque o ser humano não aprende nada da História; aprendetudo do sofrimento. Creio que estamos indo ao encontro de

uma grande crise. Mas toda crise funciona como um crisol:purifica. Ou deixamos que ela se agrave e produza umadizimação — seja no nível da economia, com um impasse fun-damental, seja no nível da ecologia, com algum desastre queafete toda a humanidade, como o aquecimento do clima ou afalta de água potável —, ou usamos nossa fraca racionalidadee, em vez de aprender do sofrimento, aprendemos por ante-cipação, com inteligência, com cuidado, evitando as crises ecomeçando agora. O tempo é urgente, temos pouco tempopara isso. A aceleração da História é fantástica. Segundo ohistoriador inglês Eric Hobsbawn, nos últimos cinqüenta anosnós evoluímos mais do que nos últimos 30 mil anos. Temos depensar nisso, começar com medidas salvadoras, práticas in-clusivas, economia menos devoradora, superar a monoculturado capital, diversificar as formas de produção e distribuição,para que os seres humanos ganhem sustentabilidade comopessoas, como sociedade, como país, como planeta. Sem issonão vejo alternativa.

Sueli Carneiro — Desde os gregos, persegue-se umanoção de democracia que historicamente vem convivendocom diferentes formas de exclusão. Na própria Atenas anti-ga, mulheres, escravos e estrangeiros não tinham plena ci-dadania. Diz-se que uma bula papal decretou que os negrosafricanos não tinham alma, e com isso foram legitimados aescravidão e o tráfico transatlântico. E Montesquieu disseem uma de suas obras que “não podemos aceitar a idéia deque Deus, que é um ser muito sábio, tenha introduzido umaalma, sobretudo uma alma boa, num corpo completamentenegro”. No Brasil, todos esses valores conseguiram produziruma realidade social que, segundo uma pesquisa recente doIBGE, torna a desigualdade racial a maior das desigualda-des sociais no país. A discriminação pela cor permanece cris-talizada na sociedade brasileira, e no entanto essa socieda-de, apesar de todas as evidências, insiste em que vivemos

DEBATE

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“Nossa geração temde aprender a ser solidária

com as gerações quenos seguem e seguirão.

Tem de aprender a amaro invisível, os filhos

e netos que ainda nãonasceram.”

numa democracia racial, que não existe problema racial, esim social. Escamotear, tratar hipocritamente essa realidadetambém consubstancia um tipo de ética presente na socie-dade. Como posso ter afetividade se eu tenho a imagem queesses valores expressam do outro, daquele que é diferentedo eu hegemônico? Como é possível realizar a afetividadepartindo do pressuposto de Montesquieu, presente no ima-

mos de um modo diferente — não a despeito da razão, masintegrando de outra forma a razão —, a partir de um nívelmais profundo de inclusão. Nesse sentido, muitas tribos daÁfrica estão à frente de todos nós em termos de civilização.

Mário Sérgio Cortella — Somos a primeira geraçãoque está sacando o futuro por antecipação — sacando no

ginário de todos, de que essa afeti-vidade teria de se dirigir a seres con-siderados inferiores? É possível res-gatar esse sentimento profundo queo senhor advoga sem desconstruircada um desses valores que susten-tam essa ética perversa, historica-mente cúmplice da opressão que essaracionalidade produziu? Quais são oscaminhos para a desconstrução des-sas éticas e desses valores que possamnos libertar para viver a afetividadee a ética do cuidado?

Boff — Em sua Ética, Aris-tóteles diz que há seres que são pornatureza escravos, que mulher é umhomem que não chegou à sua plenahumanidade (mas, em latim), o queTomás de Aquino repete e, para ver-gonha nossa, Freud também, em seufalocentrismo; e Jacques Lacan, piorainda. Se nos colocamos dentro dessa luta, saímos do reinoda razão. É como querer combater um leão colocando-se nagarganta do animal: somos devorados. Penso que devemosnos colocar num patamar mais fundamental, pré-razão; arazão vem depois. A cultura afro-brasileira, de onde vem aSueli Carneiro, é uma cultura do sentimento; não é umacultura ocidental nem cartesiana. Os negros não pensam coma cabeça, pensam com o corpo inteiro, sentem a totalidade.É outro código, e muito mais afinado com o que eu propusaqui. Por isso os laços de solidariedade que nós definimoscomo tribalismos, ou tribais, laços de fraternidade, de coope-ração, são naturais em sua cultura. Então temos de revisitaressas culturas que nos mostram que é possível nos organizar-

