A Execucao Fiscal - Processo Judicial Sem Juiz

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UNIVERSIDADE DE SANTIAGO DE COMPOSTELA FACULDADE DE DIREITO

Domingos da Cruz Bernardino

A EXECUO FISCAL: PROCESSO JUDICIAL SEM JUIZ

Trabalho de investigao no mbito do programa de doutoramento PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DA CIENCIA XURIDICA

Setembro de 2001

A Execuo Fiscal: Processo judicial sem juiz

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NDICE 1. Introduo. Delimitao do objecto da investigao.............................................3 2. A actividade da administrao tributria como actividade administrativa.............5 2.1. A liquidao como acto administrativo.......................................................8 2.2. A cobrana voluntria como actividade administrativa. ...........................14 3. A cobrana coerciva das dvidas fiscais ...............................................................15 3.1. Sistemas de cobrana coerciva ..................................................................15 4. Traos essenciais do processo de execuo fiscal (Portugal)...............................16 5. Traos essenciais do procedimiento de apremio (Espanha)..............................21 6. Admissibilidade da autotutela executiva em matria tributria............................22 7. A inconstitucionalidade de normas do Cdigo de Procedimento e de Processo Tributrio ..............................................................................................................31

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A EXECUO FISCAL: PROCESSO JUDICIAL SEM JUIZ

1. Introduo. Delimitao do objecto da investigao Visa-se com este despretensioso trabalho no s satisfazer exigncias acadmicas no mbito do programa de doutoramento mas tambm dar forma a algumas reflexes que h muito vm sendo feitas em torno da natureza e do regime aplicvel ao processo de cobrana coerciva de dvidas fiscais, nomeadamente no que concerne conformidade constitucional das disposies legais que conferem poderes a rgos e agentes da Administrao Tributria para a conduo e direco do processo destinado cobrana coerciva das dvidas tributrias e, em especial, para a prtica dos actos que mais vincadamente afectam a esfera jurdico-patrimonial dos executados. Sem pretenses, por ora, de aprofundamentos no que toca ao estudo comparado das solues adoptadas pelos diferentes pases, vamos centrar a nossa ateno no ordenamento jurdico portugus, com incurses pontuais no ordenamento espanhol. O percurso investigatrio seguido no se reflecte quanto seria desejvel no presente texto, devido conjugao de vrios factores: o escasso tempo que foi possvel dedicar, no s investigao, mas fundamentalmente sua passagem a escrito; apesar da abundante bibliografia existente sobre a cobrana coerciva de prestaes tributrias, escassa a produo acadmica e o labor jurisprudencial em torno das questes que se tm como cerne da investigao (a natureza administrativa ou jurisdicional dos actos praticados no processo de execuo fiscal e, na segunda hiptese, a existncia ou no de uma verdadeira reserva constitucional de jurisdio no que toca prtica desses actos), o que se traduziu em muitas pesquisas bibliogrficas e jurisprudenciais que no surtiram aparentes resultados; e, por ltimo, sem falsas modstias, a falta de capacidade do autor para gerir o tempo e o material investigatrio recolhido. Ainda que se tivesse pensado inicialmente uma outra estruturao e sistematizao do trabalho, em primeiro lugar faz-se um sinttico enquadramento da actividade de

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cobrana na vida dos impostos, para o que se tenta posicionar a Administrao Tributria no complexo geral da Administrao Pblica, com esta partilhando a sua actividade as principais caractersticas, quer no que toca definio autoritria de situaes jurdicas (autotutela declarativa) quer no que toca extraco de consequncias dessa actividade declarativa (no plano da eficcia e da execuo dos actos administrativos, que no forosamente, como se ver, no plano da autotutela executiva). Em seguida, faremos a descrio dos poderes que, de acordo com o legislador ordinrio, cabem Administrao Tributria em matria de cobrana de impostos. Analisaremos depois a natureza do processo de execuo fiscal e dos actos praticados nesse processo. Seguidamente, faremos o estudo da conformidade (ou no) das normas de direito ordinrio que conferem poderes de execuo Administrao Fiscal com o ordenamento constitucional, em especial no caso portugus. Finalmente, extraem-se algumas concluses.

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2. A actividade da administrao tributria como actividade administrativa O Estado desenvolve um conjunto mais ou menos diversificado de tarefas e de actividades, que costumam ser agrupadas sob a designao de funes 1. Dentre essas funes, assume particular importncia a funo administrativa. A Administrao Pblica em sentido orgnico ou organizatrio, pode entender-se como o conjunto de rgos do Estado e de ouras pessoas colectivas pblicas aos quais a lei confere o desempenho da funo administrativa 2, enquanto da Administrao Pblica em sentido material ou objectivo se pode dizer que se traduz na actividade que integra a funo administrativa, contraposta, como substncia, s outras funes estaduais 3. A Administrao Tributria quer do ponto de vista material quer do ponto de vista organizatrio no constitui mais do que um sector da Administrao Pblica, podendo dizer-se que a funo tributria no outra coisa seno uma particular manifestao da funo administrativa A actividade da Administrao Tributria desdobra-se tradicionalmente em vrios nveis: a) Liquidao b) Cobrana c) Controlo d) Aplicao de sanes administrativas assim que, no ordenamento jurdico portugus, o art. 2. do Decreto-Lei n. 366/99, de 18 de Setembro, que aprova a orgnica da Direco-Geral dos Impostos, estabelece:Artigo 2.

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Cf. Jorge Miranda, Funes, rgos e Actos do Estado, Lisboa, 1990, pgs. 3 e segs., que define a funo, no sentido de actividade, como "um conjunto de actos (interdependentes ou aparentemente independentes uns em relao aos outros), destinados prossecuo de um fim comum, por forma prria" (pg. 8)

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Carlos A. F. Cadilha, Organiza Administrativa, in Contencioso Administrativo, Braga, 1996, pg. 21 Jos Carlos Vieira de Andrade, O Ordenamento Jurdico Administrativo, in in Contencioso Administrativo, Braga, 1996, pg. 33

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mbito de interveno 1 - Cabe em geral DGCI, relativamente aos impostos que lhe incumbe administrar: a) Assegurar a respectiva liquidao e cobrana; b) Exercer a aco de inspeco tributria, prevenindo e combatendo a fraude e evaso fiscais; c) Exercer a aco de justia tributria e assegurar a representao da Fazenda Pblica junto dos rgos judiciais; d) Executar os acordos e convenes internacionais em matria tributria, nomeadamente os destinados a evitar a dupla tributao; e) Informar os particulares sobre as respectivas obrigaes fiscais e apoi-los no cumprimento das mesmas; f) Promover a correcta aplicao da legislao e das decises administrativas relacionadas com as respectivas competncias; g) Contribuir para a melhoria da eficcia do sistema fiscal, propondo as providncias de carcter normativo, tcnico e organizacional que se revelem adequadas; h) Cooperar com as administraes tributrias de outros Estados e participar nos trabalhos de organismos internacionais especializados no domnio da fiscalidade; i) Promover e assegurar as relaes com organismos nacionais vocacionados para o estudo de matrias fiscais.

Jos Casalta Nabais tenta sintetizar, a partir do estatudo na Lei Geral Tributria:Actualmente, ao menos em termos abstractos, ou seja, nos termos dos art.s 69. a 80. da LGT, o procedimento tributrio tambm integra: 1) a fase da iniciativa, desencadeada pelos interessados pela administrao ou por denncia de terceiro (art.s 69. e 70. da LGT), com base nas declaraes do contribuinte ou, na falta ou vcio destas, em todos os elementos de que disponha ou venha a obter a entidade competente (art. 59., n. 1, do CPPT); 2) a fase da instruo, a cargo em princpio do rgo que vai decidir o procedimento e com base em elementos fornecidos pelo sujeito passivo ou por terceiro ou obtidos pela administrao fiscal (art.s 71. a 76. da LGT), em que, nos termos do art. 50. do CPPT, so admitidos todos os meios d e prova; e 3) a fase da deciso (art.s 77. a 80. da LGT), em que se produz um acto administrativo definitivo no dizer do art. 60. do CPPT; a que, naturalmente, se seguir a fase executiva ou da cobrana. Pelo que c temos uma fase preparatria (integrada pela fase da iniciativa e fase da instruo), uma fase constitutiva (ou da deciso) e uma fase executiva (ou da cobrana)4

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Jos Casalta Nabais, Direito Fiscal, Almedina, Coimbra, 2000, pg. 251

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A acrescer a estas funes ou tarefas tradicionais, marcadamente administrativas, as disposies reguladoras dos crimes e do processo criminal fiscal conferem Administrao Tributria portuguesa poderes de polcia criminal, com uma intolervel confuso de papis, do ponto de vista jurco-funcional. Assim dispunha o Regime Jurdico das Infraces Fiscais No Aduaneiras (RJIFNA) 5, aprovado pelo Decreto-Lei n. 20-A/90, de 15 de Janeiro, e posteriormente alterado pelo Decreto-Lei n. 394/93, de 24 de Novembro, pela Lei n. 39-b/94, de 27 de Dezembro, e pelo Decreto-Lei n. 140/95, de 14 de Junho: - cabe, genericamente, aos agentes da administrao fiscal o impulso inicial no processo por crimes fiscais, por conhecimento directo ou por que os factos indiciadores da conduta criminosa lhe sejam transmitidos por quem os presencie ou conhea, incluindo qualquer autoridade judiciria (art. 42.) - mediante a notcia do crime, instaurado no mbito da administrao fiscal um processo chamado de averiguaes, cabendo, durante esse processo, ao agente da administrao tributria os poderes e as funes que o Cdigo de Processo Penal atribui aos rgos de polcia criminal, presumindo-se-lhe delegada a prtica de actos que o Ministrio Pblico pode atribuir queles rgos (art. 43.) - competente para a realizao do processo de averiguaes o director distrital de finanas que exercer funes na rea em que o crime tiver sido cometido ou o funcionrio em quem aquele tenha, para tal fim, delegado genericamnete competncia (art. 44.) A partir do dia 5 de Julho de 2001, passou a vigorar o Regime Geral das Infraces Tributrias (RGIT), aprovado pela Lei n. 15/2001, de 5 de Junho, o qual mantm o

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Este regime cessou a sua vigncia no dia 5 de Julho de 2001, data em passou a vigoraro Regime Geral das Infraces Tributrias (RGIT), aprovado pela Lei n. 15/2001, de 5 de Junho, a que adiante se faz rpida referncia.

