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A Festa Barroca no tempo de D. João V Dr. José Manuel Tedim Universidade Portucalense O Barroco constituiu-se como um conjunto de meios culturais de ordem diver- sa, reunidos e articulados, num dado momento histórico, para operar adequada- mente junto dos homens, conduzindo-os e mantendo-os integrados no sistema so- cial e político estabelecido, contribuindo para a auto-conservação da ordem instituída (Bebiano, 1987). Com esse objectivo o Barroco serve-se das mais diversas formas de propaganda. É aí que devemos colocar o papel da Festa, sempre sagrada e profana ao mesmo tempo, e, em suma, a invasão da vida quotidiana por manifes- tações que vão privilegiar a teatralidade, o ilusionismo e o dinamismo, apoiando-se numa cultura do excesso. Para persuadir, para criar a ilusão e o sonho, para con- duzir, as instituições do poder político e religioso vão favorecer sempre os eventos que divulguem o luxo, a ostentação e a pompa, mesmo que, para tal, tenham que recorrer ao artificioso, ao fingimento, ao imediato e a tudo o que provoque espan- to. A festa Barroca assumir-se-á, portanto, como uma intensificação da vida num lapso de tempo, como teatro, teatro das instituições. A festa apresentar-se-á como um evento institucionalizado dirigido às massas anónimas e controlado pelos de- tentores do poder monárquico. Nesse sentido a festa vai assumir-se, no Barroco, como a explosão dos sentidos reprimidos pela dureza do quotidiano. Deles a primazia foi dada à visão e à audi- ção. A festa, enquanto espectáculo, orientou-se de forma a valorizar tudo o que criasse impacto visual, tudo o que provocasse emoção. Tanto na área da criação artística como nos cenários efémeros das festas, o Barroco teve uma constante pre- ocupação pelo espectacular, procurando deliberadamente a sugestão do óptico, a necessidade programática de suscitar, a partir do absoluto enlevo dos olhos, o em- bevecimento arrebatador e total dos sentidos (Ávila, 1980). No caso português, a subida ao poder de D. João V marca a afirmação e utili- zação deste instrumento de persuasão, como utensílio imprescindível à propagan- da da Dinastia dos Bragança, recém chegados à esfera do poder real. Como na Roma dos Papas Barrocos, D. João V utilizou a cidade como espaço privilegiado para as suas manifestações de poder. Em vários momentos da sua vida, as cidades portuguesas foram utilizadas como palco onde o poder Real actuava.

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A Festa Barroca no tempo de D. João V

Dr. José Manuel TedimUniversidade Portucalense

O Barroco constituiu-se como um conjunto de meios culturais de ordem diver-sa, reunidos e articulados, num dado momento histórico, para operar adequada-mente junto dos homens, conduzindo-os e mantendo-os integrados no sistema so-cial e político estabelecido, contribuindo para a auto-conservação da ordem instituída (Bebiano, 1987). Com esse objectivo o Barroco serve-se das mais diversas formas de propaganda. É aí que devemos colocar o papel da Festa, sempre sagrada e profana ao mesmo tempo, e, em suma, a invasão da vida quotidiana por manifes-tações que vão privilegiar a teatralidade, o ilusionismo e o dinamismo, apoiando-se numa cultura do excesso. Para persuadir, para criar a ilusão e o sonho, para con-duzir, as instituições do poder político e religioso vão favorecer sempre os eventos que divulguem o luxo, a ostentação e a pompa, mesmo que, para tal, tenham que recorrer ao artificioso, ao fingimento, ao imediato e a tudo o que provoque espan-to. A festa Barroca assumir-se-á, portanto, como uma intensificação da vida num lapso de tempo, como teatro, teatro das instituições. A festa apresentar-se-á como um evento institucionalizado dirigido às massas anónimas e controlado pelos de-tentores do poder monárquico.

