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MARGEM, SÃO PAULO, N O 15, P. 57-86, JUN. 2002 A festa de Babette: uma alegoria da ressurreiçªo 1 MARISTELA GUIMARˆES ANDRÉ Resumo O artigo apresenta uma leitura do fil- me dirigido por Gabriel Axel com base na adaptaçªo do conto de Karen Blixen (pseu- dônimo da escritora dinamarquesa Isak Dinensen), sob a ótica da experiŒncia estØ- tica e do reconhecimento da narrativa do cinema como linguagem nesse filme, em especial, uma narrativa alegórica. Para tanto, pretende indicar que a pos- sibilidade de uma visªo crítica do especta- dor reside na sua capacidade de, apro- priando-se da linguagem do filme, recons- truí-lo como objeto, salvando-o da lineari- dade narracional, para, em cada frag- mento (cena, imagem, gesto, som), revelar um outro sentido. Palavras-chave: narrativa alegórica; imagem; memória; tradiçªo; reconstruçªo. Abstract The article presents a reading of the film directed by Gabriel Axel based on the adaptation of Karen Blixens tale (pseudonym of the Danish writer Isak Dinensen), under the optics of the esthetic experience and of the recognition of the narrative of the movies as language in this film, especially, an allegorical narrative. For so much, it intends to indicate the possibility of a critical vision living in the spectators capacity of, appropriating of the language of the film, to rebuild it as an object, saving it from the narrafine linearity, so that, in each fragment (scene, image, gesture, sound), another sense can be reveled. 1. Babettes Gaestebud, de Gabriel Axel, adaptaçªo do livro de K. Blixen.

A Festa de Babette

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A festa de Babette: uma alegoria da ressurreio1

MARISTELA GUIMARES ANDR

Resumo O artigo apresenta uma leitura do filme dirigido por Gabriel Axel com base na adaptao do conto de Karen Blixen (pseudnimo da escritora dinamarquesa Isak Dinensen), sob a tica da experincia esttica e do reconhecimento da narrativa do cinema como linguagem nesse filme, em especial, uma narrativa alegrica. Para tanto, pretende indicar que a possibilidade de uma viso crtica do espectador reside na sua capacidade de, apropriando-se da linguagem do filme, reconstru-lo como objeto, salvando-o da linearidade narracional, para, em cada fragmento (cena, imagem, gesto, som), revelar um outro sentido.

Palavras-chave: narrativa alegrica; imagem; memria; tradio; reconstruo. Abstract The article presents a reading of the film directed by Gabriel Axel based on the adaptation of Karen Blixens tale (pseudonym of the Danish writer Isak Dinensen), under the optics of the esthetic experience and of the recognition of the narrative of the movies as language in this film, especially, an allegorical narrative. For so much, it intends to indicate the possibility of a critical vision living in the spectators capacity of, appropriating of the language of the film, to rebuild it as an object, saving it from the narrafine linearity, so that, in each fragment (scene, image, gesture, sound), another sense can be reveled.

1. Babettes Gaestebud, de Gabriel Axel, adaptao do livro de K. Blixen.

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Key-words: allegorical narrative; image; memory; tradition; reconstruction. O filme no se contenta mais em conservar para ns o objeto lacrado no instante, como no mbar o corpo intacto dos insetos de uma era extinta, ele livra a arte barroca de sua catalepsia convulsiva. Pela primeira vez, a imagem das coisas tambm a imagem da durao delas, como que uma mmia da mutao. Andr Bazin

um anseio artstico que propiciou a descoberta de uma nova tcnica; foi uma inveno tcnica que propiciou a descoberta e a perfeio gradual de uma nova arte.

A linguagem flmica O sujeito espectador O reconhecimento do cinema como arte fundamental para considerarmos a possibilidade de uma interpretao criativa da realidade e compreendermos, por intermdio das intricadas relaes estabelecidas pelas imagens e sons de um filme, o visvel no revelado, porm possvel, de sua linguagem. Popularmente chamado de stima arte, o cinema encontrou o seu estatuto artstico no curso de seu desenvolvimento e no quando da sua criao. Panofsky2 considera, inclusive, que a arte do filme a nica cujo desenvolvimento foi testemunhado desde o comeo por homens ainda vivos e, como tal, foi2. PANOFSKY, E. (1982), Estilo e meio no filme. In: ADORNO et al. Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, p. 321.

Gerard Betton inicia seu livro Introduo em esttica do cinema3 afirmando: O cinema , antes de mais nada, uma arte, um espetculo artstico. Walter Benjamin, em A obra de arte na poca de suas tcnicas de reproduo,4 confere ao cinema talvez sua primeira dimenso esttica, pois, buscando analisar as transformaes operadas pelas novas tcnicas de representao, no mais sob a gide das contradies sociais simplesmente, mas sim introduzindo o cinema naquilo que ele tem de particular e prprio, acaba por conferir ao cinema, comparado arte, a qualidade distintiva de uma incisiva5 leitura da realidade. A percepo e a interpretao da realidade a partir de novas tcnicas decorrem, inegavelmente, de mudanas ocorridas no processo de produo. O cinema no existiria se no tivesse havido um desenvolvimento da3. BETTON, G. (1987), Introduo em esttica do cinema. So Paulo, Martins Fontes, p. 1 (Col. Opus n. 86). 4. BENJAMIN, W. (1980), A obra de arte na poca de suas tcnicas de reproduo. So Paulo, Abril Cultural (Col. Os pensadores). 5. No texto, Walter Benjamin traa uma analogia entre a pintura e o cinema, fazendo uma comparao, respectivamente, entre a ao do curandeiro e o ato cirrgico. O primeiro, afirma ele, pintando, observa uma distncia natural entre a realidade dada a ele prprio; o filmador penetra em profundidade na prpria estrutura do dado. BENJAMIN, W. , op. cit., p. 20.

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mecanizao. Essas mudanas, entretanto, surgem emaranhadas em processos de alteraes profundas na estrutura da vida urbana, na arquitetura, nas formas e meios de comunicao, etc., modificando a prpria realidade e determinando um novo ritmo e uma nova essncia para o olhar. Nesse sentido, no h como escapar velocidade das mudanas imprimidas ao lugar onde se vive e leitura que se faz da experincia ali vivida. O sujeito que vive e interpreta essa experincia um indivduo perplexo e atordoado pelo fluxo contnuo de informaes reguladas por sistemas tecnolgicos complexos e imensas burocracias. Disponvel para as alternativas igualmente complexas que se lhe apresentam, oscila entre a possibilidade (ou liberdade) de escolher uma e outra linha de ao e a possibilidade de escolher todas as coisas simultaneamente, permanecendo, na maioria das vezes, com a segunda opo. O desenvolvimento das condies materiais de vida, causa e princpio dessa ambigidade, ope contraditoriamente esse sujeito como vtima e algoz. Aquele que se sente impotente diante de uma tecnologia crescente e, ao mesmo tempo, enxerga o vizinho (ou o governo) como uma ameaa a sua sobrevivncia, quando, na verdade, ele no passa de um estrangeiro (um espectador) assistindo narrao de sua trajetria (histrica) como num filme. O cinema o espelho dessa realidade e, pela obviedade da sua linguagem, narcisisticamente faz com que o

indivduo, incorporando-a, venha a atualiz-la numa velocidade muitas vezes difcil de ser acompanhada, imprimindo nesse sentimento a chancela para o desenvolvimento de novas formas de comunicao (implicitamente, novas possibilidades de linguagem), novos padres de comportamento e, por que no, novas alternncias para o pensamento. No filme Asas do desejo (Der Himmel Uber Berlin), de Wim Wenders, a alegoria dos anjos que sobrevoam Berlim e, invisveis para os mortais, descem s ruas e aos apartamentos para ouvir suas lamentaes e atenuar seus sofrimentos nos mostra, por meio de um olhar preto-e-branco, que o mundo colorido da realidade, na verdade, no mais o mundo do eu vejo, mas, sim, do eu vo. Essa representao significativa, no sentido de no se poder desprezar a viso que o cinema oferece fora de qualquer esquema meramente acadmico e dentro das inmeras variveis do sentir e do compreender a vida e o processo histrico do indivduo como algo que no mais vivido de dentro, mas sobrevoado como um espetculo.6 A caracterizao dessa ambigidade, reflexo de uma contradio subjacente, aparece como senso comum, reforado pelos meio de comunicao de6. Paul Virilio, arquiteto e urbanista, antigo diretor da cole Spciale dArchitecture, em Idias contemporneas, entrevistas do Le Monde, So Paulo, tica, 1989, enfatiza esse carter cinemtico da nossa realidade, bem como o poder a contido.