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essencial da regulamentao anterior no que toca aos poderes dos agentes da administrao tributria, deixando, contudo, de se autonomizar o processo de averiguaes dentro do processo de inqurito conduzido pelo Ministrio Pblico. No ordenamento jurdico espanhol so bastante diferentes as solues, no cabendo claramente aos agentes da Administrao Tributria poderes de polcia criminal, no obstante a existncia de todo um conjunto de legtimas interrogaes sobre a fronteira entre a actividade administrativa de inspeco e a de investigao criminal, como destaca Pilar Collado Yurrita 6

2.1. A liquidao como acto administrativo

A definio da prestao tributria a cargo dos contribuintes feita, por regra, atravs da liquidao. 7 A liquidao pode ser entendida como procedimento, ou seja, sucesso ordenada de actos e formalidades tendentes formao e manifestao da vontade da Administrao Pblica ou sua execuo (art. 2., n. 1, do Cdigo do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n. 442/91, de 15 de Novembro) ou como o acto administrativo que, culminando um procedimento, define unilateral e autoritariamente a prestao

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Pilar Collado Yurrita, La actuacin de la inspeccin financiera y tributaria en la instruccin del proceso por delito fiscal, Tirant lo Blanch, Valencia, 1996, em especial pgs. 91 e segs. Fica de fora do mbito do nosso estudo a anlise da natureza jurdica da chamada auto-liquidao, limitando-se as referncias ao acto de liquidao aos aspectos operatuvos essenciais tendo em vista o escopo do nosso estudo: a cobrana coerciva de prestaes tributrias atravs do processo de execuo fiscal no ordenamento jurdico portugus e o procedimiento de apremio no ordenamento juridicotributrio espanhol. Cf. sobre a auto-liquidao: Alberto P. Xavier, Aspectos fundamentais do contencioso tributrio, in Cincia e Tcnica Fiscal, n.s 157-158, Janeiro-Fevereiro 1972, pg.s 116 e segs.; do mesmo autor, Conceito e Natureza do Acto Tributrio, Almedina, Coimbra, 1972, pgs. 51 e segs; Rosa litago Lled, Las Autoliquidaciones Tributarias ante la Recaudacin Ejecutiva, Aranzadi, 2000

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tributria a cargo de um contribuinte.

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este o entendimento, por exemplo e de modo

lapidar expresso por Juan Martn Queralt e outros 9, ao dizer:Con un doble sentido utiliza la LGT el trmino liquidacin. Como procedimiento administrativo es el conjunto y la sequencia de actos y actuaciones desarrollados tanto por la Administracin como por los particulares, conducentes a la determinacin administrativa de la cuanta del tributo en cada caso concreto. En cuanto acto administrativo. el acto de liquidacin es el que cierra y resuelve dicho procedimiento liquidatorio, conteniendo una manifestacin unilateral de la

Administracin sobre el importe de la prestacin Sea como acto o como procedimiento, la funcin de liquidacin consiste en fijar la cuanta exacta del tributo en cada supuesto en que se realiza su hecho imponible, siendo, por tanto, una actividad necesaria en los tributos variables, a diferencia de los fijos en que la ley determina directamente su importe. 10

tambm essa dupla acepo que espelham a lei portuguesa e a lei espanhola, apesar de, tanto uma como outra, se absterem de dar uma definio de liquidao, diferentemente do ensaio de definio consagrado, por exemplo, na Lei Geral Tributria Alem (Abgabenordnung AO)11.

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Para as vrias acepes e noes de liquidao, cfr.: Alberto Pinheiro Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributrio, Almedina, Coimbra, 1972, pgs. 33 e segs Fernando Fernndez Marn, Las liquidaciones tributarias, Ed. Comares, Granada, 2000 Juan Martn Queralt, Carmelo Lozano Serrano, Gabriel Casado Ollero e Jos M. Tejerizo Lpez, Curso de Derecho Financiero y Tributario, 8. ed., Tecnos, Madrid, 1997, pgs. 388 e segs.

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Juan Martn Queralt, Carmelo Lozano Serrano, Gabriel Casado Ollero e Jos M. Tejerizo Lpez, Curso de Derecho Financiero y Tributario, 8. ed., Tecnos, Madrid, 1997, pg. 388 Fernando Fernndez Marn, Las liquidaciones tributarias, Ed. Comares, Granada, 2000, pg. 365, escreve:La finalidad propia y especifica de la liquidacin definitiva es determinar la existencia e fijar la cuanta de la obligacin tributaria.

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Ordenanza

Tributaria

Alemana

(AO),

traduo

de

Carla

Shuster,

in

www.aaef.org.ar/boletin/articulo99.htm: 155 Determinacin del impuesto (1) 1. Mientras no se disponga otra cosa, los impuestos se determinan por la autoridad fiscal mediante acto de liquidacin. Acto de liquidacin es el acto administrativo notificado segn el 122 inc. 1. Esto tambin ser aplicable a la declaracin de que un impuesto no es debido en todo o en parte solicitud de determinacin del impuesto y a la denegatoria de una

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Dispe o Cdigo de Procedimento e Processo Tributrio portugus, no seu art. 44., n. 1, que o procedimento tributrio compreende, entre outros: As aces preparatrias ou complementares da liquidao dos tributos (al. a)) e a liquidao dos tributos, quando efectuada pela administrao tributria e regula no captulo III (art.s 59. a 64.) do Ttulo II (Do procedimento tributrio) o procedimento de liquidao. Enquanto acto administrativo, a liquidao tributria partilha das caractersticas e do regime dos actos administrativos em geral, quaisquer que sejam os seus autores ou a rea de interveno da Administrao Pblica. Caractersticas e regime que no so, contudo, pacficos na doutrina e na jurisprudncia administrativas e ou especificamente tributrias. Ponto indiscutvel ao nvel doutrinrio e jurisprudencial que os actos administrativos, traduzindo-se em estatuies autoritrias e unilaterais de rgos da Administrao Pblica praticados no uso de poderes conferidos por normas de direito pblico, se impem de per si na esfera jurdica dos respectivos destinatrios sem necessidade da concordncia (ainda que com a participao procedimental) dos destinatrios e de prvia deciso judicial. Significa isto que, nos modelos de administrao executiva cujas caractersticas essenciais so partilhadas pelos ordenamentos jurdicos portugus e espanhol, qualquer que seja o contedo do acto administrativo (v. g., imposio de deveres, constituio ou atribuio de direitos), a sua simples prolao, desde que acompanhada ou seguida da actividade apta a conferir-lhe eficcia, define a situao jurdica a que respeite, sem que se exija a interveno dum poder diferente nomeadamente o judicial do administrativo. A Administrao Pblica tem, assim, contrariamente ao que acontece aos particulares, o poder de definir unilateralmente o contedo das relaes jurdicas de que sujeito activo, ainda que esse poder esteja delimitado por um conjunto de princpios e normas, em especial pelo princpio da legalidade administrativa, com a dupla implicao:

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os rgos e agentes administrativos s podem agir com fundamento na lei e dentro dos limites pela lei estabelecidos 12. Pode, ento, dizer-se que, na esfera dos interesses pblicos postos por lei a cargo da Administrao Pblica, os seus rgos partilham com os tribunais o poder de dizer o direito, na medida em que definem unilateralmente situaes jurdicas. Sendo pacfica esta caracterstica que acompanha os actos administrativos a obrigatoriedade ou a qualidade de obrigarem por si, sem o concurso dos sujeitos que so os seus destinatrios ou de outros poderes - , j controversa a etiqueta que lhe deve ser afixada. A doutrina administrativista tradicional engloba esta caracterstica no chamado privilgio da execuo prvia. Era essa, por exemplo, a concepo do primeiro grande cultor do Direito Administrativo em Portugal, Marcello Caetano.13 Concepo essa objecto de crticas formuladas por vrios autores, com destaque para dois acadmicos nas suas teses de doutoramento, uma na rea do Direito Administrativo e outra na rea do Direito Fiscal14 15

.

Trata-se, contudo, de construes e recortes conceituais que continuam a no ser pacficos.

