A Falta Em Lacan

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    RESUMO:Discute-se o modo como a falta conceituada por Lacanem dois momentos: com a retomada da Coisa freudiana e com aintroduo do objeto a. Tal esforo em conceituar a falta associado tentativa de Lacan de resgatar aquilo que se revelou central na ex-

    perincia de Freud. Coisa e ao objeto a so relacionadas duas for-mas distintas de se pensar a relao entre o conceito e a falta napsicanlise, determinantes do tipo de aproximao que se pode terdo que constitui a experincia analtica.Palavras-chave: Lacan, conceito, falta, Coisa, objeto a.

    ABSTRACT: Lack conceived by Lacan: from the Thing to object a.This study describes the way lack is conceived by Lacan at two differ-ent levels: with the retrieval of the Freudian Thing and the introduc-

    tion of Object a. Such effort to conceptualize lack is associated toLacans attempt of rescuing that which has revealed itself as centralin Freuds experience. Two distinct ways of thinking the relationshipbetween concept and lack in psychoanalysis are related to the Thingand Object a. Such forms of thinking are determining in the type ofproximity one may have of what is at stake in the analytical experi-ence.Keywords: Lacan, concept, lack, Thing, object a.

    Oretorno a Freud de Lacan teve como foco a experinciaanaltica. Os conceitos que foram resgatados da obra freu-diana, bem como os produzidos em sua trajetria, buscaramtocar aquilo em que consistiria a experincia inaugurada por

    Freud. Lacan percebeu que a tentativa de conceituao doque se passa na experincia da anlise deve levar em conta adimenso do limite do conceito com a qual Freud j se

    Psicanalista. Doutorem TeoriaPsicanaltica pelaUFRJ; professor daUniversidadeEstcio de S.

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    Vinicius Darriba

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    confrontava.1 Ao buscar retomar a experincia freudiana, e no tratar os conceitospsicanalticos como dissociveis do contexto de sua produo, Lacan teve queabordar a questo da falta como central para o trabalho conceitual na psicanlise.

    O pensamento psicanaltico, segundo a leitura lacaniana do legado de Freud,passa ento pela falta. A comear pela questo do objeto, de onde partiremos, emrelao qual a discusso em torno da falta teve seu lugar de eleio desde Freud.No seminrio em que critica a teoria ps-freudiana da relao de objeto, Lacandestacou o lugar central da falta no que concerne ao objeto na psicanlise. Destafalta do objeto, veremos Lacan perseguir uma concepo de objeto que inclua adimenso da falta. O que propomos, aqui, verificar em que termos a falta conceituada por Lacan, em um primeiro momento, com o resgate da Coisa freu-diana e, em seguida, com a introduo do objeto a.

    A FALTA DO OBJETO

    Lacan anuncia, como tema de seu seminrio no ano 1956-57, a relao de objeto(LACAN, 1956-57/ 1995, p.9). Este tema escolhido, segundo o autor, por seencontrar em posio central nos desenvolvimentos relativos teoria e prticaento propostos pela comunidade analtica. Trata-se na verdade, para Lacan, defazer avanar a crtica ao que ele concebe como um desvio da teoria analtica(idem, p.12), desvio que tem seus reflexos na clnica. A valorizao do tema da

    relao de objeto pelos ps-freudianos2 e o modo como esta apresentada por eles visto que Freud no se ocupou particularmente de tal noo3 so os alvos dacrtica de Lacan. O percurso do seminrio claro: consiste na explicitao dosfundamentos de tal crtica e na tentativa de abordar a questo do objeto por outravia, que possa se diferenciar do que proposto nos termos da relao de objeto.

    Mas em que o uso que se fazia da noo de relao de objeto traa a psican-lise? Por que seus efeitos na clnica deveriam ser questionados? O problema j seapresenta, segundo Lacan, no fato de a teoria da relao de objeto privilegiar uma

    concepo harmnica do objeto, contrria aos ensinamentos de Freud. Somos

    1 Esta questo do limite do conceito na psicanlise, aqui tomado como premissa para a discus-so, foi desenvolvida em Darriba (2004, p.78-85). Neste artigo, discutiu-se o inacabamentoque marca o conceito psicanaltico tanto na obra de Freud quanto nos termos de sua retomadapor Lacan.2 A noo de relao de objeto valorizada j nos trabalhos de Abraham, assim como ocupa lugarcentral na teoria de Melanie Klein. Os termos em que ela descrita no seminrio, entretanto,indicam que a polmica visa autores que lhe so contemporneos, notadamente Maurice Bouvet,chefe da Socit psychanalytique de Paris, que Lacan havia deixado em 1953. Sua crtica pode ser

    associada ao contedo do artigo sobre a relao de objeto de que Bouvet autor.3 Encontraremos uma referncia especfica expresso, por exemplo, em Luto e melancolia(1917[1915]), sem que, no entanto, esta constitua um eixo pelo qual passe a se orientar ateoria de Freud (1917[1915], p.281) .