Nesse sentido a festa vai assumir-se, no Barroco, como a explosão dos sentidos reprimidos pela dureza do quotidiano. Deles a primazia foi dada à visão e à audi-ção. A festa, enquanto espectáculo, orientou-se de forma a valorizar tudo o que criasse impacto visual, tudo o que provocasse emoção. Tanto na área da criação artística como nos cenários efémeros das festas, o Barroco teve uma constante pre-ocupação pelo espectacular, procurando deliberadamente a sugestão do óptico, a necessidade programática de suscitar, a partir do absoluto enlevo dos olhos, o em-bevecimento arrebatador e total dos sentidos (Ávila, 1980).

No caso português, a subida ao poder de D. João V marca a afirmação e utili-zação deste instrumento de persuasão, como utensílio imprescindível à propagan-da da Dinastia dos Bragança, recém chegados à esfera do poder real. Como na Roma dos Papas Barrocos, D. João V utilizou a cidade como espaço privilegiado para as suas manifestações de poder. Em vários momentos da sua vida, as cidades portuguesas foram utilizadas como palco onde o poder Real actuava.

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As cidades com as quais D. João V contactou directamente, sofreram importan-tes intervenções, transformando-as num faustoso e efémero cenário montado para o dia especial, o dia da festa. Essas cidades deixaram-se metamorfosear. As ruas do itinerário régio prepararam-se para o receber. Interveio-se no pavimento e nas facha-das das casas, que se mascararam com tapeçarias, sedas, panos de damasco, etc., montaram-se falsos cenários, tentando criar uma nova realidade, que, embora não fosse, parecia ostentar uma riqueza, que elevava os espíritos e reunia os súbditos à volta do seu dirigente máximo – o Rei. A animação tomava conta da cidade.

Se na época do Magnânimo a Festa atinge o auge do seu esplendor, é com D. João III que se usa pela primeira vez o Arco de Triunfo (ALVES, s.d.) à maneira do que, desde o Séc. XV, se praticava nas festas Renascentistas italianas. No casamen-to do príncipe herdeiro, filho deste monarca, D. João com D. Joana de Áustria, re-corre-se a este artefacto efémero para engalanar as ruas do cortejo nupcial. Desta data até às entradas em Lisboa de Filipe II, em 1581, e de Filipe III, em 1619, o recurso a esta solução ornamental só aparece muito esporadicamente. Estas entra-das representam o triunfo da ritualização da festa e da cidade. Pela primeira vez se assiste em Portugal à barroquização da festa pública. Praças e ruas de Lisboa en-chem-se de arcos triunfais e outros artefactos efémeros. Os velhos muros medievais escondem-se por detrás de panos adamascados e riquíssimas sedas. O fantástico dos arcos traz à cidade uma imagem de sonho e de grandeza. A “joyeuse entrée” impõe-se na tradição portuguesa.

Tanto no primeiro caso como no segundo, é notória a tendência para a teatra-lização do ritual e cerimonial da entrada pública. Os actores definem-se pelo apa-rato das indumentárias e pela etiqueta, enquanto o público se limita a participar como espectador. A linguagem artística das ornamentações impressiona. É o Triun-fo da festa à romana de influência flamenga.

Os anos que se seguiram à entrada de Filipe III, em 1619, são de autêntico maras-mo. A ausência da Corte em Lisboa, provocou um quase abandono da ideia de cerimo-nial e etiqueta. A festa profana e pública torna-se privada enquanto que a linguagem Contra-Reformista da festa religiosa se vai impondo, contribuindo, desta forma para a persistência de esquemas programáticos e ideológicos da propaganda jesuítica.

A espontaneidade com que as massas populares assistiram, no Terreiro do Paço, à aclamação de D. João IV é prova evidente do estado que atingiu o cerimo-nial da “Corte” lisboeta durante os sessenta anos de governação Filipina. A festa retomará o seu percurso normal, neste reinado, quando, em 1662, D. Catarina de Bragança, sua filha, casa com Carlos II de Inglaterra. Na altura, as ruas e o Terreiro do Paço enchem-se de ornamentações efémeras. Regressam os arcos de triunfo, colunas, troféus, fontes e bosques. O Barroco instala-se na forma como se vão con-ceber estas festividades.

