Upload
werther-de-fatimah-octavius
View
26
Download
3
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Artigo - Mestrado - Direito Penal UERJ
Citation preview
A EVOLUO DOGMTICA DO ESTADO DE
NECESSIDADE E O PROBLEMA DA PONDERAO
DOS INTERESSES EM CONFLITO
Werther Ramalho
1. INTRODUO
O estado de necessidade, causa excludente da ilicitude positivada nos artigos 23, I e 24, caput
e pargrafos do nosso atual diploma repressivo, uma complexa construo doutrinria, reveladora
das truncadas relaes entre o Direito Penal, em suas pretenses de disciplinar as situaes da vida,
e os demais sistemas ticos normativos, igualmente apresentados como modelos de avaliao de
condutas sociais, e nunca como meros exerccios de especulao.
Segundo o Cdigo Penal brasileiro de 1940, em seu Art. 24, caput, com a redao reformada
da parte geral em 1984, considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de
perigo atual, que no provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito prprio ou
alheio, cujo sacrifcio, nas circunstncias, no era razovel exigir-se. O presente trabalho ter como
primeiro objetivo estabelecer o terreno no qual tal construo fundada, alm de investigar a
decomposio dos elementos dessa presente frmula.
Em um segundo momento, o nosso atual modelo ser contraposto aos modelos adotados em
pases como Portugal, Espanha, Alemanha, Argentina, Frana, alm dos pases do sistema common
law. Esta interao nos revelar diversas formas de integrar e categorizar conjuntos de situaes que
historicamente invocaram, em muitos desses sistemas, tratamentos relativamente autnomos, como,
por exemplo, as figuras justificadoras do conflito de deveres e do estado de necessidade defensivo,
ambas com raiz privatista.
Para alm do exame da ilicitude, categorias como ao e omisso e consideraes acerca das
concepes normativas da culpabilidade igualmente revelaro pontos de interesse para a edificao
dogmtica do estado de necessidade, em suas vertentes legal e extralegais.
Por ltimo, esse trabalho aprofundar o estudo dos fatores ponderados na resoluo dos
conflitos e suas sempre presentes interaes com os modelos externos tico-normativos deontolgicos
e teleolgicos. Tal tarefa no perde de vista a pretenso de ser sistema da dogmtica penal, no
buscando tambm, a partir do presente estudo, fomentar modelos decisrios exageradamente abertos
que coloquem disposio do juzo um exerccio arbitrrio de integrao dos valores em disputa.
preciso, porm, ter em nota que muitas das situaes trazidas so conjunturas no a toa
dramticas genericamente rotuladas como hard cases , traduzindo-se desde problemas debatidos
na antiguidade, como a tbua do nufrago, proposta por Carnades de Cirene, at questes
contemporneas como a responsabilidade mdica e sua relao com a gesto de meios finitos de
manuteno da vida; a relao de agentes do Estado na mediao com grupos terroristas; alm do
aproveitamento do estado de necessidade em situaes excessivamente normativas onde o no poder
de outro modo evitar se torna embaraoso. De toda forma, o homem situado se encontra sempre em
um duplo conflito, exigindo do legislador e da sociedade que tais construes no percam de vista tais
perplexidades e o fim a que se destinam.
2. O ESTADO DE NECESSIDADE
2.1 Algumas Consideraes em Torno do Estado de Necessidade
As circunstncias sociais hoje abrangidas por qualquer uma das modalidades do estado de
necessidade foram e so objeto de investigaes diversas para alm do mundo do Direito. Desde a
antiguidade, - onde compreenses tico-normativas inquiriam quais seriam os deveres de um homem
virtuoso ou ainda quais aes podiam se esperar de tal homem - um conjunto de situaes-problemas,
umas factveis, outras nem tanto12, vem capturando a ateno do homem em sociedade.
Esse estudo, em primeiro lugar, admite a filiao ideia de que uma sociedade pode ser
descrita a partir da forma como ela delibera na resoluo de seus problemas e o Direito Penal nunca
esteve aparte desse debate, - ainda que uma compreenso analtica e garantista do crime seja uma
concretizao recente - uma vez que o poder punitivo sempre possuiu uma ntima relao com alguns
dos valores situados em muitos desses conflitos. O estado de necessidade, ento, deve ser situado e
investigado dentro da interao dessas categorias, naquilo o que aproxima a tipicidade da
antijuridicidade, na relao desta com as categorias justificantes (excludentes da ilicitude) e tambm
na aproximao entre todas estas ltimas.
A interao entre a tipicidade e a antijuridicidade no curso de maturao dogmtica promoveu
diferentes perspectivas. A partir da descoberta de elementos subjetivos e normativos do tipo promovida
1 Um exemplo por excelncia posto em debate o dilema da tbua de Carnades onde um nufrago
nadando se apropria de uma tbua na qual s aguentaria o peso de um homem e em um momento seguinte violentamente desapossado por um segundo homem que assim sobrevive matando-o. Carnades no deixou nenhum escrito, porm alguns de seus problemas chegaram at ns a partir de outros estudos morais. Ccero em De Officis (3,89) faz uma referncia ao exemplo de Hecato de Rodes, presente em uma obra perdida, onde discutido o valor moral do homem que deixa de alimentar os seus escravos em razo dos preos vis encontrados no mercado, para depois estabelecer uma comparao com o homem que se encontra em uma tempestade precisando escolher entre sacrificar o seu cavalo premiado ou alguns escravos sem valor no mercado. O que se deve ser retirado desses exemplos que questes como a valorao qualitativa e quantitativa de vida, a aferio de condutas anteriores ou de algumas relaes especiais do agente envolvido j eram objeto de profundo debate.
2 No mais, o dilema de Carnades e a segunda proposta de Hecato, ganharam forma respectivamente em situaes reais como os casos Mignonette (Her Majesty The Queen v. Tom Dudley and Edwin Stephens) e William Brown (United States v. Alexander Holmes). Clebres reflexes acerca dessas situaes limites foram trazidas no expositivo artigo O Caso dos Exploradores de Caverna de Lon Fuller. Grandes obras literrias como Os Miserveis de Victor Hugo e principalmente Lord Jim de Joseph Conrad igualmente trazem pragmas parecidos. Em Lord Jim, o personagem, junto com os demais membros da tripulao, abandona um navio de peregrinos, acreditando salvar sua vida de um iminente naufrgio que no se concretizou.
pelas reflexes de Fischer, Hegler, Mayer e Mezger, a proposta de um tipo objetivo no valorativo como
concebido por Beling passou a sofrer resistncia pela consistncia do argumento, nas palavras de
Roxin, de que em muitos casos, no a culpabilidade (nesse momento sob uma concepo psicolgica),
mas sim o injusto do fato depende da direo da vontade do autor, ou seja, momentos subjetivos, intra-
anmicos3, distintos do dolo. O exemplo por excelncia est nos toques em delitos sexuais quando
contrapostos aos inevitveis contatos corporais em procedimentos mdicos.
O reconhecimento de tais elementos em sede de tipicidade despertou uma srie de reflexes
na obra de Mayer4 acerca da natureza dos elementos normativos do tipo. Mais especificamente indaga-
se qual a relao entre os referidos elementos e a ilicitude, ou ainda, qual a relao da prpria
tipicidade com a ilicitude. Se a princpio, o Autor partiu de uma concepo onde a tipicidade era a ratio
cognoscendi da ilicitude, isto , sua aferio representa um mero indcio denotador da mesma, o exame
dos elementos normativos o fez chegar a uma opinio contrria, onde agora os mesmos seriam tambm
integrantes da ilicitude (ratio essendi), j antecipando um juzo de valor.
Seguindo esse processo de aproximao, foi possvel compreender o contexto da apario da
teoria dos elementos negativos do tipo, que partiu da radicalizao da aproximao das categorias
tipicidade e ilicitude e de sua concluso que os elementos do tipo presentes na primeira cumprem a
mesma funo que os elementos justificantes, s havendo uma integrao total na conjuno
complementadora de ambos, e isto apenas em razo de uma tcnica legislativa trazendo para a Parte
Geral um conjunto de elementos que no precisariam ser repetidos em cada tipo penal da Parte
Especial.56
Enfim, o que se pretende com esse excurso trazer a lume as diversas formas como o Direito
Penal concebe algumas categorias de aparentes ilcitos, mais especificamente os virtuais ilcitos agora
justificados. Nesse sentido, em sede doutrinria, ampla maioria partiu da concepo de que uma
conduta tpica s no ser ilcita se entrar em jogo uma das causas justificadoras, excludentes da
ilicitude.7 Porm, historicamente, em nmero absolutamente menor, desenvolveu-se o raciocnio de
que em determinados conflitos excepcionais, face os quais no se poderia deduzir a preferncia por
um dever ou outro, o Direito assim naufragaria em sua misso de determinar um critrio racional justo
ou certo.8 Para esses autores, estaramos diante de uma situao paradoxal onde no de poderia
exigir nada alm de uma deciso de conscincia pessoal.
Esta segunda postura, muito embora autores como Gallas e von Weber no tenham defendido
expressamente a manuteno do rtulo dessas condutas como ilcitas, implica em uma verdadeira
3 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I, Ed. Thomson Civitas. Segunda Edio.
1997. pg. 280 4 Ibid. pg. 281 5 Ibid. 283-284. 6 Alm do inevitvel fomento ao estudo autnomo dos elementos das causas justificantes. 7 Ibid. 567. 8 FERREIRA DA CUNHA, Maria Conceio. Vida Contra Vida Conflitos Existenciais e Limites
do Direito Penal. Coimbra Editora. 2010. pg. 166-168 e ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I, Ed. Thomson Civitas. Segunda Edio. 1997. pg. 567
renncia do Direito a orientar as referidas aes, como a criao de uma rea livre de Direito,9 sendo
esta manifestamente defendida por Fichte.10 Os exemplos, por excelncia, so encontrados nas aes
em estado de necessidade envolvendo a ponderao de vidas de ambos os lados, nos conflitos
envolvendo comunidades de perigo e naqueles onde encontram-se dois deveres comissivos
equivalentes.11 Enfrentaremos estas questes em momentos oportunos.
Assim, toda a anlise do conceito de estado de necessidade precisar levar em conta a
irrenunciabilidade do Direito de orientar as aes realizadas em sociedade, sem se furtar de oferecer
respostas criteriosas tambm para estas situaes limites, que, ao contrrio do que o senso comum
diz, so mais comuns do que se espera e dividir o mundo jurdico em fundamentos diversos.