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massa e, como pensamento elaborado, divulgado pela crtica dos especialistas. O cinema, com sua linguagem acessvel, constitui-se num meio eficaz (diferentemente da arte, da literatura e do teatro) de fazer chegar aos indivduos, de modo geral, em razo mesmo dos elementos contraditrios que contm, a tentativa de manter vivo o empreendimento artstico como resposta esttica criativa. No cinema, sujeito e objeto se confundem, um e outro representam e so representados, um e outro articulam impresses e interpretaes como indcios da realidade vivida e da realidade pensada. Representado no filme, o objeto, ele prprio dependendo de suas caractersticas estticas, dispe de certa autonomia e, tornado pblico, no momento de sua exibio, abre espao para novos e outros intrpretes, independentemente daqueles que o criaram e o projetaram. O sujeito-espectador, entretanto, um interlocutor passivo e ativo, seduzido pela armadilha de ser livre para as diferentes emoes e, ao mesmo tempo, condicionado a uma atitude de submisso perante a linguagem especfica que o cinema propaga.77. Vrios so os crticos que se referem mgica do cinema ritualizada no cotidiano moderno. Ou seja: a experincia esttica, em relao a um filme, s pode ser vivida no cinema, na sala de projeo, com todo o seu aparato, assim como o momento de suspenso, que provoca na rotina diria algo que no pode ser repetido nem proporcionado pela televiso, esta sim um instrumento tecnolgico do cotidiano.

O espectador, diante do filme, experimenta um distanciamento que lhe permite distinguir a alteridade do objeto primeiro como forma. O cinema prescinde de uma restrio formal diretamente relacionada com a tcnica e com a tecnologia. Por outro lado, essa condio se oferece ao espectador como uma pluralidade inesgotvel de imagens que torna possveis vrios e inesgotveis contedos.8 Portanto, mesmo tratando-se de uma experincia at certo ponto fabricada, nessa relao (filme e espectador) h um espao, uma zona geogrfica ainda no plenamente dominada, em que o espectador submetido sucesso de imagens pode estabelecer as mais diferentes ligaes, descobrindo alguma emoo que lhe permita encontrar um significado verdadeiro.9 O objeto res-pectivo A criao cinematogrfica, pressupondo o olhar do espectador, receptor final, impe a necessidade de se buscar continuamente uma linguagem pertinente ao objeto de criao. em decorrncia dessa necessidade que a preciso tcnica da linguagem flmica comea a ser estabelecida.10 Essa condi8. BENJAMIN, W., op. cit., pp. 19 e 20. 9. PANOFSKY, E., op. cit., p. 325. 10. Etinne Souriau, no incio dos anos 50 do sculo XX, e Christian Metz, alguns anos mais tarde, produziram os primeiros estudos sobre a semiologia do cinema, portanto, antes mesmo do movimento semiolgico como tal.

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o exige novos critrios de julgamento sobre o sentido esttico das diferentes formas de representao do homem, uma vez que a linguagem cinematogrfica, apoiada na produo e reproduo tcnicas que a caracterizam, redefine a leitura e a interpretao do fato humano nos seus vrios sentidos (poltico, histrico, social, etc.). Hoje, o contedo e a forma de um filme devem estar perfeitamente ajustados ao imperativo da coerncia e da objetividade para que ele possa ser compreendido.11 O hermetismo proposto nessa relao oferece possibilidades restritas de interveno do pensamento. Entretanto, a mesma eficincia observada na capacidade que o cinema tem de produzir uma certa homogeneizao dos valores e padres culturais pode ser sentida na intensidade com que agua, ou at amplia, as possibilidades de percepo de um determinado objeto, fato ou fenmeno, multiplicando o efeito de uma determinada interpretao ou, mesmo, tornando o filme (no seu sentido e na sua forma) um agente passivo de mobilizao da conscincia. A contradio contida nessa duplicidade de sentido se produz, num primeiro nvel, em relao aos diferentes elementos utilizados pelo diretor (considerado aqui como o autor) do filme, ao criar, no espectador, as dife11. A propsito, METZ, C. (1980), O significante imaginrio. Psicanlise e cinema. Lisboa, Livros Horizonte, que nos oferece mais e melhores elementos sobre a relao entre significante e significado na linguagem flmica.

rentes sensaes, impresses e opinies que ele experimenta e desenvolve. Num segundo nvel, a dinmica da conscincia depende do elo de significaes que frui entre o diretor (como autor da obra), a obra em si e o espectador. O que, independentemente das condies em que essa relao se d, estabelece, para alm delas, uma dimenso de temporalidade (da obra, por meio de sua narrativa) que desafia o pensamento a inserir-se na atualidade. Em outras palavras, para alm da temporalidade do prprio filme e do prprio diretor, qualquer leitura que se faa, crtica ou no, ser sempre uma leitura atualizada e, nesse sentido, distanciada da atualidade histrica que a produziu. A possibilidade de uma leitura crtica residir na capacidade do espectador, ou do crtico, de, apropriando-se da linguagem do filme (ou seja, tomando-a na sua propriedade lingstica), reconstruir o objeto (o filme), salvando-o da linearidade narracional e buscando, a cada cena e a cada imagem, o fragmento que possa fazer emergir o sentido nico e original de um tecido maior. Dois aspectos so fundamentais nesse processo: primeiramente a experincia esttica, caracterizada pelo carter universal da linguagem cinematogrfica, com toda pluralidade de sensaes, impresses e opinies que ela sugere (contraditoriamente a uma unidimensionalidade insistentemente imposta pela mdia e pelos meios de produo), indicando o sentido aber-

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to da obra;12 e, em segundo lugar, considerar a narrativa do cinema como linguagem.13 Em resumo, trs elementos se fundem nessa leitura: a atualidade histrica (da obra, do autor e do espectador), a experincia esttica e a apropriao da narrativa flmica (da linguagem), apropriao entendida, aqui, como algo que se torna prprio, que adquire propriedade pela leitura e pela interpretao do espectador. A narrativa alegrica Num meio saturado de imagens e informaes, em que nossas impresses da realidade no so frutos das observaes, e sim, de complexos sistemas de comunicao, o cinema pode exibir, com algum privilgio, filmes que traduzem numa narrativa alegrica algo mais que um simples testemunho artstico. Adjetivar a narrativa em um filme a partir da idia de alegoria, impe certamente alguns cuidados na anlise. Entretanto, sem negligenci-los e tomando por referncia a idia de que a alusividade da alegoria pluralista e no monista: ela remete diversidade, no a uma suposta unidade do diverso e o fato de que o objeto alegrico representao de outro e at de vrios outros, mas no do todo,14 tem12. ECO, H. (1971), Obra aberta. So Paulo, Perspectiva, pp. 39-40. 13. DELEUZE, G. (1989), Imagem-tempo. So Paulo, Brasiliense, p. 311. 14. MERQUIOR, J. Guilherme. (1969), Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, p. 106.

se como ponto de partida, aqui, a ambivalncia com que a realidade pode ser expressa e, em cada plano, cada personagem, cada objeto, intrincados na seqncia de aes de um filme, a busca de um outro sentido, apesar do sentido imediato que transmitem. Significa identificar, na linguagem cinematogrfica, o seu sentido ltimo, o referente unitrio que engloba todas as significaes parciais:15 o aniquilamento do sujeito histrico (o sujeito da prxis e da transformao revolucionria). Em vrios filmes de reconhecida qualidade cinematogrfica, nos mais variados gneros, da escola ocidental ou da oriental, a identidade humana retratada numa perspectiva apocalptica, que congela o passado, tratando-o, por intermdio da narrativa adotada, de forma homognea e uniforme. Dessa maneira, procura restaurar o presente caracterizado no filme.16 Ao faz-lo, submete o indivduo a uma representao que, permitindolhe redimensionar o futuro imediato da narrativa, anuncia sua morte, indicando a impossibilidade de um futuro real. No filme Bagdad Caf (direo de Percy Adion), por exemplo, a personagem Jasmin (Marianne Sagebrecht) no s deixada pelo marido no meio de um deserto, com a bagagem trocada e uma garrafa trmica, como, depois de15. BENJAMIN, W. (1984), Origem do drama barroco alemo. Apresentao e comentrios de Sergio Paulo Rouanet. So Paulo, Brasiliense, p. 38. 16. Para mencionar alguns exemplos, Paris, Texas, de Wim Wenders, e Fitzcarraldo, de Werner Herzog.