A mesma tendência aparece nas cerimónias do casamento de D. Afonso VI com Isabel Francisca de Sabóia em 1666 e no casamento de D. Pedro II com D. Maria Sofia Isabel de Neuburgo, em 1687. O retomar de práticas esquecidas, às quais se acrescenta o gosto pelo fausto, pelo aparato, pelo cerimonioso, e pelo ri-

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tual da entrada triunfante, aparece, ainda, na forma como se preparou a recepção em Lisboa, em 1704, a Carlos III, candidato austríaco ao trono espanhol.

Do enlace entre D. Pedro II e Sofia Isabel de Neuburgo nascia aquele que faria brilhar o trono português - o príncipe D. João, futuro D. João V. O luxo e o sump-tuoso dá entrada na corte portuguesa pela mão daquele e terá continuidade nas manifestações que este patrocinará. Pública ou privada, profana ou religiosa, ou profano-religiosa, a festa encaixa totalmente nas concepções de poder preconiza-das ao longo do seu reinado (1707-1750) e consequentemente em manifestações artísticas ligadas ao efémero.

O ouro e outras riquezas vindas do Brasil deram-lhe oportunidade de pôr em prática uma política absoluta de Estado centrada na figura da sua própria imagem. Teve riqueza, sem dúvida, mas, essencialmente soube ostentá-la (MACEDO,1991).

A festa à romana, preparada e montada por artistas educados ou vindos de Itália, com viaturas de aparato à francesa que transportavam comitivas galharda-mente vestidas com a moda que vinha de Paris-Versalhes e que obedeciam a um cerimonial renovado e rigoroso, integrado nos esquemas da corte de Luís XIV, apresenta-se como o fundamento político de D. João V. O luxo e a etiqueta con-centra-se à volta da corte e das suas manifestações. Se foi francês na estratégia política, na moda, no luxo, enfim, na forma de estar no poder, foi romano na forma como actuou e pôs em prática a sua política cultural. De Itália vieram os artistas que puseram de pé os seus projectos artísticos, de Itália vieram os homens que to-maram a empreitada de organizar as grandiosas manifestações do poder.

Este monarca deixou-se envolver por tudo o que, de alguma forma, lhe pudes-se proporcionar ostentação. A sua imagem, omnipresente, saiu sempre reforçada perante os poderes. A sua política inseriu-se numa cultura do sublime.

Esta tendência régia para a ostentação e o luxo vai manifestar-se na forma cuida-dosa como D. João V preparou, ou mandou preparar, a recepção à Rainha Maria Ana de Áustria. O Paço da Ribeira ornou-se de preciosas sedas, brocados e tapeçarias finís-simas. Fabricaram-se novos coches, fizeram-se novos e riquíssimos fardamentos para toda a criadagem e guardas arqueiros da Casa Real. No Terreiro do Paço e percurso citadino do cortejo nupcial, que levaria o casal régio à Sé Catedral em Outubro de 1708, ergueram-se dezanove arcos triunfais, patrocinados pelos homens de negócios das nações estrangeiras e os grémios dos ofícios mecânicos da urbe e idealizados por grandes artistas, como Carlos Gimac, um anfiteatro para as corridas de touros, várias obras de arquitectura e uma montanha, figurando o Etna, para os fogos de artifício, fo-gos que preencheriam e engrandeceriam uma das noites de luminárias.

Como cantava um poeta anónimo da época:

“Galés, librés, carroças adornadas

Para o Paço corriam deligentes

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De tantas variedade matizadas

Que não podiam ser mais excellentes.

As praças e as ruas povoadas

Estavão de adornos diferentes

E era tanta a grandeza que se via

Que um jardim cada rua parecia”.

Pelo tratado de Utreque (1712-1715), o Portugal Joanino tinha alcançado a paz com a vizinha Espanha. O contrato de casamento entre a infanta, filha da recém-chegada ao poder família de Bourbon, D. Mariana Victória, e o jovem rei de França, Luís XV, tinha sido, por este, rompido. Estes dois factores, aliados à vontade das cortes de Filipe V e de D. João V de firmarem uma forte aliança que proporcionasse uma paz definitiva entre os dois reinos ibéricos, levaram a negociações para se con-cretizar o duplo casamento entre uma infanta da casa real portuguesa e o futuro rei de Espanha e vice-versa, facto que passou à História como a Troca das Princesas.

