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A Falecida Farsa trágica em 3 atos de Nelson Rodrigues Personagens Madame Crisálida Zulmira Tuninho Menino 1o Funcionário Timbira 2o Funcionário Oromar Pimentel Chofer Parceiro no 1 Parceiro no 2 Dr. Borborema Cunhado Pai Vizinha D.Ceci

A Falecida

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A falecida

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A Falecida

Farsa trgica em 3 atos

de Nelson Rodrigues

Personagens

Madame Crislida

Zulmira

Tuninho

Menino

1o Funcionrio

Timbira

2o Funcionrio

Oromar

Pimentel

Chofer

Parceiro no 1

Parceiro no 2

Dr. Borborema

Cunhado

Pai

Vizinha

D.Ceci

Me / Sogra

Sogro

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A FalecidaTragdia Carioca em 3 atos

(1953)

ou Farsa Trgica em 3 atos,

de Nelson Rodrigues

Primeiro Ato

Descrio original

(Cena Vazia. Fundo de cortinas. Os personagens que, por vezes, segundo a necessidade, trazem e levam, cadeiras, mesinhas, travesseiros que so indicaes sintticas dos mltiplos ambientes. Luz mvel. Entra Zulmira, de guarda-chuva aberto. Teoricamente est desabando um aguaceiro na porta, tambm imaginrio. Surge Madame Crislida com um prato e o respectivo pano de enxugar. De chinelos, desgrenhada, um aspecto inconfundvel de misria e desleixo. Atrs, de p no cho, seu filho de 10 anos. Durante toda a cena, a criana permanece, bravamente, com o dedo no nariz. Zulmira tosse muito.)

Madame Crislida - Quem ?

Zulmira - Por obsquio. Eu queria falar com Madame Crislida.

Madame Crislida - Consulta?

Zulmira - Sim.

Madame Crislida -Da parte de quem?

Zulmira - De uma moa assim, assim, que esteve aqui outro dia.

(Madame, sempre acompanhada pelo garoto de dedo no nariz, abre a porta, a princpio, imaginria)

Madame Crislida - Sou eu. Vamos entrar.

(Zulmira entra, fechando o guarda-chuva.)

Zulmira - Com licena.

(Madame suspira.)

Madame Crislida - preciso estar de olho. A polcia no sopa. Outro dia fui emo!

Zulmira - Ora!

(Madame comea a embaralhar as cartas ensebadas.)

Madame Crislida - Quem tem criana, sabe como !

Zulmira - Natural!

Madame Crislida - E as minhas so de arder!

(Barulho de criana. Madame ergue-se. Vai ao fundo da cena.)

Madame Crislida - Pintam o sete!

(Madame ergue-se outra vez.)

Madame Crislida - Deixei o aipim no fogo. Com licena.

Zulmira - Pois no.

(Madame berra para dentro.)

Madame Crislida - V essa panela, a, Fulana!

(Madame senta-se, manipulando o baralho.)

Madame Crislida - Pronto.

Zulmira - Estou numa aflio muito grande, Madame Crislida.

Madame Crislida - Silncio!

(Madame inicia a sua concentrao.)

Madame Crislida - Vejo, na sua vida, uma mulher.

Zulmira - Mulher?

Madame Crislida - Loura.

(Zulmira ergue-se atnita. Senta-se em seguida.)

Zulmira - Meu Deus do cu!

Madame Crislida - Cuidado com a mulher loura!

Zulmira - Que mais?

(Madame ergue-se. Muda de tom. Perde o sotaque.)

Madame Crislida - Cinqenta cruzeiros.

(Zulmira, atarantada, abre a bolsa, apanha a cdula,que entrega.)

(Madame empurra-a na direo da porta.)

Madame Crislida - Passar bem.

Zulmira - Passar bem.

(Some a cartomante. Zulmira vai saindo, tambm, mas estaca, retrocedendo. Est de guarda-chuva aberto. Chama diante da porta imaginria.)

Zulmira - Madame! Madame!

(Nenhuma resposta. Pnico de Zulmira.)

Zulmira - Sou a maior errada de todos os tempos! Deixei de perguntar umas quinhentas coisas! Se meu marido vai ou no arranjar um novo emprego. E se eu tenho alguma coisa no pulmo...

(Bate com o p, num desapontamento de menina)

Zulmira - Ora!

(Na boca da cena.)

Zulmira - Eu sou burra que di! (Sai)

(Provavelmente no lado oposto ao da casa de Madame, entram Tuninho, Oromar e mais dois atores. Luz sobre a sinuca imaginria).

Em cena, quatro rapazes, inclusive Tuninho e Oromar. Numa mesa imaginria, do tacadas, tambm imaginrias. O nico dado realstico do ambiente o taco, que cada um dos presentes empunha. Sem prejuzo do bilhar, discutem futebol. Oromar passa giz no taco. Sempre que um parceiro d uma tacada diz pimba)

Oromar Vais ao jogo domingo?

(Simultaneamente com o dilogo dos dois, h uma discusso pattica entre os outros parceiros).

Parceiro no 1 O Carlyle nunca foi jogador de futebol!

Tuninho E tu achas que eu vou perder um jogo daqueles?

Parceiro no 2 Quem? O Carlyle ensopa o Pavo!

Oromar Pra teu governo O Fluminense vai dar um banho. Nem se discute!

outros parceiros).

Parceiro no1 Jogador profissional, que me perdesse um pnalti, eu multava!

Tuninho Pimba! Sou Vasco e dou dois gols de vantagem!

Oromar Voc besta!

Parceiro no 2 Entendo muito mais de futebol que voc!

Tuninho Queres apostar?

Parceiro no 1 So uns palhaos!

Oromar O Ademir joga?

Parceiro no 2 Vocs ganharam no apito!

Tuninho No sei, nem interessa. Queres ou no queres?

Oromar Quanto?

Parceiro no 1 S. Cristvo, aonde, seu?

Tuninho Cem mil.

Parceiro no 2 Conversa! Conversa!

Oromar Dois gols de vantagem, eu topo.

(Tuninho estende a mo que o outro aperta.)

Parceiro no 1 Uns pernas-de-pau!

Tuninho - Casado?

Oromar Casadssimo!

Parceiro no 2 (gingando) Porque eu sou homem!

(Consumada a aposta, Tuninho exulta).

Tuninho Vou te dizer mais: estou desempregado e outros bichos. Quer dizer, na ltima lona. Mas estou to certo, to certo, que vai ser uma barbada daquelas, que te juro, sob minha palavra de honra, que se eu tivesse dinheiro, sabes o que eu fazia, no domingo, queres saber?

Oromar Voc bom de bico!

(Tuninho est numa verdadeira euforia).

Tuninho Espera, ouve o resto, seu zebu! Eu entrava no Maracan. Muito bem. Vamos dar, de barato, que umas cem mil pessoas assistam ao jogo.

Oromar Cento e cinqenta mil!

Parceiro no 1 Menos! Menos!

Parceiro no 2 Mais! Mais!

Tuninho - Seja cento e cinqenta ou duzentas mil pessoas. No importa. A morreu o Neves. Pois eu, se tivesse o dinheiro, dinheiro meu, no bolso, eu sozinho, apostava com duzentas mil pessoas no Vasco. Havia de esfregar a gaita assim, na cara de duzentas mil pessoas, desacatando: Seus cabeas-de- bagre! Dois de vantagem e sou Vasco! Te juro que ia fazer a minha independncia, que ia lavar a gua!

(Sbito, todos estacam, entreolham-se).

Os trs (simultneos) Que foi, que foi?

Tuninho Aquele pastel que eu comi, parece que me fez mal. Chi! Vou chispando pra casa! Bye, bye!

(Oromar apanha um jornal.)

Os trs (uma voz nica) Olha o jornal!

(Foco no centro da cena. Zulmira vai entrando com um banquinho e dirigindo-se para o foco. Todos deixam a cena. Luz sobre Zulmira, que senta-se no banco e pe a mo no queixo, numa atitude de O Pensador, de Rodin. Entra Tuninho com o jornal na cabea e aflito. Est diante do imaginrio banheiro. Torce o trinco invisvel.)

Tuninho Tem gente?

Zulmira Tem.

(Tuninho anda de um lado para outro)

Tuninho (baixo) Espeto!

(Hesita e decide-se)

Tuninho Vai demorar?

Zulmira Muito, no.

(Tuninho passa as costas da mo no suor da testa).

Tuninho V se anda!

Zulmira Que pressa!

(Sai Zulmira. Ao cruzar com Tuninho, resmunga.)

Zulmira Pronto! Pronto!

(Entra Tuninho. Senta-se no mesmo banquinho e na mesma posio do Pensador, de Rodin. Uma mo segurando o queixo e a outra o jornal.)

Zulmira (para si mesma) Mas eu no me lembro de loura nenhuma!

(Luz sobre a agncia funerria. Entra Timbira, em manga de camisa, suspensrios, chapu na cabea e palet debaixo do brao. Um funcionrio atende o telefone. Outro funcionrio, escrevendo um livro.)

Funcionrio (no telefone) Alo! Casa Funerria So Geraldo .

(Timbira arremessa-se)

Timbira Se pra mim, estou!

(Funcionrio desliga.)

Funcionrio Engano.

Timbira As mulheres no querem nada comigo!

Outro - Foste ao embaixador?

Timbira Fui

1o Funcionrio E que tal?

Timbira Que tal? Nem queira saber!

Funcionrio Tinha outro na tua frente?

Timbira Ningum. Fui o primeiro. A mulher tinha acabado de morrer. O embaixador estava na sala, fumando de piteira, o animal! Ento calculei: bem, esse cara aqui diplomata. Tem dinheiro pra chuchu e vai querer pra esposa um enterro alinhado.

Funcionrio Desconfio que bobeaste!

(Exalta-se Timbira).

Timbira Espera l! Ouve o resto! Tu pensas que eu fui outra pessoa da famlia? No senhor! Entrei direto e de sola no prprio vivo. Mas quando eu falei num caixo bacana, de dez contos, o sujeito quase me comeu vivo. Pra encurtar conversa: encomendou um de oitocentos cruzeiros e olha l! Caixo micha!

Funcionrio S?

Timbira E assim mesmo porque eu cantei aquela besta que s vendo! Fracassei miseravelmente! Esses cartolas enchem!

(Bate o telefone)

Funcionrio Alo

Timbira Eu estou! Eu estou!

(Pula o funcionrio no telefone)

Funcionrio Qual Anacleto? O bicheiro? No duro? E agora? Oba! Agenta a mo que vamos soltar o Timbira! J sei, pode ficar descansado!

(Precipita-se o funcionrio para o Timbira)

FUNCIONRIO - Parece que a ptria est salva.

TIMBIRA - Desembucha!

FUNCIONRIO - O negcio seguinte: tu conheces o Anacleto?

TIMBIRA - O bicheiro?

FUNCIONRIO - O bicheiro. Tem uma filha nica, de 16 anos, alis um biju. Pois bem, a garota saiu do colgio, atravessou a rua e foi esmagada entre um bonde e um nibus. Sanduche autntico!