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    lembrados, no seminrio, da observao contundente de Freud de que o objeto o que h de mais varivel na pulso, no estando predestinado a satisfaz-la4

    (idem, p.60) . Conceber um objeto harmnico, um objeto plenamente satisfat-

    rio, que seria assim o objeto por excelncia, desviar-se, segundo Lacan, dapsicanlise freudiana.A relao entre sujeito e objeto sendo marcada pelo conflito, isto , confron-

    tada por uma teoria na qual o objeto harmnico aparece como objeto terminal,ou seja, como aquele para o qual convergiriam as etapas parciais do objeto. Lacanquestiona a idia do objeto genital como sendo o objeto em que culminariam osestgios pr-genitais do objeto, os quais teriam, ento, estatuto provisrio emum desenvolvimento subjetivo considerado saudvel. A relao de objeto se ori-entando por uma convergncia para o objeto genital remete, segundo Lacan, idia de uma maturao da relao do homem com a realidade (idem, p.13). Oobjeto genital situaria o homem, portanto, em uma realidade adequada, e aesta adequao que a clnica deveria aspirar. A crtica de Lacan inspirada, emgrande parte, pela percepo do quo inapropriada a pretenso de que a anlisetenha o objetivo de favorecer a maturao da relao do sujeito realidade.A idia de normalizao do sujeito, a implicada, introduz, segundo ele, catego-rias estranhas perspectiva da anlise (idem, p.16).

    No decorrer do seminrio, seja a falta do objeto enfatizada, sejam os modelos

    de objeto concebidos pelos tericos da relao de objeto contestados, notvel ainsistncia de Lacan em repetir que o objeto em Freud remete falta.5 Repetioque acabar por lan-lo no percurso entre sustentar a falta do objeto e conceberum objeto da falta. Pretendemos verificar, na seqncia do artigo, que este opercurso que Lacan segue aps o seminrio 1956-57. J no estaremos mais adiante do resgate da centralidade da falta no objeto para Freud, mas da proposi-o de um objeto singular na obra de Lacan. Proposio de um objeto em queno h risco de que ele venha a ser confundido com o objeto genital, o objeto

    terminal ou o objeto em uma relao harmnica. Isto porque, ao invs de garan-tir uma homeostase, se trata antes do objeto que causa o desejo. a emergnciado objeto a que acompanharemos adiante.6 No sem antes examinarmos o con-ceito da Coisa, trabalhado por Lacan no resgate da noo de das Ding freudiana.

    4 Cf. FREUD, 1915/ 1990, p.143.5 Cf., por exemplo, Lacan, 1956-1957/ 1995, p.13, 35, 51, 60.6 A afirmao por Lacan de um objeto na psicanlise, objeto no mais passvel de ser capturadona trama da relao de objeto, um contraponto importante sua insistncia na prevalncia da

    falta. Isto porque, quando liberado da relao de objeto, em alguma medida o objeto sevolatiliza no texto de Lacan. Podemos falar do risco de se saltar da a uma mstica da falta,reduzindo-se a anlise a uma perpetuao da falta. o caminho que se segue, em direo aoobjeto a, que entendemos nos afastar desta deriva.

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    com tal conceito que ele inicialmente aborda o real, estabelecendo as basespara a entrada em cena do objeto a.

    A FALTA NOS TERMOS DA COISANo seminrio 1956-57, como vimos, Lacan buscou consolidar a idia de que aquesto da falta central quando se trata de abordar o tema do objeto na psica-nlise. Continuaremos nossa investigao a partir da demarcao desta perspecti-va na qual a problemtica do objeto, tal como trabalhada por Freud, deve sertomada pela via da falta. associando este olhar sobre o objeto questo dodesejo na psicanlise que entendemos poder acompanhar, nos seminrios poste-riores de Lacan, as consideraes relativas questo do objeto.

    Da concluso lacaniana de que o objeto, segundo os caminhos trilhados porFreud, deve ser tomado pela via da falta, resulta a impossibilidade de confinar odesejo, na psicanlise, sua definio em funo do objeto. A dimenso do dese-jo no se define pela presena de um objeto, j que precisamente a falta deleque opera.7 atravs da discusso de uma tica da psicanlise, no seminrioconduzido entre 1959 e 1960, que Lacan prope uma outra via para abordarmosa temtica do desejo. Neste sentido, chama a ateno que em sua aula inaugural,quando anunciado o programa do seminrio naquele ano, a necessidade deexame do tema da tica seja associada, por um lado, ao fato de a experincia

    analtica nos conduzir a aprofundar mais do que nunca o universo da falta (LACAN,1959-60/ 1991, p.10), e, por outro lado, ao fato de a falta favorecer a funo dodesejo (idem, p.12).