12

Sobre os traos essenciais do princpio da legalidade no Estado social de direito, cf., por todos, Joo Caupers, Introduo ao Direito Administrativo, ncora Editora, Lisboa, 2000, pgs. 48-50 Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 10. ed. (3. reimpress.), Almedina, Coimbra, 1984, pgs. 447-448 Rogrio Guilherme Ehthardt Soares, Interesse Pblico, Legalidade e Mrito, Atlntida, Coimbra, 1955, pgs. 309 e segs., e Alberto Pinheiro Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributrio, Almedina, Coimbra, 1972, pgs. 517 e segs

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Um outro autor, Diogo Freitas do Amaral, ainda que continuador no essencial da escola de Marcello Caetano, dele divergiu neste ponto, ao separar o entender o privilgio da execuo prvia (ou (ou autotuela autotutela executiva) como poder diferenciado do poder de deciso unilateral declaratuva). Direito Administrativo, Vol. II, Lisboa, 1988, pg.s 22-23

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Rui Chancerelle de Machete

prefere, como muitos autores e na esteira de

Giannini, chamar imperatividade a essa qualidade dos actos pblicos, comum aos actos legislativos, s sentenas e aos actos administrativos, de produzir efeitos na esfera jurdica de terceiros, apesar da sua unilateralidade, isto , sem o concurso dos sujeito ou sujeitos que so seus destinatrios 16. A imperatividade dos actos tributrios no surge de modo evidenciado nas formulaes do legislador portugus. Em todo o caso, como o demonstram os antecedentes histricos do preceitos, o Cdigo de Procedimento e de Processo Tributrio dispe, a esse propsito e ainda que utilizando terminologia inadequada, no seu art. 60. do CPPT, sob a epgrafe Definitividade dos actos tributrios: Os actos tributrios praticados por autoridade fiscalcompetente em razo da matria so definitivos quanto fixao dos direitos dos contribuintes, sem prejuzo da sua eventual reviso ou impugnao nos termos da lei.17

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Rui Chancerelle de Machete, Provilgio da Execuo Prvia, in Dicionrio Jurdico da Administrao Pblica, Vol. VI, Lisboa, 1994, pg. 451 No deixa de ser, pelo menos, curiosa a recorrente retomada histrica de disposies normativas com contedo perfeitamente inadequado. Este preceito tem exactamente a mesma redaco do art. 18. do Cdigo de Processo Tributrio, aprovado pelo Decreto-lei n. 154/91, de 23 de Abril: Artigo 18 . DEFINITIVIDADE DOS ACTOS TRIBUTRIOS Os actos tributrios praticados por autoridade fiscal competente em razo da matria so definitivos quanto fixao dos direitos dos contribuintes, sem prejuizo da sua eventual reviso ou impugnao nos termos deste Cdigo. A qual, por sua vez, sucede, com pequenos pormenores de estilo reduzidos existncia de mais duas vrgulas e subsituio da expresso vocabular nos termos dos artigos seguintes por nos termos deste Cdigo - , o art. 3. Cdigo de Processo das Contribuies e Impostos aprovado pelo Decreto-Lei n. 45005, de 27 de Abri de 1963, com a epgrafe Definitividade do acto tributrio: Os actos tributrios, praticados por autoridade fiscal competente em razo da matria, so definitivos quanto fixao dos direitos dos contribuintes, sem prejuzo da sua eventual reviso ou impugnao nos termos dos artigos seguintes

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Sem que seja o momento adequado para o analisar e criticar, no pode deixar de salientar-se que se trata de um preceito ambguo e tradicional no ordenamento tributrio portugus, pelo menos desde 1963 18. Duvida-se que a norma contida neste preceito legal tenha o limitado alcance que, aparentemente, o seu teor literal sugere, contrariamente ao entendimento expresso, por exemplo, por Jorge Lopes de Sousa no seu Cdigo de Procedimento e de Processo Tributrio Anotado 19, quando afirma:Esta norma , como resulta do seu texto, reporta-se apenas aos actos de natureza tributria que fixam direitos dos contribuintes. So esses actos, que tm directa repercusso na esfera jurdica dos contribuintes, que podem ser impugnados contenciosamente, o que constitui a satisfao de uma exigncia constitucional (art. 268., n. 4, da CRP).

Com efeito, tudo indica, sem que tenha sido possvel fazer a correspondente investigao, que a expresso direitos dos contribuintes tm um alcance semelhante quele que resulta do vocbulo direitos na expresso direitos aduaneiros, utilizada tradicionalmente no mbito do direito aduaneiro e com consagrao expressa no s nas legislaes nacionais mas tambm no art. 12., verso originria, do Tratado de Roma, de 25 de Maro de 1957, que instituiu a Comunidade Econmica Europeia, ou seja, expresso

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No justificando a impreciso ou, pelo menos, a incompletude do preceito, o certo que, no mbito do CPCI, ainda se compreende a expresso fixao dos direitos dos contribuintes em face do disposto no nico do art. 2. do mesmo diploma , em que se define que a funo tributria dos servios de administrao fiscal consiste na aplicao da lei aos factos nela previstos e na declarao dos direitos emergentes, sem que se especifique se esses direitos tm como sujeito activo o Estado ou os contribuintes. Vtor Antnio Duarte Faveiro, em Noes Fundamentais de Direito Fiscal Portugus, I Vol., Coimbra Editora, Coimbra, 1984, pg. 399, contudo, no hesita em afirnar que a declarao dos direitos, od Estado u docontribuinte emergentes da aplicao d aleiu aos factos nela previstos, nos termos do nico do art.igo 2., , afinal, o escopo predominante de toda a operao de aplicao da lei tributria. pela declarao que o direito se torna claro, concreto, definido e com contedo lquido e certo, e portanto, o acto produz, nos termos do citado artigo 3., efeitos definitivos.

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Jorge Lopes de Sousa, Cdigo de Procedimento e de Processo Tributrio Anotado, Vislis, Lisboa, 2000, pg.s 294-295

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equivalente de impostos aduaneiros, em que se acentua a perspectiva do sujeito activo e no, como aparentemente se sugere, a do sujeito passivo da imposio. Realce-se, contudo, que o conceito de definitividade associado aos actos tributrios no se confunde com a imperatividade e no , pois, diferente do aplicvel aos demais actos administrativos 20. O que importa destacar neste contexto simplesmente o facto de os actos tributrios, em especial os actos de liquidao, se imporem por si, sem necessidade de declarao judicial prvia, mas, naturalmente, sem prejuzo de, atravs dos meios impugnatrios adequados ou da reviso oficiosa, poderem ser anulados, revogados ou modificados. Ou seja, numa outra terminologia, pacfico o entendimento de que os actos de liquidao, enquanto actos administrativos, gozam da autotutela declarativa. Se lhes aproveita ou no a autotutela executiva matria que trataremos daqui a pouco.

2.2. A cobrana voluntria como actividade administrativa.

Definida unilateralmente a prestao tributria a cargo do contribuinte, atravs do acto administrativo de liquidao e produzindo este acto efeitos jurdicos na esfera do seu destinatrio, que se constitui na obrigao de efectuar o pagamento, a ordem jurdica no pode deixar de prever os meios adequados ao cumprimento dessa obrigao.

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No cabe no mbito deste trabalho o estudo da definitividade como qualidade (essencial ou acidental, no importa para o caso) dos actos tributrios. Sobre o conceito de definitividade no mbito da relao jurdica tributria, fazendo a distino entre a definitidade do acto impositivo e a definitividade da obrigao tributria, Frederico Bellini, Definitivit dellimposizione inesistente o difforme e possbili rimedi, Giuffr Editore, Milano, 1999

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A actividade de cobrana o outro lado da moeda do pagamento, visto agora na perspectiva do credor desenvolve-se ou por iniciativa do devedor (cobrana voluntria) ou mediante mecanismos coercitivos. Inquestionvel que a actividade de cobrana voluntria 21 se insere no mbito da actividade administrativa a cargo da Administrao Tributria, que se coloca numa posio de mera resposta aos impulsos ou iniciativas do contribuinte que se apresenta a pagar.

3. A cobrana coerciva das dvidas fiscais

Caso no seja efectuado o pagamento voluntrio da prestao tributria, os ordenamentos jurdicos definem processos ou procedimentos destinados a obrigar o devedor satisfao da prestao, mediante a execuo dos seus bens: em Portugal atravs do processo de execuo fiscal; em Espanha, atravs do procedimiento de apremio.

3.1. Sistemas de cobrana coerciva

Para a cobrana coerciva das dvidas tributrias podem ser adoptados dois sistemas (o sistema judicial e o sistema administrativo), como assinala Antonio Lpez Daz, fazendo, contudo notar que a opo por um ou outro dos sistemas est fundamentalmente ligada evoluo da Administrao e do Direito Administrativo de cada pas e s tenses entre o Poder Executivo e o Poder Judicial a que tenha estado sujeito o privilgio da autotutela 22.

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Afinal, a cobrana, ou seja, a arrecadao pelo credor, sempre voluntria, podendo no suceder o mesmo com o pagamento, ou seja, o desembolso feito pelo devedor. Antonio Lpez Daz, La recaudacin de deudas tributarias en va de apremio, Instituto de Estudios Fiscales / Marcial Pons, Madrid, 1992, pg. 147-148

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Assinala ainda o mesmo autor que, mesmo naquelas hipteses em que a opo feita pelo sistema judicial, est reservado para a Administrao um conjunto de actos tendentes cobrana coerciva, na medida em que lhe cabe a responsabilidade pela cobrana da dvida tributria no exerccio exactamente da funo de cobrana. A grande diferena entre os dois sistemas de cobrana coerciva traduz-se em que, nos casos de cobrana judicial, definida a dvida tributria atravs do acto de liquidao e no sendo obtido o pagamento voluntrio, a actuao sobre o patrimnio do devedor tendo em vista a realizao de equivalente a dinheiro para esse pagamento levada a cabo por um Tribunal, ou seja, por um rgo do Poder Judicial, enquanto no sistema de cobrana administrativa, a mesma Administrao Tributria que define o quantitativo da prestao tributria e actua sobre o patrimnio do devedor, caso este no efectue o pagamento voluntariamente. Ou seja, constatado pela Administrao Tributria o no pagamento voluntrio da prestao tributria, aquela elabora o ttulo executivo que, no caso de execuo judicial, entrega ao Tribunal para que este proceda s diligncias processuais de cobrana coerciva, agredindo, se necessrio, o patrimnio do devedor e, no caso de execuo administrativa, utiliza ela prpria para actuar agressivamente sobre o patrimnio do devedor.

4. Traos essenciais do processo de execuo fiscal (Portugal)

O processo de execuo fiscal est previsto e v as suas caractersticas essenciais definidas no art. 103. da Lei Geral Tributria, estando a sua regulamentao desenvolvida nos art.s do Cdigo de Procedimento e de Processo Tributrio (CPPT). Estabelece, de modo marcante, o art. 103. da LGT1 O processo de execuo fiscal tem natureza judicial, sem prejuzo da participao dos rgos da administrao tributria nos actos que no tenham natureza jurisdicional.