2.2 Conceito e Fundamento do Estado de Necessidade
Conforme j apresentado, o estado de necessidade, no aparte os profundos debates ticos e
sob concepes diversas de justia, nunca esteve dissociado do fenmeno do poder sancionador
estatal. Diferentes diplomas civis e repressivos fundamentavam hipteses particulares do que eram
entendidas algumas dessas situaes enquanto o estado de necessidade como categoria genrica
tambm era encontrado em diplomas repressivos. Em uma inicial e apertada definio, ainda em uma
etapa pr-dogmtica, j se entendia figurar em estado de necessidade aquele que agia delinquindo ou
violando um direito, na salvaguarda de evitar um mal maior, certo e no evitvel de outra maneira.12
Como veremos, essa definio no restou definitiva13, e atravs de diversas redaes, atuais
ou no mais vigentes, assumiu contornos e hipteses de incidncia diferentes. A construo do que se
entende como o moderno estado de necessidade penal hoje segue, porm, tendo que observar
necessariamente as categorias constitudas na teoria geral do delito, no em razo de um puro
artificialismo normativo, mas sim a fim de podermos melhor entender globalmente fenmenos como a
ilicitude e a reprovabilidade de algumas dessas aes.
Retomando anlise desse processo histrico, na redao original do Cdigo Penal alemo
de 1871, o estado de necessidade foi positivado em dois artigos distintos (52 e 54) sob uma forma
parecida com o atual estado de necessidade exculpante alemo, porm com o alcance bem mais
restrito.14 Em 1900, com a entrada em vigor do Cdigo Civil alemo, muitas contribuies enriqueceram
9 Ibid. 168. 10 JESCHECK, Hans-Heinrich. WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal. Parte General.
5 Edicion. Comares Editorial. pg. 379. 11 Ibid. 567 12 Assim, o Cdigo Criminal do Imprio em seu Art. 14 j previa uma hiptese de crime
justificvel quando fr feito pelo delinquente para evitar mal maior, reunindo os fatores certeza do mal, que se propz evitar, falta absoluta de outro meio menos prejudicial e probabilidade da efficacia do que se empregou.
13 Muito embora esta definio no seja de todo criticvel, inmeras sero as questes em torno de seus elementos.
14 Dizia o 52, em uma livre traduo, que no h ofensa criminal quando o perpetrador est conectado por uma fora ou ameaa irresistvel inafastvel de outra forma contra sua vida ou sade ou
o debate, e para alm das situaes especficas j regulamentadas nas leis civis especiais, passou-se
a prever autonomamente a defesa frente a coisas (o estado de necessidade defensivo civil) e o estado
de necessidade agressivo civil como hipteses genricas.15
A relao do estado de necessidade penal, nesse momento, com as demais categorias que
surgiram na legislao foi maturada forma na qual os estados de necessidade civis agressivo e
defensivo eram justificantes (os ento 228 e 904 do Cdigo Civil alemo) enquanto as hipteses
previstas no Cdigo Penal apenas isentavam o agente de pena, excluindo sua culpabilidade.
A situao nesse momento, porm, no era satisfatria, uma vez que os existentes estados de
necessidade justificantes, em sua origem privada, se adequavam apenas aos casos envolvendo bens
patrimoniais, no respondendo s situaes onde os interesses em conflito violados fossem diversos.16
Exemplos destas situaes so encontrados pela doutrina em diversos casos cotidianos como o aborto
necessrio para salvar a vida da gestante e as violaes de regras de transito em um resgate de
emergncia.
Assim, no Direito Penal moderno, o estado de necessidade justificante surge como uma
hiptese extralegal, partindo do princpio, para muitos universal em todas as causas justificantes, de
que na coliso de inevitvel de interesses, mais socialmente proveitoso que o sujeito atue conforme
o interesse mais valioso.17
A respeito dos fundamentos do estado de necessidade, inmeras foram as tentativas de
estabelecer uma base normativa. Entre elas, um primeiro conjunto de teorias atribua a existncia de
um s fundamento comum a todas as causas justificantes. Sendo o comportamento justificado visto de
forma distinta do comportamento ilcito, escusvel ou no, em razo de no apresentar uma falta de
motivao jurdica dominante18, esta poderia encontrar guarida em uma ideia fundamental.
Em uma pequena enumerao, encontramos ideias como o emprego do meio correto para a
finalidade correta, a ponderao na coliso de valores, a considerao da pretenso a um bem
existente na situao concreta e a regulao socialmente correta de interesse ou contra-interesse.19
Por outro lado, um segundo grupo de teorias buscou fundamentar as causas justificantes sob
fundamentos diversos. Contudo, no so poucas as formas e modelos, e seus contornos apresentam
consequncias prticas tanto no alcance das causas de justificao quanto na relao de conflito,
prevalncia ou subsidiariedade entre elas.
de pessoa de sua famlia, sendo esta compreendida como parentes ascendentes, descendentes, naturais ou adotivos, cnjuges, irmos e seus cnjuges e noivas. J o 54 trazia hipteses de excluso do crime para situaes de legitima defesa prpria ou de parentes.
15 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I, Ed. Thomson Civitas. Segunda Edio. 1997. pg. 671.
16 Ibid. 672 17 Ibid. 18 JAKOBS, Gnther. Teoria do Injusto Penal. In. Tratado de Direito Penal. Editora Del Rey
Belo Horizonte. 2009. pg. 495-496. 19 Ibid. 496.
Um primeiro modelo, seguindo as lies de Jakobs, escorou as causas justificantes nos
seguintes valores: (a) um princpio da responsabilidade, onde a justificao a consequncia de um
comportamento organizatrio da vtima (presente na legitima defesa e no estado de necessidade
defensivo); (b) um princpio da definio do interesse por parte da prpria vtima, onde essa tem o poder
de definir a interveno como vantajosa ou, pelo menos, aceitvel (presente no consentimento); e, por
ltimo, (c) um princpio da solidariedade, onde a vtima exigida no interesse de outras pessoas,
sobretudo da coletividade (presente no exerccio regular de um direito, no cumprimento de deveres
funcionais e no estado de necessidade agressivo).
Especificamente para o estado de necessidade, Mir Puig enumera as formas como sua
especfica fundamentao caminhou em trs teorias: (1) uma teoria da adequao que parte da ideia
de que a ao realizada em estado de necessidade no conforme ao Direito, retomando j
apontada rea livre de Direito porm no permitindo uma punio apenas por uma razo de
equidade; (2) uma teoria da coliso (ou conflito), sustentando, que o fundamento do estado de
necessidade radica no maior valor objetivo que teria para o Direito a preservao dos interesses
salvaguardados em comparao com aqueles sacrificados, porm, ao contrrio da posio anterior, tal
ao deveria ser considerada objetivamente correta e justificada, e no s desculpada; e, por ltimo,
(3) uma teoria da diferenciao, sincrtica, na qual o critrio psicolgico assinalado na primeira teoria
e o princpio do interesse prevalente indicado na segunda, na verdade, apontariam conjuntos de
situaes de incidncia diversa, implicando consequncias igualmente dspares. 20
Comeando com a teoria da adequao, em sua origem kantiana, o estado de necessidade foi
concebido de pronto apenas como um pretenso direito, distinguindo o seu fundamento da legtima
defesa, onde a proteo de uma vida ou sua integridade contraposta a uma agresso ilcita.21 daqui
de onde partem alguns autores da dogmtica penal, muito embora tal questo tenha sido objeto de
opinies contratualistas anteriores semelhantes.22 Kant considerava que no poderia haver lei penal
que condenasse algum a morte por ter matado algum inocente para sobreviver, uma vez que essa
norma seria incapaz de produzir o efeito desejado de dissuadir o agente com um mal incerto (uma
condenao penal) em face de um mal certo (o perigo imediatamente exposto).23
A teoria do conflito, encontrando guarida nas palavras de Hegel, significou uma mudana de
base referencial do estado de necessidade, no sendo mais a equidade, e sim o exerccio do prprio
direito. Partindo do exemplo da preservao da vida (ou do interesse em sobreviver) em sacrifcio da
propriedade alheia, o filsofo alemo observa que de um lado h a destruio completa da existncia
20 MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal. Parte General. Octava Edicin. Editora Reppertor,
Barcelona. 2010. pg. 455-456. 21 De toda forma, em ambos os casos, discute-se o uso o do vocbulo direito quando o
interesse enquadrado o de preservao da prpria vida, o que gera toda a sorte de consideraes como a existncia de deveres para consigo, concepes de virtude e a questo da disponibilidade da prpria vida.
22 HOBBES, Thomas, Leviat, Captulo XIV, descreve que, a partir do estado natural de guerra de todos contra todos, no havendo nada, de que possa lanar mo, que no possa servir-lhe de ajuda para a preservao de sua vida contra seus inimigos, segue-se daqui que numa tal condio todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros.
23 KANT, Immanuel. A Metafsica dos Costumes, Segunda Edio Edipro. 2008 pg. 81-82.
corprea (ou externa) e de outro h a limitao parcial e limitada da autonomia/liberdade de algum,
assim uma leso particular de um estado de posse no pode violar o direito de um homem, ou sua
prpria capacidade de ter direitos.24
Nesse sentido, ainda que muitas outras sejam as consideraes a serem feitas em momentos
oportunos, passamos a revisar a construo do estado de necessidade a partir de todas as j
realizadas: (1) dogmaticamente edificado durante uma concepo psicolgica da culpabilidade,
isentava o agente de pena; (2) com a refutao de um tipo puramente objetivo e o ulterior
desenvolvimento de um conceito final da ao e normativo da culpabilidade foi construdo um cenrio
de tenso na anlise de seus elementos; (3) seguindo a evoluo do estado de necessidade civil, que
fugia da regulamentao especfica de conflitos pontuais, ao passar a prever uma norma geral de direito
de necessidade, dadas a fragmentariedade e subsidiariedade do Direito Penal por um lado e a unidade
do ilcito por outro, o estado de necessidade definitivamente assumiu o seu lugar na teoria analtica do
delito; (4) e com as reflexes acerca de todos os conflitos de ordem no necessariamente patrimonial,
por uma questo de analogia, ganhou terreno a necessidade de regulamentar especificamente
hipteses penais de estado de necessidade justificante, mais abrangentes e com elementos prprios.