    Retroativamente, poderamos propor, tambm em relao ao seminrio 1956-57, uma leitura da discusso de Lacan do ponto de vista de um posicionamentotico. A crtica concepo de objeto na qual este tomado na perspectiva deuma evoluo em direo a um objeto terminal, configurado como objeto har-mnico, se liga a uma crtica que remete dimenso tica da anlise. No toa

    que Lacan caracteriza a relao de objeto como uma teoria da maturao darelao do homem realidade. H uma crtica a a uma tica de adaptao. Tomais relevante na medida em que tal tica se liga, como percebe o autor, orien-tao que segue a clnica: o analista passa a ocupar o lugar de modelo a seratingido, no que diz respeito a uma adaptao saudvel.

    Para alm da crtica que se pode depreender do seminrio em que se ocupouda teoria da relao de objeto, Lacan persegue, trs anos mais tarde, uma ticapara a psicanlise. Para tal, inicia o percurso do seminrio 1959-60 definindo oproblema da tica como estando tradicionalmente ligado distino entre o que

    7 Posteriormente, com a introduo do objeto a, teremos sim um objeto que causa o desejo,mas na medida em que, no como agora, se trata de um objeto que se vincula falta.

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    se liga ao prazer e o que caracterizaria um bem final vinculado instncia moral(idem, p.30). Ao antecipar a idia, que desenvolver posteriormente no semin-rio, de que a instncia moral presentifica o real, a discusso fundamental, na

    tica, da relao entre prazer e bem articulada, por Lacan, discusso da relaoentre prazer e realidade. deste modo que sua pesquisa sobre a tica da psican-lise rapidamente se volta para a questo freudiana da distino entre princpio deprazer e princpio de realidade, ocupando-se mais especificamente da retomadada noo de das Ding, trabalhada por Freud no Projeto para uma psicologia cientfica(1950[1895]/ 1990).

    O modo como a noo de das Ding trabalhada no seminrio em que Lacantrata do tema da tica da psicanlise pode ser tomado em continuidade ao pensa-mento sobre a questo da falta do objeto, tal como estabelecido no seminrio1956-57. Se at ento tratou-se de estabelecer a centralidade da falta no que dizrespeito problemtica do objeto na psicanlise, o acrscimo que se faz discus-so, agora, se refere maneira pela qual a falta deve ser concebida.

    A afirmao da falta do objeto por Lacan no impede, por si s, que ela sejainterpretada do ponto de vista da perda do objeto. Esta idia de um objeto perdi-do associa o desejo busca da reedio de uma experincia em que tal objeto foitido, ficando a falta referida to somente ao fracasso permanente de tal busca. Afalta do objeto no deixa de estar associada a uma origem emprica do desejo. Ao

    tomar emprestada do Projeto de Freud a noo de das Ding, Lacan busca, comoveremos, um alicerce para sustentar a idia de que a falta remete no empirici-dade da Coisa perdida, mas sim condio de possibilidade do desejo.

    Prova deste direcionamento por parte do autor sua crtica ao que ele iden-tifica como uma tendncia, dentro da psicanlise, a se entender tratar da meno lugar de das Ding (idem, p.86). Tal como no seminrio sobre a relao deobjeto, a crtica de Lacan se estende, aqui, ao uso da categoria da frustraopara abranger tal discusso. Para Lacan, das Ding indica a falta na origem, o que

    ignorado quando se restringe a questo ao contexto da interpsicologia crian-a-me. A falta, portanto, no relativa a um objeto primordial, mas est elamesma na origem da experincia do desejo, ou seja, condio de possibilida-de desta ltima. Assim, das Ding se configura como uma falta central no registrodo desejo ( idem, p.91) , consistindo em centro e ndice de exterioridade a ums tempo.

    Se das Ding remete ao que central e ao mesmo tempo exterior, central eexterior em relao a qu? De modo geral, vimos que se tratou, at aqui, naleitura da obra de Freud por Lacan, do que das Ding representa em relao pro-

    blemtica do desejo. Se pretendemos buscar novos termos para designar a que serelaciona a Coisa lacaniana, em sua definio topolgica como centro exterior,eles devero estar associados, portanto, ao modo como concebido o desejo.

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    Na discusso que dedica ao Projeto, no seminrio que estamos examinando,Lacan aproxima a representao (Vorstellung) freudiana da definio do signifi-cante com que trabalhava, afirmando que as Vorstellungen modulam-se segundo as

    leis que regem o funcionamento da cadeia significante (idem, p.81). Na medidaem que, no Projeto, no nvel das Vorstellungen que Freud concebe o desejo comodesejo de objeto, da aproximao de Lacan resultar que o desejo como desejo deobjeto se estabelece pela articulao significante. Levando em conta que das Ding,configurado como central e exterior ao mesmo tempo, introduzido para darconta das questes associadas problemtica do desejo, coerente com o queacabamos de indicar na afirmao lacaniana de que se trata, com das Ding, de umcentro exterior em relao ao mundo subjetivo do inconsciente organizado emrelaes significantes (idem, p.91).8 Lacan fala da Coisa como um furo no realintroduzido pela modelagem do significante (idem, p.153) .