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ter encontrado num bar-motel de beira de estrada um sentido novo em sua vida, ao ser obrigada a voltar para a Alemanha (estava vivendo e trabalhando no bar-motel clandestinamente), ela quem abandona o passado na terra de origem para retornar e viver sua nova vida, numa outra terra. O que sugere, implicitamente, que h um passado vazio ou desprovido de vida, que merece (justificativa) ser deixado para trs em razo de uma possibilidade nova, surgida ao acaso no meio do deserto. Em outras palavras, o que alguns filmes mostram que existe um passado (negado ou idealizado) que contm uma possibilidade de salvao: algo aconteceu (portanto, num tempo passado) que explica a ao (no presente) daquela(s) personagem(s). A conscincia e a conquista dessa possibilidade, contedo da narrativa flmica, revelam o esfacelamento do sujeito histrico. Para salvar o homem da destruio de sua identidade histrica preciso destru-lo, restaurando-o por meio de uma representao redentora. Aquilo que o cinema denuncia com suas idas e vindas no tempo e ao longo dele o esforo residual da esperana humana de buscar uma emancipao, ainda que todas as alternativas estejam esgotadas e toda a crtica comprometida com uma racionalidade pessimista. A no-transparncia dos elementos significativos indica a no-transparncia da crueldade do existir humano. Isso, impresso num filme, revela o processo de dissoluo da iden-

tidade e a reconstruo (impossvel) num outro tempo e lugar. No filme A festa de Babette, o sentido alegrico com que a narrativa se desenvolve espelha a gravidade da contradio histrica vivida pelo ser humano. Sua vida, caminho inevitvel para a morte, preenchida por momentos, sinais, gestos, imagens, palavras enfim, signos que, pretendendo ser duradouros, estabelecem o limite de sua permanncia: como desejos, eternos, breves e frugais como uma festa. As imagens (a alegoria) que o filme projeta transformam-se num universo de significaes, porque trazem como fundamento a vida, no seu sentido mais amplo. A redeno ou ressurreio possveis, como o ttulo pode sugerir, no se traduz meramente na metfora religiosa, mas encontra, no modo simples como essa dimenso se apresenta no dia-a-dia, um sentido que refaz o desfeito e desfaz o que est cristalizado, sedimentado, como, por exemplo, no simples e rotineiro ato de cozinhar. A perspectiva da perda e da ausncia, constante ameaa sobrevivncia, e que, em princpio, justificaria as aes religiosas, transforma-se na realizao, que expresso da prpria vida e cuja essncia est contida num ato de f, no seu duplo sentido de reter e enredar, fazer parte do enredo. A relao que se pretende, portanto, parte da considerao de queno signo alegrico, a comunicao do sentido no mais o essencial. Se no sentido lingstico o lao significantesignificado arbitrrio, sendo impor-

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tante o sucesso da comunicao, assistimos no signo alegrico a uma espcie de absolutizao da relao significante-significado enquanto tal s expensas destes ltimos. que uma comunicao unvoca considerada como ontologicamente impossvel num mundo em que nenhuma totalidade pode garantir a coerncia de um sistema de signos. Resta o saber da ambigidade. Enquanto imagem, a alegoria pode, certamente, remeter a uma significao entre outras, enquanto signo ela remete a todas as significaes possveis. O conhecimento alegrico tomado de vertigem, no h mais ponto fixo, nem no objeto nem no sujeito da alegorese que garanta a verdade do conhecimento.17

O filme A festa de Babette (Babettes Caestebud) Sntese do argumento Esse filme uma adaptao para o cinema do conto de Karen Blixen (pseudnimo da autora dinamarquesa Isak Dinensen, 1885-1962). Produo dinamarquesa de 1988, recebeu o Oscar de melhor filme estrangeiro. Direo de Gabriel Axel, com Stphane Audran (Babette), Brigitte Fredespiel, Bodil Kjer, Videke Hastrup e Hanne Stensgard no elenco. Durao: 111 minutos. A identidade historicamente constituda faz-se das perdas historicamente acumuladas. Experincias preenchi17. GAGNEBIN, J. M. (s.d.), Alegorias: que outro dizer?. So Paulo, mimeo., pp. 18 e 19.

das de significados vazios e esvaziadas de significados verdadeiros assistem ao desenrolar da histria real como um espetculo de variedades, assim como se processa a preparao e a organizao de um banquete. Babette a empregada de origem francesa de duas irms de meia-idade, Felippa e Martine, nomes dados em homenagem a Felipe Melanchton e Martinho Lutero. As trs vivem numa pequena aldeia de pescadores ao norte da Dinamarca, numa regio chamada Jutlndia. As irms gastam todos os seus proventos num trabalho beneficente, assistindo os idosos que no podem mais se sustentar. Babette faz os servios da casa e tambm cozinha. O pai de Felippa e Martine foi pastor, profeta, fundador de uma seita respeitada e tambm um pouco temida. Quando Babette veio trabalhar na casa das irms, o pastor j era falecido e os poucos fiis que ainda restavam continuavam, ano aps ano, encontrando-se na casa das irms para interpretar a palavra de Deus e honrar o esprito do mestre, ainda presente. Na juventude, Martine e Felippa eram como fruteiras floridas e os rapazes iam aos cultos dominicais na igreja (do pastor) s para v-las, uma vez que no freqentavam bailes ou festas. Aqueles que se atreviam a solicitar permisso para cortej-las recebiam como resposta (do pastor) que suas duas filhas eram para o seu sacerdcio, sua mo direita e esquerda e aquele que delas se aproximava por interesses frvolos (como o casamento ou

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o amor terreno) estava, na verdade, tirando-as dele. Com isso, afastava todos os possveis pretendentes. Houve, porm, um momento na vida das irms em que dois homens, vindos do grande mundo l fora, deixaram seus coraes abalados, de maneira e modos diferentes, a ponto de interferir no destino. Lorenz Lowenhelm, um jovem oficial que vivia desregradamente foi enviado pelo pai para a fazenda de uma velha tia, prxima aldeia das irms. Ali, ele teria tempo de refletir sobre sua vida e mud-la. Num passeio a cavalo, conheceu Felippa e nesse instante revelou-se para ele uma forte viso de uma vida mais pura e superior. Consegue, ento, por intermdio de sua tia, uma devota senhora, ser aceito na casa do pastor para as reunies de orao e meditao. Achilles Papin, um cantor lrico de muito sucesso, cansado de viajar pelo mundo em fatigantes turns, aceita a sugesto de uma amiga e procura a costa da Jutlndia em busca de paz e tranqilidade. Num passeio a p pelo lugar, atrado pela msica que vem da igreja e fica fascinado pela voz de Martine. Procura o pastor em sua casa, pedindo-lhe permisso para dar aulas de canto a Martine e, dessa forma, poder glorificar a Deus. Essas personagens desaparecem da vida das duas jovens com uma despedida cheia de profunda melancolia. Anos mais tarde, com uma carta de Achilles Papin, as duas irms recebem Babette, uma fugitiva da Guerra Civil da Frana de 1871. Ela perdera o mari-

do e o filho e no tinha para aonde ir, ou onde se esconder. Sendo aceita na casa das irms, sua nica ligao com a Frana um bilhete de loteria que uma amiga fiel todo ano se encarrega de renovar. Por ocasio da festa do centsimo aniversrio do pastor, o bilhete de Babette premiado. Como as irms pretendiam homenagear o falecido pai com um jantar, Babette pede-lhes que lhe concedam a honra de preparar e oferecer, com o dinheiro ganho, um banquete, um verdadeiro jantar francs. Distncia e simulacro da narrativa A cmera e uma voz (feminina) em off acompanham o movimento de duas senhoras de meia-idade, braos dados, andar compassado. Saem de uma casa, levando cestas nos braos, tm os traos suaves e a expresso serena de quem parece saber ser aquele o lugar e a hora de ali estar. um pequeno aglomerado de casas simples (uma aldeia). Com essa imagem, somos introduzidos histria de Babette. Como algum a distncia, no tempo e no espao, a voz em off nos coloca diante de uma perspectiva temporal de primeira ordem, ou seja, promove a aproximao do nosso tempo com o tempo perdido (esquecido) no espao do filme. essa voz em off que aproxima nossos sentidos das imagens que se desenvolvem na tela. A voz em off permite a atualizao do tempo. A narrao personificada nessa voz confere o tom e o ritmo da cmera.

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algum que nos conta uma histria de um outro tempo e um outro lugar, portanto, distante em vrios sentidos do tempo presente, porm presentificado pela leitura do espectador. A voz em off faz com que o tempo narrado passe a existir a partir da dimenso de quem o assiste. A voz em off l para o espectador a histria que ele v. O uso desse recurso, aliado ao flash-back, reservam algumas armadilhas. Essa primeira identificao abre espao na direo da cumplicidade necessria para despertar curiosidade sobre aquilo que o olhar revelador da cmera ir propiciar. Ao mesmo tempo, o flash-back e a voz em off, colocando o passado na perspectiva do narrador, criam a iluso de que h, na origem e na identidade das coisas e das pessoas, algo de real (o que, na verdade, no existe nesse mundo simulado). Usando do artifcio objetivo da cmera, fala-se do passado para escond-lo; entretanto, ele surge inesperadamente e com toda fora nas cenas que preparam o banquete. Essa a primeira armadilha. O mesmo ritmo na fala e na seqncia das imagens unem os diferentes momentos, como se o tempo da narrativa correspondesse de fato ao compasso da vida daquelas pessoas (personagens) e daquele lugar. O antes e o depois que se mesclam de modo sucessivo em flash-back sugerem um futuro imerso na seqncia natural do filme, sutilmente sugerido em cenas que, curiosamente (e propositalmente) se assemelham, do ponto de vista da ima-

gem, a outras j vistas no incio,18 o que nos indica que a cena final (portanto, quando o tempo narrativo se encerra) pode estar contida ou anunciada num trecho anterior ao prprio comeo. Ou seja: quando o filme comea, a cena inicial pode referir-se a qualquer momento da narrativa implcita, antes ou depois daquilo que se assiste no final do filme. Essa a segunda armadilha. No pequeno vilarejo, no h sinais de movimento. Olhares curiosos espreitam por detrs das janelas, gestos sem pressa comandam os afazeres domsticos, dilogos sussurrados garantem a preservao do silncio que circunda as pessoas. Tudo sendo mostrado em cenas curtas, paradoxalmente rpidas. A impresso que se tem que elas no foram feitas para ficar, no entanto, sua imagem quase fotogrfica, imprimida de modo rpido na nossa retina, guarda o segredo da temporalidade dessa narrativa. Cada imagem, por sua vez, faz-se acompanhar do som que lhe caracterstico, acentuando as imagens que beiram o natural realismo que essas fotografias evocam. Por exemplo, o galope e o tilintar dos guizos dos cavalos da carruagem, o barulho da gua caindo na tigela ou das frituras na panela, o18. Logo no incio, a mesma cena das irms levando a refeio, a palavra e a assistncia aos fiis de sua igreja, aparece repetida no meio do filme, no interior de um processo de recordao (flashback). Ainda no incio, Babette aparece por detrs de uma porta com uma bandeja nas mos, aguardando o momento apropriado para entrar na sala, onde os fiis cantam e rezam. Essa cena tambm repetida no meio do filme.