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O Cdigo de Procedimento e de Processo Tributrio autodefine o seu mbito de aplicao, como resulta do art. 1.: a) Ao procedimento tributrio; b) Ao processo judicial tributrio; c) cobrana coerciva das dvidas exigveis em processo de execuo fiscal; d) Aos recursos jurisdicionais.

Em matria de execuo fiscal e no plano das competncias, estabelece o mesmo Cdigo que: a) aos servios da administrao tributria cabe Instaurar os processos de execuo fiscal e realizar os actos a estes respeitantes, salvo os previstos no n. 1 do artigo 151. do presente Cdigo (art. 10., n. 1, al. f)) b) findo o prazo de pagamento voluntrio estabelecido nas leis tributrias, ser extrada pelos servios competentes certido de dvida com base nos elementos que tiverem ao seu dispor, as quais serviro de base instaurao do processo de execuo fiscal a promover pelos rgos perifricos locais (art. 88., n.s 1 e 4) c) Considera-se rgo da execuo fiscal o servio perifrico local da administrao tributria onde deva legalmente correr a execuo ou, quando esta deva correr nos tribunais comuns, o tribunal competente (art. 149.)23 d) Compete ao tribunal tributrio de 1. instncia da rea onde correr a execuo, depois de ouvido o Ministrio Pblico nos termos do presente Cdigo, decidir os incidentes, os embargos, a oposio, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiria, a graduao e verificao de

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J que se admite em algumas disposies legais que a forma do processo de execuo fiscal possa ser seguida na cobrana coerciva de dvidas no tributrias da competncia dos tribunais comuns

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crditos e as reclamaes dos actos materialmente administrativos praticados pelos rgos da execuo fiscal (art. 151., n. 1). Resulta, pois, do quadro normativo definido no CPPT que a prtica de todos os actos na execuo , por regra da competncia, dos rgos da Administrao Tributria, s estando reservadas para a competncia do tribunal as matrias elencadas no art. 151. (decidir os incidentes, os embargos, a oposio, a graduao e verificao de crditos e as reclamaes dos actos materialmente administrativos praticados pelos rgos da execuo fiscal). Assim, cabem nos poderes da Administrao Tributria, entre outros: a) em face da certido de dvida, verificar que tem condies para servir de base execuo, ou seja, ajuizar da exequibilidade do ttulo dado execuo b) ordenar a penhora de bens do executado c) ordenar e decidir a venda dos bens penhorados d) decidir fazer prosseguir a execuo contra responsveis subsidirios, ajuizando da verificao dos respectivos pressupostos Tendo em vista o objecto do presente trabalho, importa ainda destacar mais alguns dados do direito positivo portugus com alguma relevncia em matria de execuo. Assim, o art. 101. da LGT, inserido no captulo com a epgrafe Formas de processo e processo de execuo, define como meios processuais tributrios, isto , como formas de processo judicial tributrio: a) A impugnao judicial; b) A aco para reconhecimento de direito ou interesse legtimo em matria tributria; c) O recurso, no prprio processo, de actos de aplicao de coimas e sanes acessrias; d) O recurso, no prprio processo, de actos praticados na execuo fiscal;

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e) Os procedimentos cautelares de arrolamento e de arresto; f) Os meios acessrios de intimao para consulta de processos ou documentos administrativos e passagem de certides; g) A produo antecipada de prova; h) A intimao para um comportamento, em caso de omisses da administrao tributria lesivas de quaisquer direitos ou interesses legtimos; i) A impugnao das providncias cautelares adoptadas pela administrao tributria; j) Os recursos contenciosos de actos denegadores de isenes ou benefcios fiscais ou de outros actos relativos a questes tributrias que no impliquem a apreciao do acto de liquidao.

Por sua vez, o art. 96., n. 1, do CPPT estabelece que o processo judicial tributrio tem por funo a tutela plena, efectiva e em tempo til dos direitos e interesses legalmente protegidos em matria tributria e compreende, de acordo com o artigo seguinte: a) A impugnao da liquidao dos tributos, incluindo os parafiscais e os actos de autoliquidao, reteno na fonte e pagamento por conta; b) A impugnao da fixao da matria tributvel, quando no d origem liquidao de qualquer tributo; c) A impugnao do indeferimento total ou parcial das reclamaes graciosas dos actos tributrios; d) A impugnao dos actos administrativos em matria tributria que comportem a apreciao da legalidade do acto de liquidao;

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e) A impugnao do agravamento colecta aplicado, nos casos previstos na lei, em virtude da apresentao de reclamao ou recurso sem qualquer fundamento razovel; f) A impugnao dos actos de fixao de valores patrimoniais; g) A impugnao das providncias cautelares adoptadas pela administrao tributria; h) As aces para o reconhecimento de um direito ou interesse em matria tributria; i) As providncias cautelares de natureza judicial; j) Os meios acessrios de intimao para consulta de processos ou documentos administrativos e passagem de certides; l) A produo antecipada de prova; m) A intimao para um comportamento; n) O recurso, no prprio processo, dos actos praticados na execuo fiscal; o) A oposio, os embargos de terceiros e outros incidentes e a verificao e graduao de crditos; p) O recurso contencioso do indeferimento total ou parcial ou da revogao de isenes ou outros benefcios fiscais, quando dependentes de

reconhecimento da administrao tributria, bem como de outros actos administrativos relativos a questes tributrias que no comportem apreciao da legalidade do acto de liquidao; q) Outros meios processuais previstos na lei.. Comparando o teor do n. 1 do art. 97. do CPPT com o do art. 101. da LGT, verifica-se que, em matria de execuo fiscal, o segundo omisso no que toca ao enquadramento da oposio, dos embargos de terceiros e outros incidentes e da verificao e graduao de crditos nas formas de processo judicial tributrio, enquanto

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Ou seja, a Lei Geral Tributria foi afoita em classificar o processo de execuo fiscal como processo judicial (art. 103.), no extraindo da todas as consequncias, ao retir-lo do elenco das formas de processo judicial tributrio veja-se a epgrafe d captulo II do Ttulo IV, dedicado ao processo tributrio, denominada formas de processo e processo de execuo e incompleta, ao no elencar nas formas de processo judicial tributrio a oposio, os embargos de terceiros, a graduao dos crditos e outros incidentes no processo executivo. Por outro lado, o diploma regulador do procedimento e processo tributrio emanado, entre outros objectivos, para a compatibilizao das suas normas com as da lei geral tributria 24 no fez incluir o processo de execuo fiscal no processo judicial, mas to s alguns incidentes do processo de execuo (os j referidos recurso dos actos praticados pela Administrao Tributria na execuo fiscal; oposio, embargos de terceiros e outros incidentes e a verificao e graduao de crditos).

5. Traos essenciais do procedimiento de apremio (Espanha) No ordenamento jurdico espanhol, o regime bastante mais claro, o que no significa que no seja controverso. Com efeito, o processo de cobrana coerciva de dvidas tributrias assumido sem hesitaes pela Ley General Tributaria (art. 129, 1) como um procedimento administrativo:

24

Como dispe o n. 6 do art. 51. da Lei n. 87-B/98, de 31 de Dezembro (Oramento do Estado para 1999), que confere autorizao ao Governo, no propriamente para aprovar um novo Cdigo, como foi feito, mas sim para alterar o Cdigo de Processo Tributrio, aprovado pelo Decreto-Lei n. 154/91, de 23 de Abril.

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El procedimiento de apremio ser exclusivamente administrativo. La competencia para entender del mismo y resolver todos sus incidentes es exclusiva de la Administracin tributaria.

Ou seja, contrariamente ao que se passa com o processo de execuo fiscal portugus, no procedimiento de apremio cabem Administrao Tributria todos os poderes, incluindo os de resolver os incidentes, sem prejuzo, naturalmente, do direito de recurso que assiste aos executados.

6. Admissibilidade da autotutela executiva em matria tributria Independentemente da classificao dos respectivos processos como

administrativos ou judiciais, o certo que, tanto no ordenamento jurdico portugus quanto no espanhol, so conferidos poderes Administrao Tributria para executar os seus prprios actos administrativos (actos de liquidao) 25. Ou seja, a ordem jurdica dos dois pases ibricos confere poderes de autotutela executiva Administrao Tributria no que toca cobrana coerciva de prestaes fixadas atravs de actos de liquidao de tributos. Mas, sendo pacfico, como j deixamos acentuado, o entendimento de que a Administrao Pblica em geral e, em especial, a Administrao Tributria goza do poder de autotutela declarativa, ser que o mesmo se pode dizer da autotutela executiva?. uma redundncia afirmar-se que a autotutela executiva admissvel porque a prpria lei, ainda que no lhe apondo essa etiqueta, a prev ao conferir poderes, em diversas sedes normativas, Administrao Pblica para executar os seus prprios actos.

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No curando, mais uma vez, da anlise de outras situaes tributrias, como as decorrentes das autoliquidaes.