    Das implicaes da noo de das Ding para a questo do desejo na psicanlise,somos conduzidos, ento, por Lacan, a pensar o lugar que a Coisa ocupa em relao articulao significante. Assim, na retomada lacaniana da noo que Freud intro-duzira, ela passa a aparecer associada a enunciados como o fora-do-significado(idem, p.71) ou o que do real padece do significante (idem, p.149). A orientaodo trabalho de Lacan leva a Coisa (das Ding) freudiana ao encontro da Coisa queserve de suporte designao de um real inacessvel que condio da lingua-

    gem. Como o prprio autor afirma, ele acrescentou a idia de das Ding/ da Coisacomo correlato da lei da fala em sua mais primitiva origem (idem, p.105).

    Essa Coisa que, nas palavras de Lacan, o que se separou de tudo para que osujeito comeasse a nomear e a articular (idem, p.106), aparece como condiode possibilidade da linguagem. condio da linguagem a delimitao da Coisacomo inacessvel. A discusso de Lacan sobre a tica se voltou para das Ding, emFreud, porque l somos remetidos, precisamente, ao que inacessvel. Entra emcena a a Lei, presente nos moldes da interdio do acesso Coisa. Mas no se

    trata apenas disso na abordagem de Lacan. A Coisa ausente indica a fenda abertano real pela articulao significante. E na experincia analtica entende Lacan,situando seu interesse pela tica, no incio ainda do seminrio a Lei quepresentifica o real (idem, p.31). No que a Lei seja a Coisa Lacan diz que demodo algum (p.106). Mas no se conhece a Coisa seno pela Lei, sem a Lei aCoisa estava morta (idem).

    Faamos um resumo de nosso percurso. Havamos verificado, antes, que,no seminrio 1956-57, Lacan se dedicou sustentao da centralidade da falta

    8 Assim como havia Lacan destacado, antes de aproximar a Vorstellung freudiana do funciona-mento da cadeia significante, que no nvel das Vorstellungen que se distingue das Ding comoausente (p.80).

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    no que diz respeito questo do objeto na psicanlise. Ao nos ocuparmos dapesquisa que se desenrola no seminrio 1959-60, buscamos identificar a reto-mada da questo da falta, trabalhada a em termos de como ela deve ser situada

    em relao experincia que a psicanlise evidencia. A discusso em torno daCoisa por Lacan, resgatando a problemtica levantada por das Ding na obra deFreud, inscreve, como vimos, a falta na origem desta experincia. Com a Coisaindicando a excluso necessria articulao significante, a falta passa a ser tomadacomo condio de possibilidade da mesma, a qual define, para a psicanlise, oterreno em que a trama do objeto se desenrola. A lei simblica vista, assim, comolei de excluso da Coisa. E o gozo, designando o acesso impossvel Coisa, ao queo significante deixa de fora, concebido como interditado pela lei simblica.

    Para nossos prximos passos importante atentar para uma distino que, nocontexto da discusso sobre a tica, Lacan estabelece em sua articulao de Kantcom Sade. Trata-se da descoberta, em Sade, de um termo que, a seguirmos Kant,estaria ausente da experincia moral. Lacan est se referindo ao objeto, o qual,a fim de garanti-lo para a vontade no cumprimento da Lei, ele [Kant] obrigadoa remeter ao impensvel da coisa-em-si (LACAN, 1966/ 1998, p.783). ComKant, no h objeto concebvel para a experincia moral, ela remete exclusiva-mente inacessvel coisa-em-si. J em Sade, Lacan verifica que o objeto deca-do de sua inacessibilidade, revelado pelo agente do tormento (idem) .9 Interessa-

    nos, a seguir, justamente acompanhar, no pensamento lacaniano, o movimentoque conduz ao que, em um primeiro momento, precisou ter sua definio arti-culada condio de ser inacessvel, em direo concepo de um objeto ade-quado a tal definio. Como conceber um objeto a partir da falta substancial quea Coisa define? Veremos tratar-se, para Lacan, de uma questo fundada na expe-rincia analtica.