As negociações entre ambas as partes iniciaram-se em 1725, tendo sido assi-nados os preliminares do tratado de casamento, em Madrid, pelos embaixadores plenipotenciários e extraordinários do rei de Portugal, António Guedes Pereira e José da Cunha Brochado, a 7 de Outubro de 1725. Ajustado o duplo consórcio, nos primeiros dias de Janeiro de 1728, dava-se início aos dias da festa, que, ao longo de mais de um ano, constituíram repetidos momentos de entusiasmo e entreteni-mento dos habitantes da urbe lisboeta.

Se à distância não se deixava de evocar e, enquanto súbditos, participar das alegrias da família reinante, tornava-se, agora, imperativo preparar a corte para a deslocação ao Caia, para aí realizar o cerimonial da Troca das Princesas. Esta via-gem implicava meios e, acima de tudo, obrigava a uma cuidadosa organização. Todos se mobilizaram e contribuíram para a majestade do momento. A política de luxo e magnificência de D. João V preparava-se para atingir o seu auge.

A corte de Lisboa espraiar-se-ia por aldeias, vilas e cidades do Alentejo. As po-pulações eram informadas da passagem de tão ilustre préstito e preparavam-se para o receber conforme mandava a tradição e o cerimonial. Encomendou-se, ao coronel J. da Silva Pais assistido pelo arquitecto Custódio Vieira (FERRÃO, 1989), um Palácio que havia de ser construído, em tempo record, no lugar de Vendas Novas, no sítio da estalagem del Rey, demasiado exígua para tamanha manifestação do poder.

Terminados os preparativos, acordados os tempos de viagem de ambas as par-tes, para que as duas delegações chegassem ao mesmo tempo a Elvas e Badajoz, respectivamente, determinou-se o mês de Janeiro de 1729 como o mês da partida das respectivas cortes de Lisboa e Madrid (SOUSA, 1741).

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Em todas as localidades por onde passaram as reais comitivas, sempre encon-traram as ruas engalanadas com artefactos efémeros, mandados executar pelos se-nados das Câmaras e com o encargo de as construir os seus mesteirais. Pegões, Montemor-o-Novo, Évora, Redondo, Vila Viçosa, Borba e Elvas receberam o Rei e as outras pessoas da comitiva, que entraram e passearam, cerimoniosamente, pe-las ruas engalanadas e puderam apreciar a grandeza dos arcos triunfais e outras novidades levantadas para a ocasião de júbilo que se estava a viver.

Chegaram a Elvas, a 16 do mesmo mês e ano, ao mesmo tempo que a corte dos Bourbon se instalava, do outro lado da fronteira, em Badajoz. O encontro no palácio improvisado do Caia, as bênçãos nupciais dos régios cônjuges, as missas pontificais nas duas catedrais de Elvas e Badajoz, as visitas e banquetes recíprocos, os exercícios militares, os fogos de artifício, luminárias, danças, músicas, serenatas, passeios vena-tórios e outras funções constituíram a razão dos doze dias que por estas paragens passaram as duas cortes de Portugal e Espanha. A intenção de se deslocarem ao Caia para a cerimónia da Troca das Princesas, muito cedo tinha sido anunciada ao Senado da Câmara e Cabido da Sé de Elvas. Tal como tinha acontecido em Montemor-o-Novo e Vila Viçosa, também o Senado da Câmara desta cidade teve oito meses para se preparar para a recepção à ilustre comitiva. Aos homens de ofícios coube a tarefa de levantarem os arcos triunfais que se colocaram, na rua de Olivença, na rua da Carreira e na porta da Praça e que deveriam ser feitos com toda a magnificência possível e que o estado da terra o permitir, segundo o programa poético e emblemá-tico que o médico, Dr. João Nunes Ramos, tinha proposto para os dois momentos que se viveriam na cidade. Determinou-se, ainda, que nas noites de luminárias todos os habitantes participariam, colocando velas de cera ou cebo nas janelas.