TIMBIRA - Morreu?

FUNCIONRIO - Se morreu?! Est feito uma papa! Sabes o que papa? papinha?

TIMBIRA - E quando?

FUNCIONRIO - Pois . chispa e me faz um favor de me para filho: v se, desta vez, no me fracassa. Porque bicheiro generoso.

TIMBIRA - Pode deixar.

FUNCIONRIO - Toma o endereo. e sabes qual o golpe? Segura o Anacleto e diz: A filha merece um caixo de 25 contos! aposto os tubos como ele topa! Apanha um txi!

TIMBIRA - O. K.

(Sai timbira, animadssimo)

2o. FUNCIONRIO - Boa praa, o Timbira!

1o. FUNCIONRIO - O que estraga a mania de mulher!

(Luz sobre o lar de Zulmira e Tuninho. O marido boceja, tirando a camisa. Fica nu da cintura para cima e de suspensrio.)

TUNINHO - Vem espremer o cravo grande das costas!

ZULMIRA - Vira.

(Tuninho d-lhe as costas. Zulmira comea a espremer.)

ZULMIRA - Sabe onde eu fui hoje?

TUNINHO - Ai! Onde?

ZULMIRA - cartomante, a tal que me recomendaram.

TUNINHO - Voc teimosa! disse para no ir! Ai!

ZULMIRA - Pois olha - fui e no me arrependi. Ela me abriu os olhos, direitinho!

TUNINHO - Te tapeou!

ZULMIRA - Duvido! Queres saber o que ela foi dizendo, logo de cara?

(Baixa a voz.)

ZULMIRA - Que eu tomasse cuidado, muito cuidado,com uma mulher loura. que tal?

TUNINHO - E da?

ZULMIRA - Achas pouco?

(Tuninho est assombrado)

TUNINHO - Mas, s isso?

ZULMIRA - Oh! que esprito de porco voc tem! Fala por falar. Deus me livre!

TUNINHO - Ora, no amola!

ZULMIRA (com maus modos) - Claro!

TUNINHO - Ento, voc me sai de casa debaixo desse tor, larga-se para os cafunds do Judas, atrs de uma cretina?

ZULMIRA - Mas, criatura, presta ateno! Escuta!

TUNINHO - Voc enche!

ZULMIRA - Quem ser essa loura, minha Nossa Senhora?

TUNINHO - Perguntaste, ao menos, imbecil dessa cartomante se eu ia melhorar de situao e outros bichos?

ZULMIRA - Ih!

TUNINHO - No perguntaste?

ZULMIRA - Ando com minha memria horrvel!

(Tuninho anda de um lado para o outro, dentro do quarto, esbravejante.)

TUNINHO - Mulher isso mesmo! Voc inventa o diabo dessa cartomante pra saber da tua asma e do meu emprego! E quando acaba, vai l e no d a menor bola, a menor pelota. Muito bonito!

ZULMIRA - Perdo, meu anjo!

(O casal pe os dois travesseiros no cho, isto , na cama imaginria. O marido deita e Zulmira passa o pente no cabelo.)

ZULMIRA - Benzinho!

(Bocejo tremendo de Tuninho.)

TUNINHO - Uai!

ZULMIRA - D uma opinio, um palpite: quem ser essa mulher loura?

TUNINHO - E eu que sei?

ZULMIRA - V se lembras!

(Novo bocejo de Tuninho.)

TUNINHO (meditativo) - Loura?

ZULMIRA - Quem pode ser?

(D o estalo em Tuninho)

TUNINHO - Tua prima!

ZULMIRA - Qual delas?

TUNINHO - Ora, Zulmira! Qual tua prima que mora nsta rua? Aqui do lado? Qual?

(Zulmira est assombrada.)

ZULMIRA - Glorinha!

TUNINHO - Custaste!

ZULMIRA - mesmo! Glorinha! Oxigenada, mas loura!

TUNINHO - Batata!

(Zulmira est desesperada)

ZULMIRA - S pode ser ela, ela no duro!

TUNINHO - Apaga a luz e vamos dormir!

ZULMIRA - Uma Fulana, alm do mais, minha parenta, longe mas . Nunca lhes fiz nada, sempre a tratei, assim, na plama da mo. E, de repente, deixa de me cumprimentar. Por qu? Ainda hoje, eu passei. Estava na janela, limando as unhas. Torceu-me o nariz, aquela gata. Cinicamente!

TUNINHO - Vem dormir!

(Zulmira no ouve o marido, encerrada na sua obsesso.)

ZULMIRA - Foi um altssimo negcio essa cartomane. agora eu sei de tudo. Essas dores nas costas... Olha: hoje eu passei o dia inteirinho com o nariz entupido...

TUNINHO - Gripe!

ZULMIRA - Gripe aonde? (lentas e cava) Macumba!

TUNINHO - Sossega!

ZULMIRA - sim, senhor! Alguma macumba que essa cara me fez! Aposto!

TUNINHO - Mas a mulher protestante!

ZULMIRA - Protestante diz voc! Mas duvido! Fingimento, mscara! Vou te dizer mais o seguinte. Glorinha tem parte copm o demnio!

(Tuninho, embalado pela voz da mulher, j adormeceu e ronca, sonoramente. Zulmira, porm, no toma conhecimento do sono profundo do marido.)

ZULMIRA - Pois sim! No mais sria do que ningum. To cnica que diz apenas o seguinte - v se pode - que a mulher que beija de boca aberta uma sem-vergonha. pode ser o marido, pode ser o raio que o parta, mas uma sem-vergonha.

(Interpela o marido, que continua roncando)

ZULMIRA - Que que voc diz a isso? Hem?

ZULMIRA (falando como se o marido, que continua dormindo, tivesse respondido) - Deixa de ser trouxa! No v logo que falsidade?

(Levanta-se, anda pelo palco, ironicamente.)

ZULMIRA - Tambm no praia, no pode pr mai, porque, meu Deus, que coisa horrvel, eu hem? (passa de melflua a feroz) Mas pra cima de mim, no, onde que ns estamos! (agressiva, para Tuninho, que dorme mais do que nunca) Voc, que homem - os homens so uns bobes - pode achar graa, achar bonito essa papagaiada, claro! Mas eu!...

(Agarra o Tuninho e o sacode. O marido desperta em sobressalto. Grita Zulmira.)

ZULMIRA - Tuninho! Tuninho!

TUNINHO - Que ?

ZULMIRA - Por essa luz que me alumia - essa gata est cavando a minha sepultura!

(Tuninho esbraveja)

TUNINHO - No faz carnaval!

(Tuninho vira para o lado. E logo recomea a roncar. Zulmira tosse.)

ZULMIRA - Olha s a ronqueira no meu pulmao. Espia!

(Levanta-se Tuninho e sai com os dois travesseiros. Zulmira est de p. entra o contra-regra, de macaco, e entrega um chapu, que ela coloca. Entram mais quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, gravssimo, cada qual trazendo a sua cadeira, inclusive uma para Zulmira. Ningum se senta, porm. De p, na frente das cadeiras, todos - e tambm Zulmira - entoam um hino gnero Exrcito da Salvao.)

VOZES - Salvai-nos, salvai-nos, a ns, pecadores,

Salvai-nos com um arrebol de f etc. etc. etc.

(Findo o hino, as cinco pessoas cumprimentam-se gravemente, e saem, cada qual levando a sua cadeira. Zulmira a nica que permanece em cena. Entra Tuninho, nu da cintura para cima e de calo de banho.)

TUNINHO - Vamos meter uma praia?

ZULMIRA - No.

TUNINHO - Vamos! Agora, que eu estou desempregado, podamos aproveitar, ir at todo o dia praia!...

ZULMIRA - Deus me livre!

TUNINHO - Por que, u?

ZULMIRA - Sabe aonde que eu fui hoje?

TUNINHO - No

ZULMIRA - igreja teofilista!

TUNINHO - Que mgica essa?

(Zulmira est possda pela nova f.)

ZULMIRA - Uma vez, h muito tempo, eu vi um enterro teofilista. Na hora de fechar o caixo, cantaram hinos. nunca mais me esqueci.

(Tuninho explode.)

TUNINHO - Olha!

ZULMIRA (mstica) - Fala!

TUNINHO - Eu no tenho nada com isso. Voc o maior, vacinada, pode ter a religio que quiser e pronto. Mas vamos praia, ora bolas! O que que tem a praia com as calas?

ZULMIRA - Tu me achas com cara de ir praia? Agora que me converti?

TUNINHO - Ser que em tudo, agora, voc me contraria? Pe o mai, anda!

ZULMIRA - No tenho mai.

TUNINHO - E o teu?

ZULMIRA - Joguei no lixo!

TUNINHO - Mentira!

ZULMIRA - Te juro!

TUNINHO - Que bicho te mordeu?

ZULMIRA - No sei. Mudei muito. Sou outra.

TUNINHO - Essa a maior!

(Zulmira incisiva)

ZULMIRA - No aprovo praia, no aprovo mai.

(Zulmira ergue o rosto, fantica.)

ZULMIRA - a mulher de mai est nua. Compreendeu? Nua no meio da rua, nua no meio dos homens!

(Entram os parentes de Zulmira. Esta afasta-se e vai ler o jornal numa extremidade da cena e Tuninho sobe na cadeira. Crculo de parentes em torno da cadeira.)

TUNINHO - O senhor meu sogro, a senhora, minha sogra... E vocs, meus cunhados...

UM - Perfeitamente!

OUTRO - Claro!

TUNINHO - Pois . Eu pergunto: estarei errado?

SOGRO - Caso srio!

SOGRA - Enfim!...

TUNINHO - Por exemplo, sabem qual a mais recente mania de minha mulher? a seguinte: digamos que eu a queira beijar na boca. Ela, ento, me oferece a face.

SOGRA - Virgem Maria!

TUNINHO - Afinal de contas, eu sou o marido. E se eu, por acaso, insisto, que faz minha mulher? Fecha a boca!

CUNHADO - Muito curioso!

TUNINHO - Mas como? - perguntei eu a minha mulher - voc tem nojo de seu marido? Zulmira rasgou o jogo e disse assim mesmo: Tuninho, se voc me beijar na boca, eu vomito, tuninho, vomito!

SOGRA - Ora veja!

CUNHADO - (de culos e livro debaixo do brao) - Caso de psicanlise!

OUTRO - De qu?

CUNHADO - Psicanlise.

OUTRO (feroz e polmico) - Freud era um vigarista!

(Sai Tuninho. Zulmira abandona o jornal. Sobe, ajudada pelos irmos, na cadeira. A famlia a cerca. Os parentes esto enfticos.)

ME - Mas oh minha filha! oh!

PAI - O marido tem seus direitos!

ME - Onde se viu negar amor ao marido?

PAI - Voc se casou porque quis!

(Zulmira desespera-se, em cima da cadeira.)

ZULMIRA (clamando) - Tudo menos beijo! Beijo, no! (baixo e grave) Eu admito tudo em amor. Mas esse negcio de misturar saliva, com saliva, no! No topo! Nunca!