    Na trajetria segundo a qual seguimos o pensamento lacaniano, encontramo-nos em um ponto no qual a Coisa, tal como concebida, sustenta a inacessibilida-

    de de um objeto de gozo. A Coisa, designando uma excluso, determina que aarticulao significante, atravs da qual se desdobra a experincia do desejo napsicanlise, se organize em torno de um vazio central. Se nos ativermos ao con-ceito da Coisa, a falta fica associada ao que est excludo da experincia analtica.Nosso objetivo, daqui em diante, problematizar, com o prprio Lacan, esta

    9 Lacan relaciona a presena do objeto ao agente do tormento, um dos personagens da tradeque estrutura a trama sadiana (o que comanda a Lei, o que a executa de forma aptica, a vtimaque deve se assujeitar). A voz que ordena no est localizada, como em Kant, em uma voz

    interior da conscincia. A voz na experincia sadiana, segundo Lacan, separada do sujeito,emana do Outro. Ele faz referncia a fenmenos da voz que, na psicanlise, revelam sua facetade objeto. Posteriormente, a voz constituir precisamente um dos modos de apresentao doobjeto a lacaniano.

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    demarcao estrita entre, de um lado, o acesso impossvel Coisa a experin-cia interditada de gozo e, de outro, uma experincia de desejo para a qual noh objeto pleno. At ento, esta ltima vem se definindo pela excluso que a

    outra representa. Queremos verificar, a seguir, que a relao no to pontualpara Lacan, que no se resume a uma operao de excluso que posiciona, deuma vez por todas, a interdio da Coisa como condio de possibilidade daexperincia do desejo, experincia marcada pela parcialidade do objeto.

    DA COISA AO OBJETO A

    certo que a Coisa lacaniana faz a definio do objeto do desejo objeto daexperincia analtica avanar da relao com o objeto perdido na origem relao com a falta na origem. Mas, ainda assim, se supe uma origem fora daexperincia para o desejo. Ao passo que, se h desejo e se o desejo se mantm, porque algo no objeto da experincia do desejo causa o desejo. Bernard Baas falade um objeto cisico (un objet chosique) que causa o desejo (BAAS, 1998, p.52),sustentando que algo da Coisa assim engajado no objeto do desejo. J no nosdetemos, a, na Coisa-excluda como condio de possibilidade para que o obje-to seja, no mbito do desejo, apresentado pela via da falta.

    O modo como a falta trabalhada nos termos da Coisa lacaniana possibilitasua aderncia ao conceito de objeto com que passamos a lidar. Isto , a Coisa

    prepara o terreno para que, nos moldes em que a questo da falta passa a estarsituada, possamos perseguir um conceito de objeto que desta falta faa substn-cia. Entendemos, assim, que o percurso cumprido at aqui por Lacan passan-do pela centralidade da falta do objeto na psicanlise e, em seguida, pela introdu-o da Coisa, recuperando das Ding em Freud corresponde ao estabelecimentodas coordenadas necessrias delimitao do objeto a, nos termos em que delenos ocuparemos. A discusso relativa Coisa pode ser vista retrospectivamente,portanto, como um trabalho conceitual necessrio associao da falta com um

    conceito de objeto indito.Ainda no seminrio 1959-60, uma discusso importante se d em torno dotema da sublimao, a qual nos interessa por articular a Coisa ao objeto. Segundoa clebre frmula lacaniana, a sublimao eleva um objeto dignidade da Coisa(LACAN, 1959-60/ 1991, p.140). Pela funo imaginria, o objeto, que no co-incide com a Coisa, se substitui a ela na sublimao. Podemos verificar, porm,que a articulao entre objeto e Coisa na sublimao no se restringe, no examede Lacan, ao efeito imaginrio de determinados objetos criados. Ele verifica, demodo geral, que a forma pela qual o objeto concebido na psicanlise compa-

    tvel com o que a delimitao da Coisa estabelece. Temos perseguido a especifici-dade do conceito de objeto para a psicanlise, especificidade que, com Lacan,entendemos ter origem nos enunciados de Freud. O passo que o seminrio 1959-

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    60 nos impe de nos voltarmos, no contexto da sublimao, para a problem-tica do objeto em dilogo com o que acabara de ser introduzido pela Coisa.

    Lacan retoma o que designa como sendo, para Freud, a definio funda-

    mental do objeto (idem, p.149). Ele entende que a estrutura essencial na obrafreudiana a do objeto reencontrado, da qual conseqncia a idia de que oobjeto tenha sido perdido. No o objeto perdido que determina que a expe-rincia do objeto consista em um reencontro, mas a experincia do objeto comoreencontrado que nos sugere um objeto perdido. Ao estabelecer o conceito daCoisa, resgatando das Ding em Freud, Lacan precisamente oferece, para o objetoreencontrado, uma sustentao outra que no a suposio de um objeto perdido,uma sustentao que dispensa a idia de um objeto perdido. A proposio doobjeto como objeto reencontrado passa a estar associada concepo da Coisa.