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A questo h-de ser colocada fundamentalmente no plano da juridicidade dos preceitos legais atributivos de tais poderes e da sua conformidade com o ordenamento constitucional. E, como a propsito da generalidade das questes, existem defensores de teses opostas. De modo ilustrativo, escreve Matas Acebes Fernndez 26:Ello [la utilizacin del procedimiento de apremio para la recaudacin de las deudas tributarias] no es sino la manifestacin y concrecin legal del denominado privilegio de ejecutividad ou ejecutoriedad de los actos administrativos, o autotutela ejecutiva, de que goza nuestra administracin y que en la esfera local se encuentra expresamente en los artculos 4,1, e) y 51 de la Ley 7/1985 de Bases del Rgimen Local (en adelante LBRL).Aun cuando este privilegio no goza de reconocimiento constitucional expreso, su conformidad con el ordenamiento constitucional y su plena virtualidad en el mbito local ha sido aseverada por el mismo Tribunal Constitucional, que ya en su temprana Sentencia 22/1984, de 17 de febrero, (BOE 9-3-1984. Ponente D. Luis DezPicazo y Ponce de Len) estableci: 4. La potestad de la Administracin de autoejecucin de las resoluciones y actos dictados por ellas se encuentra en nuestro Derecho positivo vigente legalmente reconocido y no puede considerarse que sea contrario a la Constitucin. Es verdad que el artculo 117.3 de la Constitucin atribuye el monopolio de la potestad jurisdiccional consistente en ejecutar lo decidido a los Jueces y Tribunales establecidos en las Leyes, pero no es menos cierto que el artculo 103 reconoce como uno de los principios a los que la Administracin Pblica ha de atenerse el de eficacia con sometimiento pleno de la Ley y al Derecho, significa ello una remisin a la decisin del legislador ordinario respecto de aquellas normas, medios e instrumentos en que se concrete la consagracin de la eficacia. Entre ellas no cabe duda de que se puede encontrar la potestad de autotutela o de autoejecucin practicable genricamente por cualquier Administracin Pblica con arreglo al artculo 103 de la Constitucin y, por ende, puede ser ejercida por las autoridades municipales, pues aun cuando el artculo 140 de la Constitucin establece la autonoma de los municipios, la

26

Escreve Matas Acebes Fernndez, Impugnacin de la Providencia de Apremio, Byer Hnos. S.A., Col. Temas de Administracin Local, Barcelona, 2000, pg. 25-26

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Administracin municipal es una Administracin pblica en el sentido del antes referido artculo 103.

Tesis posteriormente confirmada por diversos pronunciamientos del mismo Tribunal, entre los ms recientes el de la Sentencia 78/1996 de 20 de mayo (BOE 21-61996. Ponente D. Jos Gabaldn Lpez). Independentemente da gnese e evoluo histrica do poder de autotutela executiva, pode dizer-se que, com algumas hesitaes e outras tantas excepes, entendimento maioritrio na doutrina e praticamente unnime na jurisprudncia constitucional espanhola o entendimento de que legtima a atribuio de tais poderes Administrao Pblica. Recorda Rosa Litago Lled27

que se podem formular existncia do poder de

autotutela executiva duas objeces do ponto de vista constitucional: a possvel coliso com a atribuio exclusiva de poder jurisdicional aos rgos do Poder Judicial e a que, do ponto de vista do princpio da igualdade, advm da posio de supremacia que confere Administrao a atribuio desse poder. Para justificar a autotutela executiva da Administrao Pblica, tm sido utilizados diversos fundamentos: desde os centrados na natureza dos poderes da Administrao por confronto ou comparao com o poder judicial, passando pela presuno da legalidade dos actos administrativos, pela mera sede legal habilitadora desse poder e terminando no princpio da eficcia administrativa 28. A jurisprudncia constitucional espanhola, com o importante marco constitudo pela sentena n. 22/1984, de 17 de Fevereiro, cujo fundamento jurdico 4 acima se transcreve,pe o acento tnico da conformidade constitucional das normas que conferem poderes de

27

Rosa litago Lled, Las Autoliquidaciones Tributarias ante la Recaudacin Ejecutiva, Aranzadi, 2000, pg. 26 Com uma anlise dos diferentes fundamnetos jurdicos da autotutela executiva, Cf. Antonio Lpez Daz, La recaudacin de deudas tributarias en va de apremio, Instituto de Estudios Fiscales / Marcial Pons, Madrid, 1992, pg. 151-155

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autotutela executiva precisamente no princpio da eficcia, erigido a princpio rector ou matriz, de algum modo colocado numa posio de superioridade relativamente ao princpio da reserva de jurisdio consagrado no art. 117.3 da Constituio espanhola. 29

Ainda que a propsito da incompletude das leis suprida pela interveno da Administrao, mas com pertinncia aplicvel neste mbito, pode dizer-se, com Muoz Machado que el juez queda de esta manera vctima de una especie de ideologa de la eficacia, depois de denunciar que, com a abolio das frmulas do rfr lgislatif, se estn gestando nuevas de ruptura de la separacin de poderes, nuevos modos de intromisin de la Administracin en los dominios caractersticos de la funcin jurisdiccional. Se trata esta vez de que aqulla est asumiendo tareas interpretativas que no slo deberan quedar a la exclusiva disposicin de los Tribunales, sino que, a veces, tratan de situar a stos en una posicin tan subordinada que su juicio se agota en una aplicacin nada creativa de la norma administrativa interpuesta entre ellos y la ley. Se est produciendo, como dice el autor citado [J. Prieur], un abandono del poder normativo de la jurisprudencia en beneficio de la Administracin 30A fundamentao constante daquela sentena tem sido reiteradamente utilizada em outras decises judiciais, no s no mbito das relaes administrativas em geral como no mbito das relaes tributrias.

Santiago Muoz faz-lhe uma apreciao crtica nestes termos 31:

29

Existem desenvolvimentos sobre esta matria em: - Antonio Lpez Daz, La recaudacin de deudas tributarias en va de apremio, Instituto de Estudios Fiscales / Marcial Pons, Madrid, 1992, pg. 153-154 - Rosa litago Lled, Las Autoliquidaciones Tributarias ante la Recaudacin Ejecutiva, Aranzadi, 2000, pgs. 45-51

30

Santiago Muoz Machado, La Reserva de Jurisdiccin, La reserva de jurisdicin, La Ley, Madrid, 1989, pg. 110. Santiago Muoz Machado, La Reserva de Jurisdiccin, La reserva de jurisdicin, La Ley, Madrid, 1989, pg. 116

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La primera vez que el Tribunal Constitucional se plante de manera frontal y por extenso el problema de la compatibilidad de algunas prerrogativas de la Administracin con la nueva ordenacin constitucional de la Justicia, fue en la Sentencia 22/84, de 17 de febrero (Tomas Pravia). El Tribunal examin (a instancias de quien haba recurrido contra una decisin administrativa que supona la entrada en un domicilio particular sin mediar la autorizacin judicial que requiere el artculo 18.2 de la Constitucin) la adecuacin a la Constitucin de la potestad de la Administracin de autoejecucin de las resoluciones y actos dictados por ella. La sentencia afirm que esta potestad de autotutela no es necesariamente incompatible con el artculo 117.3 de la Constitucin que atribuye el monopolio de la potestad jurisdiccional consistente en ejecutar lo decidido a los jueces y Tribunales establecidos en las leyes.

Admitindo que possa estar correcta a concluso do Tribunal Constitucional espanhol, manifesta, contudo, a sua discordncia com o mtodo utilizado: Afirma [el Tribunal]que, no obstante el artculo 117.3, el artculo 103 de la Constitucin obliga a la Administracin a atenerse al principio de eficacia y remite a la ley la bsqueda de frmulas para que la actuacin administrativa sea eficaz. Los poderes de autotutela o de autoejecucin seran de esta clase y tendran su fundamento en el artculo 103 de la Constitucin. El argumento del Tribunal, adems de incurrir en una evidente peticin de principio (no justifica que mantenerse en el rgimen ordinario de ejecucin a travs de los jueces y Tribunales sea un procedimiento de ejecucin administrativa ineficaz, ni observa por qu no son ineficaces las Administraciones de otros pases - incluso los de la cultura administrativa francesa - que someten la ejecucin al mtodo judicial ordinariamente), no pone ningn coto a la definicin legal de las exigencias del principio de eficacia, que, por lo menos, tiene el lmite obvio de deber formularse compatibilizndose (lo que es posible,

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como ensean otros sistemas) con la reserva de atribuciones que formula el artculo 117.3 en favor de la jurisdiccin. Tampoco parece que pueda postularse una extincin de la prerrogativa de la autotutela ejecutiva de que dispone la Administracin; lo que se trata de indicar es que la valoracin sobre su adecuacin a la Constitucin necesita todava de otras reflexiones del Tribunal Constitucional. La Sentencia 22/84, termin, no obstante, por declarar que la extensin con que la ley ha formulado las potestades de ejecucin forzosa debe modularse, por lo menos en aquellos casos en que, a efectos de proteccin de derechos concretos, la Constitucin exije la autorizacin previa de un juez. [..] [..] estas mixturas en los sistemas jurdicos (tomando al tiempo notas de la ejecucin de actos administrativos por va judicial y manteniendo la regla de la autoejecucin) plantean problemas organizativos serios que hay que abordar directamente y no por el mtodo de abrir vas de agua concretas y limitarse a taponarlas sin tener como lnea gua una concepcin acabada del sistema en su conjunto. Es seguro que la Constitucin contiene orientaciones ms exactas que pueden extraerse en la jurisprudencia para conseguir resultados renovadores y no perjudiciales ni para el funcionamiento de la Administracin ni el de la Justicia.32

No ordenamento jurdico portugus, sem que existam expressos pronunciamentos doutrinrios e jurisprudenciais em matria tributria, vai sendo cada vez mais questionada a existncia de um verdadeiro poder de autotutela executiva da Administrao Pblica, no obstante as posies mais tradicionais a sustentarem. 33

32

Santiago Muoz Machado, La Reserva de Jurisdiccin, La reserva de jurisdicin, La Ley, Madrid, 1989, pgs. 117-119 Um estudo aprofundado da execua dos actos administrativos, ainda anterior ao Cdigo de Procedimento Administrativo, mas com uma lcuda anlise crtica, entre outros, do princpio da eficincia para justificar a executoriedade, pode ver-se em Maria da Glria Ferreira Pinto, Breve Reflexo sobre a