(Zulmira baixa a cabea.)

ZULMIRA - Nenhuma mulher devia pertencer a homem nenhum!

ME - Nem ao marido?

ZULMIRA (incisiva) - Nem ao marido!

ME (pattica) - Minha filha, nem oito, nem oitenta!

ZULMIRA (doce) - Se perguntarem se eu sempre fui teofilista, diz que sim, mame, diz que sim!

(Saem os parentes. Tuninho, j vestido normalmente, vem discutir com Zulmira.)

TUNINHO - Ah, logo vi!

ZULMIRA - Logo viu o qu?

TUNINHO - J sei quem ps essas na tua cabea!

ZULMIRA - Quem?

(Tuninho estaca. Espeta o dedo no peito da mulher.)

TUNINHO - Glorinha!

ZULMIRA - Voc louco?!

TUNINHO - Claro como gua! Aqui, nesta rua. s quem tem essas idias a Glorinha! E mais ningum!

ZULMIRA - Tinha graa!

TUNINHO - imitao, sim! Confessa! ou no ?

(Zulmira exalta-se. Veemente.)

ZULMIRA - E se fosse? E se eu quisesse imitar a Glorinha?

TUNINHO (sardnico) - Batata!

ZULMIRA - No dizem que ela a mulher mais sria do Rio de Janeiro? Todo mundo diz! E se eu quisesse ser cem por cento, assim, como Glorinha? Porque eu no gosto dela, mas justia se lhe faa: tem linha at debaixo dgua!

TUNINHO - Uma chata!

ZULMIRA - Tu falas assim, agora. Mas no te lembras que j me disseste bestificado: Ih Fulana sria pra chuchu! Foi, sim!

(Tuninho agarra Zulmira, amoroso)

TUNINHO - Deixa pra l! No interessa!

ZULMIRA - Me larga!

(Tuninho faz bico de beijo.)

TUNINHO - D uma bijuquinha, d!

ZULMIRA - Quieto!

(Zulmira foge com o rosto.)

TUNINHO - No d?

ZULMIRA (grave e definitiva) - Deixe de ser mulher!

(Tuninho pattico.)

TUNINHO - Viste? por essas e outras que tantos maridos vo buscar na rua o que no tm em casa!

(Zulmira atnita.)

ZULMIRA (lenta) - Na rua, Tuninho!

TUNINHO - Evidente!

(Tuninho est zangado, cruza os braos no meio do palco.)

ZULMIRA (inspirada) - Na rua, mesmo!...

(Zulmira agarra-se ao marido.)

ZULMIRA (num crescendo) - Eu te nego amor! No tens amor na tua casa! E se eu prpria te mandasse buscar, esse amor que te falta, com outra mulher?...

TUNINHO - Nem brinca!

ZULMIRA (no ouvido do marido) - E sabe com quem? (violenta) Glorinha, sim! (melflua, novamente) Se eu chegasse pra ti e dissesse: D em cima! E se eu mandasse?...

TUNINHO - Duvido.

ZULMIRA (vem vindo para ele) - Mas olha! (doce e persuasiva) Ela no fria, no, seu bobo... Sou mulher e conheo as outras mulheres... J fui unha e carne com Glorinha, posso te garantir... No tem nada de fria e, at, pelo contrrio... Te lembras do nosso namoro?... ela te olhava muito naquele tempo...

(Enrgica, segura o marido pelos dois braos.)

ZULMIRA (veemente) - tenho quase que a certeza, sou capaz de apostar que, contigo, se fizeres o negcio direito, ela cair. que seja uma vez, uma nica vez. Basta. Ah, eu gostaria de ver essa mulher no chso, na lama!...

TUNINHO (atnito) - Quer dizer quer voc, minha esposa, est me empurrando pra cima de outra mulher?!...

ZULMIRA (cainso em si) - Eu?

TUNINHO - Pois .

(Desespero de Zulmira.)

ZULMIRA (andfa para trs) - No! no! No posso dar meu maridoo pra outra mulher... alm disso, vou me batizar outra vez... Me converti... Deus me castigaria...

(Cai de joelho. abre os braos para o alto.)

ZULMIRA - Devo perdoar! a religio manda perdoar! oh, meu Deus!

(Tuninho exalta-se.)

TUNINHO - Pra teu governo - se eu - toma nota - der em cima dessa cara, e se por acaso ela topar - no sei , mas tudo possvel... (grave e proftico) A culpada s tu! Tu!...

(Sai Tuninho. Zulmira fala soluando)

ZULMIRA - Perdoar sempre! Perdoar dia e noite! morrer perdoando!...

(Luz na casa funerria. Entra Timbira, numa afobao tremenda. Os outros dois funcionrios arremessam-se.)

1o. FUNCIONRIO - Como ?

TIMBIRA - Tiro e queda!

2o. FUNCIONRIO - O homem topou?

TIMBIRA - Estou convencido que nasci para esse troo... quando entro num negcio, levo todo mundo na conversa...

1o. FUNCIONRIO - Mas topou o enterro em grand estilo?

TIMBIRA - Deixa eu contar, calma! Apanhei um txi e fui voando para o escritrio do Anacleto. Tinha cabado de receber a notcia e estava fazendo um carnaval tremendo. Filha nica. sabe como . E j no chorava - mugia... Mugido, no duro! assim um som grave, cheio, de rgo... De abalar o edifcio!

2o. FUNCIONRIO - E tu?

TIMBIRA - Tomei conta do ambiente. Pra incio de conversa, mandei buscar gua mineral gelada, apesar do homem estar gripado. Dei ordens. Pintei o caneco. E ele, com aquele choro grosso. Na primeira oportunidade, entrei com meu jogo. quando disse que podia arranjar, pra filha dele, um caixo assim, assim, com alas de bronze, forro de cetim, sabe que, l, todo mundo ficou com gua na boca?

1o. FUNCIONRIO - Disseste o preo?

TIMBIRA - Disse. Mas dei um fora horroroso!

2o. FUNCIONRIO - Por qu? hem?

TIMBIRA - Pedi vinte mil cruzeiros e ele topou, imediatamente. Se eu pedisse trinta, tambm dava, aposto! Descobri que bicheiro um grande sujeito!

2o. FUNCIONRIO - Vai ter cortinas?

TIMBIRA - Cortina pra cinco portas, crucifixo de cristal, o diabo a quatro! Tudo 35 mil cruzeiros. E na sada, o Anacleto, que agora meu do peito, me enfiou isso aqui no bolso, espia!

(Na ponta dos dedos exibe uma cdula.)

1o. FUNCIONRIO - Uma abobrinha!

TIMBIRA - A soluo do Brasil o jogo do bicho! E, sob minha palavra de honra, eu, se fossse Presidente da Repblica, punha o Anacleto como Ministro da Fazenda!

(Luz no lar de Zulmira. Ela cantarola um hino do Exrcito da Salvao, ajoelhada. Entra Tninho s gargalhadas.)

TUNINHO - Vem ouvir a maior de sculo!

ZULMIRA - Que foi?

TUNINHO - Imagina! Imagina!

ZULMIRA - Fala, criatura!

TUNINHO - Sabe por que a tal da Glorinha a maior pudor do Rio de Janeiro? E por que toma banho de camisola? E no vai praia? e tem nojo do amor? Sabe?

ZULMIRA - Fala, criatura!

TUNINHO - Porque teve cncer e tiveram que extirpar um seio!

(Ri s gargalhadas. Zulmira est num verdadeiro deslumbramento.)

ZULMIRA (numa euforia feroz) - Tem um seio, s!

ZULMIRA (frentica) - Juras?

TUNINHO - Foi o mdico que me disse! Agora mesmo! A doena misteriosa era cncer!

(Numa euforia absoluta, Zulmira crispa as mos nos dois seios.)

TUNINHO - Eu? Dar em cima dessa cara? Nem pagando!

(Zulmira na boca de cena. Ri, arquejando.)

ZULMIRA - No me cumprimenta: torce o nariz pra mim, que nunca lhe fiz nada! - Castigo! Castigo!

(Cai de joelhos, num riso soluante.)

TUNINHO (num berro final) - Tem um seio s!...

FIM DO PRIMEIRO ATO

SEGUNDO ATO

(Inicia-se o 2o. ato com Zulmira na agncia funerria. Tosse continuamente. De vez em quando, assoa-se no lencinho. Presentes, os dois funcionrios.)

ZULMIRA - Boa tarde.

1o. FUNCIONRIO - Boa tarde.

ZULMIRA - Eu desejava falar com o seu Timbira.

1o. FUNCIONRIO - Pois no.

(2o. Funcionrio traz uma cadeira.)

1o. FUNCIONRIO - Tenha a bondade de sentar-se.

(Zulmira senta-se.)

ZULMIRA - Obrigada.

(1o. Funcionrio cutuca o Segundo. Fala baixo.)

1o. FUNCIONRIO - Chispa. Vai chamar o Timbira no botequim.

(2o. Funcionrio vai buscar o Timbira, que est na outra extremidade do palco, tomando refrigerante na prpria garrafinha, com um canudo.)

1o. FUNCIONRIO - Que calor!

(Zulmira abana-se com uma revista.)

ZULMIRA - Brbaro!

2o. FUNCIONRIO - Tem, l, uma cara te procurando!

TIMBIRA - Boa?

2o. FUNCIONRIO - Serve.

(Timbira chama o invisvel garon.)

TIMBIRA - Paga isso aqui!

(Timbira atira uma moeda no ar.)

TIMBIRA - Vamos embora!

1o. FUNCIONRIO - Vem temporal por a!

ZULMIRA - Tomara!

(1o. funcionrio ri, sinistramente, sem ter de qu.)

1o. FUNCIONRIO - Eu prefiro o inverno.

(Ri ainda um pouco e feha subitamente o riso. timbira, que fez, com o Segundo Funcionrio uma longa volta no palco, entra, enfim, no escritrio.)

TIMBIRA - Quer falar comigo?

(Zulmira ergue-se.)

ZULMIRA - O senhor que o seu Timbira?

TIMBIRA - Perfeitamente.

ZULMIRA - Eu sou a pessoa que lhe telefonou...

TIMBIRA - De manh?

ZULMIRA - Foi.

TIMBIRA - Mas sente-se.

ZULMIRA - Com licena.

(Primeiro Funcionrio traz uma cadeira. Timbira senta-se.)

TIMBIRA - s suas ordens.

ZULMIRA - O caso o seguinte...

TIMBIRA (subserviente) - Pois no!

ZULMIRA - Eu venho correndo vrias empresas funerrias, de forma que tenho notado que os preos, aqui, so mais caros.

(Timbira salta na cadeira, em pnico. Veemente.)

TIMBIRA - Perdo.

(Zulmira imediatamente o atalha.)

ZULMIRA - Mas eu prefiro assim!

TIMBIRA - Como?!

(Os dois funcionrios, em face de uma cliente perdulria, aproximam-se. Ficam roendo as unhas e ouvindo.)