    O que afirmamos se assenta na observao lacaniana de que a definio daCoisa como inacessvel implica que ela s possa ser representada, sempre, poroutra coisa (idem). Neste caso, se Lacan chega a falar do objeto que representaa Coisa (idem, p.150), porque a definio do objeto, como vimos, convergepara o objeto reencontrado. Isto , tomando o objeto reencontrado no sentido deque h algo que difere a cada encontro do objeto, poderemos falar do objeto querepresenta a Coisa, j que lidaremos a com um objeto que , por definio,sempre outro. Com esta condio de ser sempre outro, o objeto, de algum

    modo, passa a se articular Coisa, remetendo ao vazio associado Coisa. Istoporque a concepo de um objeto sempre outro implica pensarmos que no hobjeto que se sedimente naquele lugar, o que acaba por configurar um vazio.

    Vale notar que nos deparamos a com uma configurao particular do vazio.Vejamos como Lacan, enfocando novamente a sublimao, enuncia a questo:

    Essa Coisa, da qual todas as formas criadas pelo homem so do registro da sublima-

    o, ser sempre representada por um vazio, precisamente pelo fato de ela no poder

    ser representada por outra coisa ou, mais exatamente, de ela no poder ser repre-sentada seno por outra coisa (LACAN, 1959-60/ 1991 p.162).

    Nesta citao, atravs do acrscimo de uma palavra, Lacan empresta novosentido ao vazio que, no contexto da experincia do objeto como objeto dedesejo, representa a Coisa. O vazio apontava, inicialmente, para a radicalidade daausncia da Coisa na experincia, para a impossibilidade de ela se fazer represen-tar que no fosse por um vazio. Com o reparo de Lacan, no entanto, o vazio passaa estar associado ao fato de ela a Coisa ser representada na condio de no

    poder ser representada seno por outra coisa, ao fato de ela ser representada porum objeto que sempre outro. Isto , se o que Lacan aborda atravs do conceitoda Coisa implica, por um lado, a delimitao de um vazio, na medida em que

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    no h objeto que coincida com o que a Coisa designa, por outro, h tambm aface do objeto, agora revelada, em que, do modo como se entende concebido napsicanlise como sempre outro ele atualiza, na experincia, aquilo de que

    fala a Coisa. Ao tratar do tema da sublimao, no seminrio 1959-60, Lacanresgata, para o objeto da experincia analtica, algo da Coisa que, em um primei-ro momento, remetia puramente ao intangvel.

    Seguindo com o percurso de Lacan, no seminrio do ano de 1964 vemos adiscusso que envolvia a Coisa, introduzida como inacessvel, e o gozo, comointerditado, se modificar, passando a ser trabalhada na perspectiva de um retor-no. Se a Coisa lacaniana nasceu associada dimenso do real ela designa,como vimos, o furo no real produzido pela modelagem significante justa-mente em relao ao real que a questo do retorno retomada neste seminrio.O real ento definido como o que retorna sempre ao mesmo lugar (LACAN,1964/ 1988, p.52), saindo da condio de puro excludo e exigindo que se pen-se sua articulao com a ordem significante. Tal movimento se d, no seminrio,em torno do enfoque que nele ganha o tema da repetio.

    Atravs da repetio, Lacan dispe do real e da ordem significante sem confin-los em uma relao excludente. Ele faz isso resgatando a relao estabelecida porAristteles entre autmaton e tiqu, dizendo tratar-se, no primeiro caso, da redesignificante e, no segundo, do encontro com o real (idem, p.54). Recorrendo

    distino de Aristteles entre o autmaton e a tiqu, Lacan pretende indicar que,para alm do autmaton, do retorno, da volta, da insistncia dos signos (p.56),vige o real como encontro com a falta. A repetio no pode ser tomada, napsicanlise, apenas no sentido da reincidncia de uma trama significante queexclui o real, mas tambm no sentido de que o real retorna como encontrofaltoso. J no lidamos a apenas com uma excluso no real sustentando a ordemsignificante, mas com um real que, em sua insistncia, se atualiza como encontrofaltoso no mbito mesmo da articulao significante.

    A noo de repetio, dizendo respeito ao mesmo tempo rede significante eao encontro com o real, consolida uma inflexo no enfoque do pensamentolacaniano que revelada desde o incio do seminrio neste ano de 1964. Aoiniciar seu exame dos conceitos fundamentais da psicanlise pelo inconsciente, acujo entendimento pela via da articulao significante dedicou grande parte deseu trabalho nos anos anteriores, Lacan se volta, com ateno indita, a um outroaspecto identificado com a experincia do inconsciente. Passa a ter posio cen-tral em sua leitura do inconsciente o modo da descontinuidade, do tropeo,pelo qual ele essencialmente se verifica em Freud.