sentido bancário do termo mesmo.Como disse o Leonardo, talvez umdia os jovens venham de fato a noscobrar: “O que é que vocês fizeramcom o nosso futuro e, portanto, como nosso presente?” Esse saque ante-cipado a que me referi significa queestamos dizendo aos jovens que nãohaverá futuro, não haverá meio am-biente, não haverá segurança, nãohaverá trabalho. E dizemos também:“Vocês não têm passado. Eu, sim, tiveinfância, pude viver, pude brincar,pude me relacionar”. E mais ainda:“Vocês não têm nem mesmo o pre-sente. O que vocês comem não é co-mida, é lixo; o que vocês vestem nãoé roupa, são andrajos; o que vocêsouvem não é música, é barulho”. Osjovens não têm história. E esse é omaior risco, porque quem não tem

história quer viver até o final, e a qualquer custo, a idéia dopresente. Por isso, como pensar em ética quando a socieda-de elege um mote como o carpe diem — “aproveite o dia”,“viva o momento”? Como pensar em ética numa sociedadeque vende o instante?

Boff — Nossa geração tem de aprender a ser solidáriacom as gerações que nos seguem e seguirão. Tem de apren-der a amar o invisível, os filhos e os netos que ainda nãonasceram. Se apenas considerarmos o dilúvio como futuro,desfrutando o mais possível o presente, poderemos chegarao destino dos dinossauros, que num piscar de olhos desa-pareceram. Iremos ao encontro do pior, por arrogância,descuido, distração, falta de cuidado. Uma das mais graves

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“Até hoje só criamoso consumidor, que assistepassivamente à História.O ideal da emancipação

moderna é criar o cidadão,que pensa, luta, dialoga,

considera o outroe com ele constrói um perfil

novo de Brasil.”

crises do nosso tempo é a falta de utopia. Os jovens são de-vorados pelo consumismo, seja real ou virtual (só pelo dese-jo, induzido pela propaganda, sem ter possibilidade real deacesso, por causa da pobreza), por uma cultura que a tudoerotiza, pelo consumo em massa e homogeneizador. A faltade sonhos se expressa em programas de televisão como oBig Brother Brasil, que para mim é a ante-sala do niilismo. Vi

Mas gostaria de fazer uma pergunta sobre a afetividade. Comoo senhor lembrou, o afeto tem seu lado positivo, de bom tra-to, de amor e de carinho, mas só com afeto a gente não cons-trói coisa alguma. E a sociedade brasileira é marcada justa-mente por essa tonalidade afetiva em todas as suas relaçõesde civilidade, que ficam comprometidas pelo que SérgioBuarque de Holanda chamou de “nossa cordialidade”. En-

nos Estados Unidos um programaem que jovens se reúnem para seagredir e ver quanta dor e violênciacada um agüenta. Isso é niilismo, des-truição. Para eles, a vida não valemais nada. Uma de nossas responsa-bilidades é criar sonhos, valores pe-los quais vale a pena a gente se em-penhar, encontrar um tempo para sereunir com um grupo e discutir. Nosanos 60, estávamos cheios de utopias.Os que agora chegam ao poder nun-ca desistiram de seus sonhos. Parti-ram para o exílio, sofreram torturas,mas nunca foram infiéis aos seus so-nhos. É preciso buscar a utopia emalguns nichos, e um deles está na pre-ocupação pela vida. A vida é o dommais precioso do Universo e de cadaum. Outro nicho é a espiritualidade.Os seres humanos estão cansados deconsumir, de ser ocupados e preocupados, e querem respi-rar um sentido para além da lógica utilitária. Querem de-bater o sentido da vida, o que vem depois de nós, qual osegredo que se esconde atrás das estrelas, o que é esse fogointerior em nós, essa fome de beleza, de comunhão, de inti-midade, de valores espirituais. São nichos que poderão abrirnovos sonhos de integração humana e dar um encaminha-mento mais suave e evidente à nossa vida.

Maria Rita — Permitam-me uma rápida observação so-bre a questão dos jovens. É que eu observo na minha clínicaque eles sofrem mais do que nós com esse imperativo de cur-tir cada momento. Em lugar de curtir, eles só se angustiam.

tão, do mesmo modo que tomamosalguém nos braços para ampará-lo emlágrimas, podemos esmurrar um ou-tro que acidentalmente pisou no nos-so pé. Creio, portanto, que precisa-mos de algum valor, algumaracionalidade que limite nossaafetividade. O contrato social do Bra-sil não pode passar apenas pelaafetividade, pois é com ela que a gen-te explora e não deixa o exploradoperceber que está sendo explorado —porque o patrão é tão bonzinho, por-que o presidente é tão legal, porqueo político prometeu não sei o quê epassou a mão na nossa cabeça... Pen-so que, no caso do Brasil, o problemanão é a afetividade, e sim a civilidade.Que tipo de valor é urgente impor àsociedade brasileira, para que nossocontrato social seja mais justo?