Assim, reunindo essas consideraes e retomando anlise das teorias que buscaram
estabelecer uma base fundamental para o estado de necessidade, foi possvel realizar diversas
observaes:
Em primeiro lugar, no que toca a fundamentao do estado de necessidade, plausvel a
afirmao de que as diversas situaes justificadas nos ordenamentos jurdicos contemporneos, de
forma geral, no so inspiradas sob os mesmos valores, havendo, porm, uma aproximao maior
entre grupos especficos. A defesa de tal posio contudo exigiria uma anlise mais abrangente das
demais causas justificadoras, sobretudo daquelas mais distantes do objeto desse trabalho. De toda a
forma, ideias como utilidade, presente no conflito de interesses e na avaliao de um valor
socialmente preponderante, e solidariedade, presente nas duas abordagens aqui trazidas, nos
parecem razoveis se a finalidade for descrever um estado de necessidade justificante.
Em segundo lugar, especificamente no que toca o contedo do estado de necessidade,
observamos no modelo do autor espanhol que a teoria da diferenciao, ulterior s demais, nos parece
correta em sua totalidade, qual seja, o estado de necessidade caminhou sobre uma base psicolgica
em um primeiro momento (1), reconheceu, no caminho de seu desenvolvimento e na anlise de seus
prprios elementos e do ilcito, (2 e 3) que, na realidade, (4) estamos diante de reas de incidncia
(conjuntos de casos) distintos.
Dessa forma conclumos que:
1 - O estado de necessidade justificante, desenvolvido em um momento ulterior ao estado de
necessidade exculpante e hoje presente em quase todos os sistemas jurdicos, inclusive de matrizes
diferentes, parte do princpio da prevalncia do interesse/valor mais valioso, da forma como Hegel
24 HEGEL, G.W.F. Philosophy of Right. Batoche Books 2001 pargrafo 127 em todas as
edies.
exemplificou no conflito vida versus propriedade. Para alm disso, Figueiredo Dias descreve que
estamos diante de um instituto sob fundamentao dual, por um lado de utilidade social, traduzida na
maximizao de interesses ou bens jurdicos, especificamente do interesse jurdico-social mais
importante entre aqueles que se encontram em conflito, e por outro lado seguindo uma concepo de
um mnimo de solidariedade entre os membros da comunidade humana.25 Esse processo manifesta
uma relao de tenso entre mandamentos liberais e sociais, implicando de um lado a expectativa
social de se admitir o sacrifcio de direitos, interesses ou posies de seus membros e de outro a
salvaguarda do exerccio destas mesmas liberdades. O exagero de ambos os lados capaz de produzir
as mais criativas (ou trgicas) distopias.
2 - O estado de necessidade exculpante foi inicialmente assentado sob uma concepo
psicolgica de culpabilidade, inspirado em um juzo de equidade, porm mesmo antes da elaborao
do conceito de culpa por von Liszt, j apresentava alguns de seus contornos atuais. Hodiernamente, o
estado de necessidade exculpante radicado em sua menor (ou nenhuma) culpabilidade, possuindo
agora como referencial uma concepo normativa de culpa como reprovabilidade. Tal construo,
porm, est longe de ser unnime, uma vez que muito embora o estado de necessidade exculpante
encontre autonomamente contornos legais expressos em alguns sistemas jurdicos, em outros ele de
todo refutado, ou ainda amparado em construes abertas como a inexigibilidade de uma conduta
diversa, entre outras, fundamentadas na notria reduo do mbito de autodeterminao do
indivduo.26 Assunto para um estudo prximo, ao delimitarmos e estabelecermos o atual panorama do
estado de necessidade.
2.3 Delimitaes dos Estados de Necessidade
Conforme visto, os estados de necessidade exculpante e justificante compartilharam uma
origem comum nos ordenamentos jurdicos, porm hoje revelam meios distintos para enfrentar
situaes caracterizadas pela existncia de um pragma conflitivo, podendo este ser definido como a
existncia de mais de um valor/interesse, onde um necessariamente ser sacrificado para a
salvaguarda do outro. Atualmente, so duas as posturas encontradas nos ordenamentos jurdicos
contemporneos refletindo sobre o tema para alm dos caminhos aqui antes descritos.
Uma teoria unitria defende o mesmo tratamento a todas as situaes conflituosas,27 havendo,
ento, apenas uma categoria, podendo esta ser exculpante, como fora trabalhado de incio nas
primeiras codificaes, ou justificante, como modernamente muitos cdigos tem adotado. J as teorias
diferenciadoras seguem o caminho j descrito nos itens anteriores, autonomamente prevendo ambos
os estados de necessidade exculpante e justificante.
25 FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral. Tomo I Segunda Edio. 2007 Coimbra
Editora. pg. 439-440. 26 ZAFFARONI, Eugenio Raul, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal. Parte
General. EDIAR. Buenos Aires. pg. 747. 27 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal Parte Geral. Lumen Juris. 2006 pg. 239-240.
Pases como Alemanha e Portugal desenvolveram seus regulamentos a partir de preceitos que
antes eram identificados como manifestaes prximas a um estado de necessidade exculpante at a
adoo da teoria diferenciadora. Diversas eram as redaes com alcances distintos, sobretudo as
codificaes pr-Programa de Marburgo, no sculo XIX.
Conforme mencionado em nota anterior, o Cdigo Penal alemo de 1871, em sua redao
original, disciplinava no haver ofensa criminal quando o perpetrador est conectado por uma fora ou
ameaa irresistvel inafastvel de outra forma contra sua vida ou sade ou de pessoa de sua famlia
(52). A codificao criminal portuguesa de 1852 declarava no ser ato criminoso quando o autor foi a
ele constrangido por fora irresistvel (art. 14, n 2). J o diploma portugus de 1886 previa duas
possibilidades (art. 44), onde a primeira justificava o fato aqueles que o praticavam por qualquer fora
estranha, fsica e irresistvel (n 1), e a segunda os que praticavam o fato dominados por um medo
supervel de um mal maior ou iminente ou em comeo de execuo (n2).
De toda forma, Eduardo Correia acreditava poder interpretar os preceitos do cdigo portugus
de 1886 segundo a teoria diferenciadora, iluminado pela influncia de penalistas de formao
hegeliana28, que conforme j apresentado, creditavam haver nas situaes hoje reconhecidas pelo
estado de necessidade justificante a existncia do exerccio de um direito.
Hoje, tanto Portugal quanto Alemanha disciplinam as duas figuras do estado de necessidade
de forma expressa. O cdigo portugus, nesse ponto, remeteu sua deciso s deliberaes da reforma
do cdigo alemo em 196229, optando, porm, por no restringir os objetos de proteo abarcados em
ambas as hipteses. O estudo desses objetos ser feito em momento oportuno.
A realidade, porm, diversa em pases como a Argentina, a Espanha e o Brasil, onde, a
princpio, o estado de necessidade interpretado como uma causa excludente da ilicitude, e outras
figuras inominadas trazem o aporte para situaes exculpantes. Na Argentina, por exemplo, o cdigo
penal ptrio, em sua atual redao, traz uma frmula genrica exculpante em seu art. 34, inc. 2 onde
no punvel aquele que age violentado por uma fora fsica irresistvel ou ameaa de sofrer um mal
grave e iminente.30 No Brasil, disciplina o art. 22 que se o fato cometido sob coao irresistvel ou
em estrita obedincia a ordem, no manifestamente ilegal, de superior hierrquico, s punvel o autor
da coao ou da ordem. Na Espanha, uma figura de medo insupervel (art. 20, 6) como reao
astnica do agente isto , um estado de fraqueza e impotncia diante de um quadro abarca algumas
das situaes, sobretudo aquelas envolvendo o interesse de sobreviver, ora enquadradas nos pases
onde se prev um estado de necessidade exculpante.
Outros modelos de diferentes tradies pelo o mundo trazem igualmente hipteses de estados
de necessidade. Nos Estados Unidos, o Cdigo penal modelo, um produto das deliberaes do
American Law Institute com pretenses de influenciar a produo dos cdigos penais dos estados, traz
28 FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral. Tomo I Segunda Edio. 2007 Coimbra
Editora. pg. 438-439. 29 Ibid. 441. 30 Enquanto o inciso 3 traz a hiptese clssica de causar um mal para evitar outro maior
iminente que seja estranho.
figuras justificantes como o necessity, sob o ttulo choice of evils (s. 3.02) e exculpantes como o duress
(s. 2.09). Alguns estados americanos como o Maine e New Hampshire ainda disciplinam a matria sob
a forma do competing harms de forma prxima ao necessity. J o Cdigo Penal chins de 1997 prev
uma hiptese de estado de necessidade tendo como objeto a vida, o corpo, a liberdade e a propriedade
do agente ou de terceiros, trazendo a possibilidade da punio ser reduzida ou at remida nos casos
de excesso (desproporo) das medidas adotadas.
Por fim, a somar a todas as consideraes feitas s duas categorias de estado de necessidade
quanto aos seus fundamentos e ao delimitar o atual panorama legal pelo mundo, seguiremos o estudo
da operabilidade dos estados de necessidade e os seus respectivos elementos.
2.4 Operabilidade dos Estados de Necessidade
Seguindo e recapitulando o caminho at aqui trilhado, em uma apertada sntese, identificamos
no estado de necessidade justificante a utilidade e a solidariedade como bases fundamentais, radicadas
no maior valor objetivo que teria para o Direito a preservao dos interesses salvaguardados em
comparao com aqueles sacrificados. Somada a essa posio, o estado de necessidade exculpante
mantm em seu fundamento a percepo do problema a partir da perspectiva do indivduo, isto , da
sua menor capacidade de se determinar frente a situao, levando a diminuio ou completa excluso
da reprovao.
Encerrando nestes termos as duas categorias, passamos a definir o contedo operativo de
cada uma delas, isto , a anlise de seus elementos e a tcnica sob a qual os sistemas jurdicos buscam
na prtica apresentar suas respostas.