Negociados e preparados os encontros entre as famílias reais de Espanha e Por-tugal, acordou-se que a Troca das Princesas se faria no dia dezanove do mesmo mês e ano, no palácio, de madeira, construído sobre uma ponte, que tinha sido levantada especificamente para este acto, sobre o Rio Caia.

Esta construção efémera, da autoria do sargento-mor e engenheiro militar da praça de Setúbal, Francisco Pereira da Fonseca, com a colaboração de António Canevari e João Frederico Ludovice, pelo lado português, e dos engenheiros mili-tares, Filipe Crame e Juan Frentchqueson, pelo espanhol, consistia num pequeno edifício de planta quadrada, com um salão central e duas salas, uma de cada lado, para as famílias reais. À austeridade arquitectónica acrescentou-se um programa ornamental, onde imperava o fingimento e as representações simbólicas. A escul-tura aliou-se à pintura para o enriquecimento deste cenário efémero.

Realizada a troca das princesas, a família real portuguesa entrou em Elvas pela porta de Olivença, toda ela ricamente ornamentada, onde foi recebida pelo Senado da Câmara, que cumpriu o cerimonial da entrega das chaves à jovem Princesa do Brasil, e, de imediato, se encaminhou, por entre grandioso luzimento, pela rua de Olivença, rua da Carreira, rua da Cadeia, rua dos Pessanhas, Arco do Bispo, Terrei-ro do Bispo, rua do Juiz de Fora e Praça até à Sé Catedral, repetindo o percurso que se tinha destinado para a primeira entrada do monarca e sua família.

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No dia 27 de Janeiro, o deslumbramento que Elvas viveu durante alguns dias, teve o seu fim. A corte deixou o Paço Episcopal, então Paço Real, e lançou-se a caminho, de regresso à capital, enquanto o séquito de Filipe V se dirigia a Sevilha, onde se tinham preparado grandiosas festas para a entrada pública deste Monarca e dos jovens noivos e onde permanecerá durante cerca de três anos (PIZARRO GOMEZ, 1988).

Era o dia 12 de Fevereiro de 1729, quando, no Montijo, se iniciou o cerimo-nial da entrada em Lisboa. Daí saiu o bergantim real, cuja talha era do mais exce-lente artifício, e que se havia feito para esta função (NATIVIDADE, 1752) com grande e luzido acompanhamento. Porque o desembarque se havia decidido vir a acontecer em Belém, alargando-se o percurso tradicional do cortejo real, em “huma das muitas casas reaes de jardins e de campo, em que abundam aquelle sítio (...) e que fora do Conde de S. Lourenço, aí se fez erguer uma ponte, que depois de haver servido ao alto fim a que se destinara, foi desbaratada logo no outro dia, em que se levantou no Tejo hum furiosissimo temporal” (NATIVIDADE, 1752), qual cais mo-numental de chegada.

Enquadrada pelo fingimento dum rochedo nela se podia ver um arco de triunfo, executado a expensas dos pintores e carpinteiros, coroado com as figuras da Liberda-de, a Fortuna e a Fama. Uma varanda, decorada com vasos floridos, rematada por uma cúpula, assente sobre quatro colunas, com a representação do Sol no seu intra-dorso, e sobrepujada pelas imagens da Fortuna e das quatro partes do mundo, com-pletava o aparato efémero sugerido para este desembarque. Todas estas figuras ale-góricas pretendiam, iconograficamente, evocar a felicidade que o mundo português vivia com este momento.

Aí, o vereador mais velho, Doutor Jorge Freire de Andrade, proferiu a oração de boas vindas, fez-se a entrega das chaves da cidade à Princesa do Brasil, confor-me mandavam as regras do cerimonial das entradas, e logo foram convidados a darem início ao préstito, que seguiria o itinerário urbano, previamente estabeleci-do, até à Patriarcal, ao Terreiro do Paço.