ZULMIRA - Porque a famlia dessa minha amiga, que est muito doente - a famlia no faz questo de preo. Quer o melhor enterro possvel, nada mais.

TIMBIRA (num suspiro) - E eu posso saber o nome? O nome de sua amiga?

ZULMIRA - J, no.

TIMBIRA - Como queira.

ZULMIRA - O senhor vai saber na hora...

TIMBIRA - E est muito mal?

ZULMIRA (definitiva) - Desenganada!

TIMBIRA - Moa ou velha?

ZULMIRA - Moa.

TIMBIRA - Solteira?

ZULMIRA (surpresa) - E isso influi?

TIMBIRA - Mais ou menos.

ZULMIRA - Por qu?

TIMBIRA - Bem. difcil explicar. No sei, mas acho que a virgem, pelo fato de ser virgem, enfim outra coisa, mais interessante talvez que uma me de famlia, com oito filhos. Sei l!

ZULMIRA - Minha amiga casada.

TIMBIRA - No seja por isso. De qualquer maneira, no se incomode, d-se um jeito, pode ficar descansada.

(Zulmira com sbita euforia.)

ZULMIRA (lrica) - Seu Timbira, o senhor sabe, por acaso, qual foi o enterro mais bonito que j houve no Brasil?

TIMBIRA Depende.

ZULMIRA Como?

TIMBIRA de homem, parece que foi o do Baro do Rio Branco. E de mulher, foi, disparado, o da Nanci.

ZULMIRA Que Nanci?

TIMBIRA Nanci, a filha do Anacleto, o bicheiro.

ZULMIRA Ah, eu li no jornal!

(Exalta-se Zulmira)

TIMBIRA Pois . Um caixo fabulosssimo, forrado de cetim branco, alas de bronze, o diabo!

(Anima-se Zulmira.)

ZULMIRA - Seu Timbira, esse o caixo que eu quero, para minha amiga. Assim mesmo. Igualzinho!

TIMBIRA Mas puxado!

ZULMIRA O senhor fez o oramento?

TIMBIRA Est aqui.

ZULMIRA Posso ver?

TIMBIRA Vou lhe mostrar.

(Timbira aproxima a cadeira. Zulmira est num deslumbramento.)

TIMBIRA Aqui, por exemplo: o caixo.

(Timbira sinttico, incisivo.)

TIMBIRA De primeira. Madeira trabalhada.

ZULMIRA Igual ao de Nanci?

TIMBIRA A mesma coisa.

ZULMIRA Que timo!

TIMBIRA Vinte cinco mil cruzeiros.

(Nisto, o 1o. Funcionrio, que ri as unhas, d um verdadeiro uivo.)

1o. FUNCIONRIO Mais!

TIMBIRA Como?

(1o. Funcionrio num espasmo de ganncia.)

1o. FUNCIONRIO Aumentou. Agora custa 30 mil cruzeiros!

TIMBIRA 30 mil cruzeiros.

ZULMIRA (numa nsia) Mas tem alas de bronze?

TIMBIRA Claro!

ZULMIRA que bom!

TIMBIRA Coche de primeira. Carro de pneus de banda branca, faris embutidos e penacho, ltimo tipo: mil e quinhentos cruzeiros.

ZULMIRA (maravilhada) Barato!

2o. FUNCIONRIO (roendo as unhas) No ?

TIMBIRA Essa.

1o. FUNCIONRIO Inclusive vela!

TIMBIRA Armao por conta da casa mil e quinhentos cruzeiros. Altar e crucifixo, outros mil e quinhentos cruzeiros. Mas outras despesinhas, tal e coisa, deve andar tudo a por uns 36 mil cruzeiros.

(1o. Funcionrio faz um adendo imediato e angustioso.)

1o. FUNCIONRIO Ou 40!

TIMBIRA Acha caro?

ZULMIRA (feliz) Nem por isso. O senhor pode ir tomando todas as providncias!

(Zulmira animadssima.)

TIMBIRA (reticente) E se a moa no morrer?

ZULMIRA Morre, sim. Est muito mal. Nas ltimas.

TIMBIRA Quer um conselho?

ZULMIRA Pois no.

TIMBIRA Vamos deixar o barco correr. O golpe esperar. Tenho prtica e j vi muito doente, com a vela na mo, ressuscitar. Quem trabalha nesse ramo, minha senhora, acredita piamente em milagre. V-se coisas do arco-da-velha. Vamos que aocntea um milagre e sua amiga se salve. Eis o bode formado. Espeto! Espeto!

ZULMIRA Ento, eu aviso.

(J vai sair.)

TIMBIRA timo!

(Zulmira estende a mo.)

ZULMIRA O senhor quer me dar o papelzinho? Obrigada. Desculpe e...

TIMBIRA Eu tambm vou sair.

ZULMIRA (para os outros) Boa tarde.

DOIS FUNCIONRIOS (numa mesura) Boa tarde.

(Estado tremendo bate-boca entre os dois funcionrios.)

1o. FUNCIONRIO Vocs s tm o Ademir! S!

2o. FUNCIONRIO Seu p-de-arroz!

(Primeiro Funcionrio esfrega as mos, radiante.)

1o. FUNCIONRIO Domingo, eu vou ao jogo, ouviu? Pode morrer at o raio que te parta que eu vou ao jogo.

(Zulmira e Timbira a caminho do poste de bonde.)

TIMBIRA (amabilssimo) Lotao ou nibus?

ZULMIRA Bonde.

TIMBIRA (pigarreando) Mas casada?!

ZULMIRA Sou, sim!

TIMBIRA Cad a aliana?

ZULMIRA No uso.

TIMBIRA (derramado) Sabe que no parece?

ZULMIRA Casadssima!

(Esto caminhando ao longo de toda a cena, de um lado para outro. Zulmira estaca, de repente.)

ZULMIRA O poste aqui!

TIMBIRA Qual seu bonde?

ZULMIRA Aldeia Campista.

(Timbira olha para um lado e outro.)

TIMBIRA Posso cham-la de voc?

ZULMIRA Querendo.

TIMBIRA Voc me telefona?

ZULMIRA Talvez.

TIMBIRA Quando?

ZULMIRA No dia de S. Nunca.

(Zulmira olha para o lado do bonde.)

ZULMIRA Ola o bonde! L vem o bonde! T logo! T logo!

(Timbira volta para a empresa funerria. Vem assobiando. Esfrega as mos.)

TIMBIRA Jeitosa?

1o. FUNCIONRIO Um buchinho!

TIMBIRA Buchinho onde?!

1o. FUNCIONRIO Ento, no ?

TIMBIRA No amola! E comigo no tem esse negcio de bucho, no, senhor! Sou da seguinte teoria: muher mulher e pronto!

1o. FUNCIONRIO Voc no respeita nem poste!

(Timbira enfia as duas mos nos bolsos. Vem at boca de cena.)

TIMBIRA Casada e me deu uma bola tremenda!

(Entram Zulmira e me, cada uma com uma cadeira. /sentam-se uma diante da outra.)

ZULMIRA Que pena, mame!

ME Por que, minha filha?

ZULMIRA (de mos postas) Antigamente, os enterros eram mais bonitos!

ME Mesma coisa.

ZULMIRA Puxa que a senhora do contra!

(Zulmira chega a cadeira mais para a me. Argumenta, com energia.)

ZULMIRA Escuta, mame, presta ateno. Antigamente, usavam-se cavalos nos enterros, com um penacho? Mais bonito? No, ?

ME No acho negcio! Cavalo no negcio!

ZULMIRA Mas como?!...

ME Eu era assim, pequenininha... Nesse tempo, minha famlia tinha dinheiro... Mas ah! Quando o enterro saiu, a nossa porta ficou que era uma nojeira! Nem se podia! Nunca vi cavalos to grandes e bonites! Mas sujaram tudo!... Muito desagradvel!

(Entra Tuninho, furioso.)

TUNINHO Olha, voc, vai ao mdico, de qualquer maneira!

ZULMIRA (indignada) Eu?!

ME Precisa!

TUNINHO Sim, senhora!

(Zulmira tem um verdadeiro ataque.)

ZULMIRA Ir ao mdico com uma combinao horrvel? A nica que eu tenho? (Zulmira levanta a saia. Mostra a combinao.) Est vendo esse remendo do tamanhode um bonde?

ME Bobagem!

(Tuninho s voltas com a sogra.)

TUNINHO Essa criatura no dorme, nem me deixa dormir. Passa a noite, inteirinha, de fio a pavio, tossindo!

ZULMIRA ainda por cima, mdico de farmcia e caduco!

(Fuso do lar de Zulmira com o consultrio mdico. Tuninho e me saem de cena. Entra o velho Dr. Borborema, de avental. Traz toalha de ausculta e uma cadeira. Zulmira tira a blusa. Dr, Borborema vai auscult-la. Est de culos. Tira os culos.)

DR. BORBOREMA Diga 33.

ZULMIRA 33

DR. BORBOREMA Outra vez

ZULMIRA 33

DR. BORBOREMA Agora respire forte.

(Zulmira obedece.)

ZULMIRA Pronto?

DR. BORBOREMA Pronto.

(Zulmira veste a blusa.)

ZULMIRA Que tal, doutor?

DR. BORBOREMA No pulmo no vi nada, no achei nada.

(Espanto e indignao de Zulmira.)

ZULMIRA Mas como possvel? Ando sentindo o diabo! Hoje estou com um gosto horrvel de sangue na boca!

(Dr. Borborema pe os culos.)

DR. BORBOREMA Tudo OK! Tudo OK!

(O mdico pe-se a escrever.)

DR. BORBOREMA Bem voc vai me fazer o seguinte: esse remdio, aqui, voc vai tomar duas colheres de sopa, uma no almoo e outra no jantar. Na hora de dormir faz o gargarejo e pronto. Compreendeu?

(O mdico est tirando o avental.)

ZULMIRA Compreendi.

DR. BORBOREMA E diz ao teu marido que, domingo, o Fluminense vai fazer a barba e o bigode do Vasco!

(Sai o mdico e fundem-se os dois ambientes, consultrio e lar de Zulmira. Presente toda a famlia da pequena, inclusive o marido.)

ZULMIRA (histrica) Bem feito! Bem feito!

TUNINHO Que que h?

(Zulmira promove um verdadeiro comcio.)

ZULMIRA Eu sou uma podre-diaba! Enquanto a Glorinha vai a um mdico bacana, que at piano tem no consultrio! Um mdico que cobra trezentas pratas a consulta eu vou, de carona, ao Dr. Borborema, um mdico de D. Joo Charuto, completamente gag! Ainda por cima, fiquei, sem o mnimo exagero, umas 37 horas, na sala, esperando, e com esse calor!

(Zulmira espeta o dedo no peito do marido.)

TUNINHO sossega!

PAI Mas que foi que ele disse?

(Zulmira ri, ofegante.)