O estado de necessidade justificante, ainda em uma fase de busca de autonomia e fundada
nos exemplos das clusulas gerais de necessidade encontradas nos cdigos civis, era operada atravs
da teoria do fim, sendo esta entendida por Welzel como um princpio geral de justificao onde uma
ao tipicamente adequada no antijurdica se o meio adequado para o fim justificado.31 Tal aporte
foi inicialmente concebido por von Liszt e conduzido por Schmidt32 e se materializava tanto nas
situaes j especialmente regulamentadas na poca, como a revelao extraordinria de segredo
profissional e a interrupo da gravidez que possa levar causar um perigo srio para a vida ou sade
da mulher gravida, quanto nas demais ainda carentes de uma norma justificadora para situaes de
coliso sem contedo patrimonial. Welzel apresentava como exemplo para esse ltimo caso a hiptese
do bombeiro que, para salvar uma criana em um incndio, joga uma criana pela janela, causando
uma leso corporal leve.33
31 WELZEL, Hans. Direito Penal. Ed. Romana. 2 Tiragem, pg. 146-147. 32 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I, Ed. Thomson Civitas. Segunda
Edio. 1997. pg. 672. 33 WELZEL, Hans. Direito Penal. Ed. Romana. 2 Tiragem, pg. 147.
Seguindo o exemplo, a justificao se materializaria em uma ao (jogar a criana pela janela)
que lesiona um bem jurdico (leses ocorridas na queda), porm sendo oferecida para o autor
(bombeiro em um determinado estado periclitante) como a nica chance da criana no morrer
queimada, ainda que a criana no venha a sobreviver, pois esta nica chance era o nico meio
adequado para o fim adequado.
Nesse momento, ainda que colocada desta maneira, a teoria do fim j denotava a ideia de
proporo e necessidade do valor protegido em relao ao valor sacrificado e ao definir o requisito do
meio adequado para um fim adequado igualmente j considerava a ideia de que determinados meios
nunca poderiam ser adequados para um fim qualquer.34
Em um segundo momento, Mezger apresentou o problema na forma de uma teoria da
ponderao de bens, onde no atuava antijuridicamente quem lesionasse ou colocasse em perigo um
bem jurdico de valor inferior, se somente desse modo se poderia salvar o bem jurdico de maior valor.35
Essa frmula j havia sido adotada anos anteriores, quando o tribunal alemo reconheceu a teoria da
diferenciao, prevendo no caso do aborto indicado por necessidade mdica existir um estado de
necessidade justificante extralegal. A teoria do fim, ainda nesse caso, foi refutada por no ser possvel
observar claramente se sua aplicao na prtica poderia conduzir a consequncias indesejveis.36 O
problema hoje persiste e ser adiante investigado ao questionarmos o contedo de uma possvel
clausula da adequao.
Nos debates para a reforma do Cdigo Penal alemo, foi discutido ainda qual seria
especificamente o objeto da ponderao. A forma anterior de ponderao de bens jurdicos foi
substituda pela ponderao de interesses, entendendo que a ponderao de bens seria um entre os
diversos pontos de vista a serem levados em considerao,37 ou seja, os bens jurdicos analisados na
esfera do conflito dependeriam de uma projeo no contexto global, no necessariamente apenas em
um critrio externo-objetivo.38 Em Portugal o legislador igualmente optou pela expresso interesses
juridicamente protegidos seguindo as razes vencidas nos debates pela comisso reformadora alem.
Outra razo para a defesa desse critrio envolve a necessidade de fugir de qualquer considerao
acerca do contedo de um conceito de bem jurdico penal limitador do poder punitivo, assim uma
conduta poderia ser justificada em defesa de um bem jurdico penal ou no penal.39 Hipoteticamente
tambm poderamos pensar na tutela de interesses coletivos, mas como Figueiredo Dias bem coloca,
tais situaes, dada a complexidade ftica prpria delas, dificilmente se apresentam como o nico meio
de proporo.
A operabilidade dos estados de necessidade exculpantes, ao contrrio do estado de
necessidade justificante, seguiu diversos rumos dogmticos, sendo produto de diversas opes
34 Ibid. pg 148 e 256-257. 35 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I, Ed. Thomson Civitas. Segunda
Edio. 1997. pg. 672. 36 Ibid. 672 37 Ibid. 38 FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral. Tomo I Segunda Edio. 2007 Coimbra
Editora. pg. 441-442. 39 Ibid. 442
legislativas. Entre elas encontramos: (1) a previso expressa de formas de estado de necessidade
exculpante, positivadas e com a estrutura de seus elementos prxima a teoria da ponderao de
interesses trazida pelos tambm positivados estados de necessidade justificante, seguindo a tradio
j presente na fase pr-dogmtica da matria; (2) variaes deste primeiro modelo limitando os bens
jurdicos que podero servir de objeto para a ponderao; (3) a existncia de clusulas de excesso no
estado de necessidade justificante; (4) a adeso inexigibilidade de uma conduta diversa como
fundamento universal de exculpao; (5) a positivao especfica de hipteses menores de
inexigibilidade como a (5a) coao moral irresistvel e (5b) circunstncias astnicas como o medo.
Uma parte da doutrina alem, olhando para o prprio ordenamento, faz uma distino entre
causas de excluso da culpabilidade e causas exculpantes, onde as primeiras seriam motivadas desde
incio pela total inexistncia da possibilidade do agente de agir de outra maneira, e nas segundas
haveria apenas uma diminuio da reprovao de modo que o legislador renuncia a formao de uma
reprovao, somente em virtude de uma indulgncia.40 Na primeira categoria podemos identificar a
inimputabilidade e o erro de proibio, enquanto na segunda, havendo a capacidade e atual conscincia
da ilicitude, enquadraramos os excessos na legtima defesa e o estado de necessidade exculpante.
A crtica a essa distino est na medida que esses autores no parecem considerar a
possibilidade de zonas marginais nos primeiros conjuntos,41 na medida que a inimputabilidade em razo
da existncia de um transtorno mental e os casos limites de erro de proibio vencveis desafiam essa
pretensa separao entre as duas categorias. Porm, de toda forma tais categorias parecem nos
facilitar para entendermos o horizonte de atuao de algumas teorias vindouras.
Retornando aos rumos da construo de um estado de necessidade exculpante, as hipteses
(1) e (2) antecedem as consideraes anteriores, na medida que seguem os primeiros modelos onde
toda a categoria do estado de necessidade era vista como exculpante, havendo como elementos a
existncia de um perigo atual ou iminente, sendo necessria uma ao para evitar a ocorrncia de um
considerado mal maior.42 O segundo modelo (2) se distancia do primeiro (1) na medida que reduz o
alcance da norma defesa de valores essenciais a existncia humana, geralmente incidindo em
processos causas naturais de defesa, prpria ou de terceiros, da vida, integridade, patrimnio, etc.
O modelo das clusulas de excesso (3) no se revela de todo diferente dos dois primeiros, na
medida que igualmente reconhece a existncia de um excesso no justificado porm no reprovvel.
O exemplo, por excelncia, pode ser encontrado nos sistemas jurdicos que reconhecem a exculpao
no excesso de exerccio da legtima defesa. Outros modelos como o chins igualmente preveem
expressamente, ao tratar do excesso no estado de necessidade, uma ausncia de reprovao a ser
aferida in casu.
40 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I, Ed. Thomson Civitas. Segunda
Edio. 1997. pg. 815. 41 Ibid. 42 Uma vez adotada a teoria dualista, a ponderao entre os valores ou a superioridade do valor
protegido deixaria de ser elemento do estado de necessidade exculpante, mantendo intacta a estrutura de sacrifcio de um bem/interesse diante da atualidade/iminncia de perigo a outro.
Mais importante, - e aqui remetendo as consideraes anteriormente feitas a inexigibilidade
de uma conduta diversa surge como proposta de Freudenthal (4), servindo como fundamento
supralegal de exculpao. Schmidt, duas dcadas depois, retoma o emprego do conceito como uma
clusula geral de exculpao extralegal deduzida de um princpio da culpabilidade.43 Tal construo
tem sido sistematicamente afastada tanto em ordenamentos diversos quanto por alguns seguimentos
da doutrina, seja em suas bases tericas, ao reposicionar a questo sob um novo recorte entre
culpabilidade e responsabilidade penal como faz Roxin, em sua teoria da culpabilidade, seja tambm
pela adeso e aproximao de modelos taxativos prevendo modalidades especficas e taxativas de
excludentes como a coao moral irresistvel, a obedincia hierrquica e os excessos e situaes de
fraqueza fundadas no medo (5).44
De toda a forma, retomando as consideraes feitas na hipottica diviso entre causas
excludentes da culpabilidade e causas exculpantes, a inexigibilidade retrata uma comunho de
modelos no qual operam sob a mesma base valorativa, qual seja a reduo do mbito de atuao do
indivduo caracterizada pela anormalidade das situaes onde um homem normal (capaz de
culpabilidade) e com a possibilidade de conhecer o injusto foi submetido, razo para esse trabalho leva-
la em considerao.45
2.5 Elementos da Situao de Necessidade
Nas lies de Cirino dos Santos, a situao justificante do estado de necessidade
caracterizada pela existncia de um perigo para um bem jurdico, que deve ser atual, involuntrio e
inevitvel de outro modo, ou seja, sem leso de outro bem jurdico.46 Passamos agora a uma breve
anlise decomposta de cada um desses elementos, para entendermos o ncleo duro no qual se
encontram alguns dos problemas na operao do estado de necessidade. Para alm disso,
dedicaremos uma ateno maior a ponderao dos interesses em conflito que materializada em
diversos formatos pelos ordenamentos jurdicos contemporneos.
2.5.1 O Objeto de Proteo
43 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal Parte Geral. Lumen Juris. 2006 pg. 323. E
ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I, Ed. Thomson Civitas. Segunda Edio. 1997. pg. 959-960.
44 Para uns a inexigibilidade parece um tanto quanto genrica, razo para alm de sua no positivao no ordenamento, crtica que colocada solitariamente no admitiria construes anteriores como o estado de necessidade justificante quando ainda extralegal.
45 A anormalidade da situao, anteriormente tratada por muitos como irracionalidade da situao apenas colocada na perspectiva de valorao do agente que nela se encontra, uma vez que no cabe ao Direito qualificar a realidade como tal, mas sim valorar e direcionar as aes a partir de suas normas.
46 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal Parte Geral. Lumen Juris. 2006 pg. 240.