Boff — Toda cultura ocidental é assim, e nós brasilei-ros temos uma tradição muito autoritária, patrimonialista,de cima para baixo, patriarcal. O valor de civilidade que maisnos faz falta é aceitar a alteridade. Que o outro seja entendi-do como outro, e se estabeleça um diálogo de mútuo apren-dizado, de mútua escuta. A crise da política brasileira estáem grande parte aí, no fato de os políticos não ouvirem opovo, cujo capital social não é aproveitado. Essa troca desaberes a partir da alteridade pode enriquecer a cultura bra-sileira, que será então mais equilibrada e menos violenta —pois nossa cordialidade é de fato afetuosa e, por outro lado,extremamente cruel. E que essa troca faça com que a gentese encontre em pontos comuns, que possamos superar o

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“Que política queremos?Uma política democrática,de inclusão, ou políticas

seletivas, em que ademocracia pára na porta

da fábrica governadapelo autoritarismo?”

paternalismo. O ideal da emancipação moderna é criar ocidadão, porque nós até hoje só criamos o consumidor, aque-le que passivamente assiste à História e consome, e não ocidadão, que pensa, luta, dialoga, considera o outro e comele constrói um perfil novo de Brasil. O resgate desse valorconstitui a base para construir um Brasil diferente daqueleque herdamos em quinhentos anos de história.

ser, que perspectivas temos. Vamos viver num vale de lágrimase nos entredevorar ou podemos criar uma montanha de bem-aventuranças? Isso está ao nosso alcance, temos poten-cialidades que nos levam nesse sentido. Basta acioná-las, dar-lhes direção e harmonia. Não se trata de recalcar os demôni-os que nos habitam, mas impor limites a eles. Isso formulauma ética que demanda espiritualidade, uma visão mais glo-

Sueli — O senhor costuma di-zer que é preciso submeter a econo-mia à política e a política à ética. Gos-taria que comentasse essa máxima.

Boff — Se há uma lição quedevemos aprender de Marx, é esta: aeconomia é um capítulo da política,e não um capítulo da matemática ouda estatística. Porque é decidida porrazões políticas, por interesses, e é emfunção disso que se estabelecem asmetas da política, da forma de pro-dução, de acesso aos bens etc. Portan-to, a meu ver, economia é sempre eco-nomia política. E que política quere-mos? Uma política democrática, deinclusão, ou políticas seletivas, em quea democracia pára na porta da fábri-ca governada pelo autoritarismo? Aproposta do Instituto Ethos é que asempresas envolvam seus funcionários na criatividade para de-cidir a qualidade e até as linhas da produção. Isso é democra-tizar, é viver a política. Essa política obedece a um ideal ético.Ela quer responder à seguinte pergunta: que imagem nós te-mos do ser humano como valor? A de um consumidor ou ade um cidadão participante, crítico e criativo? Estamos aju-dando a criar condições para que o ser humano se sinta umprojeto infinito, que plasma sua vida, decide, assume o quequer ser, opta por solidariedade e cooperação, modera os ins-tintos de fazer-se valer sobre os outros? Esse é um ideal ético.Toda ética depende de uma ótica — a ótica que fazemos doser humano. Essa é uma questão filosófica, não política. Pen-sar qual é nosso lugar no conjunto dos seres, o que desejamos

bal da vida, do Universo, uma percep-ção da última causa das coisas e umdiálogo com a Fonte originária do ser,chamada Deus, Olorum ou Tao, nãoimporta o nome — aquela realidadeque arde em nós, com entusiasmo,como vida, como suprema interroga-ção, como busca de sentido. Isso deveter lugar na vida humana e ser umaforça estruturadora da sociedade.

Cortella — O educador PauloFreire, com quem tive a honra de tra-balhar por muito tempo, dizia que“se você não fizer hoje o que hojepode ser feito e tentar fazer hoje oque hoje não pode ser feito, dificil-mente fará amanhã o que hoje dei-xou de fazer”. Cito essa frase em meulivro A Escola e o Conhecimento 6, por-que ela menciona a idéia daquilo que

é necessário ser feito. Por outro lado, a sua fala é carregadade esperança, e o mesmo Paulo Freire dizia que é precisoter esperança, mas esperança do verbo “esperançar”, e nãodo verbo “esperar”. Esperançar é ir atrás, é se juntar, é nãodesistir. Concluo com uma frase sua, Leonardo, que é umadas que eu mais aprecio: “É a utopia que impede o absurdode tomar conta da História”. Esse absurdo descrito por vocêpode ser “esperançado” por nós. Você acredita nisso comocoisa primal?