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Nuno Vasconcelos Sousa sustenta, de modo que poderemos dizer ilustrativo: 34Os prprios rgos da Administrao gozam da possibilidade de execuo coactiva dos actos administrativos. H uma autotutela declarativa, pois a Administrao define em termos obrigatrios uma situao ou relao jurdico-administrativa concreta, sem necessitar que um tribunal, previamente, tenha definido essa situao. Por outro lado, h uma autotutela executiva, isto , a Administrao pode assegurar a execuo coactiva das suas prprias decises, sem ser preciso recorrer via judicial. So possveis, neste mbito, dois pontos de vista: O primeiro defende, face da Constituio actual, a jurisdicionalizao da execuo. Por um lado, a autotutela executiva seria uma prerrogativa da administrao demasiado gravosa para os destinatrios, no permitida pela segunda parte do art. 266., 1, CRP. O art. 268., 3 e 4, s previu a autotutela declarativa, atravs da referncia aos actos administrativos, pelo que a execuo desses actos deveria seguir a via jurisdicional normal. Pelo menos, em matria de direitos fundamentais, a execuo deveria ser jurisdicional. O princpio da executoriedade no mencionado entre os princpios gerais do CPA (arts. 3. a 12.). As Lies propendem para um segundo ponto de vista que aceita que a actual Administrao pblica portuguesa possui ambos os poderes: a autotutela declarativa e a executiva. Primeiro, porque este o sistema tradicional em Portugal. Se a Constituio e as leis pretendessem alterar radicalmente este sistema, teriam certamente manifestado essa inteno expressamente. Nem existe essa tal manifestao expressa de revogar o sistema tradicional de execuo das decises administrativas, nem se organizaram os meios processuais que habilitariam que actuasse um sistema de execuo jurisdicional. A realizao do Estado de Direito Democrtico e Social exige a garantia do cumprimento dos interesses pblicos e a

Execuo Coactiva dos Actos Administrativos, ESTUDOS - XX Aniversrio do CEF, vol II, DGCI, 1983, pg. 523-57234

Nuno Vasconcelos Sousa, Direito Administrativo - Vol. I, Almeida & Leito,Porto, 2001, pgs. 120123:

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eficincia da actividade administrativa (arts. 266., 1, 267., 2, CRP), o que se julga de mais fcil realizao atravs da prerrogativa executria da Administrao. Tambm, o tradicional posicionamento Estado-Sociedade civil, em Portugal, tem sido muito diverso do existente nos pases anglo-saxnicos. Os tribunais portugueses no se tm evidenciado pela sua grande celeridade e dinamismo processual e substantivo, o que certamente iria dificultar a actividade administrativa, se fosse necessria a autorizao judicial para a Administrao executar is seus actos, no caso de oposio dos destinatrios. Repare-se que a questo no , propriamente, da contabilizao dos custos financeiros envolvidos, porque a jurisdicionalizao da execuo caberia certamente aos tribunais administrativos, j previstos nas leis. Em pases, como a Alemanha e a Espanha, que tm exercido sempre influncia no direito portugus, a administrao pblica detm poderes executivos prprios. O art. 95 da Ley 30/1992, de 26 de Noviembre, espanhola consigna: Las Administraciones Pblicas, a travs de sus rganos competentes en cada caso, podrn proceder, previo apercebimiento, a la ejecucin forzosa de los actos administrativos, salvo en los supuestos en que se suspenda la ejecucin de acuerdo con la ley, o cuando la Constitucin o la ley exijan la intervencin de los Tribunales. A autotutela declarativa, que o aspecto mais essencial, est prevista no art. 268., 3 e 4, CRP, na aluso que faz ao conceito de actos administrativos, decorrendo da, implicitamente, a aceitao de poderes executivos prprios da Administrao, isto , a autotutela executiva, que um aspecto consequente da primeira. Quando a lei pretende uma excepo regra da autotutela executiva prev o caso expressamente, como sucede no caso das prestaes pecunirias devidas. Ver o art. 149., 3, CPA (o cumprimento das obrigaes pecunirias resultantes de actos administrativos pode ser exigido pela administrao nos termos do art. 155., 1 (quando, por fora dum acto administrativo, devam ser pagas a uma pessoa colectiva pblica, ou por ordem desta, prestaes pecunirias, seguir-se-, na falta de pagamento voluntrio no prazo fixado, o processo de execuo fiscal regulado no Cdigo do Processo Tributrio execuo pela via dos tribunais fiscais). Tambm no h execuo (administrativa) forada das prestaes no art. 187. CPA

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(salvo disposio legal em contrrio, a execuo forada das prestaes contratuais em falta s pode ser obtida atravs dos tribunais administrativos). Em suma, o art. 149., 1 e 2, CPA no negou, em geral, o sistema de administrao executiva, porm, delimitou-o por forma mais conforme ao princpio da legalidade (art. 266., 2, CRP, art. 3. CPA). Os actos administrativos so executrios logo que eficazes. A prtica dum acto administrativo que necessite de execuo e produza efeitos ttulo bastante para a respectiva execuo pela Administrao. O cumprimento das obrigaes e o respeito pelas limitaes que derivam de um acto administrativo podem ser impostos coercivamente pela administrao sem recurso prvio aos tribunais. Mas, aqui comea a divergncia em relao ao regime francs clssico: a imposio coerciva pela Administrao tem de ser feita pelas formas e nos termos previstos no CPA ou admitidos por lei. Quando a lei ou a Constituio no exigem a interveno dos tribunais na execuo coerciva dos actos administrativos, a Administrao pode proceder execuo por autoridade prpria. A prtica dum acto administrativo impositivo necessita dum fundamento legal (devido autotutela declarativa, a Administrao definiu qual o direito da situao concreta). A posterior, e consequente, se necessria, execuo do acto administrativo pela Administrao deve respeitar os direitos fundamentais dos destinatrios, isto , dos sujeitos passivos da execuo, e os restantes direitos e interesses legalmente protegidos (art. 266., 2, CRP).

Resta acrescer que o art. 155. , n. 1, do CPA estatui: Quando. por fora de um acto administrativo devam ser pagas a uma pessoa colectiva pblica, ou por ordem desta, prestaes pecunirias, o rgo administrativo competente seguir, sendo caso disso, o processo de execuo regulado no Cdigo de Processo Tributrio.

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Este preceito tem sido entendido como remetendo para um verdadeiro processo judicial o processo de execuo fiscal no errado pressuposto de que se trata de um processo dirigido por um juiz e com todas as garantias inerentes 35.

7. A inconstitucionalidade de normas do Cdigo de Procedimento e de Processo Tributrio Debrucemo-nos agora sobre a eventual inconstitucionalidade das normas do Cdigo de Procedimento e de Processo Tributrio que conferem poderes a rgos da Administrao Tributria para praticar alguns actos na execuo fiscal Tais normas so fundamentalmente as consagradas nos art.s 10., n. 1, al. f), e 151., n. 1, j acima citadas. E, ademais de eventual inconstitucionalidade orgnica, de que no trataremos, podemos, desde j alinhar alguns argumentos no sentido da desconformidade, do ponto de vista material, entre aquelas normas e o princpio da separao de poderes, de que emana a reserva de jurisdio, com consagrao nos art. 111., n. 2 36, 202., ns. 1 e 2 37, 212., n. 3 38, 268., n. 4 39, da CRP.

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Desse pressuposto foi dado conta em algumas conferncias promovidas antes e pouco tempo aps a entrada em vigor do CPA pelo seu principal autor material, o Prof. Diogo Freitas do Amaral, e continua espelhado, de algum modo, em anotaes ao CPA, como o caso de Mrio Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonalves e J. Pacheco de Amorim, Cdigo do Procedimento Administrativo Comentado, Vol. II, Almedina, Coimbra, 1995, pg. 256, ao referirem: No tribunal tributrio, aps a recepo da certido com aliquidao da dvida exequenda, seguem-se as seguintes formalidades (...)

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Artigo 111. (Separao e interdependncia) 1. Os rgos de soberania devem observar a separao e a interdependncia estabelecidas na Constituio. 2. Nenhum rgo de soberania, de regio autnoma ou de poder local pode delegar os seus poderes noutros rgos, a no ser nos casos e nos termos expressamente previstos na Constituio e na lei.

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Artigo 202.

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De acordo com o art. 10., n. 1, al. f), do CPPT, aos servios da administrao tributria cabe Instaurar os processos de execuo fiscal e realizar os actos a estes respeitantes, salvo os previstos no n. 1 do artigo 151. do presente Cdigo. Por sua vez, nos termos do n. 1 do art. 151. do mesmo Cdigo, em matria de execuo fiscal, s compete aos tribunais tributrios decidir os incidentes, os embargos, a oposio, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiria, a graduao e verificao de crditos e as reclamaes dos actos materialmente administrativos praticados pelos rgos da execuo fiscal. Assim, em matria de execuo fiscal, compete, nomeadamente, ao chefe de finanas, directamente ou atravs de funcionrios dele hierrquica e funcionalmente dependentes: a instaurao da execuo; a efectivao da penhora de bens do executado,

(Funo jurisdicional) 1. Os tribunais so os rgos de soberania com competncia para administrar a justia em nome do povo. 2. Na administrao da justia incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidados, reprimir a violao da legalidade democrtica e dirimir os conflitos de interesses pblicos e privados. 3. No exerccio das suas funes os tribunais tm direito coadjuvao das outras autoridades. 4. A lei poder institucionalizar instrumentos e formas de composio no jurisdicional de conflitos.38

Artigo 212. (Tribunais administrativos e fiscais) 1. O Supremo Tribunal Administrativo o rgo superior da hierarquia dos tribunais administrativos e fiscais, sem prejuzo da competncia prpria do Tribunal Constitucional. 2. O Presidente do Supremo Tribunal Administrativo eleito de entre e pelos respectivos juzes. 3. Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das aces e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litgios emergentes das relaes jurdicas administrativas e fiscais.