    J tendo consolidado a tese de que o inconsciente estruturado como umalinguagem, Lacan enfoca, agora, a problemtica da descontinuidade que a expe-rincia do inconsciente apresenta. Ele afirma que, apesar de ter estado a sua

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    poca em posio de introduzir a lei do significante, no deixa de ser necessrio,se queremos compreender o de que se trata na psicanlise, tornar a evocar oconceito de inconsciente nos tempos em que Freud procedeu para forj-lo

    pois no podemos complet-lo sem lev-lo ao seu limite (idem, p.28).Jacques-Alain Miller afirma, sobre este incio do seminrio de 1964, queLacan descreve o inconsciente como jamais o havia feito (MILLER, 1999, p.16).Segundo ele, o inconsciente era descrito, preferencialmente, at ento, comouma ordem, uma cadeia, uma regularidade, ao passo que, agora, ele recentradosobre a descontinuidade. Descontinuidade que, Miller enfatiza, no correspondeto somente descontinuidade que compatvel com a ordem significante. Lacandescreve o inconsciente como uma borda que se abre e se fecha. Deste modo,tornando o inconsciente homogneo ao que prprio da zona ergena freu-diana, Lacan promove, diz Miller, a comunho de estrutura entre o inconscientesimblico e o funcionamento da pulso. a esta inflexo que dissemos respon-der a posterior imbricao, que verificamos neste mesmo seminrio, da ordemsignificante com o real. Quanto a isso, vale indicar que Lacan afirma, ao longo doseminrio, que o real , no sujeito, o maior cmplice da pulso (LACAN, 1964/1988, p.71).

    Retomemos os dois conceitos lacanianos que queremos pr em contraste a Coisa e o objeto a. O movimento que a obra de Lacan percorre o movi-

    mento que parte de uma perspectiva na qual a falta remete a um termo fora dojogo significante em que se assenta a experincia da busca do objeto, o que designado pela Coisa; e que se dirige para uma outra perspectiva na qual, namedida em que ao objeto atribudo o estatuto do objeto a, o que se apresentasob o modo da falta passa a se referir a algo que se atualiza nesta experinciamesma. A experincia analtica foi pensada em um primeiro momento, porLacan, segundo uma lgica em que a sustentao da rede significante causapara o sujeito dependia da excluso de um termo, o qual se configurava,

    assim, como um exterior inassimilvel na experincia. Com o objeto a, umnovo passo dado, pois no mais se trata, apenas, de uma lgica de pensamen-to que se entende compatvel com o que prprio da experincia analtica,mas deste exterior inassimilvel sendo experimentado pelo sujeito. O resto daoperao significante no remete a uma transcendncia, mas retorna, ele sim,como causa na experincia.

    Da falarmos de um objeto que tem a falta como substncia. Lacan parte,como vimos, da nfase na falta do objeto e, passando pela Coisa, chega a umobjeto da falta. O objeto a no concebvel como objeto emprico, no sentido

    em que poderia ser assimilado na experincia. Mas, ao contrrio da Coisa, nodesigna, na experincia, uma pura negatividade, j que o sujeito, definido comosujeito de desejo, experimenta o objeto a por este ser causa do desejo (QUINET,

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    2002, p.59). O objeto a se refere experincia, a cada vez reeditada pelo sujeitodesejante, da falta no objeto. Vimos que a Coisa lacaniana, indicando que a faltamesma, que deve ser situada na origem, se ope delimitao de uma experin-

    cia originria do objeto, em relao qual a falta seria verificada retrospectiva-mente. Com o objeto a, por sua vez, o prprio estabelecimento de um momentooriginrio problematizado, pois a falta passa a estar em uma relao de sincro-nia com a experincia do objeto na psicanlise, ou seja, no tem origem outra seno ser experimentada a cada encontro com o objeto. Lacan chega com o objetoa, portanto, a um objeto da falta.

    A FALTA NOS TERMOS DO OBJETO A

    Entendemos que a Coisa, ou mesmo o real, ou ainda o gozo j eram conceitos que,no percurso lacaniano, se ligavam problemtica da falta. Com o objeto a, entre-tanto, diremos que o lugar central da falta na experincia analtica no apenasdesignado, como nestes outros conceitos. Vemos sim uma tentativa de tocar aexperincia da falta que est no cerne da psicanlise. Ou seja, no se trata apenas doconceito organizando, em torno de uma falta, nosso entendimento da experinciaanaltica, mas do conceito pretendendo se dirigir experincia da falta no que elacoincide com a experincia analtica. Neste sentido, podemos chamar a atenopara a afirmao de Lacan, em Radiofonia (1970), de que o objeto a s dedu-

    tvel na medida da anlise de cada um (LACAN, 1970/ 1977, p.26).Para examinar em outra perspectiva o que propomos, lembremos mais uma

    vez que o seminrio de 1964, que se ocupa do conceito psicanaltico, j se iniciaenfocando o movimento de abertura e fechamento que caracteriza a experinciado inconsciente em Freud, experincia fundadora da psicanlise. Nestes termos,o que buscamos indicar que o conceito de objeto a representa o esforo deLacan em fazer o pensamento psicanaltico se deter na abertura. Pois, se ele ob-serva que a descontinuidade a dimenso sem a qual no se traz vida a experi-

    ncia de Freud, preciso perseguir um conceito que no a suture, um conceitoque, no limite, se detenha na abertura. A sutura equivaleria a idia do encerra-mento da psicanlise em uma teoria acabada. Com o objeto a, o conceito seprope a no emudecer o real que irrompe a cada abertura e fechamento, apsicanlise assumindo um potencial de permanente reinveno.