ZULMIRA Fui a ltima a ser atendidas... (muda de tom, enfurecida, e correndo os presentes, um por um) O que ele me disse? (cai a clera; ironiza) Estou crente que aquela besta vai descobrir coisas do arco-da-velha no meu pulmo, claro. Ele me faz um exame matadssimo uma vergonha de exame! - e, no fim de tudo v se pode? Vira-se para mim e... (Pe a soluar no meio do palco. Expectativa tremenda na famlia.) Disse que eu no tinha nada! nada!

(Todos se entreolham e exclamam em coro.)

TODOS U!

TUNINHO Ento, qual o drama? Se no tens nada, timo!

OUTROS Evidente!

(Zulmira enfrenta o marido. Desafia o marido.)

ZULMIRA Por que que voc no se mete com sua vida? Por que que no deixa de dar palpites?

(Tuninho dirige-se aos parentes.)

TUNINHO Parece, at, que quer morrer!

(Zulmira desafia a parentela e o marido.)

ZULMIRA Quem sabe? Porque eu, se quisesse, podia morrer, j, agora, imediatamente! Ou no podia?

(O marido recua, aterrado, diante desta paixo.)

TUNINHO Perde essa mania de morte!

ZULMIRA (na sua euforia selvagem) Eu posso, mas a Glorinha no. Glorinha no, pode morrer nunca!

(Zulmira agarra-se ao marido e o contagia com a sua viso.)

ZULMIRA Imagina s: glorinha morrendo. Acaba de morrer . Est na cama, morta. A vo vestir a defunta. E antes a despem.

(Zulmira pe-se a rir, numa histeria.)

ZULMIRA D-se a melodia. As pessoas, que estiverem no quarto, vo ver um seio, (ri) unzinho s!

(Zulmira bate no prprio peio, na sua embriaguez.)

ZULMIRA Mas a mim podem despir, j, neste minuto.

(Zulmira solua.)

ME No fala assim!

ZULMIRA Por qu?

ME feio

ZULMIRA A senhora acha?

ME Deus castiga!

(Esvazia-se o palco. Restam Zulmira e Tuninho. E, sbito, enche a cena o som desvairado de um aparelho de rdio, com uma msica carnavalesca. Diminui o som do rdio. Zulmira exulta.)

ZULMIRA Ela sabe!

TUNINHO Sabe o qu?

ZULMIRA Que eu estou mal, que vou morrer!

TUNINHO Isola!

ZULMIRA De propsito pe todo o volume do rdio! Gosta de clssico e liga pra msica carnavalesca!

TUNINHO Tu no gostas de msica carnalesca?

ZULMIRA (numa vidncia) Quando eu morrer, glorinha h de estar, na janela, assistindo, de camarote, o meu enterro, gozando. Ela sabe que estamos na ltima lona e, portanto, que meu enterro deve ser de quinta classe. Olha! eu quero sair daqui! Nada de capelinha! Se Glorinha soubesse! Se pudesse imaginar que eu, na surdina, estou tomando as minhas providncias!

TUNINHO At que este carnaval tem uma boas msicas!

(Zulmira arrebata-se.)

ZULMIRA No dia em que eu morrer, glorinha vai ficar com cara de tacho, besta! Tenho um plano, um golpe!

(Zulmira baixo, cara a cara com o marido.)

ZULMIRA S depende de ti!

TUNINHO De mim?

ZULMIRA De ti!

TUNINHO Mas como?

ZULMIRA (docve e misteriosa) Depois eu te conto.

(Tuninho sai. Nova e breve rajada de msica carnavalesca. Entra vizinha, melflua, afetada. Tuninho j saiu.)

VIZINHA Vim fazer um visitinha senhora, D. Zulmira!

ZULMIRA (afetada) Ah, entre, D. Ceci!

VIZINHA Como vai a senhora?

ZULMIRA (eufrica) Mal!

VIZINHA Gripe?

ZULMIRA Pulmo!

VIZINHA Por que a senhora no experimenta homeopatia.

(Luz sobre agncia funerria.)

1o. FUNCIONRIO S pensa em mulher!

TIMBIRA Homem, no!

1o. FUNCIONRIO Sabe que eu no tinha confiana de te deixar, sozinho, nem com uma defunta!

(Bate o telefone.)

1o. FUNCIONRIO Alo! Quem? Est, sim! Um momento! Pra ti.

(Timbira arremessa-se. Luz, tambm, sobre Zulmira que est sentadinha, numa extremidade do palco, com um telefone sem fio.)

TIMBIRA (expectante) Timbira.

ZULMIRA Como vai?

TIMBIRA Quem ?

ZULMIRA No me conhece mais?

TIMBIRA Zulmira?

ZULMIRA At que enfim!

TIMBIRA Como vai essa figurinha?

ZULMIRA Meio bombardeada. Uma gripe tremenda.

TIMBIRA Sabe que eu tenho pensado muito em ti?

ZULMIRA J comea voc!

TIMBIRA (faunesco) Hoje eu estou impossvel!

ZULMIRA Ah, deixa de conversa mole. Escuta o que eu vou te dizer. Est chegando a hora, ouviu?

TIMBIRA De qu?

ZULMIRA Voc um cabea de melo!

TIMBIRA Por qu?

ZULMIRA - J se esqueceu da minha amiga?

TIMBIRA Morreu?

ZULMIRA Ainda no, mas est cada vez pior. O mdico j disse - questo de mais um dia, dois, no mximo. Sabe como .

TIMBIRA e se for palpite do mdico?

ZULMIRA Desta vez, no. Desta vez, batata. Olha as alas de bronze, percebeu?

TIMBIRA E o nosso encontro?

ZULMIRA J, no.

TIMBIRA Amiga da ona!

ZULMIRA J, no posso!

TIMBIRA Ento, quando?

ZULMIRA (dolorosa) Quando?

(Zulmira faz uma pausa pattica. Exalta-se.)

ZULMIRA Primeiro, deixa a minha amiga morrer. Ento, estarei livre!

(Zulmira num riso convulsivo.)

ZULMIRA Serei tua, do meu marido, de todo o mundo! Au revoir!TIMBIRA Vem c! Zulmira!

(Zulmira desliga.)

TIMBIRA Al! Al!

(Timbira desliga tambm.)

TIMBIRA Bolas!

(Timbira vem falar com os dois Funcionrios.)

TIMBIRA Essas pequenas me pe maluco!

1o. FUNCIONRIO Quem foi?

TIMBIRA A tal Zulmira.

1o. FUNCIONRIO Abre o olho!

2o. FUNCIONRIO Papas ou no papas?

TIMBIRA Seil! J no entendo mais nada!

1o. FUNCIONRIO Entra de sola, que mulher gosta disso!

(Timbira convoca os dois.)

TIMBIRA E vem c: quero um palpite, uma opinio. Vocs acham o qu? Que essa conversa de enterro, de amiga, de caixo tudo isso batata ou golpe?

1o. FUNCIONRIO Pra te ser franco: acho que golpe.

TIMBIRA Espeto! Espeto!

1o. FUNCIONRIO Te prepara, que vem por a um enterro de setecentos cruzeiros!

(Timbira coa a cabea.)

TIMBIRA Mas ento explica por qu? A troco de qu, tudo isso?

1o. FUNCIONRIO Tu ainda no desconfiaste que as mulheres so completamente malucas?

(Luz no lar de Zulmira. Entra tuninho no quarto. Furioso. Atira o palet.)

TUNINHO Que peso tremendo!

(Zulmira, que cochilava, desperta em sobressalto.)

ZULMIRA Que foi?

(Tuninho tira os sapatos.)

TUNINHO Imagina tu talvez o Ademir no jogue.

ZULMIRA (atnita) Que Ademir?

TUNINHO Ora, no aborrece voc tambm! Que Ademir? Ou tu nunca ouviste falar de Ademir? Parece que vive no mundo da lua?

(Tuninho, enfurecido, anda de um lado para outro. Tem um sapato em cada mo.)

ZULMIRA Ai!

TUNINHO Machucou-se no treino. Estupidamente!

(Zulmira dobra-se, na cama, tossindo com todas as foras. Sob a obsesso futebolstica, Tuninho nem liga para a tosse da mulher.)

TUNINHO E se ele no jogar, no sei, no. Vai ser uma tragdia em 35 atos! Porque o Ademir, sozinho, vale meio time. Ah, vale...

(Tuninho vem se debruar sobre a mulher, que continua tossindo.)

TUNINHO (feroz) Sabe quem deu o supercampeonato ao fluminense? Ademir! Decidiu todas as partidas!

(Larga os sapatos. Deita-se, numa melancolia medonha. Ao lado, sentada, no meio da cama, Zulmira se torce, em acessos tremendos.)

TUNINHO s vezes, eu tenho inveja de ti. Tu no te interessas por futebol, no sabes quem Ademir, no ficas de cabea inchada, quer dizer, no tens esses aborrecimentos... Benza-te Deus!

(Tuninho vira-se para o lado. Acesso de Zulmira.)

ZULMIRA Ai, meu Deus, ai meu Deus!

(Tuninho, ao lado, j ronca. Nova golfada de Zulmira. Encosta o leno na ponta da lngua. Olha e, pattica, sacode o marido.)

ZULMIRA Tuninho! Tuninho!

(Tuninho salta na cama.)

TUNINHO Eu!

ZULMIRA Olha! Espia!

(Tuninho esbugalha os olhos.)

TUNINHO Que isso?

ZULMIRA Sangue!

(Tuninho apavora-se.)

TUNINHO De onde?

ZULMIRA Pulmo!

(Zulmira encosta o leno, novamente, na ponta da lngua. S falta esfregar o leno na cara do marido.)

TUNINHO Deita!

ZULMIRA Eu no te disse? Que o Dr. Borborema no entendia tosto de coisa nenhuma?

TUNINHO Vou chamar a Assistncia!

(Zulmira agarra-o.)

ZULMIRA No quero! Fica a!

TUNINHO Mas Zulmira!

ZULMIRA Eu vou morrer... Sei que vou morrer. J no sou mais deste mundo.

TUNINHO Isola!

(Tuninho bate na madeira.)

ZULMIRA Vou sim. Mas antes tenho um pedido, um ltimo pedido, ltimo! Sim, Tuninho? A uma morta no se recusa nada!

(Zulmira tem um choro grosso, que assombra Tuninho. O marido est quase chorando.)

TUNINHO Meu corao, ouve! Voc vai se tratar, vai ficar boa!

(Zulmira se enfurece.)

ZULMIRA Mentira! Olha pra mim! Me pega! Passa a mo por aqui pelo meu peito! Agora responde: tu sabes, no sabes, que eu vou morrer? Pelo amor de Deus, diz que eu vou morrer! Vou morrer?

(Tuninho cobre o rosto comm uma das mos.)

TUNINHO (num soluo e dominado) Vai.

ZULMIRA Oh, graas! E agora jura! Jura que atenders o meu pedido! Jura!

TUNINHO Juro!

ZULMIRA Deus te abene!

TUNINHO Qual o pedido?

ZULMIRA Nessa rua, quando souberem que eu morri, vo pensar que meu enterro vai ser mambembe, Tuninho... Ento, essa gata, a do lado, j sabe... Por isso eu quero, e no peo nada seno isso, seno um enterro como nunca houvfe aqui, um enterro que deixe a Glorinha com uma cara deste tamanho, possessa...