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4. garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnao de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinao da prtica de actos administrativos legalmente devidos e a adopo de medidas cautelares adequadas.

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precedida ou no de mandado subscrito pelo mesmo chefe; a atribuio do valor aos bens penhorados; a determinao da modalidade de venda dos bens penhorados; a venda dos bens penhorados; a extino da execuo, em determinadas circunstncias; a reverso da execuo contra responsveis subsidirios. Ora, se do conjunto dos actos praticados pelo chefe do servio de finanas no processo de execuo fiscal, pode ser relativamente pacfica a aceitao da qualificao de alguns deles como actos materialmente administrativos, outros existem, porm, que no podem deixar de ser actos materialmente jurisdicionais. Esto claramente neste ltimo grupo, pelo menos, a formulao de juzo sobre a exequibilidade do ttulo executivo, a penhora (rectius, a deciso de penhorar) bem como a venda dos bens penhorados bem como a deciso de reverter a execuo contra os responsveis subsidirios. Tais actos, susceptveis de lesar, grave e irremediavelmente, entre outros, o direito de propriedade constitucionalmente garantido pelo art. 62. da CRP, s podem, face da lei bsica do Pas e dos princpios que a inspiram, ser levados a cabo pelos tribunais. No se ignora a dificuldade na rigorosa delimitao da fronteira entre os actos materialmente jurisdicionais e administrativos, de que do conta a doutrina e a jurisprudncia. Assim, os acrdos do Tribunal Constitucional n.s 190/92, publicado no D. R., II Srie, de 19/08/92, e 963/96, publicado no D. R., I Srie-A, de 9/10/96, referem ensaiar-se no art. 205., n. 2, da Constituio, uma definio da funo jurisdicional, que na doutrina deveras controvertida. So trs as reas especialmente mencionadas: a) A defesa dos direitos e interesses legtimos dos cidados (o que aponta directamente para a justia administrativa); b) A represso das infraces da legalidade democrtica (o que aponta especialmente para a justia criminal);

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c) A resoluo dos conflitos de interesses pblicos e privados (o que abrange principalmente a justia cvel). Mais se defende nos mesmos arestos que A linha de fronteira ter de atender no apenas densificao doutrinal adquirida da funo jurisdicional, aos casos constitucionais de reserva judicial - artigos 27., n. 2, 28., n. 1, 33., n. 4, 34., n. 2, 36, n. 6, 46., n. 2, e 116., n. 7 - mas tambm ao apuramento neste campo de um entendimento exigente do princpio do Estado de direito democrtico (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituio da Repblica Portuguesa Anotada, 3. edio, pp. 792 e 793). Prosseguem os mesmos acrdos sublinhando que No plano da jurisprudncia administrativa (cf. por todos o Acrdo do Supremo Tribunal Administrativo de 13 de Novembro de 1980, Acrdos Doutrinais, n. 231, pp. 286 e segs.) tem-se entendido que existe um acto jurisdicional quando a sua prtica se destina a realizar o prprio interesse pblico da composio de conflitos de interesses, tendo como fim especfico, portanto, a realizao do direito e da justia; e existe um acto administrativo quando a composio de interesses em causa tem em vista a prossecuo de qualquer outro dos interesses pblicos, que ao Estado incumbe realizar, representando aquela composio um simples meio ou instrumento para a sua satisfao - sendo certo que a distino entre as duas funes reside no carcter de parcialidade ou imparcialidade que assume a actividade do rgo que procede composio do conflito de interesses, aferida em funo de uma situao de indiferena ou desinteresse perante o conflito, pelo que h acto administrativo se esse rgo, ou, melhor dizendo, se a pessoa a que o mesmo pertence, interessado ou parte no conflito, e h acto jurisdicional na hiptese contrria. Entre outros, o acrdo do STA de 4/03/92 (recurso n. 13782) sustenta, depois de um excurso doutrinrio, referindo-se ao processo consoante vem regulado no CPT, ou seja, em termos idnticos aos regulados no CPPT, que o processo de execuo fiscal ,

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pois, um processo de natureza jurisdicional, porque integrado por actos que visam dirimir um conflito de interesses 40 E continua: De resto [...], o CPT configura o processo de execuo como um verdadeiro processo jurisdicional. Em primeiro lugar deve salientar-se que a alnea f) do n. 2 do artigo 71. do CPT diz respeito, no cobrana coerciva, mas sim cobrana voluntria, Ou seja, de tal preceito no pode extrair-se a concluso da natureza administrativa da execuo fiscal, segundo o CPT. Por outro lado, a verdade que o Ttulo V do CPT artigos 233. e segs. mostra com toda a evidncia que o processo de execuo fiscal tratado como um processo jurisdicional. E se, at entrada em vigor da LGT, no havia disposio expressa a conferir natureza judicial ao processo de execuo fiscal, apesar da omisso do CPPT41, o j citado art. 103. da LGT define-o como processo judicial. No sentido da natureza materialmente jurisdicional dos referidos actos praticados no processo de execuo fiscal se pronuncia tambm o pedido de declarao da inconstitucionalidade da norma nsita na 1. parte da alnea d) do art. 40. do revogado CPCI formulado pelo Provedor de Justia (Acrdo n. 465/91 do Tribunal Constitucional, publicado no D. R., II Srie, de 2/4/92). No mesmo sentido se pronuncia o Prof. Teixeira Ribeiro em anotao ao acrdo de 8 de Abril de 1992 (RLJ, ano 126., n. 3828, pgs. 80-81). Como defende Miguel Teixeira de Sousa, A aco executiva enquadra-se, assim, na efectividade da tutela jurisdicional e na garantia do acesso aos tribunais para a defesa dos direitos e interesses legtimos (art. 20., n. 1, CRP).42

40 41

Fisco, n. 47, Outubro de 1992, pg. 41. Mas, o art. 18., sob a epgrafe Incompetncia territorial em processo judicial, refere-se arguio da incompetncia relativa no processo de execuo. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, 1997, pg. 603

42

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Ao Estado compete o exerccio, atravs dos tribunais, da funo jurisdicional (art. 202., n. 1, CRP). Na aco declarativa, aceita-se que a lei ou as partes (estas mediante a celebrao de uma conveno de arbitragem, art. 1. LAV) atribuam a um tribunal arbitral competncia para a apreciao de um litgio (cfr. art. 209., n. 2, CRP). Mas o mesmo no sucede no mbito da execuo, para a qual o Estado goza de um monoplio absoluto. Indcio deste o disposto no art. 30. LAV quanto competncia (exclusiva) do tribunal de primeira instncia para a execuo da deciso arbitral. Assim, s o Estado dispe dos meios coactivos para a realizao efectiva das prestaes no cumpridas. No processo executivo, o ius imperii do Estado manifesta-se em determinados actos processuais, como o caso da penhora, que se efectiva atravs da apreenso de bens do devedor (art. 821., n. 1) ou, em certos casos, de um terceiro (art. 821., n. 2) ou da notificao ao terceiro devedor de que o crdito do executado fica ordem do tribunal (art. 856., n. 1) assim como da venda executiva dos bens penhorados (art. 886.), pela qual se obtm um montante pecunirio que entregue ao exequente para pagamento da dvida (art. 872., n. 1). Sem o recurso ao ius imperii do tribunal, o credor no poderia promover a penhora de bens do executado e no poderia realizar a venda desses mesmos bens, porque isso constituiria uma violao de um direito de propriedade constitucionalmente garantido (art. 62., n. 1, CRP). o uso desse ius imperii em benefcio do exequente que justifica que a pretenso exequenda possa prevalecer sobre o direito de propriedade do executado sobre os bens que so afectos realizao coactiva da prestao, pois s ele permite subordinar o direito de propriedade do executado ao direito prestao do exequente. 43

43

Miguel Teixeira de Sousa, Aco Executiva Singular, Lisboa, 1998, pg. 24

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De resto, o direito de executar o patrimnio alheio no pode ser exercido sem o recurso funo jurisdicional e, em concreto, aos poderes de soberania do tribunal da execuo 44 45 Na mesma linha se pronuncia Jos Lebre de Freitas 46, ao referir que a reparao material coactiva do direito do exequente postula o emprego, efectivo ou potencial, da fora por parte dum rgo do Estado, dotado de jus imperii. Prossegue o mesmo autor: A satisfao do credor na aco executiva conseguida mediante a substituio do tribunal ao devedor. Porque este no efectuou voluntariamente a prestao devida, ou porque no procedeu demolio da obra que no podia ter efectuado, o tribunal procede apreenso de bens para, em substituio do devedor, pagar ao credor, ou para conseguir meios que permitam custear a prestao, por terceiros em vez do devedor, do facto por este devido47

, defendendo, em nota de rodap (nota 26) que Esta actuao

judicial visa a efectivao do direito e corresponde assim realizao duma funo jurisdicional, sendo de rejeitar as concepes que, como a de ALLORIO, tendem a enquadrar a execuo forada fora do mbito da jurisdio e, porque fundamentalmente realizada atravs de actos materiais que no conduzem ao caso julgado, a qualific-la como o exerccio duma funo administrativa, no mbito da chamada jurisdio voluntria (sublinhado nosso). E, contrariamente a alguns pronunciamentos doutrinrios e jurisprudenciais, os actos de execuo no se resume mera prtica de operaes materiais.

