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Rosália Carneiro, 78 anos, casada com João Souza Carneiro, 83 anos, com quem tem cinco filhos, 17 netos e cinco bisnetos. Agricultora reside desde pequena na comunidade de Giló, de onde viu a sua cidade Várzea Nova nascer. Ao lado do seu amado companheiro, ao longo dos 56 anos de união matrimonial, descobriram como formar e constituir uma nova família, na comunidade de Giló, município de Várzea Nova, localizado a 400 km de Salvador – BA. Poderíamos passar despercebido com mais esta história de vida de uma mulher do sertão que aos olhos de muitos nada tem de especial. Mas é a própria D. Rosália, com sua memória impecável, que nos conta e nos mostra, com palavras sábias, leves e ricas, a sua incrível experiência de vida. É em uma casa de adobe, recheada com o toque singular da identidade sertaneja, que reside este casal, Rosália e João, carinhosamente chamado de Dedé. É neste ambiente também que descobrimos os detalhes da vida e as relações deles com a família, a comunidade, o meio ambiente e com o trabalho no campo. Com um brilho no olhar, D. Rosália, nos mostra com muito orgulho quem é, como vive, onde está e o que deseja da vida. Ao lado está o esposo João que, em meio aos silêncios e as poucas palavras, nos demonstra o orgulho de ser quem é e da família que tem. A roça: onde a vida se constrói “Não tenho um pingo de desgosto de dizer que moro aqui e que sei todo trabalho de roça”, afirma D. Rosália. É com este orgulho que ela vem construindo sua própria história ao lado do esposo e deus filhos no sertão. O campo é seu espaço de aconchego, de sossego, de luta, de lazer e de moradia. Dele não pretende se apartar, pois é neste local que conquista diariamente a sua liberdade. Desde pequena aprendeu a trabalhar e desde então não parou. No campo sabe fazer de tudo um pouco, pegar em enxada, trabalhar na casa de farinha, plantar roça, criar animal, cuidar da casa e dos filhos, e muito mais. Com vigor que tem não deixa de plantar uma única roça. Diante disso tudo, ainda cuida dos afazeres domésticos, de atividades artesanais e está engajada na luta social comunitária. Mas ela não está sozinha, apesar de Seu João não plantar mais roça, os dois cuidam e compartilham o pão e o trabalho de cada dia. Cada dia uma descoberta O acesso ao conhecimento parece não ter fronteiras para D. Rosália. Conta que sempre buscou conhecer assuntos novos e úteis para o seu dia a dia e também nunca se deixou abater pelas dificuldades que surgiam. Em 1999, ao lado de um Bahia Ano 5 | nº 168 | outubro | 2011 Várzea Nova - Bahia Boletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas A experiência de quem se orgulha de pertencer ao campo 1 D. Rosália e Seu José nos ensina como viver com orgulho no sertão D. Rosália e Seu José criam cabras e ovelhas na propriedade

A experiência de quem se orgulha de pertencer ao campo

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Page 1: A experiência de quem se orgulha de pertencer ao campo

Rosália Carneiro, 78 anos, casada com João Souza Carneiro, 83 anos, com quem tem cinco filhos, 17 netos e cinco bisnetos. Agricultora reside desde pequena na comunidade de Giló, de onde viu a sua cidade Várzea Nova nascer. Ao lado do seu amado companheiro, ao longo dos 56 anos de união matrimonial, descobriram como formar e constituir uma nova família, na comunidade de Giló, município de Várzea Nova, localizado a 400 km de Salvador – BA.

Poderíamos passar despercebido com mais esta história de vida de uma mulher do sertão que aos olhos de muitos nada tem de especial. Mas é a própria D. Rosália, com sua memória impecável, que nos conta e nos mostra, com palavras sábias, leves e ricas, a sua incrível experiência de vida.

É em uma casa de adobe, recheada com o toque singular da identidade sertaneja, que reside este casal, Rosália e João, carinhosamente chamado de Dedé. É neste ambiente também que descobrimos os detalhes da vida e as relações deles com a família, a comunidade, o meio ambiente e com o trabalho no campo. Com um brilho no olhar, D. Rosália, nos mostra com muito orgulho quem é, como vive, onde está e o que deseja da vida. Ao lado está o esposo João que, em meio aos silêncios e as poucas palavras, nos demonstra o orgulho de ser quem é e da família que tem.

A roça: onde a vida se constrói “Não tenho um pingo de desgosto de dizer que moro aqui e que sei todo trabalho de roça”, afirma D.

Rosália. É com este orgulho que ela vem construindo sua própria história ao lado do esposo e deus filhos no sertão. O campo é seu espaço de aconchego, de sossego, de luta, de lazer e de moradia. Dele não pretende se apartar, pois é neste local que conquista diariamente a sua liberdade.