O objeto de proteo do estado de necessidade por muito tempo foi eclipsado pela adoo de
formas legislativas que no faziam meno ao bem, interesse ou valor tutelado. As codificaes
criminais nacionais de 1830 e 1890, por exemplo, trabalhavam com a forma de ao para se evitar um
mal maior, ocultando o que seria protegido por este. Em Portugal, os cdigos anteriores ao Cdigo
Penal de 1982 adotavam a forma desculpante de atuao sob uma fora irresistvel (1852 e 1886) ou
dominados por um medo insupervel de um mal igual ou maior, iminente ou em comeo de execuo
(1886).47
Conforme j descrito anteriormente, a teoria da ponderao dos bens restou evidenciando esse
objeto de proteo ao dizer que no agia antijuridicamente quem lesionasse ou colocasse em perigo
um bem jurdico de valor inferior, se apenas desta maneira pudesse salvar um bem de valor maior.
Contudo, a substituio terminolgica da ponderao entre bens jurdicos pela ponderao entre
interesses foi justificada por razes j aqui expostas, quais sejam: (a) a necessidade de fugir de
qualquer considerao acerca do contedo de um conceito de bem jurdico penal limitador do poder
punitivo, assim abrindo a possibilidade de defesa de interesses e valores no penalmente tutelados
porm lcitos na ordem jurdica48; (b) evidenciar que na teoria da ponderao de interesses o valor do
bem jurdico apenas uma entre diversas abordagens possveis a serem colocadas em contenda.
No Brasil, atualmente o Cdigo Penal de 1940, com a reforma da Parte Geral em 1984, manteve
sua redao original, prevendo a tutela de direito prprio ou alheio, sem pretender exemplificar quais
direitos seriam protegidos.
Para alm dessas consideraes, ordenamentos jurdicos diversos buscaram enumerar,
taxativamente ou exemplificativamente, quais interesses eram dignos de tutela. O Cdigo Penal alemo
de 1871, em sua atual redao, enumera para o estado de necessidade justificante a salvaguarda da
vida, corpo, liberdade, honra, propriedade ou qualquer outro bem jurdico no evitvel de outra maneira,
porm ao disciplinar o estado de necessidade exculpante buscou reduzir seu espectro apenas para a
defesa da vida, corpo ou liberdade.
Em Portugal, o legislador no buscou reduzir o escopo de atuao do estado de necessidade
justificante, mas o fez no estado de necessidade exculpante ao prever apenas a tutela da vida,
integridade fsica, honra ou liberdade do agente ou de terceiros. De toda forma, o estado de
necessidade exculpante em defesa de bens jurdicos diversos pode implicar uma atenuao ou,
excepcionalmente, a dispensa da pena.
Todos os modelos que pretenderam, taxativamente ou exemplificativamente, disciplinar os
bens jurdicos passiveis de serem tutelados pelo estado de necessidade sempre o fizeram sob uma
base causalista natural, isto , sob processos fsicos de causao, trazendo a Tbua de Carnades
para o mundo contemporneo, para dentro de hospitais, vias pblicas ou calamidades. Tal afirmao
47 FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral. Tomo I Segunda Edio. 2007 Coimbra
Editora. pg. 438. 48 Um exemplo dado o do segurana que empurra um fotgrafo causando uma leso corporal
leve em defesa de seu emprego, a partir da expectativa laboral que se tem de que um segurana proteja a intimidade do artista que o contratou.
evidenciada pela anlise dos elementos do perigo a ser feita nesse trabalho, porm nem mesmo esta
evitou as tentativas doutrinrias e jurisprudenciais de flexibilizar normativamente a inevitabilidade do
perigo como, por exemplo, o esforo terico de se reconhecer o rendimento de um estado de
necessidade justificante ou mesmo exculpante nos delitos de sonegao fiscal, sobretudo no tipo de
sonegao de contribuies previdencirias.
Muito embora no esteja aqui de pronto afastando categoricamente a viabilidade de tal
argumentao, vejo com olhos cticos, neste momento, a possibilidade de se autorizar a aplicao de
um ou outro instituto com esse fim, e isto restar demonstrado nas consideraes a serem feitas sobre
o perigo.
2.5.2 O Perigo que Ameaa o Objeto de Proteo A Atualidade e Inevitabilidade
O perigo , por excelncia, o elemento essencial da doutrina da necessidade. Nesse momento
nos importa buscar um conceito de perigo e o examinar a partir de dois de seus atributos,
nomeadamente a atualidade e a inevitabilidade, afastando, a partir do objeto desse trabalho, qualquer
considerao acerca do erro de tipo permissivo que poderia recair sobre um desses elementos.
O conceito de perigo no estado de necessidade, nas palavras de Claus Roxin, o conceito
mais dbio e polmico da parte geral, havendo para a maioria dos autores uma despreocupada
transposio do conceito de perigo concreto trazido pelo princpio da lesividade.49 O problema se d
na medida que o perigo concreto pressupe um perigo incrementado que s pelo acaso no se traduz
em resultado, enquanto o perigo no estado de necessidade, a partir dos critrios a serem definidos na
ponderao de interesses, poder no necessariamente exigir tamanha proximidade do resultado. Esta
construo fica evidente nas lies de Jakobs, para quem no perigo no estado de necessidade no
necessria uma probabilidade preponderante de um desfecho causal ruim, havendo de se considerar
antes da ponderao a existncia de um mnimo de perigo.50
Assim, o conceito de perigo aqui trabalhado implica a existncia de uma probabilidade ou
possibilidade de leso ao interesse ameaado, mas esta no obedecer a nenhum standard arbitrrio
sem antes ser submetida a uma ponderao com o valor sacrificado.51
Para isso, preciso estabelecer tanto o momento no qual incide o perigo quanto o momento
de aferio do mesmo. Uma resposta para tais perguntas poder partir dos prprios fundamentos do
estado de necessidade e integrar tambm uma outra caracterstica do perigo. Isto , aqui afirmamos
que um ponto em comum entre os estados de necessidade justificante e exculpante e tambm
encontrado tanto na teoria da adequao quanto na teoria do conflito est na inevitabilidade do agente
49 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I, Ed. Thomson Civitas. Segunda
Edio. 1997. pg. 676. 50 JAKOBS, Gnther. Teoria do Injusto Penal. In. Tratado de Direito Penal. Editora Del Rey
Belo Horizonte. 2009. pg. 590. 51 Sobretudo quando se pretende estabelecer qualquer relao de lesividade com bens
jurdicos abstratos ou qualquer outra tcnica jurdico-penal de tutela no to facilmente observvel.
de superar aquela situao sem ofender um interesse jurdico diverso, isto a ao perpetrada teve
que ser necessria para a proteo, devendo o autor ter considerado todas as possibilidades antes de
agir e escolhido a menos danosa entre elas.52
Enfim, o perigo inevitvel de outro modo ao interesse jurdico deve ser atual, porm, ao
contrrio da legitima defesa, no se trata de um dano imediato, mas sim de uma necessidade de
proteo imediata.53 Dessa forma a atualidade da necessidade de proteo, nas lies de Roxin, pode
ser configurada no apenas para aqueles casos de perigo atual ou iminente como para todos aqueles
onde posteriormente j no se poderia fazer frente em momento ulterior sem correr riscos ainda
maiores.54 Para alm disso, a jurisprudncia alem j apontava no perodo do estado de necessidade
exculpante a construo de um conceito de perigo permanente para todas as situaes onde no se
poderia determinar ao certo o momento preciso do perigo existente. Os exemplos tradicionalmente
dados pela doutrina so encontrados nos casos de desabamento e intervenes na esfera de liberdade
de inimputveis.55
Por fim, o perigo inevitvel de outro modo e atual ou iminente avaliado, para doutrina
majoritria, sob um juzo prognstico (ex-ante), isto , antes da realizao da ao salvadora, e no
depois de exaurida.56 Porm tal construo parcialmente desafiada atravs de diversas reflexes,
que iro repercutir na teoria do erro, entre elas existindo divergncias quanto a natureza da titularidade
dessas expectativas normativas. Entre tantas, nos recepcionada aquela que entende este juzo
objetivo ex-ante ser o de um observador inteligente, combinado, eventualmente, com o do especialista
na rea.57 Outros ainda exigem ditames ainda mais especiais, como (a) a necessidade de depender de
uma realizao pericial, (b) a aferio de todo o conhecimento especial, para alm de um eventual
saber especial do agente ou (c) at mesmo a totalidade do saber emprico humano no momento da
ao.58
52 Inclusive a ajuda de terceiros ou do prprio Estado, uma vez que o estado de necessidade
tem natureza de autotutela e essa sendo hodiernamente dada como excepcional no ordenamento jurdico, costuma estar fundada na impossibilidade de se socorrer aos meios constitudos sem submeter o objeto da mesma ao risco de um perecimento.
53 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal Parte Geral. Lumen Juris. 2006 pg. 241 e ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I, Ed. Thomson Civitas. Segunda Edio. 1997. pg. 680.
54 Ibid. 680 55 Ibid. e FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral. Tomo I Segunda Edio. 2007
Coimbra Editora. pg. 443. 56 No que toca os crimes de perigo concreto ou abstrato, existe um esforo doutrinrio que
entende que um juzo ex-post possa representar um tratamento mais benfico ao agente, uma vez o mesmo ser favorecido por circunstncias onde no poderia de forma alguma antever mas que de alguma forma pudesse diminuir ou afastar o perigo. A transposio dessa lgica para o estado de necessidade repercutiria na anlise de seus elementos subjetivos, favorecendo agentes que agiram sem conscincia de estarem agindo sob a necessidade, porm seria de pronto afastada por no atender o sentido tico fundamental do instituto.
57 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal Parte Geral. Lumen Juris. 2006 pg. 240. 58 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I, Ed. Thomson Civitas. Segunda
Edio. 1997. pg. 677-679.
2.5.3 A Relao do Autor da Conduta Justificada com a Criao do Perigo A Involuntariedade
e as Posies Especiais de Dever
Para alm das consideraes acerca da atualidade e inevitabilidade j enfrentadas, existem
outras caractersticas do perigo que guardam uma relao especial com o seu criador e/ou autor da
conduta em necessidade a serem agora analisadas.
O perigo pode originar tanto de fenmenos naturais quanto de atividades humanas, estas
ltimas podendo ter origem em acidentes, atividades econmicas, blicas ou ps-blicas, decorrer do
estado do homem e suas construes, ou ainda podem se materializar no prprio homem, como ser
enfrentado no estado de necessidade defensivo.59 De toda forma, os cdigos modernos costumam
trazer um requisito especial na relao da origem do perigo com aquele que agiu em necessidade.