44 45 46

Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, 1997, pg. 626 Miguel Teixeira de Sousa, Aco Executiva Singular, Lisboa, 1998, pg. 22 Jos Lebre de Freitas, A aco Executiva Luz do Cdigo Revisto, 3. ed., Coimbra Editora, 2001, pg. 9, nota Jos Lebre de Freitas, A aco Executiva Luz do Cdigo Revisto, 3. ed., Coimbra Editora, 2001, pg. 16

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Assim o acentua Maria da Glria Ferreira Pinto, ainda que se refira actividade administrativa em geral: no se diga que os actos de execuo so puras operaes materiais que s interferem no mundo jurdico atravs do acto a executar. As referidas operaes materiais no so mais do que o resultado final de um conjunto de juzos que as precedem e se desenvolvem no mbito do ordenamento jurdico: o juzo de qualificao da concreta situao que leva a Administrao a adoptar medidas coactivas um juzo jurdico 48. Assim, a penhora, que se traduz na a apreenso judicial de bens do executado 49 o acto judicial fundamental do processo de execuo para pagamento de quantia certa, aquele em que mais manifesto o poder coercitivo do tribunal: perante uma situao de incumprimento, o tribunal priva o executado do pleno exerccio dos seus poderes sobre um bem que, sem deixar ainda de pertencer ao executado, fica a partir de ento especificamente sujeito finalidade ltima de satisfao do crdito do exequente, a atingir atravs da disposio do direito do executado nas fases subsequentes da execuo. Destas se poder, assim, dizer que so como que a consequncia natural da penhora, que o acto executivo por excelncia (sublinhado nosso) 50 Da penhora decorre um conjunto de efeitos jurdicos 51, nomeadamente: a) a transferncia para o tribunal dos poderes de gozo que integram o direito do executado b) a ineficcia relativa dos actos dispositivos subsequentes

48

Maria da Glria Ferreira Pinto, Breve Reflexo sobre a Execuo Coactiva dos Actos Administrativos, ESTUDOS - XX Aniversrio do CEF, vol II, DGCI, 1983, pg. 565, Jos Lebre de Freitas, A aco Executiva Luz do Cdigo Revisto, 3. ed., Coimbra Editora, 2001, pg. 176 Jos Lebre de Freitas, A aco Executiva Luz do Cdigo Revisto, 3. ed., Coimbra Editora, 2001, pg. 176

49

50

Cf. tambm, mesmo autor e obra, pg. 22351

Jos Lebre de Freitas, A aco Executiva Luz do Cdigo Revisto, 3. ed., Coimbra Editora, 2001, pgs. 223-224

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c) a constituio de preferncia a favor do exequente Ou seja, a penhora contende com um complexo de direitos subjectivos dos particulares cuja afectao no pode ficar a descoberta de uma deciso (primria) de titular do poder judicial. Pelos motivos, ainda que agravantes decorrentes dos seus prprios efeitos, se passam as coisas com a venda executiva, tendo em especial ateno o facto de esses efeitos extravasarem a esfera jurdica do executado e poderem projectar-se sobre terceiros. Basta, para isso, que se atenda a que Os bens so transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que no tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepo dos que, constitudos em data anterior, produzam efeitos em relao a terceiros independentemente de registo (art. 824., n. 2, do Cdigo Civil) e Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do nmero anterior transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens (art. 824., n. 2, do Cdigo Civil). Ora, a atribuio ao chefe da repartio de finanas de poderes para a prtica de actos materialmente jurisdicionais viola o princpio constitucional da separao de poderes bem como o princpio do estado de direito democrtico. O princpio da reserva de jurisdio, como emanao do da separao de poderes, tem pacificamente assento constitucional, no obstante o teor da formulao feita na lei bsica do pas. Como acentua J. J. Gomes Canotilho 52, a ideia de reserva de jurisdio implica a reserva de juiz (Richervorbehalt) relativamente a determinados assuntos. Em sentido rigoroso, reserva de juiz significa que em determinadas matrias cabe ao juiz no apenas a ltima mas tambm a primeira palavra. E logo a seguir: Da reserva de juiz em sentido restrito, deve distinguir-se a reserva de tribunal ou reserva da via judiciria

52

J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituio, Almedina, Coimbra, 1998, pg. 580

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(Gerichtvorbehalt). Pretende-se aqui exprimir a ideia de que relativamente a algumas situaes legtima a interveno de outros poderes (designadamente administrativos) desde que seja assegurado depois o direito de acesso aos tribunais. Na reserva de juiz, o tribunal intervm logo no incio; na reserva de tribunal o apelo aos juizes ocorre, a maior parte das vezes, sob a forma de recurso. Dito por outras palavras: na reserva de juiz verifica-se uma reserva total da funo jurisdicional quanto deciso de certas questes; na reserva de tribunal, a reserva parcial, as mais das vezes porque no existe uma interveno inicial do juiz Uma outra distino que tambm importa fazer entre a reserva constitucional de juiz e a reserva legal de juiz. J. J. Gomes Canotilho 53 traa essa diferena: Uma distino, nem sempre clarificada pela doutrina, esta: a reserva constitucional de juiz, expressamente estabelecida pela Constituio,

(verfassungsrechtliche Richtervorbehalt) como acontece, por exemplo, entre ns, com os arts. 27. e 28. da CRP, diferencia-se da reserva de juiz expressamente consagrada na lei com base no art. 202. da CRP que reserva para os tribunais o exerccio da funo jurisdicional. Neste ltimo caso, estamos perante uma reserva legal de juiz. Se defendssemos apenas a "reserva de juiz constitucional" a bem pouco se reconduziria, afinal, o "monoplio da primeira palavra". Precisamente por isso, que alguns autores avanam para uma ideia de reserva de juiz que se baseia mais na concepo material de jurisdictio" subjacente aos preceitos constitucionais (designadamente o art. 202.) do que na eventual individualizao desta reserva feita por normas constitucionais formais.

E violao da reserva de jurisdio importa acrescentar o facto no despiciendo de se concentrarem na Administrao Tributria, hierarquicamente estruturada e sem ntida separao orgnica, poderes de poderes de liquidar o imposto exequendo (ou seja,

53

J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituio, Almedina, Coimbra, 1998, pg. 586

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definir autoritariamente o elemento quantitativo da obrigao tributria) e praticar, no mbito do processo de cobrana coerciva, toda uma panplia de actos lesivos de direitos do executado com dignidade constitucional para fazer executar o seu patrimnio na sequncia daquele acto de liquidao, alm dos poderes de controlo (inspeco), de aplicao de sanes e de polcia criminal, como acima se deixou referido.. De resto, mal se compreende que a lei (art. 103. da LGT) configure eufemisticamente o processo de execuo fiscal como processo juidcial, quando: - o processo no tramitado fisicamente no Tribunal Tributrio - o juiz no pode proferir quaisquer decises ou ter uma qualquer interveno no processo, a no ser a instncias do executado ou de terceiro So, pois, materialmente inconstitucionais todas as normas do CPPT que conferem Administrao Tributria poderes para dirigir o processo de execuo fiscal e nele praticar actos de natureza jurisdicional, como sejam os referidos juzo sobre a exequibilidade do ttulo executivo, a penhora (rectius, a deciso de penhorar) bem como a venda dos bens penhorados e a reverso da execuo contra os responsveis subsidirios.

CONCLUSES: 1. Administrao Tributria integra-se na Administrao Pblica em geral

2. A Administrao Tributria, como qualquer outro sector da Administrao Pblica, tem a seu cargo, por imposio da lei, a prossecuo de determinados interesses pblicos 3. Os interesses pblicos postos por lei a cargo da Administrao Tributria traduzem-se fundamentalmente na correcta aplicao das leis de imposto, independentemente do maior ou menor quantitativo do imposto exigido aos contribuintes, ou seja, a maximizao das receitas fiscais no corresponde ao interesse pblico posto pela lei a carga da Administrao Tributria, a

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no ser na exacta medida em que se contenha dentro da correcta aplicao da lei, nos seus vrios momentos 4. Na aplicao das leis de imposto, a Administrao Tributria desdobra-se em vrias actividades, fundamentalmente de: - liquidao - cobrana - controlo - aplicao de sanes 5. Alm dessas funes, a lei atribui aos rgos da Administrao Tributria poderes de polcia criminal 6. No desenvolvimento de cada uma das referidas actividades, autonomizamse procedimentos administrativos diferenciados 7. A actividade de liquidao configura como que uma actividade primria e decisria no que toca fixao da prestao tributria a cargo dos contribuintes 8. A cobrana da prestao tributria cujo quantitativo definido na liquidao subdivide-se em voluntria e coerciva 9. A actividade de cobrana voluntria insere-se de pleno na actividade administrativa a cargo da Administrao Tributria, que se coloca numa posio de mera resposta aos impulsos ou iniciativas do contribuinte que se apresenta a pagar 10. A liquidao de impostos, como qualquer acto administrativo, produz todos os seus efeitos com a sua prolao, sem prejuzo da sua anulao ou declarao de nulidade ou revogao, por via administrativa ou judicial 11. Com a liquidao e independentemente da sua natureza declarativa ou constitutiva, o contribuinte torna-se efectivo devedor da correspondente prestao tributria

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12. A actividade de cobrana coerciva representa a execuo do acto de liquidao 13. A actividade de cobrana coerciva traduz-se na prtica de um conjunto de actos em que, alm de outras operaes: se ajuza da exequibilidade do ttulo se ordena e faz a penhora de bens do executado se ordena e efectiva a venda dos bens penhorados

14. Estes actos so actos materialmente jurisdicionais, constitucionalmente reservados ao poder judicial 15. No obstante a natureza jurisdicional dos referidos actos, o procedimento de apremio em Espanha e o processo de execuo fiscal so dirigidos por autoridades administrativas 16. O princpio da eficcia da administrao no justifica, s por si, a legitimidade constitucional da outorga de poderes de cobrana coerciva Administrao Tributria 17. So inconstitucionais, por violao do princpio da separao de poderes e da reserva de jurisdio, as normas nsitas no Cdigo de Procedimento e de Processo Tributrio que conferem poderes Administrao Tributria para ajuizar da exequibilidade dos ttulos dados execuo, para ordenar a penhora de bens do executado, para ordenar e efectuar a venda dos bens penhorados e para reverter a execuo fiscal contra os responsveis subsidirios

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