Boff — Em seu livro A Pedagogia da Esperança 7, PauloFreire se dava conta de que a crise da civilização destruiu ohorizonte utópico. As pessoas não sabem para que vivem, queencaminhamento dar ao trabalho, à profissão, e por isso se

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“Os sistemas mundiaisquerem nos reduzir

a galinhas consumistas eadaptadas a seus galinheiros,

enquanto nós temosuma águia dentrode nós e precisamos

dar asas a ela.”

voltam ao desfrute destrutivo — “a vida é curta, então vamosdesfrutar” —, como se fossem a última geração. Temos depensar e entender nossa existência como um fenômenoquântico. A física quântica diz que o principal da nossa reali-dade é o caráter virtual dela. A realidade está carregada demil possibilidades e nós realizamos nossa trajetória em algu-mas delas. Somos muitos dentro de nós. E o importante na

ser um consumidor cuja principal característica seja ser ci-dadão. Percebo que a fragilidade do ser humano, ameaçadopela perda do trabalho, pela perda do emprego e peloconsumismo, leva-o a uma sensibilidade maior para aquiloque está fora dele, para o que diz respeito ao outro, ao soci-al, ao ambiental. Vemos nas ONGs e nos movimentos sociaisessa preocupação com o outro, com o cuidado, com o aco-

vida é fazer que esses “muitos” apare-çam, que dialoguem e que a gentepossa ser muitas coisas. Há um espa-ço enorme para a esperança, para ofuturo, para além daquilo que faze-mos concretamente. Tentei trabalharisso numa metáfora — a águia e a ga-linha. Hoje, os sistemas mundiais que-rem nos reduzir a galinhas consu-mistas e adaptadas a seus galinheiros,enquanto nós temos uma águia den-tro de nós e precisamos dar asas a ela,um sonho maior, a capacidade de ul-trapassar limitações, ousar violar ta-bus, criar novas possibilidades. É aíque nasce a utopia. A essência do serhumano é utópica. Não somos sim-plesmente aquilo que somos, masaquilo que podemos ser. E o trabalhoe a prática, no sentido antropológi-co, são o modo como eu plasmo mi-nha vida, como me autocrio, abrindo rumos, caminhos, no-vas esperanças. Não aqueles caminhos já traçados — ter famí-lia, filhos, profissão, aposentar-se e morrer enjoado da vida.Temos de morrer pacificados e alegres, agradecendo ao Uni-verso. Eu diria que a utopia é boa porque nunca será alcançadae por isso nos obriga a caminhar continuamente em direçãoa ela. É como as estrelas: jamais serão atingidas, mas nos des-pertam visões e iluminam nossas noites. A utopia nos impedede parar satisfeitos, levando-nos a retomar a caminhada con-tinuamente e a dar sentido à nossa existência.

Mattar — O senhor aponta a importância de o cida-dão cuja principal característica é ser consumidor passar a

lhimento. Sinto que há aí uma possi-bilidade de equilibrar o masculinopraticado dentro das empresas, quetrabalha a competitividade e a a-gressividade, com o feminino queestá na sociedade civil e nas organi-zações sociais, que trabalha o acolhi-mento e o cuidado. Vejo isso commuita esperança, fundada, mais doque na minha visão utópica, na rea-lidade que estamos vivendo. Gosta-ria de saber se sua visão coincidiriacom isso.

Boff — Concordo perfeita-mente com essa afirmação. Dois re-centes documentos da ONU, um daFAO 8 e outro do Pnud 9, dizem am-bos o seguinte: se a ameaça que pesasobre a humanidade é tão grande emtermos de fome e de má qualidadede vida, temos de dar mais poder po-

lítico às mulheres, para que elas, que têm muito mais capa-cidade de se acercar e cuidar da vida, ocupem cargos de de-cisão na humanidade. Também segundo o mesmo Pnud, sequisermos superar a cultura da violência, a cultura do des-perdício e da agressão sistemática à natureza, as mulheresdevem estar em todos os processos produtivos e de decisão,porque elas têm muito mais a lógica natural da complexida-de, a lógica da cooperação, e muito menos a lógica dacompetitividade. No primeiro momento, as mulheres forampara o trabalho, disputaram com os homens e quase ganha-ram, se é que não ganharam, em competência e empenho.Nesta segunda fase, elas partem não como quem compete,mas acentuam as diferenças e levam ao mercado de traba-

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lho as virtudes do feminino, que são o cuidado, a capacida-de de formar mais grupos, de cooperar, de ser menos com-petitivas e mais cooperativas, uma certa reverência com aspessoas. A presença da mulher ajuda a humanizar nosso pro-cesso produtivo, e isso deve ser um princípio de civilização.Deve ser levado como uma força nova, para que haja maisparceria homem-mulher, e possamos todos viver uma expe-riência mais profunda e global sobre o que significa ser hu-mano — homem e mulher —, tornando-nos uma humani-dade que deixará para trás os séculos de guerra que desu-manizaram homens e mulheres.