    Com relao ao objeto a, j no se trata de pensar a psicanlise em funo deum objeto originrio, ou mesmo de uma falta originria, mas da tentativa dearticular o conceito experincia da falta tal como inserida na atualidade daanlise. O conceito de objeto a, de modo diverso ao do encaminhamento pelo

    qual a Coisa concebida, formulado preferencialmente em associao com oselementos da clnica psicanaltica. Isto pode ser verificado na medida em queLacan se vale dele, como veremos, para pensar a circunstncia da transferncia na

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    anlise, assim como para definir o que entende ser o lugar do analista. Na afir-mao lacaniana a que nos referimos dois pargrafos acima, mesmo atestadoque a deduo do objeto a se restringe ao contexto da anlise de cada um.

    O conceito do objeto a sintetiza, segundo sua formulao por Lacan, a condi-o do conceito na psicanlise de s poder ser pensado em articulao com aatualidade da experincia clnica. A afirmao recorrente entre os psicanalistas deque a produo conceitual e a clnica devem estar associadas na psicanlise novem acompanhada, em geral, pela apresentao dos termos que a fundamenta-riam. Segundo o vis em que vemos operar o objeto a de Lacan, entendemos quetal afirmao comea a nos dizer algo. Sem um conceito como o objeto a, estar-amos diante de um enunciado que, tomado isoladamente, carece de sentido.

    Quase concomitante introduo do objeto a sua associao discussosobre o lugar do analista. Trata-se, assim, de um conceito com o qual Lacan buscase dirigir ao que est no cerne mesmo da experincia da anlise, com o qualbusca tocar o que especfico a esta ltima. Ele afirma que o que causa a transfe-rncia o objeto a (1964/ 1988, p.128). a partir, ento, do que se tenta designarcomo objeto a que a psicanlise seria posta em jogo. Tal conceito sustenta, portan-to, em relao psicanlise, a prpria questo da causa. O objeto a, tomado porcausa da transferncia na psicanlise, impede que a construo da trama conceitualpsicanaltica pretenda se alicerar sobre o sepultamento da questo da causa.

    O objeto a, conceito de objeto-causa, impe como horizonte para o pensa-mento psicanaltico a questo da causa. Com isso, ele faz acompanhar sempre deuma interrogao a experincia da anlise, no podendo ser esta tomada pormero espao inerte ao qual se aplica um saber predefinido. O objeto a buscaresponder questo do lugar do analista como causa do desejo do analisando.Lacan diz do objeto a que ele a substncia da posio do analista, situando estecomo ponto de mira da operao que designamos por psicanlise. Esta operaosingular tem neste objeto privilegiado, descoberta da anlise (idem, p.242), um

    conceito que interroga a prpria causa de tal operao.No percurso da Coisa ao objeto a, situamos em um e outro momento o lugarque cabe ao conceito na psicanlise. Partindo da falta que Lacan localiza no cen-tro do pensamento psicanaltico, vimos, em um primeiro momento, com a Coi-sa, o conceito resgatando esta falta nos termos de uma excluso associada ori-gem da experincia de desejo de que trata a psicanlise. No outro momento,com a introduo do objeto a, no se trata mais do conceito inscrevendo a faltano pensamento psicanaltico apenas como registro de um suposto real origin-rio. O objeto a busca se dirigir falta, tomando-a pelo que irrompe na atualidade

    da anlise. Neste caso, no se trata, apenas, da inscrio do real, pelo modo dafalta, na trama conceitual da psicanlise, mas do conceito se dirigindo expe-rincia da falta no que ela coincide com a experincia analtica.

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    A discusso de Lacan em torno da Coisa acompanhou sua leitura do pensa-mento freudiano, com base na qual sustentou a crtica perspectiva em quedeterminados autores pretenderam se apropriar da trama conceitual da psican-

    lise. Com o objeto a, no entanto, j no se tratou apenas de ser fiel a Freud, masdo que foi introduzido pelo prprio Lacan. Pretendemos tomar o conceitolacaniano do objeto a como uma tentativa sua, indita, de responder ao proble-ma da relao entre o conceito e a falta na psicanlise. Nesta, o que se transmiteno o conceito sob a forma de uma definio ltima, nem mesmo um conceitoque situaria a falta. O que se transmite, atravs de uma relao com o conceitoque marca o trabalho de Freud e Lacan, a falta que experimentada na anlise.

    Recebido em 23/ 9/ 2004. Aprovado em 11/ 5/ 2005.

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    Vinicius Darriba

    [email protected]