Desde pequena aprendeu a trabalhar e desde então não parou. No campo sabe fazer de tudo um pouco, pegar em enxada, trabalhar na casa de farinha, plantar roça, criar animal, cuidar da casa e dos

filhos, e muito mais. Com vigor que tem não deixa de plantar uma única roça. Diante disso tudo, ainda cuida dos afazeres domésticos, de atividades artesanais e está engajada na luta social comunitária. Mas ela não está sozinha, apesar de Seu João não plantar mais roça, os dois cuidam e compartilham o pão e o trabalho de cada dia.

Cada dia uma descoberta O acesso ao conhecimento parece não ter fronteiras para D. Rosália. Conta que sempre buscou conhecer assuntos novos e úteis para o seu dia a dia e também nunca se deixou abater pelas dificuldades que surgiam. Em 1999, ao lado de um

Bahia

Ano 5 | nº 168 | outubro | 2011Várzea Nova - Bahia

Boletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas

A experiência de quem se orgulha de pertencer ao campo

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D. Rosália e Seu José nos ensina como viver com orgulho no sertão

D. Rosália e Seu José criam cabras e ovelhas na propriedade

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dos filhos voltou a estudar, na época, com 66 anos, concluiu o curso de Educação de Jovens e Adultos que aconteceu na própria comunidade. Este foi um dos desafios que enfrentou diante de muitos outros que teve ao longo destes anos. Testemunha de fatos históricos do seu município nos conta, com admiração, certo causo onde, na sua simplicidade e experiência de vida, foi fonte de informação para se conhecer a história da formação do município de Várzea Nova. Este episódio representa para D. Rosália uma satisfação muito grande, “os alunos de Várzea Nova vieram saber como começou Várzea Nova pelos meus cadernos que eu guardei”, relata. Nisto, nos demonstra uma pessoa conhecedora das características geográficas e culturais do local em que mora.

Mas este conhecimento e experiência de vida que conquistaram não guardam para si. Aos filhos ensinaram a importância do trabalho e da honestidade. Na comunidade deixam a lição que o tempo não é desculpa para não se lutar pelo que se quer. E assim, no seu modo de ver a vida nunca deixaram de se aventurarem pelos medos que surgiam, “nada nunca me empatou deu fazer as coisas”, diz D. Rosália e “nunca tive medo de trabalho”, diz seu João. Diz que tudo que ainda não sabe pode aprender e fazer. No entanto, gostaria de fazer, compartilhar, conhecer, trabalhar muito mais do que já pratica, mas explica que não é possível, “meu tempo não dá pra tudo, se eu luto com tudo! Então, faço aquilo que posso”, fala.

Como exemplo desta garra em desenvolver atividades da melhor forma possível, está a confecção dos chapéus de palhas, esteiras e “arupemba” (peneira), que vende sempre sobre encomenda e que nunca falta freguês, diante da perfeição com a obra que constrói. Ela explica que apesar de ser uma fonte de renda pequena, ela continua modelando a palha de ariri porque, “o povo precisa de um chapéu para andar no sol e eu faço”.

Na organização o povo se fortalece e garante seus direitosNa Associação Comunitária dos Produtores Rurais de

Jiló, com cerca de 40 associados, ao lado do marido foi uma das fundadoras e atualmente é a vice-presidente. No início da formação da associação, todos se reuniram, em mutirão, para construir a sede e depois disto conquistaram benefícios para o povo da comunidade, como projetos de hortaliças, padaria, laticínio, uma barragem, corte e costura, assistência técnica aos agricultores familiares, financiamentos para investir nas atividades da agricultura familiar, funcionamento do posto de saúde, instalação do poço artesiano e outros. D. Rosália explica que a associação foi formada devido ao interesse de todos em lutarem juntos pela busca de melhores condições de vida, “trabalhemos muito nesta associação, a nosso punho, com mutirão, nós tudo junto”, diz. Faz questão também de deixar claro o orgulho que tem ao fazer parte de uma organização que é de fato construída pelo povo local e independente de alianças políticas partidárias. “se não fosse a nossa associação unida, aqui, no Jiló, nós estava no meio do mundo e não tinha nada”, desabafa D. Rosália.

Mas este modo de ser não construiu sozinha. Fala com orgulho do marido trabalhador que tem, da família que formou ao lado dele e de todo o empenho que tiveram para conquistar todos os bens que possuem hoje, pois explica que quando casou só tinham a casa onde morar e muita disposição e vontade para trabalhar. O lanço que os une neste caminho parece não se desenrolar, pois o trabalho e a dedicação de um com o outro está evidente nos discursos e gestos ditos. “ainda estamos, assim velhos, mas lutando juntos. Só me separo dele no dia que eu morrer, é respeito e amor”, conta D. Rosália.

D. Rosália e Seu João com seu exemplo de vida nos ensinam que é na base familiar que formamos pessoas e é na organização comunitária que o povo se fortalece e garante seus direitos. Com isto, parece que dificuldades não ficaram em suas lembranças, pois nos mostram somente uma vida intensa e cheia de muitas conquistas.

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D. Rosália (com chapéu de palha) no mutirão para a produção de feno no início do período de estiagem

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