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canto na igreja, o som das ondas, do vento, da chuva, etc. Esses elementos sugerem um subtexto construdo pelos espaos silenciosos, entre os olhares, os gestos, as palavras, os sons e as imagens. Entrelinhas que constroem um determinado ritmo entre uma cena e outra. H um vazio cheio da histria que se desenrola, impregnando o fluxo contnuo das horas com outros significados, o que, por sua vez, revela-nos a possibilidade de uma narrativa subjacente. Destacadas de um tempo linear e contnuo, memria e lembrana aliamse no vaivm das imagens que o flashback cria. Essas imagens, ao constiturem-se parte da narrativa linear, geram a impresso constante da ausncia de uma pea, de um fragmento, estimulando a imaginao e convidando o espectador a decifrar essa narrativa subjacente preenchendo os espaos silenciosos com sua leitura. A ordem de cortes e seqncias que nos permite a composio linear permite, tambm, a invaso desses espaos silenciosos procura de um outro enredo, uma outra histria. O motor desses significados acionado em flash-back e os fatos da histria passada tornam-se fatos sempre presentes, adquirindo, diante de nossos olhos, os contornos de sua realidade precria. Em outras palavras, os fatos que compem a narrativa esto ligados por pequenos detalhes desenvolvidos de modo significativo num jogo de imagens estruturalmente semelhante: uma primeira tomada mais ampla, introdutria, seguida

de uma segunda, em close, apresentao da cena, passando para uma terceira tomada de desenvolvimento da situao com o enquadramento de mais pessoas ou de um lugar, para, em seguida, fechar e cortar para uma outra cena. A repetio dessa estrutura, imperceptvel e sutilmente trabalhada na narrativa do filme, indica ou sugere a fragilidade do que seria a ao no presente, no sentido de que uma determinada cena s se sustenta conectada s imagens anteriores. Apesar do discurso direto e de certa forma descritivo, propiciado pela voz em off, a estrutura repetitiva das cenas sugere, com sua fragmentao, a possibilidade de um presente perdido (ou esquecido) na ao passada, como se, no emaranhado da recordao, algo tivesse escapado percepo, cujo sentido, de posse da pessoa que assim se lembrava dos acontecimentos e agora os narrava, pudesse ser reconstitudo de vrias maneiras. As imagens traduzidas na narrativa linear apenas insinuam uma idia, uma relao, uma possibilidade de interpretao, como se o autor tivesse deixado de nos contar algo, preferindo mostrar e, ao faz-lo, iniciasse um jogo de adivinhao ou de escondeesconde, cuja senha, desde o primeiro momento em que a histria comeou a ser revelada, no estivesse mais em seu poder, mas merc do espectador, intrprete privilegiado. Cada um dos recursos utilizados no filme faz parte do jogo: A voz em off e o flash-back mantm vivas na memria do espectador as

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imagens preenchidas pelo contedo do passado. Ao narr-lo, permite a compreenso de fatos transcorridos num outro tempo que, em princpio, explicam as imagens do presente. Entretanto, o uso desses recursos e s por causa deles faz surgir um imenso vazio cheio de significados. A voz em off e o flash-back apresentam cada uma das personagens que constroem o enredo como histrias particulares, que se entrecruzam quase que por acaso, e muito da histria de cada um tem tudo a ver com a histria do outro. A histria de Babette contada, pois, por meio da histria de Felippa e Martine, a partir das lembranas de L. Lowehelm e A. Papin. Em outras palavras, lembranas (caracterizadas pela voz em off e pelo flashback) se explicam em funo das lembranas de dois cavalheiros sobre duas jovens e elas mesmas se explicam nas lembranas de Babette, presentes no banquete (este aspecto ser melhor desenvolvido adiante, ao tratarmos especificamente da figura de Babette.) A linguagem utilizada no filme, com cenas e enquadramentos que se repetem e o mesmo ritmo da cmera caracterizando situaes em que no h confronto, em que cada um dos conflitos encontra sua soluo em comportamentos refletidos, ponderados pela razo (portanto, em princpio, no conduzidos pela paixo), mesmo indicando intenes subjetivas (traduzidas pelo olhar,

pelo gesto, pelo modo de caminhar, sentar, comer ou, simplesmente, rezar, sugerindo, dessa forma, emoes controladas ou reprimidas), transforma-se no mapa imprescindvel para qualquer espectador minimamente curioso ler os sinais ali representados. E, como qualquer outro mapa, uma leitura inadequada pode significar um desvio srio e o vazio cheio de significados permanecer restrito linguagem hermtica da narrativa, linear. Os signos desse mapa tornam-se mais visveis proporo que o tempo da narrao (o tempo de durao do filme) se desenrola e que, hipnoticamente, se conduzido ao banquete de Babette. O jogo das lembranas apresenta-se, ento, numa ltima alegoria, revelando o enunciado original a partir do qual a histria vivida segundo os mistrios do corao nada mais seno obra do prazer, fruto do desejo, objeto da imaginao. Ao mesmo tempo, descobre-se que a possibilidade de existir um futuro est na possibilidade de se reconstruir o passado, de tal forma que o presente venha a ser uma mediao dinmica (seno transformadora) dessas possibilidades.1919. Em outras palavras, o verdadeiro jantar francs de Babette reconstri seu prprio passado, assim como das demais personagens, e, no interior dessa reconstruo, o futuro se define nos gestos, nas palavras, nos movimentos duplamente presentes no olhar do espectador e nas imagens projetadas na tela. Desenvolveremos melhor esse aspecto mais adiante, ao tratarmos da questo da alegoria como ressurreio.

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A estrutura repetitiva das cenas se desenvolvendo, assim como as tarefas cotidianas, reproduzem o eterno fazer e desfazer para fazer de novo, relacionando o tempo cronolgico (o tempo do calendrio), o tempo histrico (o tempo dos eventos) e o tempo da narrativa. Dessa forma, o ritmo cclico da vida, marcado no tempo e no espao pelas atividades rotineiras, desenvolve-se sem que nos demos conta at de que a angstia, a ansiedade e o temor provocados pela violncia simblica de um banquete provocasse uma ruptura no cotidiano ordenado da aldeia, ou seja, at que a lgica do dia-a-dia fosse quebrada a partir de uma interferncia no desejada sob vrios aspectos e que necessita, por isso, ser tambm violentamente negada e esquecida. A sutil ambigidade dessa violncia esconde e ao mesmo tempo revela elementos contraditrios, que vo desde o fato de estarem os convidados obrigados a participar de algo que temem, at a constatao de que h uma submisso prazerosa aos efeitos de to desconhecidas sensaes. Por outro lado, o banquete representando uma suspenso do cotidiano, de tal forma que a festa, objeto da vontade, do desejo e da imaginao, tivesse lugar, cria a condio para a experincia de se sentir vivo numa outra situao que no aquela vivida de ordinrio. quase um outro modo de existir. Nesse sentido, o banquete realiza a mediao entre vrias dimenses do fazer (trabalho) humano, no sentido como propriamente o designou Hannah

Arendt, ao cham-lo de processo de vida ativa.20 De fato, Babette opera uma transformao em todos os sentidos. Aquele lugarejo nunca tinha visto, sentido, provado, enfim, experimentado, o prazer de um jantar como aquele. A vida se renova na textura dos gostos, dos paladares independentemente da conscincia (e da razo); a vida se transforma pelo trabalho produtivo de gerar algo novo a partir do existente; a vida se torna subversiva pela ao potica que transforma em arte o dia-a-dia. Cada uma dessas dimenses, Babette realiza com a sua festa. No , portanto, somente uma alterao de rotina que Babette produz com sua presena e seu jantar. No filme, essa unidade entre a narrativa, o enredo e as imagens, caracterizando a natureza cclica da vida, como marcado no tempo e no espao pelos diferentes fazeres humanos, torna o inaltervel cotidiano da aldeia um aliado do passado inalterado da histria. 20. Com a expresso vida ativa, Arendt pretendia designar trs atividades humanas fundamentais: labor, trabalho e ao. Cada uma delas corresponde a uma das condies bsicas fundamentais pelas quais a vida humana torna-se possvel na Terra. O labor a atividade que corresponde ao processo biolgico do corpo humano; o trabalho a atividade correspondente ao artificialismo da existncia humana; a ao, nica atividade que se exerce diretamente entre os homens, sem a mediao das coisas ou da matria, corresponde condio humana da pluralidade, ao fato de que os homens, e no o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. ARENDT, H. (1983), A condio humana. Rio de Janeiro, Forente-Universitria, p. 15.