Segundo o Cdigo Penal ptrio, que manteve a redao original de 1940, o perigo no estado de
necessidade deve no ter sido provocado pela vontade do agente. Tal requisito igualmente se encontra
expressamente presente nos estados de necessidade italiano, espanhol e portugus, neste ltimo
havendo ainda a possibilidade de dispensar tal elemento nos casos envolvendo a defesa de terceiro.
No caso alemo, nos noticia Roxin que o RG em deciso sobre um caso de estado de
necessidade extralegal, inspirado nos estados de necessidade civis e ao contrrio do antigo estado de
necessidade penal e exculpante, admitiu a justificao, inclusive em caso de provocao, em razo da
ausncia de tal elemento nas hipteses civis.60
Na doutrina, tal construo desafiou a rigorosa posio de Binding, que assumia a defesa de
uma interpretao sob o brocardo quem tenha se posto em perigo, que perea. Como bem coloca
Figueiredo Dias, esta doutrina se revela completamente desajustada face o fundamento justificante do
estado de necessidade que a solidariedade,61 havendo hoje a interpretao antagnica de
voluntariedade apenas como uma real inteno deliberada de provocar a situao de necessidade para
poder se valer da causa s custas da leso de bens jurdicos alheios.62
Assim, em apertada concluso, seguindo as lies de Cirino dos Santos e ampla doutrina
ptria, o perigo no estado de necessidade justificante deve ser involuntrio, no podendo ser provocado
intencionalmente pelo autor, porm admitindo a justificao na produo imprudente.63 Desta forma, a
mera provocao no intencional no impede a invocao do estado de necessidade pelo agente,
59 Pensando nas hipotticas situaes de necessidade envolvendo interesses para alm do
eixo vida-integridade-propriedade-liberdade voltamos as consideraes j feitas ao elemento da inevitabilidade. A aferio do perigo aqui se torna igualmente complexa quando relacionada a interesses coletivos ou interesses pendentes de avaliaes essencialmente normativas.
60 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I, Ed. Thomson Civitas. Segunda Edio. 1997. pg. 697-699.
61 FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral. Tomo I Segunda Edio. 2007 Coimbra Editora. pg. 444.
62 At mesmo porque as hipteses extralegais de estado de necessidade, presentes no Cdigo Civil alemo no faziam meno ao requisito da involuntariedade da criao do perigo.
63 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal Parte Geral. Lumen Juris. 2006 pg. 241-242.
porm dever ser duplamente considerada em momento posterior no momento da aplicao da
ponderao de interesses.
Alm das consideraes realizadas acerca da criao do perigo, alguns ordenamentos jurdicos
contemporneos, como o brasileiro, o espanhol e o italiano, preveem expressamente a impossibilidade
de se alegar o estado de necessidade por aqueles que tinham o dever legal de enfrentar o perigo. Tal
previso tambm encontrada no cdigo penal alemo para o estado de necessidade exculpante,
porm sendo unanimemente admitido como ponto de vista na ponderao de interesses do estado de
necessidade justificante.64
De toda a forma, entende-se o requisito da no possibilidade de invocao do estado de
necessidade, a partir dos deveres jurdicos especiais de proteo da comunidade, como decorrentes
da expectativa social do cumprimento de funes especficas, como observamos na relao do policial
e a proteo de pessoas e bens, do bombeiro e os perigos oferecidos por estados calamitosos, dos
juzes e o contedo de suas decises, dos pais e a sade e integridade dos filhos, dos mdicos e os
riscos oferecidos pelo exerccio da medicina, etc.65
Porm, importa dizer no ser absoluta tal vedao, no prestando o Direito exigir o mximo
tico dos cidados, assim cedendo nas hipteses de certeza ou grande proximidade de morte ou grave
dano sade.66 Dessa forma, integraremos a ocupao de uma posio especial de dever como mais
um entre os diversos critrios na ponderao de interesses, a somar aos casos daqueles que
imprudentemente causaram o perigo ou de alguma forma favoreceram, inclusive de forma licita, o seu
incremento a ter rendimento nas consideraes acerca da origem do perigo , alm das ideias de
comunidade de vida e perigo.
2.6 Elementos Subjetivos do Estado de Necessidade
Para alm do elemento do perigo e suas caractersticas j consideradas, a doutrina do estado
de necessidade reconhece a existncia de elementos subjetivos que devem necessariamente restar
configurados para a justificao da conduta. Figueiredo Dias leciona que para atender as exigncias
subjetivas do estado de necessidade justificante, o agente deve conhecer a situao de conflito e atuar
com a conscincia de salvaguardar o interesse preponderante.67Porm, o mesmo autor e ampla
doutrina qualificada igualmente reconhecem ser indispensvel a vontade de defender esse interesse
64 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I, Ed. Thomson Civitas. Segunda
Edio. 1997. pg. 701. 65 MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal. Parte General. Octava Edicin. Editora Reppertor,
Barcelona. 2010. pg. 476-477. 66 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I, Ed. Thomson Civitas. Segunda
Edio. 1997. pg. 701. 67 FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral. Tomo I Segunda Edio. 2007 Coimbra
Editora. pg. 459.
preponderante, admitindo justificativas diversas, inclusive ilegtimas ou imorais, como a vontade de
aparecer em um meio de comunicao, receber uma recompensa financeira ou se tornar clebre.68
O fundo da exigncia de uma vontade est na medida em que o estado de necessidade se
traduz em uma manifestao de solidariedade, devendo imbuir suas condutas, neutralizando o desvalor
da ao que sacrifica um interesse jurdico. Pensar de maneira diversa seria considerar apenas o saldo
objetivo na ponderao de interesses e o seu valor no resultado.
De toda a forma, a melhor razo para no se exigir requisito algum para alm da conscincia
do agente de se encontrar em estado de necessidade est na medida em que as diversas formas
legislativas nas quais o estado de necessidade tem sido positivado adotam redaes neutras, exigindo,
no mximo, nas circunstncias, meios adequados para afastar o perigo, assim denotando o seu
conhecimento, porm sem quaisquer outras referncias, inclusive volitivas.69
3. A PONDERAO DOS INTERESSES EM CONFLITO
A teoria da ponderao de interesses, conforme j apresentada, surgiu, em sua primeira
verso, como alternativa a teoria do fim, com a pretenso de operacionalizar o estado de necessidade
justificante em uma poca na qual o mesmo ainda no se encontrava positivado no Direito penal
alemo. Sua recepo pela jurisprudncia alem foi dada pelo julgamento da Corte Imperial de Justia
em um caso de aborto por indicao mdica, onde se reconheceu a teoria da diferenciadora entre
estados de necessidade justificantes e exculpantes.70
Segundo o acordo (RGSt, 61, 242) que criticava a falta de transparncia da teoria do fim, para
o lugar das solues contemporneas, era preciso reconhecer, para uma suposta coliso entre bens
jurdicos, que no se podendo equilibrar sem destruir ou danificar um deles, o bem jurdico de valor
inferior haver de ceder ante o de valor superior, havendo tambm no conflito de deveres a mesma
obrigao de se cumprir o dever de maior valor s custas do de menor, assim em ambos os casos
configurando a excluso da antijuridicidade.7172
Dessa forma, a construo de uma ponderao de interesses antes concebida como uma
ponderao de bens em uma dimenso puramente operativa73 representa uma bifurcao, onde uma
68 Ibid, e MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal. Parte General. Octava Edicin. Editora
Reppertor, Barcelona. 2010. pg. 468. 69 Em 1995, o Cdigo Penal espanhol suprimiu a expresso impulsionado por um estado de
necessidade, adotando a forma em estado de necessidade. O Cdigo Penal alemo, por outro lado, disciplina na forma da conduta ser realizada com o fim de evitar um perigo pra si ou para outros.
70 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I, Ed. Thomson Civitas. Segunda Edio. 1997. pg. 672.
71 Ibid. (Roxin nos noticia tambm a existncia de referncia anteriores de aplicao na prpria sentena, porm de frmula menos clara e precisa.)
72 Sob os fundamentos do estado de necessidade justificante, esta frmula remonta a uma considerao feita por Hegel em sua Filosofia do Direito. (ver nota 23)
73 Nesse momento, sem a pretenso de fazer qualquer juzo acerca da possibilidade do agente se motivar diante de dadas situaes.
resposta positiva excluir a ilicitude de uma conduta e uma resposta negativa a manter intacta,
devendo o injusto ser submetido a um juzo ulterior de culpabilidade. Para isso, porm, deve-se
reconhecer problemas de duas espcies.
Em primeiro lugar, de se notar que o emprego de uma tcnica de ponderao, a princpio,
funciona na forma de uma funo, isto , a partir de um conjunto de inputs (dados fornecidos, no caso
interesses jurdicos), obtido outro de outputs (resultados processados correspondentes, as solues
dadas pela ponderao). O que se quer dizer com isto que a ponderao em si no guarda valor
algum intrnseco e que igualmente no se pode sequer falar em uma s funo (tcnica de
ponderao), uma vez que cada ordenamento jurdico moderno a positivou sob um modelo diferente,
gerando interpretaes diversas. Assim, reuni a seguir, em um grupo artificial, sob o ttulo A Relao
entre os Interesses em Conflito, todas as consideraes que julguei relevantes a se fazer naquilo que
antecede a aplicao da prpria teoria da ponderao de interesses.
Por ltimo, o estudo dos critrios adotados na ponderao de interesses se faz mais do que
necessrio, uma vez que so eles que alimentam a aplicao da teoria e essa em sua ausncia apenas
seria uma frmula vazia, intil e sem aplicabilidade concreta. Para isso, adotamos como critrios tanto
os elementos presentes na legislao quanto os elementos trazidos pela doutrina especfica em
monografias e grandes manuais.
Como exemplo dos elementos legais, lembramos que a atuao daqueles que tinham como
dever enfrentar o perigo costuma ser positivada em cdigos diversos como forma de se afastar a
possibilidade de justificao da conduta, porm no devemos interpretar tais normas como absolutas
para tal fim ou at mesmo para uma exculpao; e como exemplo de critrios trazidos pela doutrina
encontramos diversos pontos de vista que sero combinados na medida que puderem oferecer uma
soluo que melhor compreenda as complexas relaes presentes nos conflitos. Uma ponderao
envolvendo uma vida, por exemplo, guarda pouqussimas relaes com um conflito entre dois
interesses patrimoniais, assim exigindo a adoo de perspectivas diferentes.