A capital, centro gerador do poder e donde ele emana (GOUVEIA, 1993), pre-parou-se, engalanando-se, para receber esses tempos de entusiasmo. Magnificência e esplendor foram as duas principais preocupações do monarca desde o momento em que se pensou nesta efeméride. No percurso alargado a Belém e ao Largo do Convento da Esperança, como já se disse, serão colocados vinte, segundo uns, e vinte e quatro, segundo outros, arcos de triunfo, da responsabilidade dos mesteres e nações estrangeiras radicadas em Lisboa, que o carpinteiro José Martins (OLIVEIRA, 1882) fará distribuir ao longo do traçado estabelecido, até à Patriarcal.

Os dias que se seguiram, foram tempos de festa popular. Ao pasmo que as monta-nhas de ouro, e as luzidas galas provocaram em todos os que, passivamente, se deixa-ram embalar pelas grandezas dos que iam passando pelas ruas e praças, seguiram-se noites de luminárias e fogos de artifício no Terreiro e no Castelo, enquanto os salões do Paço da Ribeira se enchiam de bela música. Eram as noites de Serenatas.

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Se na festa pública, profano-religiosa, e religiosa, como foi o caso da Procissão do Corpus Christi em Lisboa, em 1719, imperou o Arco de Triunfo como microcosmos de todo o programa efémero, na festa fúnebre caberá essa função ao Catafalco, qual retábu-lo da memória do ou dos poderes do mundo Barroco.

Desde meados do Séc. XVII e durante todo o Séc. XVIII que se sente uma atitu-de de simplicidade perante as coisas da morte (ARIÈS, 1988). Se se desvalorizou a morte, atribuiu-se, no entanto, a maior importância às cerimónias fúnebres, que ao homenagear o Monarca defunto se elevava a Monarquia. Para isso tiveram um pa-pel importante os cenários montados nos espaços religiosos onde iriam decorrer com pompa e aparato grandiosas exéquias fúnebres.

Todas as obras levantadas para estes momentos só pretendiam, portanto, a exaltação do poder monárquico. À aclamação em praça pública que marcara o início da sua acção governativa, seguia-se, agora, a sua coroação na glória eterna, no convívio dos justos. Como os Príncipes da Renascença, o Monarca despedia-se teatralmente da vida terrena.

Por isso, investiu-se num programa iconográfico coerente e preciso, constituído tanto por representações gráficas, hieroglifos, emblemas e epigramas, como por escul-turas e pinturas que revestiam e se espalhavam por três áreas bem distintas da igreja – a fachada, a nave ou naves, incluindo capelas laterais e capela-mor, e o cruzeiro, onde se colocava a estrutura efémera fundamental, o catafalco ou “Castrum Doloris”.

A fachada, cenário fantástico exposto à cidade, convidava os súbditos a par-ticiparem nas cerimónias e anunciava o sentido da festa. Portais, janelas, frisos e paredes enchiam-se de panos negros, festões, caveiras e crânios, tarjas, com em-blemas e epígrafes, e esculturas que exaltavam a figura glorificada do defunto, a par de símbolos heráldicos, que nas exéquias reais tinham a missão de indicar a qualidade da pessoa homenageada.

No interior da igreja, todo o espaço era aproveitado para receber ornamenta-ção. As estruturas arquitectónicas do pórtico, do coro, da nave ou naves, das cape-las e do transepto desapareciam por entre um complicado programa ornamental, onde panos, medalhas, medalhões, tarjas com pinturas, pedestais com esculturas, ampulhetas, caveiras e crânios com tíbias cruzadas, esqueletos, hieróglifos, etc. criavam o ambiente teatral necessário ao espectáculo fúnebre, produzindo, no seu conjunto, um efeito peregrino. Por toda a parte repetiam-se as mesmas imagens, quase até à exaustão, valorizando as virtudes do monarca defunto, louvando as suas acções e, numa atitude pedagógica, alertando os participantes e passantes para a realidade que a vida terrena não passa duma estância frágil e precária, onde se devia preparar a chegada da morte e a partida para a vida eterna.