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isto, justamente, que precisa ser quebrado, ser rompido. Esse o feitio que Babette, qual bruxa da Idade Mdia, tem que quebrar. S assim lhe restar algum futuro, s assim os espectadores podero encontrar alguma possibilidade de esperana. Quebra do feitio e reconstruo da histria A repetio produz uma histria vazia de significados. O trabalho de Babette, reproduzindo-se diante dos olhos do espectador como algo fora do tempo e fora de lugar, adquire um sentido quase mtico, tornando-se portador de outros significados. A senha para se poder decifrar tais significados est no tempo. O tempo parte fundamental do trabalho de cozinhar. A seqncia dos pratos, dos sabores, a gradao do cozimento, da fervura, do aroma, tudo, enfim, alinhavado pelo tempo. O tempo parte da combinao dos temperos e da fragrncia que induz o paladar. Da mesma forma, o tempo tempera o conhecimento que, por intermdio dos sentidos, conduz o esprito. No tempo, a brevidade da vida se impe como um determinante da morte e o homem sobrevivente constri mediaes que, de alguma forma, possam eternizar o presente, fundindo as experincias passadas como lembranas transparentes, semelhana de um filme. No banquete de Babette, a experincia do tempo confunde-se com a experincia de cozinhar e, aparentemente, apesar de constituir-se numa

possibilidade de trazer de volta, por alguns breves e efmeros momentos, o passado, , na verdade, a chance de reconstruo da identidade dilacerada e agora ameaada pelo esquecimento. Antes de mais nada, Babette uma sobrevivente e, como tal, traz consigo duas marcas desintegradoras da sua identidade: na primeira reside todo o trauma provocado pela violncia a que sua vida foi submetida com a revoluo na Frana, que destruiu por completo sua existncia social, privando-a no s da vida do filho e do marido, como tambm de todos os sistemas de apoios e referncias anteriores, tal como a famlia, os amigos, a posio social, etc.; na segunda residem os efeitos posteriores, at certo ponto mutveis, de tal trauma e que exigem alguma forma de domnio ou de controle, sob pena de sucumbir sua fora. Em outras palavras, Babette uma sobrevivente que tem como difcil tarefa viver com uma condio existencial que no permite qualquer soluo. Ou seja: quando Babette chega aldeia numa noite chuvosa e bate porta de Martine e Felippa, a carta de Monsieur Papin, que ela traz consigo, descreve-a na condio de uma refugiada:O portador infeliz desta carta, Madame Babette Hersant, teve que fugir de Paris, como o fez minha bela imperatriz. A guerra civil tem tocado fogo em nossas ruas. O marido e o filho de Mme. Hersant foram mortos a tiro. Por um triz, ela escapou das mos sangrentas do General Galliffet. Perdeu tudo o que tinha e no se arrisca a ficar na Frana.

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Em seguida, a afirmao das irms de que no possuem uma renda que lhes permita ter ao seu servio uma pessoa dotada de experincia leva Babette a cair em profundo desespero e dizer: Se no me quiserem como empregada, s me resta morrer. A sorte (ou azar) de ter sobrevivido coloca para Babette uma condio precria de vida, sob dois aspectos: de um lado, manter a integrao da identidade ante as conseqncias da desintegrao passada; de outro, ter que sobreviver com a conscincia de ter escapado da morte por obra do acaso e, ao mesmo tempo, viver durante anos sob a ameaa inconsciente da morte, pelo simples fato de ser francesa, tendo a chance de sobreviver enquanto outros, iguais a ela, morreram. Esse duplo aspecto da sobrevivncia impe para Babette a necessidade, talvez inconsciente, de buscar as razes que justificassem o fato de ter sobrevivido. O bilhete de loteria renovado anualmente na Frana por uma amiga atenderia, num primeiro momento, a essa necessidade. Aps uma experincia traumtica, o que se constata que a integrao que se conseguiu atingir at aquele momento no ofereceu a proteo adequada e que a sobrevivncia exige uma luta perptua para se manter consciente e, at certo ponto, com lucidez para tentar enfrentar as diferentes dimenses da existncia humana, entre elas, sem dvida, a prpria morte. Cada dia da vida de Babette na aldeia um lento e rotineiro esforo para se tornar e se manter consciente de si

mesma e dessa forma que o bilhete de loteria, uma vez premiado (mais uma vez a sorte), torna-se o bilhete da salvao. Quando Babette recebe a informao de que ganhou o prmio da loteria, v ali uma possibilidade de redimir-se reconstruindo aquilo que foi desintegrado. Cada uma das cenas, a partir da, um espelho da reconstruo que ope o passado vazio de significado a um passado reconstrudo na sua significao. O ritmo da cmera se altera ligeiramente e o feitio comea a ser quebrado. A primeira reao das irms, quando Babette lhes fala do bilhete sorteado, achar que Babette ir embora (Deus d e Deus tira), ou seja, j no existem mais motivos para que ela fique naquela aldeia. Entretanto, surpreendidas pelo pedido de Babette para fazer o banquete em homenagem ao centenrio do nascimento do pastor, so obrigadas a aceitar, sem perder o receio de que Babette venha a deixlas (Ela deve nos deixar logo, o seu corao est na Frana). Para as irms, aquilo que separava Babette de sua terra natal era apenas a sua condio de dependncia material: um lugar para morar, comer, enfim, viver o que lhe resta ainda para ser vivido. A partir do instante em que Babette pode tornar-se independente, a necessidade se rompe e nada mais prende Babette aldeia e s irms. Entretanto, diante da possibilidade de retomar os vnculos passados com o pas de origem, Babette responde com a possibilidade de, utilizando-se da experincia passada, trazer o inusitado.

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Atendido o pedido de Babette, desencadeiam-se outras reaes das irms e do grupo de fiis seguidores do pastor. O inusitado assusta, ameaa, amedronta. Para esses sentimentos, no h palavras (Ficaremos o tempo todo calados, quanto comida e bebida. Por amor s nossas irmzinhas, prometemos, seja l como for, no dizer palavra alguma sobre a comida ou sobre a bebida. Nenhuma palavra escapar de nossas bocas.), assim como para a tarefa de reconstruo do passado no cabe o exerccio do logos, mas a identificao da experincia fundamental do tempo vivido. Nesse sentido, a preparao e a realizao do banquete adquirem os contornos de um rito, pelo qual as aes passam a ter um significado mais vasto do que aquele ordinariamente praticado, ampliando o contedo da representao do acontecimento. Assim, os atos cotidianos de cozinhar e comer so outros e so os mesmos, a data comemorada a mesma e outra, no contexto do banquete. O que transforma cada um desses elementos o sentido histrico da reconstruo empreendida por Babette. A preparao do banquete, ao romper com a lgica do cotidiano, presente imutvel, oscila entre dois universos antagnicos de ao, correspondentes a duas concepes histricas absolutamente diferentes e opostas, representadas na relao com o passado. De um lado, o universo das foras de estagnao, de cristalizao do tempo histrico e que contabiliza os acontecimentos num processo

cumulativo esvaziado de qualquer sentido de transformao. A esse universo corresponde, com configuraes diferenciadas, o mundo da corte ou da sociedade, em que viviam o General e o cantor lrico, e a pequena aldeia de pescadores, com as duas irms e seu grupo de fiis. quele mundo subjaz um continuum de aes cuja marca a catstrofe, a desintegrao, uma vez que a memria, a lembrana e a recordao constituem-se em apologia de um determinado momento do passado. Nesse sentido, significa a morte e a destruio do indito contido nesse passado, que poderia, de alguma forma, redimir e reconstruir a histria, salvando-a da continuidade repetitiva. dessa forma e com esse sentido que o relato dos feitos e das palavras do pastor aparecem no contexto do banquete. A elegia em que ele se transforma traduz o significado apologtico de toda aquela celebrao para as irms, os fiis, o General e sua tia. Duas senhoras abriram mo de suas necessidades e desejos pessoais para abraar uma causa (de cunho social) que era de seu pai, um pastor, algum que assumiu para si a tarefa de conduzir um rebanho. (Naquela parquia, considerava-se casamento e amor terreno como sendo coisas sem maior importncia, apenas iluses vazias). Nesse sentido, o pastor e as irms, de modos diferentes, despossudos de sua individualidade natural, parecem ser portadores de uma histria-destino, que os simples mortais desconhecem. Seus bens mais

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preciosos so suas virtudes e, em nome delas, a vida se justifica. Entretanto, todo esse despojamento imagem de uma alienao latente. Ao contrrio do que pode parecer, a opo de vida dedicada s pessoas, ao invs de produzir um aprendizado verdadeiro e significativo, produz um desvio sem retorno, pois, a cada passo, a cada ao, o contedo histrico do processo de aprendizagem vivido ficcionalmente. A aldeia, o pastor, as irms, o grupo de fiis representam o mundo fora do seu natural. Nesse sentido, o passado e o presente unem-se como nostalgia ou como vaga lembrana destituda do seu significado experiencial. A obra de atender e servir os enfermos e carentes incua e vazia, porque ela no torna o sujeito senhor de suas necessidades, vontades e desejos. No permite que ele possa se apropriar do processo e do fruto do seu trabalho: ao contrrio, retira dele todas as chances de uma energia criativa assim a velhice, assim a morte. A utilidade transcendente do sentido espiritual presente na ao, em vez de traduzir-se em elemento ativo do existir histrico, fonte inesgotvel de um devir alienante. como se houvesse, na histria, um determinismo absolutamente extemporneo aceito como natural, isto , parte de uma fatalidade e de um destino que comandariam as aes sobre as quais no se tem controle algum em outras palavras, a justificativa para os desmandos das vrias formas de autoritarismo e a aceitao da impossibilidade de mudana.