3.1 A Relao entre os Interesses em Conflito
3.1.1 A Preponderncia do Valor Resguardado e as Opes Legislativas no Direito Comparado
A afirmao anterior de que existem diversos modelos positivados de ponderao de interesses
demonstrvel na medida em que uma ideia de comparao de bens, interesses ou resultados lesivos
muito anterior a gnese da prpria teoria. Mensurar resultados de aes, comparar vantagens e
desvantagens, estabelecer imponderabilidades a priori, tudo isso foi e objeto das diversas escolas
tico-normativas surgidas ao longo do tempo, e assim as tcnicas legislativas empregadas para
representar o moderno estado de necessidade muitas vezes variaram de acordo com a tradio ou
com a fluncia de um determinado modelo.74
Entre ns, a Codificao Criminal do Imprio e o Cdigo Penal de 1890, em uma fase pr-
dogmtica da matria, previam uma no punio/existncia do crime nos casos dos crimes cometidos
para evitar um mal maior, havendo no segundo a mesma previso como circunstncia atenuante.
O Cdigo Penal de 1940, j em uma fase dogmtica do conceito de estado de necessidade,
em ambas as redaes original e da nova parte geral de 1984 adotou um modelo de justificao
onde o salvamento de um direito de um perigo atual se d em circunstncias nas quais no razovel
exigir do agente o seu sacrifcio.
Entre os modelos atualmente em vigor, o Cdigo Penal argentino, em sua atual redao (1984),
tambm adota o modelo aqui convencionalmente chamado de mal maior, assim como o Cdigo Penal
espanhol de 1995. O Cdigo Penal italiano de 1938 incorpora um modelo onde o fato praticado deve
ser proporcional ao perigo, assim como o Cdigo Penal francs de 1994 traz a mesma terminologia
sob sinais trocados.
O Cdigo Penal alemo, em sua atual redao de 1998, disciplina tal questo sob a forma
expressa da ponderao de interesses em conflito, exigindo, porm, que as aes praticadas sejam
adequadas para evitar o perigo. O atual Cdigo Penal portugus de 1982, influenciado pelos debates
da reforma do cdigo alemo, tambm adotou um modelo de adequao, porm expressamente
disciplinou como requisito haver uma sensvel superioridade do interesse a ser salvaguardado em
comparao com o interesse sacrificado.
O que se pretende agora abandonar toda e qualquer especulao a respeito do significado
destes modelos e investigar no que eles coincidem e no que se afastam, inquirindo se existe ou no
uma coincidncia entre a proteo de um interesse superior e a evitao de um mal maior. Ainda, ideias
como razoabilidade e adequao podem ser polissmicas, podendo tanto representar construes de
valor definitivo para a resoluo de casos prticos quanto serem absolutamente desprovidas de
contedo.
3.1.2 A Comparao Entre Males ou Interesses e as Clusulas da Razoabilidade e Adequao
Entre os modelos de identificao do valor preponderante acima descritos, um primeiro grupo
deve ser inicialmente destacado por manifestamente pretender identificar um mal maior ou um
interesse superior entre aqueles em conflito, sem invocar chaves como os juzos de razoabilidade,
proporcionalidade ou de adequao.
74 Ainda, deve-se considerar que, antes de qualquer clusula geral ou qualquer noo de
exculpao ou justificao pela mitigao de um mal maior ou pelo cumprimento de um dever maior, os juzos do que hoje entendemos ser a tcnica de ponderao j imbuam as regras que disciplinavam questes especificas.
Mir Puig, ao analisar o requisito de que o mal causado no seja maior do que o que se pretenda
evitar no estado de necessidade espanhol, identifica em tal construo uma concepo muito restrita
do princpio da proporcionalidade. O referido autor, atribuindo doutrina espanhola a interpretao que
entende se tratar da comparao do valor dos bens jurdicos em conflito, demonstra sua preocupao
com consequncias poltico-criminais inadmissveis.75 Como crtica a essa hermenutica, lembra o
autor que a lei no compara bens, mas sim males, e a gravidade do mal no s influi a partir da
valorao do bem, como tambm da forma como se d esta leso.76
A concluso do autor espanhol pode ser entendida da forma que havendo no estado de
necessidade essencialmente uma comparao de males, e a valorao desses sendo dada tambm
na forma como se d a leso ao bem jurdico, uma leso seguindo um curso causal natural interrompido
pela ingerncia77, que impe ao sacrifcio um bem jurdico diverso, representaria por meio desta uma
carga valorativa negativa maior do que haveria na primeira.78 Em apertada concluso, um mal causado
por uma ao que interrompa a produo de outro teria um valor negativo maior que o este, assim no
caso de dois bens jurdicos de valores iguais, a interrupo de um perigo inevitvel que lesionasse
outro de mesma hierarquia no poderia a princpio ser amparado por um estado de necessidade
justificante.
Porm, Mir Puig no entende a vedao da aplicao do estado de necessidade justificante
absoluta para casos de bens jurdicos de mesmo valor. Para o autor, haveria um conjunto de casos
onde ambas as violaes, tanto o perigo ou mal originrio quanto a ingerncia representariam
igualmente perturbaes na ordem jurdica de mesma hierarquia. O exemplo dado, por excelncia o
da Tbua de Carnades.7980
Comentando o elemento da sensvel superioridade do interesse salvaguardado, Figueiredo
Dias entende que a lei se prope, ao exigir a referida superioridade, no apenas situar os interesses
em uma escala puramente aritmtica, mas tambm orienta-los luz dos critrios relevantes de
ponderao,81 e isso se d de forma distinta da legitima defesa uma vez que a ao de afastamento do
perigo no estado de necessidade, em regra, atinge interesses de terceiros,82 estranho a sua
provocao. Assim, a superioridade do interesse, para o Autor, protegido deve se dar de forma clara,
inequvoca, indubitvel ou terminante para caracterizar a justificao.
75 MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal. Parte General. Octava Edicin. Editora Reppertor,
Barcelona. 2010. pg. 469. 76 Ibid. 77 A ingerncia que gera uma perturbao na ordem jurdica parece ser o eixo interpretativo da
construo do referido autor. 78 Ibid. 469-470. 79 Ibid. 470. 80 Porm, o autor adota como modelo de Tbua de Carnades aquele onde dois homens
lutam em igualdade pela posse da tbua, oferecendo uma resposta negativa para a variao clssica do homem que desapossa o primeiro a chegar tbua.
81 FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral. Tomo I Segunda Edio. 2007 Coimbra Editora. pg. 456.
82 Ibid.
No modelo brasileiro de estado de necessidade, no h nenhuma meno que materialize
expressamente aquilo o que se esperaria de um sistema fundado na teoria da ponderao de
interesses, qual seja, um elemento denotador da superioridade do valor protegido. Dessa forma, com
uma redao ainda mais parecendo respeitar o paradigma da teoria do fim, abre-se margem para o
entendimento que o valor protegido no estado de necessidade justificante pode ter valorao igual ou
prxima do valor sacrificado.
Esse entendimento encontrado em significativa doutrina nacional. Fazendo referncia
razoabilidade presente no Art. 24 do Cdigo Penal ptrio, Artur Gueiros e Carlos Eduardo Japiass
assinalam que esse dispositivo autoriza o entendimento de que no razovel algum sacrificar a sua
vida ou patrimnio para salvar a vida ou patrimnio alheio. Dessa maneira, haveria tambm no direito
brasileiro um estado necessidade justificante para essas hipteses de igual valor.83
Para Juarez Cirino do Santos, h uma equivalncia entre a clusula de razoabilidade da
doutrina nacional e a da clausura de adequao alem no sentido em que ambas, adotando referenciais
diferentes, pretendem vedar aes necessrias e apropriadas para a proteo do bem jurdico mas que
se revelam injustas.84
Porm, os limites entre a justificao e a exculpao tanto nos modelos que exigem uma
superioridade, sensvel ou no, do valor protegido em relao ao valor sacrificado quanto dos modelos
de justificao igualitria apresentam dificuldades quando pelo menos um dos valores em conflito tido
como impondervel. Para todos esses casos envolvendo a vida, muitas sero as construes e
consideraes a serem feitas em momento apropriado.
Para alm dos modelos de ponderao que expressamente identificam uma comparao de
males ou interesses, algumas formas positivas do estado de necessidade justificante fazem o uso de
clusulas abertas como adequao, razoabilidade ou proporcionalidade.
A adequao para Welzel, descrevendo um modelo adotando a teoria do fim, representava um
princpio geral de justificao. Para o autor esse princpio operava de forma na qual uma ao
tipicamente adequada no antijurdica se o meio adequado para o fim justificado.8586
Contudo, hoje se questiona se a adequao trazida nas redaes modernas dos estados de
necessidade persiste com o seu significado original, materializa algum requisito autnomo e adicional87
ou nada mais do que uma expresso vazia usada de forma despretensiosa e redundante pelo
legislador.