Mattar — Temos aqui a primeira pergunta da platéia:“Se a crise mundial é de sensibilidade, pois tratamos uns aosoutros como objetos, não seria a ética um importantemobilizador no sentido de fomentar a maturidade da civili-dade, que é apoiada pelo movimento de responsabilidadesocial empresarial? E a forma de concretizar essa intençãonão teria relação com projetos políticos ligados à garantiade direitos sociais? Como o senhor relaciona, nesse caso, aética com o direito social?”

Boff — Penso que estão surgindo inovações nas em-presas que descobrem a responsabilidade social, que bus-cam não apenas a qualidade de seus produtos, mas qualida-de de vida, que se preocupam com a inclusão de seus funci-onários para formar uma comunidade produtora. Isto é, vocêestá ali não só para trabalhar, mas também para se humanizar.Esse despertar é um sinal novo, está emergindo e criandolentamente um novo estado de consciência. Daqui a pouco,este será o imperativo categórico para todas as empresas, enão só para as ligadas ao Instituto Ethos. A empresa devesentir-se dentro do processo global da sociedade, tendo res-ponsabilidade ecológica, social, cultural, espiritual. Essa pers-pectiva está invadindo a política. O presidente Lula diz mui-tas vezes algo assim: “Como presidente, não sou umgerenciador de moedas, mercados e inflação; sou alguémque faz a política com o cuidado do povo”. É o que Gandhi10

dizia: “Política é um gesto amoroso para com o povo, é ocuidado com as coisas de todos”. Aí aparece a dimensão éti-ca da política, e não a dimensão gerencial, técnica. Nós nãogerenciamos nossa família, nós cuidamos de nossa família,

nós cuidamos de nossa pátria. Estamos apenas despertando,mas já se descortina um horizonte que nos dá esperança,porque a Terra quer ser salva. Ela grita. Nós não queremosmorrer e, antes inconscientemente, mas agora de modo cons-ciente, buscamos estratégias promissoras que permitam à vidafluir novamente.

Mattar — Outra pergunta da platéia, desta vez sobrea relação do filósofo Martin Heidegger com o nazismoe sobre o papel dos intelectuais com relação ao poder e àopressão.

Boff — É um assunto polêmico, mas, efetivamente,quando foi reitor da Universidade de Freiburg, em 1933,Heidegger usava uniforme marrom e começava as aulas fa-zendo a saudação nazista. Isso me foi confirmado pessoal-mente pelo filósofo Hans-Georg Gadamer, seu aluno, quan-do estive como professor visitante na Universidade deHeidelberg, em 2001. Mas esse fato não tira a grandiosidade,a profundidade desse filósofo, que está à altura de Tomás deAquino, Platão, Aristóteles. Ele nos ajudou a entender me-lhor a existência humana, o habitar poética e prosaicamen-te o mundo, o trato jovial com as coisas, e criticou o modeloda tecnociência, que é avassalador, que torna tudo objeto,torna as pessoas peças de uma máquina. É de grande impor-tância não perder a lição que ele nos legou. Quanto às rela-ções da intelectualidade brasileira com o poder cultural eeconômico, ela esteve, quase sempre, num casamento feliz,que eu diria até meio incestuoso, com o status dominante.Muitas das universidades são chocadeiras reprodutoras dosistema, formando os que vão levar adiante a máquina dadominação histórica que assola o povo. Há, porém, aquelefilão crítico, que pensa o Brasil com as raízes do Brasil. Masesse não ganhou hegemonia. O desafio, hoje, é fazer umpacto, uma nova aliança entre a inteligência e a miséria, entrea ciência e a periferia. Os intelectuais da geração de PauloFreire, os teólogos da Teologia da Libertação fizeram isso,com a opção pelos pobres — contra a pobreza e em favor desua libertação. Unimos nosso saber mais crítico e episte-mológico a um outro saber, que vem do sofrimento, da lutae da observação concreta da vida. Essa aliança faria a granderevolução que faz falta ao Brasil, porque somaria e criaria

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“O ser humano temracionalidade, e a razãonos permite mudar nossodestino, trocar a lógicadas coisas, superar odarwinismo social,

a mecânica da seleçãopelo mais forte.”