Do outro lado, est Babette, universo das foras de transgresso, de ruptura no interior do tempo histrico, que produz o salto como uma forma de redeno do passado, no sentido de que o choque provocado pela realizao do banquete no era resultado do movimento natural dos dias e das horas, e, sim, da obra da pessoa humana. O jogo das lembranas revivificadas no banquete aprofunda e radicaliza o sentido da experincia vazia vivida at aquele momento, porm constitui-se em sacramento do renascimento de Babette. O processo de redeno de Babette envolve vrias etapas. A primeira delas registra o movimento de retorno a partir do qual inicia-se a libertao do passado. Para que Babette possa realizar um verdadeiro jantar francs, ela necessita no s do dinheiro da loteria francesa, como tambm de ingredientes que no so disponveis na aldeia. Alm disso, ela precisa realizar as encomendas pessoalmente. preciso, portanto, resgatar de alguma forma o estranhamento que, no primeiro momento, tornou-a sem ptria, sem amigos, sem cultura, enfim, sem identidade. Como sobrevivente, perante a desintegrao sofrida, precisa reconstituir o contexto conhecido, a partir do qual os objetos, na sua familiaridade, adquiriam um sentido mais real e verdadeiro. Somente Babette pode realizar esse trajeto, pois um caminho que rene, em suas vrias encruzilhadas, provaes e revelaes que marcaram no s o destino,

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como tambm toda a transferncia da conscincia. A segunda etapa e talvez a mais importante a retomada do passado. A preparao do jantar, como ritual de reminiscncias, cujo cerne a reconstruo da identidade de Babette, tanto no plano individual como coletivo (o que significa tanto no plano mulher como no plano povo), celebra a experincia como objeto da memria redentora. Visto de outra forma: erlebnis, experincia do tempo vivencial, subsume a erfarhrung, experincia do tempo narrado, isto , o contexto da prpria vida, o contexto das experincias vividas num encadeamento de aes, alegoricamente captado (aprisionado) no banquete. Babette narra sua histria preparando o jantar e, jantando, os comensais constroem a narrativa a partir da qual suas histrias se fizeram. Por detrs dessas cenas, mais do que o encanto produzido pelos pratos saboreados pelos convivas e o doce prazer da conversa que entretm em torno da mesa, o objeto histrico que ali se esconde o sentido do trabalho e, imbricado nele, o tempo, compreendido como o conjunto de aes e processos que desencadeiam as mudanas e as transformaes. Parece claro que todas as personagens apresentam, na sua humanidade, no s o sentido do trgico, mas principalmente a tenso dicotomizante entre as experincias que de alguma forma se constituram como negativas e a possibilidade de uma retratao que as torne ntegras perante a histria, entendida aqui como aquilo que permanecer na memria das pes-

soas. essa culpa pequena e burguesa que a personagem Babette denuncia. A redeno de Babette retoma a experincia como memria criativa, transformando o sentido do trabalho sob vrios aspectos e redimensionando a relao com o tempo. As cenas finais projetam imagens que colocam em suspenso a idia de temporalidade anteriormente relacionada imagem das tarefas cotidianas. Os velhinhos em crculo, olhando para a noite e para a lua, enquanto o General ia embora da mesma forma como havia chegado, parece insinuar que a manh seguinte ser diferente dos outros dias e das outras noites. quase como se o tempo adquirisse outra intensidade. Os trs nveis mencionados experincia, trabalho e redeno , que se articulam na trama do filme, permitindo a transcendncia dos significados e sentidos das diferentes imagens, apontam para a dupla dimenso da reconstruo empreendida por Babette como mulher e como povo. A mulhertrabalhadora (artes e artista) portadora do conhecimento que ir redimir, no s a individualidade, a identidade, como tambm a histria que construda com sua morte. Cada gesto empreendido por Babette no seu trabalho contm, como resduo, o gesto da mulher e o sinal do passado, do qual se viu expropriada. Cada imagem, cada cena em que o banquete preparado e mostrado indica que aquilo que se apresentava como acidental incompreensvel (como os segredos do corao ou as armadilhas do destino), inclusi-

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ve o ameaador espectro da morte, possui um sentido superior. Para descrever esse processo de redeno, dois planos de narrao se interpenetram e se justapem nas imagens. Babette deixou uma posio de chef de cuisine na Frana para, em troca de casa e comida, tornar-se uma empregada domstica. Ao mesmo tempo que sua identidade de mulher e de pessoa reconstruda na pequena cozinha, o General, enquanto saboreia cada um dos pratos e se delicia com cada uma das bebidas, descreve para os sentidos ingnuos daqueles fiis a identidade de uma outra Babette morta pelo tempo. O jantar, que outrora organizava e preparava por obrigao de ofcio para seduzir e submeter os nobres freqentadores do Caf Anglais, ela fazia agora pela alegria e pelo prazer de oferec-lo a pessoas simples, que nada ou pouco sabiam do mundo l de fora. O trabalho, fruto do tempo e da energia comprada e vendida, foi transformado em trabalho, fruto do tempo e da energia criativa do artista. Capacidade que Achilles Papin esteve a ponto de entender e apreciar, que o General nunca chegou a compreender e que as irms e os fiis puderam pressentir. Promessa de vida: ressurreio O filme A festa de Babbete trata da sobrevivncia e, portanto, da morte; da opresso e, portanto, da liberdade; da desiluso e, portanto, da esperana; do medo e, portanto, da vida. Cada um desses elementos parte do significa-

do da ressurreio, pois cada um deles, na sua essncia, traduz a tenso existencial a partir da qual o indivduo (Babette), superando os efeitos negativos (destrutivos) de sua conscincia, torna-se capaz de viver a realidade na sua totalidade, compreendendo-se como parte de um contexto superior, em que no h morte, destino ou acaso. Como foi dito antes, na jornada empreendida por Babette desde sua terra de origem at os dias de hoje (lembrem-se de que o filme se inicia com a figura de Babette preparando biscoitos e servindo o ch para o grupo de fiis que se rene na sala), tempo e espao vo, aos poucos, definindo o caminho da redeno a partir do qual a reconstruo histrica se faz. Num primeiro momento, o filme sugere que a converso fruto dos sermes do pastor, das oraes ou, mesmo, da bondade, candura e tolerncia caridosa e amorosa das duas irms. Entretanto, o jantar preparado e oferecido por Babette mostra que a converso resultado de um processo mais profundo, em que as tenses que caracterizam o existir humano e que opem constantemente a subjetividade do eu s realidades circundantes do mundo so superadas21 por um fazer intencional e, nesse sentido, consciente. Esse ato concreto, simbolicamente representado pelo banquete, resgata a21. (...) toda conscincia se v, constantemente, confrontada por objetos, por um mundo, ao qual reage, com o qual se relaciona emotivamente e que procura conhecer. Isto significa, em outras

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experincia de esvaziamento e destruio do ser (simbolizado na figura de Babette), para integr-lo numa outra dimenso, em que as fronteiras entre o indivduo e o mundo se confundem, em que o tempo, passado-presente-e-futuro, percebido no seu aspecto unitrio. Comeo e fim se igualam, se unem, indicando que a histria termina onde comeou e que o seu comeo o princpio do fim essa a perspectiva da ressurreio. Primeiramente, porque aquilo que parecia representar o processo de busca do indivduo (quando o jovem tenente Lowehelm enviado por seu pai para a regio prxima da aldeia, para ali refletir sobre sua vida e seu destino, e quando Achilles Papin, em busca de paz e tranqilidade, pensa ter encontrado ali sua razo de viver) significa um desvio, um caminho sem volta. Em outras palavras: o processo a partir do qual todos os condicionamentos hereditrios, psicolgicos, familiares, educacionais, aliados s frustraes, ignorncias, sentimenpalavras, que em toda experincia humana um eu se depara com seu mundo. Com cada ato consciente renova-se a ciso: aqui conscincia subjetiva, ali um mundo objetivo. Invariavelmente, o eu se v cercado de coisas estranhas e alheias s suas preocupaes existenciais, insensveis aos seus anseios. O distanciamento entre autoconscincia e as condies em que esta se v lanada resulta num isolamento existencial do eu com experincias opressivas: o medo da vida e um pavor ainda maior da morte; preocupao constante com a autopreservao; terror de um destino indevassvel que a todo momento ameaa destruir os nossos projetos, seno a nossa prpria existncia. REHFELD, W. I. (1988), Tempo e religio. So Paulo, Perspectiva/Edusp, p. 26.