Em Portugal, embora esta atitude já se venha a sentir desde a segunda metade do Séc. XVII, são, no entanto, as exéquias fúnebres em honra de D. Pedro II na igreja de Santo António dos Portugueses em Roma, em 1707, cujo programa eféme-ro foi entregue à invenção do arquitecto romano Carlo Fontana, que, devido à di-vulgação das soluções então concebidas através de cerca de vinte gravuras, provo-

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carão programas decorativos efémeros assumidamente barrocos, programas que serão adoptados nas festas fúnebres em memória do Duque de Cadaval, D. Nuno Álvares Pereira de Melo, na igreja de Santa Justa em Lisboa, em 1727, bem como noutros momentos lutuosos ligados à família real (ALVES, 1993). Estes momentos foram desenvolvidos e levados quase ao extremo logo que se divulgou a notícia da morte de D. João V.

Enfim, de todos estes momentos ficaram os relatos contados em voz alta, os boatos contados em surdina e, acima de tudo, ficaram as notícias que se deram à estampa na Gazeta de Lisboa e, principalmente as “Relações“ das festas, escritas por quem presen-ciou o momento, mas, essencialmente, por quem pretendia deixar uma grata mensa-gem daqueles que estavam à frente dos destinos do povo português.

A Festa, ao tornar-se relato, deixava de pertencer a quem a viveu para se trans-formar num instrumento de propaganda dum poder que se pretendia soberano e símbolo de unidade de todo um povo à volta do seu Monarca. Ao percorrermos essas memórias, muitas vezes nos deixamos levar pelos artifícios dos textos, tentan-do participar de cada momento sem deixar fugir qualquer instante.

Embora a Festa vá repetindo o cerimonial, percorra os mesmos itinerários e aconteça nos mesmos espaços, sempre apresentou a particularidade de surpreen-der, introduzindo novos efeitos e apresentando os vocábulos duma nova lingua-gem artística. A arte efémera, presente em todas estas manifestações, aparece-nos nestas manifestações como uma espécie de laboratório de soluções que poderão vir a ser utilizadas em outros momentos das artes ditas duradoiras.

Lentamente, ao longo da segunda metade do Sec. XVIII, vão desaparecendo as manifestações efémeras que, imitando e orientando-se pelos valores do clássico, ornamentaram praças e ruas das nossas cidades e encheram de esplendor os inte-riores dos palácios e das igrejas onde decorreram os grandes espectáculos do bar-roco português. O Arco de Triunfo, como já assinalámos, triunfante entre nós desde a entrada em Lisboa de Filipe II, em 1581, continuaria a ser o elemento fulcral do programa das festas de júbilo ao longo de todo o Sec. XVII, na entrada em Lisboa de Filipe III em 1619, nas festas jesuítas de celebração da canonização de Santo Inácio de Loyola e S. Francisco Xavier em 1622, na “saída” de D. Catarina de Bra-gança em 1662, na entrada pública de D. Afonso VI e D. Maria Francisca Isabel de Sabóia em 1666 e nas festas de casamento de D. Pedro II com D. Maria Sofia Isabel de Neuburgo em 1687 (BORGES.s.d.). O Séc. XVIII manteve a tradição. Em vários momentos da vida, D. João V pôde presenciar e passar sob estas imponentes má-quinas. É, no entanto, na “ida à Sé” com Maria Ana de Áustria em 1708 e na entra-da em Lisboa e “ida à Patriarcal”, acompanhando os jovens esposos, D. José e Mariana Vitória de Bourbon, em 1729, que o uso destes “Triunfos“ repetiu os es-quemas que orientaram os artistas nas situações anteriores.

Na segunda metade do Séc. XVIII poucas vezes se utilizaram estas soluções. O Séc. XIX, vai abandonando o formulário decorativo de excelência da festa Barroca. O discurso mudou. A influência da festa revolucionária, oriunda de França, altera-rá todo o sentido da Festa. Os objectivos, no entanto, mantiveram-se.

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