um outro intelectual, o que aprende do povo e acompanhao povo. O povo precisa do nosso saber e nós precisamos doque ele tem a nos ensinar. Dizer que o povo é ignorante éser ignorante. O povo sabe muito e tem sábias lições a nosdar, especialmente o nosso, que é extremamente criativo.E essa troca de saberes nos faria mais humildes, mais apren-dizes. Aliaríamos a enorme criatividade do povo brasileiro

partido do fraco e reconhecendo que ele tem direito a exis-tir, a estar incluído, que ele tem algo a dizer sobre as coisas epor isso viveu até agora. Acho que devemos fazer um racio-cínio extremamente crítico em relação às religiões, a come-çar pela católica, que é, no meu modo de ver, obscurantista,feita por celibatários patriarcais e machistas, que nos fórunsinternacionais se unem aos grupos mais reacionários do ce-

com a notoriamente reconhecidainventividade de nossos cientistas,poetas e cantores. Estamos acumu-lando uma massa crítica importantepara dar um salto de qualidade semo qual o Brasil não vai dizer-se asi mesmo, não vai pensar-se a si mes-mo. Chegamos a tal ponto de ma-turidade que precisamos de inte-lectuais e teóricos que pensem emnosso país considerando suas raízesúltimas, sua totalidade, e não apenasas elites, já globalizadas. Devemosenfrentar esse desafio. Que as em-presas que incorporam esse saberacumulado valorizem o mais possí-vel todo o saber que esse povo traz,às vezes desconhecido, que podeser não só humanizador, mas atémais eficaz para manter uma boaprodução.

nário mundial a fim de vetar todasas políticas mais racionais de planifi-cação da família, de estabilidadepopulacional da humanidade. Deve-mos usar a racionalidade, mas umaracionalidade carregada de afeto esabendo do limite ecológico da Ter-ra, que tem, sim, limites, como todasas coisas. Se queremos sobreviver, de-vemos criar essas políticas que equi-libram a população humana que aTerra pode suportar sem se afundar.O último relatório sobre o estado doplaneta dedica um longo capítulo so-bre a população, o qual demonstraque, nos locais em que se introduziua educação familiar e se colocou amulher como gerenciadora do pro-jeto, a população caiu naturalmen-te. Aliás, nos projetos de ajuda, nãose deve dar dinheiro ao homem, por-

que ele repassa apenas uma pequena parte para a família econsome o resto com os próprios entretenimentos, bebidaetc. É dar para a mulher, que logo aplica em comida, educa-ção e na preservação da família. E ela, educada, naturalmentelimita a natalidade. Eis aí mais um motivo para colocarmosas mulheres no centro das decisões.

Mattar — A próxima pergunta é a seguinte: “Os gregoscultivavam o belo, o verdadeiro, o bom e o útil, nessa or-dem. Hoje, colocamos o útil em primeiro lugar. O que po-demos fazer para retomar nossos valores mais rapidamente?O senhor disse que começar por nós mesmos é o início. Mascomo envolver toda a sociedade?”

Mattar — Eis a terceira pergunta da platéia: “Uma dasquestões ecológicas fundamentais é o aumento demográfico.Como o senhor vê essa questão?”

Boff — O aumento demográfico é de fato preocupante.Há biólogos, especialmente franceses e alemães, que vêemnele um indício do fim da espécie. Fazem comparativos comoutras espécies que, quando se aproximam de seu fim, co-meçam a se multiplicar exponencialmente. Mas o ser huma-no tem racionalidade, e a razão nos permite mudar nossodestino, trocar a lógica das coisas, superar o darwinismo so-cial, a mecânica da seleção pelo mais forte. A razão, aafetividade e o cuidado vão contra isso e acabam tomando

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“Não há guerra santa,nem guerra justa,

nem guerra humanitária,porque toda guerra

é uma agressãoà humanidade.

Não temos alternativasenão a paz.”

Boff — Penso que aqui devemos incorporar a lição quevem da “teoria da borboleta”. Trata-se de uma derivação dafísica quântica que diz que tudo está relacionado a tudo; seuma borboleta farfalhar suas asas aqui em São Paulo, esse far-falhar poderá produzir uma tempestade com raios e trovõesem cima do Pentágono, lá em Washington. Ou seja, estamosligados pelos imensos elos da corrente da vida. Portanto, o

dicotomias, as contradições que nos habitam e que tambémregem os valores da economia das empresas, que estaria umbom começo para a mudança?

Boff — Sim, a maior contribuição que o grande pen-sador Ikeda deu à humanidade e aos empresários japoneses— e tantos deles vão ao seu mosteiro para refletir nos fins desemana — é como com-viver, como ser sinérgico. O ser hu-

importante é começar e, se nossa de-cisão for acertada, no sentido de pre-servar a vida, de reforçar os laços dainclusão, de favorecer o relaciona-mento de todos com todos, aconte-cerá o que ocorre num estádio de fu-tebol: quando alguém se levanta egrita “ola”, ouve-se um segundo gritoe, de repente, o estádio todo está gri-tando “ola” e se levantando. Começacom um e contamina todo mundo —é o efeito borboleta. Temos de acre-ditar nisso. Uma tempestade podeapagar os incêndios mais devastado-res da Amazônia. E o que é uma tem-pestade? É uma gota somada a outragota, que se somam a milhões, bilhõesde outras gotas e então caem, apagan-do os incêndios. É preciso acreditarna força da semente que guarda a ma-jestade do pinheiro ou a castanheirafrondosa. A semente pode ser cada um de nós. Somos seresseminais, seres comunitários. É importante reforçar a criaçãodessa onda de benevolência para com a vida e para com aTerra. Chega um ponto em que ninguém a contém, e ela rom-pe todas as barreiras e inaugura um novo estado de consciên-cia, uma nova fase da humanidade. Então, sim, seremos maisplenamente humanos.