tos de rejeio e de impotncia diante das vrias situaes da vida, que resultariam numa estrutura de conscincia propiciando ao indivduo, em princpio, um domnio de suas possibilidades e limitaes, permitindo-lhe ser totalmente ele mesmo diante da realidade e tornando-o, assim, capaz de uma deciso profunda e radical para as vrias situaes de conflito e tenso a que se v submetido de fato, acabam por conduzi-lo a um caminho cuja marca a irreversibilidade da perdio22. O que era possibilidade de vida e transformao torna-se processo de dependncia e alienao. Os fiis e as irms so to dependentes dos sermes e oraes do pastor quanto o General e Achilles Papin so dependentes do mundo em que escolheram viver. (A mesma dependncia universal que decreta cotidianamente a morte dos indivduos reunindo a todos numa sociedade chamada de consumo. Esse um dos aspectos que a alegoria de A festa de Babette denuncia.)2322. A palavra perdio um termo tradicional e familiar a quase todas as religies e corresponde ao estado da conscincia ou do esprito incapaz de transcender a realidade material objetiva na qual vive. Diz-se das pessoas (das almas) que esto em pecado, que esto no caminho da perdio. Na linguagem popular, trata-se de almas perdidas. 23. Sob o jugo de um todo repressivo, a liberdade pode ser transformada em poderoso instrumento de dominao. O alcance da escolha aberta ao indivduo no fator decisivo para a determinao do grau de liberdade humana, mas o que pode ser escolhido e o que escolhido pelo indivduo. O critrio para a livre escolha jamais pode ser absoluto, mas tampouco inteiramente relati-

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O trajeto de Babette, como foi dito antes, ope-se ao trajeto de todas as demais personagens. Sua sobrevivncia registra, sob vrios aspectos, a tenso fundamental entre a vida-e-a-morte. A morte citada, mencionada e tida como referncia em vrios dilogos das diversas personagens, porm somente Babette defrontou-se de fato com ela. Mais uma vez, registra-se a oposio entre o logos ou o princpio racional da experincia vivida e a experincia propriamente dita, como fonte inesgotvel de uma memria que toma o passado morto como uma relembrana que reinventa a vida. no banquete que, simbolicamente, a morte, como momento universal de absoluta e total solido do homem consigo mesmo, torna-se para Babette uma situao privilegiada da vida, de inteira maturao espiritual, em que a inteligncia, a vontade, a sensibilidade e a liberdade podem, pela primeira vez ser exercidas em sua plena espontaneidade, sem os condicionamentos exteriores e as limitaes inerentes nossa situao-no-mundo.24

Na realizao do banquete, Babette vive e expressa em toda profundidade a converso de sua conscincia,25 em que a ambigidade da condio humana, com suas paixes contraditrias, superada pela ao consciente, fruto que vai ao encontro de um passado. Encerrado o banquete, enquanto os convidados, na sala, cantam um hino religioso acompanhado pelo caf e pelo licor, Babette descansa na cozinha, olhando para o vazio e tomando um (ltimo) copo de vinho. Embora haja a satisfao da tarefa cumprida, fica a impresso de um olhar perdido, que pergunta sobre o amanh j sabendo da resposta. Babette sabe que seu futuro depende do xito do banquete: celebrar (por intermdio da memria25. Apesar de a experincia da converso ser impossvel do ponto de vista exclusivo da subjetividade, em razo principalmente dos condicionamentos exteriores e das determinaes outras a que todo indivduo est submetido, ela se traduz, na maioria das vezes, como um dado da vivncia interior, como uma transcendncia de carter ontolgico experimentada como ato consciente do eu. Rubem Alves, em O enigma da religio, referindo-se experincia da converso, fala da forma total e irrestrita em que a subjetividade se encontra envolvida. Para ele, poderamos denominar a converso metamorfose da subjetividade. Estruturas inteiras caem por terra. Centros emocionais se deslocam. As zonas quentes da personalidade e suas matrizes emocionais deixam de s-lo. E ao mesmo tempo novas emoes passam a se constituir no objeto da paixo infinita do homem, enquanto um novo mundo construdo pela subjetividade. Ser convertido morrer para nascer de novo. Metania: experimentar a dissoluo das estruturas normativas da razo, organizada segundo categorias radicalmente diferentes. ALVES, R. (1979), O enigma da religio. Petrpolis, Vozes, p. 56.

vo. A eleio livre dos senhores no abole os senhores ou os escravos. A livre escolha entre ampla variedade de mercadorias e servios no significa liberdade se esses servios e mercadorias sustm os controles sociais sobre uma vida de labuta e temor, isto , sustm alienao. E a reproduo espontnea, pelo indivduo, de necessidades superimpostas no estabelece autonomia; apenas testemunha a eficcia dos controles. MARCUSE, H. (1969) A ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro, Zahar Editores, p. 28. 24. BOFF, L. (1986), Vida para alm da morte. Petrpolis , Vozes, p. 46.

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contida em seu trabalho), com todos os requintes, o centenrio de nascimento do pastor j falecido e que a experincia do sabor (sensao de sabedoria) conduziria as pessoas a se sentirem felizes e em paz; ao mesmo tempo, festejar, com as lembranas irrompidas num outro tempo e lugar, o nascimento da mulher que durante tanto tempo esteve morta e no sabia. O que define a converso em Babette a profunda crise de sua identidade, pela perda de todas as referncias, e a construo de uma nova pessoa, que moldou um outro tipo de vida: o da interioridade consciente. Crise do grego Krisis, que tambm significa deciso, ruptura, juzo diante de um momento que se apresenta como terminal e que pode constituir-se como passagem, iniciao (renascimento) para uma vida posterior (pstuma).2626. Esses dois aspectos: a crise provocada pelas situaes-limite a que o ser humano cotidianamente submetido e a passagem ou iniciao para uma outra forma de vida, do ponto de vista antropolgico, podem ser relacionados a inmeras possibilidades de representao da morte presente em diferentes culturas. Entretanto, do ponto de vista teolgico, esses dois aspectos so fundamentais para a compreenso da transcendncia que a deciso acima referida impe ao homem como condio para imerso numa outra realidade, que tem como contraponto a eternidade. Nessa perspectiva, a morte a situao-limite por excelncia. Na morte, o homem entra na crise mais decisiva de toda sua vida. Tem que decidirse. At aqui, ele podia protelar, manter-se no claro-escuro das meias medidas. Agora, chegou o termo do processo biolgico. O homem exterior desmorona para deixar emergir cristalina ou negramente o homem interior que foi nascendo. E colocado na situao privilegiada de quem acaba

Simultaneamente, no mesmo evento do banquete est presente o simbolismo de um velrio e de um batismo. Em sua essncia, a representao mais prxima da ressurreio. A morte e a vida, eterna dialtica de unio e separao do homem em relao natureza e da natureza em relao ao homem, podem ser identificadas em A festa de Babette como a promessa de vida que se anuncia no movimento entre a magia e a tcnica: magia produzida pela arte presente em todo o banquete, transformando a realidade em algo extraordinrio (fora do comum, do ordinrio); tcnica, enraizamento nessa realidade, dos atos inaugurais (histricos) que apropriaro a natureza de uma humanidade. Afinal, disso que trata a natureza do ato de cozinhar: preparar e submeter os alimentos, com conhecimento, ao do fogo, ou seja, conferir propriedades humanas a algo inumano. Mais uma vez, o universo alegrico da personagem Babette transcende seu aspecto particular para indicar a dimenso social e coletiva presente em seu simbolismo. As demais personagens so prisioneiras da objetividade, que as mantm no domnio da perdio, do desvio, sem possibilidade de retorno porque se tornaram incapazesde nascer e nascividade o vigor matinal de todas as potncias. Num momento, v-se a si mesmo, o que foi e o que no foi. E vendo-se o homem se autojulga e assume a situao que lhe corresponde. Cada fibra de sua vida transluz; as dobras de sua histria pessoal se tornam transparentes. Ele se tem nas mos como jamais antes. BOFF, L., op. cit., pp. 48 e 49.