(Zulmira tem um riso grosso.)

uma pirraa minha, confesso! Depois, tuapanhas, na minha bolsa branca, um papelzinho, onde tem tudo tomado nota... Ao todo, uns trinta e seis mil cruzeiros...

TUNINHO Quanto?!

ZULMIRA Trinta e seis mil cruzeiros. Est tudo tratado! Numa casa da Praa Saens Pea, Casa Funerria So Geraldo... Guarda o nome...

TUNINHO Meu amor, eu sei que tumereces muito mais, no h dvida... Mas a questo o seguinte: estou desempregado, sem nquel.. Ainda temos, da indenizao que eu recebi, uns duzentos cruzeiros, no mximo... Onde que eu vou arranjar tanto dinheiro? So trinta e seis mil cruzeiros!...

ZULMIRA H uma pessoa que te dar esse dinheiro todo. At mais. De mo beijada.

TUNINHO (pulando) Quem?

ZULMIRA Eu te direi nome, endereo, tudo. Mas promete que no me fars perguntas. Sim, Tuninho?

TUNINHO Vl. Fala.

ZULMIRA Essa pessoa chama-se Joo Guimares Pimentel.

(Tuninho assombra-se.)

TUNINHO Joo Guimares Pmentel? Esse no um que O Radical publicou um retrato descascando a lenha, chamando de gatuno pra baixo? esse?

ZULMIRA .

TUNINHO Continua.

ZULMIRA Voc tambm apanha, na minha bolsa branca, outro papel, com o endereo dele, da casa, do escritrio, os telefones. Assim que eu morrer pega um txi, vai casa dele, ao escritrio, seja l onde for, e diz o seguinte: que eu morri. Mas antes que, antes de morrer, pedi que ele me pagasse um enterro de quarenta mil crizeiros... ele te dar o dinheiro... Eno diz que meu marido... Diz que primo...

(Tuninho ergue-se, atnito. Esbraveja.)

TUNINHO Mas quem esse homem que eu nunca, na vida, vi mais gordo? Que apito toca? Vai largar 40 mil crizeiros por qu? A troco de qu?

(Zulmira se torce numa golfada.)

ZULMIRA Mais sangue... No respondo... Uma morta no precisa responder... Prometeste que eu teria esse enterro bonito, lindo... de penacho... 36 mil cruzeiros... Jura outra vez, jura!

TUNINHO (num soluo) Juro!

(Zulmira apanha a mo do marido e a beija. a agonia que se aproxima. Zulmira ergue meio corpo, na cama. Est delirante.)

ZULMIRA Eu sou morta, que pode ser despida... Vizinhas, me dispam...

(Zulmira desaba na cama. Luz sobre os dois novos personagens, na rua. Um deles, cava, num dente, com um pau de fsforo, numa dessas faltas de poesia absolutas.)

FULANO Caiu um pedacinho de comida num dente, em cima do nervo...

(Entra Oromar, assombrado.)

OROMAR Sabe quem acaba de morrer?

FULANO Quem?

OROMAR Agorinha mesmo!

FULANO No.

OROMAR A mulher do Tuninho.

FULANO Morreu?

OUTRO FULANO (lento e maravilhado) No brinca!

OROMAR No faz nem meia hora.

FULANO- De qu?

OROMAR Galopante.

OUTRO FULANO (com pesar sincero) - Que coisa chata!

OROMAR Estou com uma pena danada do Tuninho... A mulher morre na vspera do Vasco X Fluminense... O enterro amanh... Quer dizer que ele no vai poder assistir ao jogo.. Isso o que eu chamo de peso tenebroso!...

(Vo saindo.)

OROMAR (para os outros) Logo na vspera!...

FIM DO SEGUNDO ATO

TERCEIRO ATO

(abri-se o pano para o terceiro ato, a cena estpa vazia. Ouve-se apenas, ordio fantstico da vizinha do lado, numa desenfreada msica carnavalesca. Cessa o rdio.)

(Zulmira acaba de morrer e a hora de vestir o corpo. Luz sobre a famlia da falecida. A me, que chora, asso-se. Depois de assoar-se, rompe em exclamaes.)

ME Minha filha! Minha filhinha!

(vizinha bate-lhe no ombro.)

VIZINHA D. Fulana!

ME Oh meu Deus!

VIZINHA (chamando) D. Fulana!

ME Que ?

VIZINHA- Qual a roupa?

ME Que roupa?

VIZINHA De sua filha. A roupa de sua filha.

ME (chorando) Est ali.

VIZINHA Onde?

ME Na cmoda.

(Vizinha pe-se de ccoras, ante uma cmoda imaginria.)

VIZINHA Aqui?

ME A. E quer-me fazer um favor, D. Detinha?

VIZINHA Ora!

ME Abre a segunda gaveta.

VIZINHA Do meio?

(Vizinha est executando todos os movimentos.)

ME (arqueja) Do meio, sim.

VIZINHA Pronto.

ME V se no tem um embrulho amarelo.

VIZINHA tem.

ME Apanha. Esse. Pois : minha filha era muito caprichosa. Tinha comprado um jogo completo, combinao, calcinha, tudo. Pegou o embrulho, enfiou nessa gaveta, ps remdio de barata. E, ainda ontem, avisou: Mame, quando eu morrer, j sabe, no se esquea de minha combinao nova.

VIZINHA E o vestido aquele mesmo?

ME . O cinzento. Aquele cinzento. O sapato est na caixa.

VIZINHA Muito bem. Com licena.

(Sai a vizinha. A me rompe num soluo maior.)

ME (num clamor) Vo vestir minha filha!

(Volta a vizinha. Zangada.)

VIZINHA Mas um caso srio!

ME Que foi?

VIZINHA No possvel! O quarto est assim de mulheres! No se pode nem respirar! Tudo em cima, olhando, parei!

ME (arquejando) Imagino!

VIZINHA A senhora no acha mais negcio botar todo mundo pra fora? Ficou eu, mais outra e pronto?

(Me, sfrega, segura a vizinha.)

ME Pelo amor de Deus!

VIZINHA Como?

ME No pe ningum pra fora! Ningum! Deixa todo mundo! Minha filha queria que todas as mulheres da rua estivessem no quarto, quando a vestissem...

VIZINHA Ora veja! Mas tem at garotinha de 8, 10 anos, espiando!

ME Deixa! Deixa! No manda ningum embora!

VIZINHA (furiosa) All right!

(Sai a vizinha para vestir a morta, Luz sobre o txi, em que viaja Tuninho. Txi, evidentemente, imaginrio. O nico dado real do automvel umabuzina, gnero fon-fon, que o chofer usa, de vez em quando. A idia fsica do txi est sugerida da seguinte forma: uma cadeira, atrs da outra. Na cadeira da frente vai o chofer, atrs, tuninho. Chofer simula dirigir, fazendo curvas espetaculares.)

TUNINHO vem c, chofer.

CHOFER Eu?

TUNINHO voc, por acaso, conhece o Joo Guimares Pimentel?

CHOFER Guimares o qu?

TUNINHO Pimentel.

CHOFER Dos lotaes?

TUNINHO Conhece?

CHOFER Conheo. Quem que no conhece o Pimentel?

TUNINHO Que tal?

CHOFER Como?

TUNINHO Tem dinheiro?

(O chofer cai das nuvens ante a pergunta do passageiro.)

CHOFER O Pimentel?!

TUNINHO Tem?

CHOFER Podre de rico! Milionrio! Erva, ali, mato! E sabe quantos lotaes tem, rodando, dia e noite? D um palpite!

TUNINHO No fao a mnima.

CHOFER Trezentos! Sem contar os txis e outros bichos. S no leva vantagem com a mulher.

TUNINHO Casado?

CHOFER Casado. A mulher uma fera. Dessas que precisam dez pra segurar. Mas o Pimentel... ah, o Pimentel!...

TUNINHO Bom sujeito?

CHOFER (uivando) Um cavalo!

(Tuninho espia para os lados. Tem uma exclamao.)

TUNINHO Parece que aqui.

CHOFER Aqui?

TUNINHO 270... aqui, sim... Nesse palacete... Pode parar...

(Pra o txi e Tuninho salta.)

TUNINHO Agenta a mo, que eu j volto.

CHOFER (espiando) Bonita casa!

(Luz sobre Pimentel, que est bebendo usque. Vem o contra-regra anunciar.)

CONTRA-REGRA Tem a um rapaz procurando o senhor.

PIMENTEL (exasperado) Ser o Benedito? Diz que eu no estou, que eu morri, inventa um troo!

(J Tuninho apareceu numa extremidade do palco. Anda de um lado para o outro, esperando. O contra-regra est diante dele.)

CONTRA-REGRA Saiu.

TUNINHO ento, eu espero.

CONTRA-REGRA Vai voltar tarde.

(Tuninho espeta o dedo na cara do contra-regra.)

TUNINHO E no saiu coisa nenhuma. Est em casa, compreendeu? Vai avisar a teu patro que eu vou me plantar aqui e que no saio nem a tiro!...

(contra-regra transmite o recado.)

CONTRA-REGRA Diz que assunto de vida ou morte.

PIMENTEL Manda entrar e traz mais gelo.

(Tuninho est diante de Pimentel.)

PIMENTEL Que que h?

TUNINHO (tmido e gaguejante) vim aqui da parte de Zulmira... Alis, eu sou primo dela e...

PIMENTEL (com maus modos) Zulmira?

(Tuninho est desconcertado.)

TUNINHO O senhor no conhece? Zulmira...

PIMENTEL Uma moreninha?

(Tuninho exulta.)

TUNINHO Exato. Morena, de olhos verdes.

(Contra-regra entra com uma cadeira.)

PIMENTEL Sente-se.

TUNINHO Obrigado.

PIMENTEL (meio nostlgico) - Me lembro. Agora me lembro. Zulmira...

TUNINHO (alvar) Pois .

PIMENTEL e que fim ela levou?

(Tuninho pigarreia.)

TUNINHO Faleceu.

(Pimentel atnito.)

PIMENTEL Quando?

TUNINHO H coisa de uma meia hora, quarenta minutos.

PIMENTEL Mas no possvel! No pode ser!

TUNINHO Morreu.

PIMENTEL De qu?

TUNINHO Pulmo!

PIMENTEL (apavorado) Que coisa!

(Tuninho pigarreia, novamente.)

TUNINHO E eu estou aqui, porque... Pouco antes de morrer, ela me chamou e... mandou pedir para o senhor pagar o enterro dela...

PIMENTEL Eu? O enterro?... Eu, pagar?... Mas... e o marido?

TUNINHO Est desempregado.

(Pausa.)

PIMENTEL Compreendo. O senhor primo?

TUNINHO Primo.

PIMENTEL E, se est aqui, porque sabe, naturalmente sabe... Zulmira lhe contou?

TUNINHO Por alto.

(Entra o contra-regra.)