Mattar — A última pergunta começa com uma citaçãodo líder budista Daisaku Ikeda11: “Fazer a paz e a justiça socialé saber conviver com as diferenças”. Esse mesmo filósofo ja-ponês prega a força da revolução humana a que o senhor sereferiu. Não seria aí, convivendo com as diferenças, as

mano é a coexistência das contradi-ções. Somos dementes e simultanea-mente sapientes. Somos altamentedestrutivos e ao mesmo tempo cui-dadosos, cordiais. O importante é de-cidirmos concretamente a qual des-sas forças vamos dar hegemonia. Querealidade vamos iluminar mais emnós para permitir que ela faça a His-tória? A opção, agora, é querermostudo o que de luminoso, de coope-rativo, de solidário, de cuidadosoexiste em nós, e intensificar essas for-ças, que são extremamente sãs, paraque curem as dimensões doentiasque também habitam em nós. Nãoqueremos eliminá-las, pois isso seriacortar o ser humano. Queremosintegrá-las, para que nada se percaem nós e tudo se torne fonte de di-namismo para cima e para a frente.

A história humana é extremamente dramática. É uma histó-ria de bondade, de construção de um convívio civilizado, deascensão a formas mais altas de comunicação. E, simultane-amente, uma história de violência e de guerras — só no sé-culo XX matamos 200 milhões de pessoas em conflitos ar-mados. Mas desta vez não podemos fazer as guerras que fazí-amos antes, porque todas elas são de tal maneira destrutivasque, como dizia Albert Einstein, “não sei como será a próxi-ma guerra nuclear; o que sei é que a guerra seguinte seráfeita com pedras e bastões”. Será a humanidade regredida àbarbárie e sobrevivendo como gente da pedra lascada. O ca-minho da guerra não é mais caminho nenhum. Não há guer-ra santa, nem guerra justa, nem guerra humanitária, porque

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toda guerra é uma agressão à humanidade. Não temos alter-nativa senão a paz, tão bem definida pela Carta da Terra como“a plenitude criada por relações corretas consigo mesmo,com as outras pessoas, outras culturas, outras vidas, com aTerra e com a totalidade maior da qual somos parte”. Se pes-soalmente mantenho essa relação sempre articulada, sem-pre dinâmica, o resultado é a paz, o bem pelo qual ansiamoshoje e que pode ser criado coletivamente. O caminho para apaz é a paz mesmo. A paz não é apenas meta, mas tambémmétodo. Só meios pacíficos podem gerar a paz, a paz sonha-da por Kant, como a virtude primeira da globalização, a pazperpétua entre os povos, com as virtudes da hospitalidade,da acolhida, da tolerância, da convivência nas diferenças eda comensalidade — sentarmos juntos para comer juntos,agradecendo a generosidade da Criação.

Mattar — Muito obrigado, frei Boff. Saímos hoje ali-mentados para a vida, na certeza de que a paz é um processode respeito à fragilidade humana, e que, de fato, o novo nomeda paz, como disse o papa João XXIII, é justiça social, umajustiça baseada na solidariedade positiva, na compaixão, nocuidado, no acolhimento, na delicadeza... Para encerrar estasessão, compartilho com vocês algo daquilo que nossos índi-

os nos ensinam e infelizmente descartamos: as palavras akatue yandê, das quais nos apropriamos lá no Instituto Akatu,criado pelo Ethos. Akatu é uma linda palavra tupi.O termo a quer dizer “semente” e “mundo”, porque, na cul-tura tupi, a semente contém o registro das árvores e da flo-resta e, portanto, contém o mundo. E a semente é aquiloque nasce e renasce, como é necessário que façamos — cui-dar e acolher o mundo para que ele possa nascer e renascer.Katu quer dizer “bom” ou “melhor”. Akatu é, portanto, “umasemente boa para um mundo melhor”. A segunda palavraé yandê. O tupi têm três palavras para “nós”: a primeiraé um pequeno “nós”, que é oré ; a segunda é um grande “nós”,que, quando masculino, é yandé e, quando feminino, yandê.O que Leonardo Boff nos trouxe, e que foi aqui corrobo-rado pelo Mário Sérgio Cortella, pela Sueli Carneiro epela Maria Rita Kehl, é uma viagem em que estamos nosaventurando e na qual cada um de nós é akatu, uma semen-te boa para um mundo melhor. Que possamos criar o yandê,um grande “nós” feminino, e não apenas das mulheres,mas também dos homens, incorporando essa dimensãodo feminino e trazendo o equilíbrio entre o feminino e omasculino, que poderá efetivamente construir a paz quecuida do humano.