Claus Rxin, ao descrever o valor da clusula de adequao, remete aos debates de
elaborao da norma no Projeto de 1962, no qual o legislador pretendeu complementar a teoria da
83 SOUZA, Artur de Brito Gueiros e JAPIASS, Carlos Eduardo Adriano. Curso de Direito Penal
Vol 1. Editora Elsevier. pag. 235. 84 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal Parte Geral. Lumen Juris. 2006 pg. 248-249. 85 WELZEL, Hans. Direito Penal. Ed. Romana. 2 Tiragem, pg. 147. 86 Remetemos aqui s consideraes j feitas no tpico sobre Operabilidade dos Estados de
Necessidade. 87 Assim, FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral. Tomo I Segunda Edio. 2007
Coimbra Editora. pg. 458.
ponderao de bens com a aplicao da teoria do fim, permitindo a vigncia de todos os pontos de
vista no acolhidos na ponderao de bens.88 Porm, com a incorporao de todos esses pontos de
vista promovida na antecipao dos mesmos para dentro da ponderao, sendo agora uma ponderao
de interesses, a chamada clusula da adequao para muitos doutrinadores alems realmente restou
esvaziada, mais servindo como um aviso de cuidado para o aplicador do Direito.89
Porm, aderindo as justificativas trazidas pelo Projeto, a clusula de adequao representaria
um segundo escalo valorativo, devendo garantir que a conduta do sujeito que obra em estado de
necessidade siga reconhecidas concepes valorativas da comunidade, tambm resultando em uma
soluo adequada e de acordo com o Direito.90
Buscando a resposta para essa pergunta, Figueiredo Dias identifica duas posies marcadas
na doutrina portuguesa. Uma primeira postura fundada no tradicional e original sentido dado pela
doutrina alem nos debates legislativos. J uma segunda posio, na qual o autor portugus se filia,
no encontra na adequao do meio nenhuma inovao, a considerar a generalidade das hipteses as
quais aquela doutrina buscava disciplinar para alm da ponderao de bens , como os deveres
especiais de suportar o perigo, o sentido tico-social da conduta a se justificar, a considerao dos
casos nos quais a prpria lei leva a cabo a ponderao e a preservao da autonomia pessoal da
vtima.91
Todavia, ainda assim, o autor identifica um sentido de rendimento para tal requisito, para o qual
se o agente utilizar um meio que, segundo a experincia comum e uma considerao objetiva,
inidneo para salvaguardar o interesse ameaado, tal fato no estar amparado pelo direito de
necessidade. Entre os exemplos dados pelo autor, encontramos o do sujeito que faz uso da gua do
vizinho em pequenos baldes para apagar um incndio de grandes propores, e o do mdico que
interrompe uma gravidez por meio de uma medicao inadequada, causando uma lcera no
estomago.92
Gnther Jakobs v na clausula da adequao um requisito necessrio para alm do clculo
utilitrio trazido pela ponderao de interesses. Para o autor, a ponderao de interesses faz com que
os fins justifiquem os meios, quando estes no so canalizados para os meios adequados ao
ordenamento relevante.93 O autor alemo exemplifica a sua construo a partir do exemplo de um
estado de necessidade especificamente positivado. O aborto necessrio, geralmente trazido nas partes
especiais dos cdigos penais, segundo o autor, somente pode ser de possvel justificao se o
procedimento for realizado por um mdico, resultando na inadequao geral da atividade no-mdica,
no em razo de qualquer ponderao de interesses, considerando inclusive um no-mdico com
88 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I, Ed. Thomson Civitas. Segunda
Edio. 1997. pg. 714. 89 Ibid. 90 Ibid. 715 91 FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral. Tomo I Segunda Edio. 2007 Coimbra
Editora. pg. 458. 92 Ibid. 93 JAKOBS, Gnther. Teoria do Injusto Penal. In. Tratado de Direito Penal. Editora Del Rey
Belo Horizonte. 2009. pg. 586-587.
capacidades excepcionais,94 mas sim como garantia do Estado de Direito em sentido formal frente a
livre otimizao da utilidade trazida pela ponderao de interesses.95
De outra forma, Roxin identifica na doutrina alem outros possveis rendimentos para a clusula
da adequao, entre elas na atuao em estado de necessidade a favor do estado para conservar bens
jurdicos da comunidade, a provocao culpvel de situaes de estado de necessidade, a renncia do
titular do direito na conservao do bem afetado, a omisso de obter o consentimento do afetado e
outros casos-limites.96 A crtica do autor, porm, se d no sentindo de no entender como tais
constelaes no poderiam ser levadas em considerao como critrios a serem adotados na
ponderao de interesses, assim, para Roxin, o nico rendimento para alm da funo de cautelar o
aplicador do direito para a importncia da ponderao de interesses o j chamado aviso de cuidado
estaria na salvaguarda da dignidade humana, isto na afirmao que esta no pacifica de ser
submetida a uma ponderao relativizadora.97
O que se pretende, neste momento, consignar que no importando qual concepo de
adequao iremos nos filiar, uma possvel resposta necessariamente ir depender de uma anlise
conjunta com o alcance e o contedo dos critrios a serem incorporados a uma ponderao de
interesses. Assim questes como a imponderabilidade da vida e todos os demais casos limites podem
ser trabalhados de forma individualizada, oferecendo respostas se no satisfatrias, pelo menos mais
racionais.
3.1.3 Ao e Omisso e a Dinmica Temporal no Conflito.
A aplicao do estado de necessidade justificante e da teoria da ponderao de interesses se
revela de profunda complexidade, isso porque para alm do desafio de delimitar cada um de seus
elementos, ambas encontram as mesmas dificuldades convencionalmente encontradas na relao do
Direito Penal com o mundo no qual ele pretende disciplinar. O que se pretende dizer que o perigo, o
sacrifcio e a ao salvadora precisam ser identificados no tempo e no espao, desafiando juzos
causais pr-normativos e juzos de imputao normativos.
Dessa forma colocado, importa dizer, em cada caso, qual era a relao do autor com o perigo,
se a conduta realizada por ele foi uma conduta comissiva ou omissiva e se possvel antecipar em
alguns casos algum juzo de certeza, atravs de prospeces artificiais. Para alm dessas respostas,
o mundo emprico rico de exemplos onde interesses jurdicos sero contrapostos a partir de fontes
de perigo diferentes, em momentos simultneos e diversos, criando um nmero quase sem fim de
casos distintos ou variaes precisando de respostas coerentes.
94 Ibid. 95 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I, Ed. Thomson Civitas. Segunda
Edio. 1997. pg. 715. 96 Ibid. 716 97 Ibid.
Algumas dessas situaes reivindicaram no passado uma maior autonomia de tratamento,
importando inclusive a criao de diferentes espcies de justificao. Contudo, no poderamos
discorrer sobre elas sem antes solver a distino entre aes e omisses em casos limtrofes.
Tomemos como exemplo agora a natureza de algumas aes envolvendo intervenes
mdicas, a manuteno de tratamentos e o ato de faze-los cessar. No h dvidas que, no primeiro
caso, onde o mdico atua em seu labor, no importando a espcie de tratamento no qual o paciente
submetido, estamos diante de condutas comissivas. Contudo, procedimentos que envolvem o uso
continuo de aparelhos podem gerar divergncias quanto a sua interpretao no ato de o manter e no
de o fazer cessar.
Antecipamos aqui o que consideramos a preocupao compartilhada por diversos autores98 na
definio do problema que poder ser significativo para a constituio de uma justificao com base no
conflito de deveres comissivos, que poderia destacar um novo conjunto de hipteses justificantes no
encontradas em alguns modelos como o do estado de necessidade portugus e alemo.
Contudo, antes de prosseguir anlise da natureza de tais aes, tambm se faz necessria
a integrao do elemento temporal no exame de tais conflitos. Nesse sentido, identificamos duas
categorias de conflitos onde se autoriza aplicar a ponderao de interesses: (1) um interesse jurdico
inicialmente exposto a um perigo sendo salvo por outro que de incio se encontrava livre de ameaa,
em posio privilegiada, em uma dinmica de transferncia de risco, denominada por Mangakis como
comunidade de perigo alternativa;99 (2) dois interesses expostos simultaneamente a perigos comuns
ou diversos, havendo, porm, a impossibilidade de temporalmente cumprir ambos (conflito de
deveres).100
Em uma terceira categoria, poderamos ainda pensar em uma variao entre a primeira e a
segunda hiptese havendo interesses expostos simultaneamente a perigos, de forma na qual s se
pode faz-lo cessar a um deles s custas do sacrifcio do outro (comunidade de perigo).
Colocando o problema dessa forma, retornamos ao exemplo do mdico que recebe dois
pacientes em condies iguais (a) ou diferentes (b), ao mesmo tempo (c) ou em momento ulterior ao
comeo do tratamento do primeiro (d). Ainda deveremos considerar como fator limitante a necessidade
presencial do profissional (e) ou o uso instrumental de algum aparelho (f).
Qualquer considerao feita acerca das condies ou chances (a,b) de vida de um paciente
ser objeto de reflexo da ponderao especfica envolvendo a vida, a ser adiante enfrentada, porm,
ainda que esta matria seja dominada pela doutrina da imponderabilidade quantitativa e qualitativa da
vida e da dignidade humana, fundada na influncia da tica kantiana e o seu imperativo categrico de
agir de tal forma que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro,
98 FERREIRA DA CUNHA, Maria Conceio. Vida Contra Vida Conflitos Existenciais e
Limites do Direito Penal. Coimbra Editora. 2010. pg. 153-158. 99 Ibid. 694-695. 100 Ibid. 155-158
sempre e a o mesmo tempo como fim e nunca simplesmente como meio101, sob contornos
consequencialistas, situaes como as presentes em conflitos de deveres e comunidades de perigo
envolvendo a vida necessitaro de maiores reflexes.
Pensando na hiptese dos dois pacientes que chegam simultaneamente (c) a um hospital com
condies insuficientes para o mtuo atendimento, o profissional imbudo pelo dever especial de agir
se encontraria em um conflito entre dois deveres comissivos (2), impossveis de serem conciliados.
J na hiptese de um vir a ser atendido em primeiro lugar e outro chegar ao curso do tratamento do
primeiro em condies muito superiores de sobrevida (d), necessitando do uso do mesmo aparelho (f)
ou da disposio do mesmo profissional (e), para alm dos diversos debates ticos e penais que iro
surgir, como a imponderabilidade da vida, a comparao dos deveres de salvar e no matar, a
valorao da possibilidade de interrupo de uma via salvadora, retomaramos a discusso da natureza
dessa interveno.
Se considerarmos que a interrupo de um tratamento por meio do desligar de aparelhos do
paciente que chegou antes (d) mas com menos condies de vida ser uma conduta omissiva,
estaramos em um com conflito de deveres no qual o mdico se encontra entre dois deveres
comissivos, e para a doutrina que defende a autonomia do conflito de deveres, a princpio, poderia
cumprir qualquer um deles para ver sua conduta justificada. Porm, se avaliarmos tal conduta como
comissiva, restaramos com a qualificao do tradicional estado de necessidade, afastando a
aplicao da justificao em razo da doutrina da imponderabilidade da vida humana.102
Especificamente nesse caso, pode-se reconhecer no ato de desligar o aparelho uma ao, no
apenas sob uma anlise puramente causal, como tambm pela forma como Roxin apresenta o
problema omisso atravs de uma ao, uma vez que o meio de salvamento j atingiu a esfera da
vtima, assim seria necessria uma ao para romper esse processo.103 Porm, se substituirmos o
tratamento por meio do uso continuo de um aparelho (f) pela ao profissional mdica presencial (e) e
esta quando interrompida sendo caracterizada como om