PIMENTEL Traz mais um copo, aqui , pro o nossa amizade.

(Pimentel bebe, sfrego. Pe a mo nos joelhos de Tuninho.)

PIMENTEL No se incomoda que eu lhe fale nesse assunto?

TUNINHO Em absoluto.

(Pimentel est pondo usque no copo de Tuninho.)

TUNINHO E, at eu gostaria de saber... Porque eu no desconfiei, nunca... Nem eu, nem ningum... S vim saber agora... Francamente, ca das nuvens...

PIMENTEL Mas no interprete mal!

TUNINHO Claro! Eu no condeno, absolutamente! Mas como foi?

(Pimentel bebe mais.)

PIMENTEL Grande pequena!

(Pimentel, baixo e faunesco.)

PIMENTEL O corpo que eu gosto nem gorda, nem magra. Na medida!

(Tuninho bebe, na sua clera contida.)

TUNINHO Foi fcil ou difcil?

(Pimentel tem um riso pesado.)

PIMENTEL Se foi fcil ou difcil? Basta que eu lhe diga o seguinte, dois pontos: foi a nica mulher que eu conquistei no peito, galega. Entrei de sola.

TUNINHO (atnito) De sola como?

PIMENTEL Sim, porque, geralmente, antes do principal, sempre h uma conversinha, um namoro, um romance... E, com a Zulmira, no houve nada disso... Ah, eu me lembro como se fosse hoje. Direitinho. Foi mais ou menos h um ano. Sabe aquela sorveteria na Cinelndia, que fica perto do Odeon?

TUNINHO Conheo, sim.

PIMENTEL Pois . Entrei na sorveteria e... Fui l dentro... Mas em vez de empurrar a porta dos Cavalheiros, empurrei a porta das Senhoras. Abri assim e dou de cara com uma dona que estava na pia, lavando as mos... Eu ia voltar atrs, mas ah! No sei o que houve comigo! Deu-me a louca e j sabe: atraquei a Fulana, em bruto. Quer dizer no houve um bom dia, um boa noite, no houve uma palavra entre ns, nada.

TUNINHO (sfrego) E ela?

PIMENTEL Que que tem?

TUNINHO Reagiu? Gritou?

PIMENTEL Nem piou! E se gritasse, o marido estava l, a cinco metros, na mesa, tomando sorvete. Menino! E era hora de lanche, de movimento! Se me entra, l, alguma dona e v aquele negcio? J imaginaste o bode, o angu-de-caroo? Tivemos tanta sorte, mas tanta, que no apareceu ningum!

(Pimentel faz os clculos.)

PIMENTEL Tudo durou uns cinco minutos. O gozado o seguinte: nesses cinco minutos, tinha havido o diabo entre ns... E quando eu sa, sem me despedir, nem nada, sujo de batom at alma quando eu sai, ela no sabia o meu nome, nem eu o dela... No fantstico?

(Tuninho ri com sofrimento.)

TUNINHO E o marido tomando sorvete!

PIMENTEL Duas semanas depois, eu estou no meu escritrio e...

(Pimentel pe o copo de usque no cho. Vem ao encontro de Zulmira que acaba de entrar. Uma luz azul e espectral sobre a cena evocativa. Tuninho arrasta a prpria cadeira e vem sentar-se diante do quadro.)

TUNINHO (roendo as unhas) Mas, finalmente, ela gostava ou no gostava do marido?

(Pimentel toma entre as suas as mos de Zulmira.)

PIMENTEL Ol! Bons olhos a vejam!

(O contra-regra traz cadeira para Zulmira.)

PIMENTEL Soube meu nome como?

(Zulmira apanha, na bolsa, um recorte de jornal.)

ZULMIRA Li isso, aqui, no Radical.

(Pimentel olha o recorte.)

PIMENTEL At meu retrato puseram! Deixa pra l! Isso cartaz! Mas como seu nome, que eu ainda nem sei?

ZULMIRA Zulmira.

(Pimentel ergue-se.)

PIMENTEL Zulmira, ? Espera, que eu vou fechar a porta.

ZULMIRA (em sobressalto) Pra qu?

PIMENTEL (srdido) Agenta a mo!

(Pimentel fecha a porta e volta.)

ZULMIRA Quietinho!

PIMENTEL Que isso que voc est chupando?

ZULMIRA Drops.

PIMENTEL Joga fora.

ZULMIRA - Por qu?

PIMENTEL Porque eu vou te dar um beijo e quero sentir gosto de boca.

(Zulmira ergue-se.)

ZULMIRA No faa isso...

(Zulmira e Pimentel esto quase boca com boca.)

ZULMIRA (cnica) - ... porque eu sou casada!

PIMENTEL Mas j aconteceu o mximo entre ns! Tudo!

ZULMIRA Seu mascarado!

PIMENTEL (eufrico) Agora tarde e Ins morta!

(Zulmira j faz o bico de beijo.)

ZULMIRA Mas, ento, um s!

(Cena do beijo. Tuninho grita.)

TUNINHO E o marido? O que que ela dizia do marido?!

(Pimentel, sai da zona da luz azul. Vem beber um pouco de usque. Pe o copo, outra vez, no cho. Vem passando por Tuninho.)

PIMENTEL No dia seguinte, fomos ao apartamento... Ah, foi uma tarde fabulosa!...

(De novo Pimentel e Zulmira sob a luz espectral. Os dois ficam de joelhos, de frente um para o outro.)

PIMENTEL Teu marido te fez alguma coisa?

ZULMIRA (incisiva e rancorosa) Fez.

PIMENTEL Alguma maldade?

ZULMIRA (veemente) Pior que maldade. Uma coisa que eu no perdo, nunca!

PIMENTEL Diz.

(Ergue-se Zulmira. Vem at boca de cena.)

ZULMIRA (dolorosa) Comeou na primeira noite... Ele se levantou, saiu do quarto... Para fazer, sabe o qu?

PIMENTEL No.

ZULMIRA (num grito triunfal) Lavar as mos!

PIMENTEL E da?

ZULMIRA Achas pouco? Lavava as mos, como se estivesse nojo de mim! Durante todo a lua-de-mel, no fez outra coisa... Ento, eu senti que mais cedo ou mais tarde havia de tra-lo! No pude mais suport-lo... Aquele homem lavando as mos... Ele virava-se para mim e me chamava de fria.

(Zulmira altiva, empinando o queixo, como se desafiasse a platia.)

ZULMIRA Fria, coitado!

(Zulmira, rpida e amorosa, volta-se para Pimentel. Apanha o rosto do amante entre as mos.)

ZULMIRA (veemente) Sou fria, sou?

PIMENTEL (alvar) Voc um espetculo!

ZULMIRA Odeio meu marido!

(Pimentel segura os dois braos de Zulmira.)

PIMENTEL Xinga teu marido!

ZULMIRA Pra qu?

PIMENTEL Xinga.

ZULMIRA Mas pra qu?

PIMENTEL uma brincadeira gostosa, sua boba! Experimenta! Olha, diz assim, quer ver? Estou traindo o meu marido! Anda! Alto! Diz!

(Zulmira transfigura-se. Tem um arrebatamento.)

ZULMIRA Estou traindo meu marido! (mais forte) Estou traindo meu marido! (baixo e soluante) Traindo...

(Pimentel exalta-se tambm. Instiga-a, com violncia.)

PIMENTEL Mais! Mais! Repete!

(Pimentel dentro da luz azul um homem e fora, outro. Sai Pimentel para falar com Tuninho e beber mais usque.)

PIMENTEL (para Tuninho) Compreendeu?

TUNINHO (com surdo sofrimento) Odiava o marido!

PIMENTEL O negcio ia muito bem, timo, quando, de repente... Entrou areia... Porque h sempre um esprito de porco, sempre! V s que azar, que peso! Uma tarde, eu ia saindo, com Zulmira, de brao... No sei por que, naquela tarde, cismei, estupidamente, de dar o brao... E foi batata! Zulmira ainda avisou. Olha esse brao! demos de cara com uma conhecida!

TUNINHO Quem?

PIMENTEL Alis, uma prima de Zulmira...

TUNINHO Glorinha?

PIMENTEL Acho que ... Glorinha, sim... A tal Glorinha encarou com Zulmira, passou adiante e nem bola... Sabe que Zulmira ficou assombradssima?

(Pimentel entra, de novo, na luz azul. Zulmira torce e destorce as mos.)

ZULMIRA Vamos acabar! Vamos, sim!

PIMENTEL Acabar por causa de uma cretina?

(Zulmira agarra-se a Pimentel.)

ZULMIRA (desesperada) Desde aquele dia, ela no fala mais comigo, nem me cumprimenta! Vira o rosto, oh meu Deus!

PIMENTEL E voc liga?

ZULMIRA (veemente) Ligo, sim!

PIMENTEL Que bobagem!

(Zulmira nujm desespero maior.)

ZULMIRA Mas ela tem razo! Eu que no podia ter um amante!

PIMENTEL Vem c!

(Pimentel tenta segurar Zulmira, que se desprende com violncia.)

ZULMIRA No me toque!

PIMENTEL D um beijo!

ZULMIRA Nunca!

PIMENTEL Por qu?

ZULMIRA No adianta. No acho mais graa em beijo, no acho mais graa em nada!

(Olha em torno, como se eles pudessem ter, ali, uma invisvel testemunha.)

ZULMIRA Agora que eu sou fria, de verdade. Glorinha no me deixa amar.

(Zulmira continua olhando em torno, assombrada.)

ZULMIRA Como se ela estivesse aqui. Atrs de mim. Como se me acompanha-se por toda parte.

(Zulmira, em pnico, para Pimentel.)

ZULMIRA (num lamento maior) Ela me impede de ser mulher.

(Zulmira passa as costas da mo nos lbios, limpando a boca.)

ZULMIRA Tenho nojo de beijo. De tudo!

(Sua voz quebrar-se num soluo. Zulmira some. Pimentel est com Tuninho. Cada um com o seu copo. Extingue-se a luz espectral.)

TUNINHO E deu o fora?

PIMENTEL Deu. Nunca mais apareceu, nem telefonou, nada. Sumio integral.

(Pimentel curva-se, numa brusca nostalgia.)

PIMENTEL Ela no usava perfume. E tinha um cheirinho de suor, que me agradava.

(Tuninho pousa o copo no cho. Ergue-se.)

TUNINHO Bem. Tenho que ir... Alis, estou atrasadssimo... Preciso apanhar o atestado de bito, tambm... E ainda no tomei nenhuma providncia do enterro...

PIMENTEL V, sim... Vou ver o dinheiro...

(Pimentel apanha a carteira recheada, no bolso traseiro da cala.)

PIMENTEL Estou com vontade de uma coisa...

(Pimentel apanha algumas cdulas.)

PIMENTEL Que tal se eu fosse, l, dar uma espiada? Gostaria de v-la, pela ltma vez...

TUNINHO No convm.

PIMENTEL Por qu?

TUNINHO Antes de morrer, ela pediu que o senhor no fosse, porque est muito magra...

PIMENTEL Coitada!... E quanto ?...