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1 O físico e ecologista austríaco Fritjof Capra é um dos fundadoresdo Center for Ecoliteracy (Centro de Eco-Alfabetização), emBerkeley, Califórnia, nos EUA, instituto que divulga o pensamentoecológico nas redes de ensino. É autor, entre outras obras, de OTao da Física (1975), O Ponto de Mutação (1982) e A Teia da Vida(1996), best-sellers que se tornaram referência do pensamentocientífico, social e filosófico contemporâneo (N. do E.).

2 Carl Sagan (1934-1996), astrônomo e astrofísico americano, foi uminfluente divulgador da ciência (N. do E.).

3 O filósofo alemão Jürgen Habermas (1929-) é um dos expoentesda Escola de Frankfurt, corrente filosófica iniciada em 1923 noInstituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt, na Ale-manha (N. do E.).

4 Tido por muitos como o maior pensador do século XX, MartinHeidegger (1889-1976) lançou O Ser e o Tempo (Sein und Zeit), suaprincipal obra, em 1927 (N. do E.).

5 O sociólogo Herbert de Souza (1935-1997) foi criador do InstitutoBrasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e da Ação pelaCidadania contra a Miséria e pela Vida (N. do E.).

NOTAS

6 Cortella, Mário Sérgio. A Escola e o Conhecimento. São Paulo: Cortez:Instituto Paulo Freire, 2000.

7 Freire, Paulo. A Pedagogia da Esperança: um Reencontro com a Pedago-gia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

8 FAO — Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Ali-mentação (N. do E.).

9 PNUD — Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento(N. do E.).

10 O líder pacifista indiano Mohandas Gandhi (1869-1948), conheci-do como Mahatma (“grande alma”), liderou o movimento de de-sobediência civil que culminou na independência da Índia do do-mínio britânico (N. do E.).

11 O filósofo e escritor Daisaku Ikeda (1928-) é presidente da SokaGakkai International (SGI), associação budista de origem japone-sa registrada desde 1983 como ONG do Conselho Econômico eSocial da ONU. A principal atividade da SGI é promover a paz, aeducação e a cultura em todo o mundo (N. do E.).

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PERFIL DOS PARTICIPANTES

Leonardo BoffNascido em 1938, em Concórdia, Santa Catarina, o teó-

logo Leonardo Boff pertenceu à Ordem dos Frades Meno-res Franciscanos de 1959 a 1992. Doutorou-se em teologia efilosofia em 1970, pela Universidade de Munique, na Ale-manha, e é doutor honoris causa em política pela Universida-de de Turim, na Itália, e em teologia pela Universidade deLund, na Suécia. Com outros teólogos, formulou a Teologiada Libertação, movimento que implicou revisões profundasna Igreja Católica. Em 1992, por pressão do Vaticano, aban-donou as atividades eclesiásticas. No ano seguinte, prestouconcurso e foi aprovado como professor de ética, filosofiada religião e ecologia na Universidade do Estado do Rio deJaneiro (Uerj). Foi professor visitante em várias universida-des, como Harvard, Basiléia e Heidelberg. Autor de mais de60 livros sobre teologia, espiritualidade, filosofia, antropo-logia e mística, recebeu em 2001 o Prêmio Right Livelihood,o Nobel da Paz alternativo.

Helio MattarFormado em engenharia de produção, com mestrado

em planejamento econômico e doutorado em geren-ciamento e engenharia industrial, é diretor-presidente doInstituto Akatu pelo Consumo Consciente e conselheiro doInstituto Ethos.

Maria Rita KehlÉ doutora em psicanálise, jornalista, ensaísta e poeta,

tendo publicado, entre outros, o livro Sobre Ética e Psicanálise,de 2002.

Sueli CarneiroFormada em filosofia, é fundadora e diretora-executi-

va do Geledés — Instituto da Mulher Negra, articulista dojornal Correio Braziliense, pesquisadora do CNPq e conselheirado Instituto Ethos.

Mário Sérgio CortellaÉ consultor organizacional no campo da ética, da edu-

cação e da gestão do conhecimento e professor-associadodo Departamento de Teologia e Ciências da Religião e docurso de pós-graduação em educação da Pontifícia Universi-dade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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