TUNINHO (trincando as palavras) Quarenta mil cruzeiros!

PIMENTEL Como?!

TUNINHO Quarenta mil cruzeiros.

(Pimentel recua assombrado.)

PIMENTEL Est louco?!

TUNINHO o preo.

PIMENTEL Que pada essa? Quarenta mil cruzeiros como?

TUNINHO Sim, senhor! Perfeitamente!

PIMENTEL Eu enterrei minha me, que minha me, por dez mil cruzeiros... E foi um big enterro!

(Tuninho estende a mo.)

TUNINHO Quarenta mil cruzeiros.

PIMENTEL Olha eu estou disposto a dar, e na camaradagem, mil e quinhentos cruzeiros... E lamba os dedos!

(Tuninho est cara a cara com Pimentel.)

TUNINHO Voc vai dar, sim, os quarenta mil cruzeiros, at o ltimo centavo. Isso uma. Agora outra: eu no sou primo de Zulmira coisa nenhuma.

PIMENTEL o qu?

TUNINHO P marido. O prprio. O tal que estava na sorveteria, enquanto voc trocava as portas. (ri) S que eu no estava tomando sorvete, por causa da minha sinusite... Devia ser mdia ou coisa que o valha...

(Tuninho, subitamente feroz, estendendo a mo.)

TUNINHO D os quarenta mil, anda!

(Pimentel est numa pusilanimidade total.)

PIMENTEL E se eu no quiser dar?

TUNINHO Azar o teu. Porque eu saio daqui, direto, sabe pra onde? Pra o Radical, que est de pinimba contigo. Chego l, conto tudinho, dou o servio completo e vai ser a maior escrachao de todos os tempos!

PIMENTEL (arquejante) Dou trinta!

TUNINHO Quarenta e j.

(Pimentel passa as costas da mo no suor da testa.)

PIMENTEL Est bem.

(Pimentel, arrasado, pe-se de ccoras diante do imaginrio cofre. Tuninho, emp, com as duas mos enfiadas nos bolsos, assobiando, olha para os lados, para o alto, como se estivesse fazendo uma avaliao do ambiente. Vem Pimentel entregar o dinheiro.)

PIMENTEL Pronto.

(Tuninho, de ccoras, pe o dinheiro no cho e comea a contar.)

TUNINHO Trs, quatro, cinco mil cruzeiros... Sabe que eu estou bolando uma outra idia... Seis, sete, oito, nove, dez mil cruzeiros... Uma idia... Genial...

(Tuninho arruma e pe os primeiros dez mil cruzeiros num bolso.)

TUNINHO 11,12,13... Que tal se a gente fizesse uma missa de stimo dia, bacana?... 14. 15, 16... Missa de interromper o trnsito?... 17, 18, 19, 20...

(Tuninho pe os outros dez mil cruzeiros noutro bolso.)

TUNINHO Podia ser uma missa de trs padres e 10 coroinhas... 21, 22, 23, 24, 25, 26... Com msica... 30 mil cruzeiros... Uma missa abafante... O resto est certo!...

(Em cada bolso, Tuninho pe dez mil cruzeiros.)

TUNINHO No um grande golpe?

PIMENTEL (na sua impotncia) Desaparea!

TUNINHO(doce) Segunda-feira eu volto para apanhar o dinheiro da missa!

PIMENTEL Cachorro!

(Luz na casa funerria. Presentes Primeiro e Segundo Funcionrio e Timbira. Este submetido a violento sermo.)

1o. FUNCIONRIO Isso tara!

TIMBIRA No amola!

1o. FUNCIONRIO Tara, no duro!

(Timbira, que est quebrando nos dentes um pau de fsforo, cospe-o fora. Veemente, enfrenta o Primeiro Funcionrio.)

TIMBIRA Por qu?

1o. FUNCIONRIO Mas claro! Tu s um sujeito nessas condies: de 15 em 15 minutos, contados a relgio, tens uma paixo. Agora essa tal de Zulmira... Viu a fulana uma vez e pronto.

(Timbira exalta-se.)

TIMBIRA Gostei da garota, ora pipocas!

1o. FUNCIONRIO Voc gosta de todas!

TIMBIRA Espera l! De todas, uma conversa!

1o. FUNCIONRIO Sim, senhor!

TIMBIRA Uma ova! Com as outras, eu brinco. Dessa eu gosto. diferente.

1o. FUNCIONRIO Queres um palpite meu?

TIMBIRA Fala

1o. FUNCIONRIO Na minha opinio opinio sincera essa pequena est te fazendo de palhao.

TIMBIRA Pois sim.

1o. FUNCIONRIO E das duas uma: ou maluca desconfio que maluca ou, ento, vigarista. Escreve.

TIMBIRA Posso falar?

1o. FUNCIONRIO Cabea dura!

TIMBIRA Gosto dessa pequena, pronto acabou-se. No sei, acho muito jeitosa, um corpinho, que me pe maluco... E no est mentindo... Esse negcio do enterro de 36 mil cruzeiros batata aposto os tubos! Quero ser mico de circo! A qualquer momento ou ela ou algum da parte dela, vai chegar aqui e ...

(Tuninho entra. Primeiro Funcionrio cutuca Timbira, interrompendo-o.)

1o. FUNCIONRIO Fregus.

(Timbira vai atender o recm-chegado.)

TIMBIRA Deseja alguma coisa?

TUNINHO Podia me dar uma informao?

TIMBIRA - Perfeitamente.

TUNINHO Eu desejava saber quanto custa o caixo mais barato.

(Timbira vira-se para o Primeiro Funcionrio.)

TIMBIRA Vem c, Fulano.

1o. FUNCIONRIO Que que h?

TIMBIRA Aqui o cavalheiro deseja saber o preo do caixo mais barato.

(Timbira afasta-se.)

1o. FUNCIONRIO S o caixo?

TUNINHO S o caixo.

1o. FUNCIONRIO Quatrocentos cruzeiros.

(Primeiro Funcionrio d o preo e, ao mesmo tempo, abre os braos e a boca, num espreguiamento total e irremedivel.)

TUNINHO o mais barato de todos? De todos?

1o. FUNCIONRIO Claro!

TUNINHO Quatrocentos cruzeiros. Vai esse mesmo.

(Primeiro funcionrio apanha um caderno.)

1o. FUNCIONRIO Pra onde ?

(Primeiro Funcionrio tomando nota.)

TUNINHO Aldeia Campista.

(Timbira faz confidncias amorosas ao Segundo Funcionrio.)

TIMBIRA Ela vai. Com jeitinho, vai.

(Sai todo mundo. Com a cena vazia, rompe o fantasmagrico rdio da Glorinha, uivando. Rdio cai em surdina. Entram no palco os amigos e parceiros de Tuninho. Formam um grupo numa extremidade do palco. Jogam porrinha.)

UM V que horas so?

DOIS 10.

TRS J?

QUATRO No meu falta cinco.

UM Est na hora do enterro sair.

DOIS E o Tuninho?

TRS Pois .

UM Onde que se meteu essa besta?

TRS Sei l! O cara me sai dqui ontem. Trata do enterro, que o mais fuleiro que eu j vi na minha vida, e d um pira monumental.

QUATRO Papel indecentrrimo!

(O Um abre os braos, numa indignao bblica.)

UM Um enterro de cachorro!

(O Quatro chama os outros.)

QUATRO Vamos carregar o negcio!

(Correm os quatro. Na cena vazia, uma derradeira e breve rejada carnavalesca. Luz sobre o quarto de timbira, que ronca. Entra o Primeiro Funcionrio. Sacode o Timbira.)

1o. FUNCIONRIO Timbira! Como Timbira!

TIMBIRA (em sobressalto) Que ?

2o. FUNCIONRIO Sou eu! Acorda, seu zebu! Meio-dia!

TIMBIRA J

(Ergue-se Timbira. Em fraldas de camisa e short. Coa as pernas cabeludas.)

TIMBIRA Tarde pra chuchu! Ontem, eu enchi a caveira de cachaa...

(No cho, est um copo, com uma escova de dentes e respectivo dentifrcio. Timbira apanha a escova.)

1o. FUNCIONRIO Tenho uma bomba pra ti, rapaz!

TIMBIRA Mete l!

1o. FUNCIONRIO Estou chegando de cemitrio.

TIMBIRA Ah, o tal enterro!

1o. FUNCIONRIO Exatamente. Imagina s de quem era o tal enterro? Imagina quem eu ajudei a pr no caixo de quatrocentos cruzeiros?

TIMBIRA Quem?

1o. FUNCIONRIO (exultante) A tua pequena!

TIMBIRA Qual delas?

1o. FUNCIONRIO (numa mesura) ZULMIRA!

TIMBIRA Nem brinca!

1o. FUNCIONRIO Palavra de honra! Por essa luz que me alumia!

TIMBIRA Carambolas!

1o. FUNCIONRIO No te disse? Batata! Bem que eu fiquei bolando a coincidncia de nomes... Chego l, era ela mesma!

TIMBIRA Me tapeou direitinho.

1o. FUNCIONRIO Mas anda, rapaz! E no pensa mais nessa gaja. Est morta, enterrada! Hoje o jogo de aspirantes tambm bom. Tinha gente assim indo para o Maracan!

(Petrificado, Timbira est com a escova de dentes, em suspenso. A espuma do dentifrcio rola em catadupa.)

TIMBIRA (num juzo final) Que vigarista!

(Luz no Maracan. Vai entrando Tuninho. Atrs, de bon, o chofer do txi, empunhando uma bandeira do Vasco. Os dois atravessam uma multido imaginria de duzentas mil pessoas. Efeitos sonoros do Campeonato do Mundo.)

TUNINHO (no seu deslumbramento) Parece at Brasi-Uruguai!

CHOFER Vai ser um rendo!

TUNINHO Pra l de dois milhes!

(Chofer olha em torno.)

CHOFER Vamos ficar aqui? Aqui est bom!

(Contra-regra pe cadeira para dois. Sentam-se. Exaltao de Tuninho.)

TUNINHO (numa euforia, esfregando as mos) Est na hora da ona beber gua! (Muda de tom, feroz) hoje vou tomar dinheiro desses p-derroz! No entendem bolacha de futebol! Sou Vasco e dou dois gols de vantagem!

(Tuninho vem boca de cena, numa alucinao. Bate no peito.)

TUNINHO Tenho dinheiro! Dinheiro!

(Arranca dinheiro dos bolsos. Crispa as mos nas cdulas.)

TUNINHO Vou apostar com duzentas mil pessoas! Dou dois! Trs! Quatro! Cinco gols de vantagem e sou Vasco!

(Tuninho insulta a platia.)

TUNINHO Seus cabeas-de-bagre!

(Tuninho atira para o ar as cdulas. Grita com todas as foras.)

TUNINHO Casaca! Casaca! A turma boa! mesmo da fuzarca! Vassssssco!

(Tuninho cai de joelhos. Mergulha o rosto nas duas mos. Solua como o mais solitrio dos homens.)

FIM DO TERCEIRO E LTIMO ATO