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de ver, de sentir e de agir. Essa objetividade corresponde ao mundo da tcnica, como expresso da pura racionalidade progressiva da humanidade, capaz de dissolver qualquer mito sobre a imortalidade, sob a iluso de que eterniza o tempo produzindo artifcios que dominam a morte. O culto e a mistificao das palavras e da figura do pastor indicam o padro de conformidade que a sociedade (tecnolgica), interessada numa vida futura melhor, prope como possibilidade de salvao para o ser humano. Na verdade, qualquer chance de libertao torna-se razo para uma outra nova forma de escravido ou dependncia. No filme, exceo de Babette, no h mudanas ou alteraes justificadas e a crise ou o conflito vividos por qualquer uma dessas personagens no resulta em elementos que lhes permitam transcender a razo, de modo a traduzir-se numa deciso radical. Ao contrrio, a razo cumpre o papel funcional de confirmao de uma determinada viso de mundo. No toa que o General, durante o jantar, afirma que os sermes do pastor so a leitura de cabeceira preferida da Imperatriz. Ou, ento, as menes ao pastor, que voltam seguidamente, no filme, com as mesmas palavras, as mesmas entonaes, as mesmas circunstncias, indicando que sua presena (ideologia) paira como absoluta no cu daqueles indivduos. O mesmo, presente na narrativa flmica, revela-se, ento, no contedo histrico que deserda os indivduos de toda a sua potencialidade criadora

e transformadora, mas que, ao mesmo tempo, o solo a partir do qual a experincia humana se altera radicalmente. Em outras palavras, na contradio inelutvel humana em que o processo de crescimento ou, em termos junguianos, de individuao um caminhar e um educar-se para a morte: o homem definha em sua natureza biolgica e, em ordem inversa, deve objetivar o desenvolvimento, cu e inferno oscilam no purgatrio da alienao, fazendo com que toda a tentativa de construo de uma razo significativa como integrao do indivduo histria, sua histria, seja um esforo inacabado, produzindo como resultado mais runas do que monumentos. Portanto, o olhar que imprime ao filme A festa de Babette a viso de uma outra realidade encontra a velha (a mesma), porm, vista e narrada sob a tica de um novo olhar. O espiritual humano do banquetear-se, que substitui o natural desejo de alimentar-se, no consegue abolir a monotonia do cotidiano e a terrvel repetio da histria, mas faz prevalecer, na atmosfera em que todas as coisas se reconciliam, a vida (e no a morte) em toda sua precariedade.

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Aproximaes benjaminianas Imagem, memria, tradio Massimo Canevacci,27 analisando o universo da cultura visual num segmento muito especfico, que ele chama de comunicao visual reprodutvel e que est presente na expanso de uma modernidade sempre mais universalizante, ambivalente e paradoxal, aponta para uma antropologia da dissoluo, cujo exemplo mais significativo derivadodaquela tcnica da comunicao visual prpria do cinema de massa atravs da qual se passa, se transita, turvando os dois extremos: de um lado, a parte final de um conjunto de seqncias que conclui uma histria parcial e, de outro, o incio de um grupo de imagens que abre caminho a uma nova histria de que nada sabemos.

tambm o prprio conceito de imagem adquire relevncia na compreenso dessas significaes. Essa necessidade apontada por Canevacci ao retomar as imagens dialticas de Walter Benjamin. Nessa aproximao, Canevacci rene duas idias fundamentais na caracterizao de um real sempre contemporneo, de que o cinema o exemplo mais apropriado. A anlise de Benjamin dos produtos da cultura intelectual, como, por exemplo, a fotografia, a pintura, a arquitetura de Haussmann, a literatura de Proust, a poesia de Baudelaire articulados aos estudos deconstelaes microlgicas sobre os costumes, o modo de viver e de agir, tais como o colecionador, as multides, o flaneur, a rua, a moda, as nouveauts, as caricaturas, os panoramas, as passagens,28

A imagem, tal qual est dada na linguagem cinematogrfica, contm o resduo dialtico a partir do qual a desconstruo se faz, tornando possvel uma reconstruo. O reconhecimento do cinema como fetiche e reprodutor da alienao no basta para a decodificao de sua linguagem, preciso reconstruir, no universo prprio em que foi e produzido, o sentido original da obra. Em razo disso, no s o reconhecimento da propriedade da linguagem cinematogrfica se faz necessria, como27. CANEVACCI, Massimo. (1990), Antropologia da comunicao visual. So Paulo, Brasiliense.

permite delinear o conceito das imagens dialticas por intermdio das quais a histria pode ser lida. Essa articulao, apropriada pela linguagem do cinema ao estabelecer correspondncias das mais diferentes ordens (no tempo e no espao), a partir das mais diversificadas perspectivas (literrias, artsticas, teatrais, documentais, jornalsticas, etc.), cristaliza-as em imagens que se revelam simultaneamente como mercadoria e fetiche.2928. O tema da modernidade, apesar de ser parte da discusso, exige um trabalho parte. 29. Massimo Canevacci, em Antropologia da comunicao visual. Op.cit. Se Walter Benjamin tivesse sobrevivido ao desenvolvimento do cinema, teria

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O processo de produo da imagem, que faz a sobrevivncia do cinema (mesmo sem restringir-se a isso e, ao contrrio, procurando transcender esses limites ou, como diz Deleuze, cercando a imagem com o mundo), guarda no mais antigo sentido etimolgico do termo uma relao com imitari (imitao). Tal relao, possvel em razo da prpria idia de cpia, que o cinema preserva como representao analgica,30 traz consigo, na construo das diferentes imagens, a necessidade de circuitos cada vez maiores que unissem uma imagem atual a imagenslembrana, imagens-sonho, imagensmundo.31 Inversamente, na direo dessa necessidade, a procura por um circuito menor,que funciona como limite interior de todos os outros, e que cola a imagem atual a um tipo de duplo imediato, simtrico, consecutivo ou at mesmo simultneo,32se tornado um excelente crtico ou um perspicaz cineasta, uma vez que sua concepo das imagens dialticas, assimilada por M. Canevacci, ajusta-se perfeitamente a qualquer anlise que se faa sobre cinema. Na anlise de M. Canevacci, o conceito eurstico de imagem dialtica usado como: uma constelao objetiva, em que a situao social representa a si mesma; um modo de percepo de fetiches, fantasmagorias e iluses na conscincia individual e coletiva; um modelo de reproduo no interior de uma antropologia da cultura visual em que passado e presente se cruzam. Op. cit., p. 152. 30. BARTHES, R. (1991), O bvio e o obtuso. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, p. 27. 31. DELEUZE, G., op. cit., p. 87. 32. Ibid.

definir o flash-back como uma das possibilidades da correspondncia entre duas ou mais imagens. Ainda segundo Deleuze, essa tendncia, levada s ltimas conseqncias, permitir que se diga que a imagem atual corresponde imagem virtual, como um duplo ou reflexo.33 A imagem tratada dessa forma carregar consigo no s o sentido lgico do fio condutor descritivo (ou narrativa) de um enredo (com uma determinada histria), como tambm ser o reflexo de uma realidade lingstica mais ampla, cuja interpretao permitir resgatar algo que a princpio parece irreconcilivel.34 Tal o sentido possvel de ser captado na voz em off e no flash-back do filme A festa de Babette, uma vez que ele se torna atual na leitura do espectador, ao mesmo tempo que, na atualidade da sua narrativa, o sempre presente traz implcito o passado ao qual o presente referido. Por sua vez, o filme se passa num outro tempo e lugar, logo, o presente muda ou passa rapidamente e, assim, torna-se passado quando ainda no o . A imagem atual, imagem do eterno presente, cristalizada na sua prpria imagem virtual como um pequeno circuito interior que vai construin33. Ibid. 34. Deleuze, mencionando Bergson a partir de Memoire et matire, fala de uma coalescncia entre o objeto real refletindo numa imagem especular e o objeto virtual que, por sua vez e ao mesmo tempo, envolve ou reflete o real. Nesse sentido, h formao de uma imagem bifacial, atual e virtual, p. 88.

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do a unidade narrativa do filme e, ao mesmo tempo, estabelecendo o conjunto com seu respectivo limite interno, torna-se descrio cristalina de duas faces que no se confundem.35 Essa ressonncia, que no se fixa meramente na aparncia, um resduo das cristalizaes objetivas a que se referia W. Benjamin, e, como tal, constitui-se no espectro dialtico que captura e aprisiona a ambigidade do real. Imobilizada na imagem que contm no s a multiplicidade da forma como tambm a gerao do movimento, a realidade humana, lida na sucesso das cenas de uma maneira linear, volatilizase na direo de um olhar passivo e ativo: olhar-espectador e, ao mesmo tempo, olhar-testemunha. emergncia de uma temporalidade captada pela imagem corresponde uma realidade sindromtica, isto , um mundo cuja capitalizao do tempo (time is money) cria os mecanismos e os instrumentos de administrao da eficincia, da qualidade e, at certo ponto, da inventividade de uma idia (de um filme, de um livro, de uma pea teatral, de um quadro, etc.), gerando nos indivduos as mais dife-

rentes sndromes, o que, por sua vez, inviabiliza a ao, abrindo espao para reaes (confundidas, na maioria das vezes, com manifestaes revolucionrias).36 Essa a realidade que a alegoria de A festa de Babette denuncia. Nelson Brissac Peixoto, no artigo O olhar estrangeiro,37 ao apontar a transformao sofrida pela imagem como representao de algo que lhe era exterior, fala da dificuldade de se distinguir o que e o que no real, caindo, ento, na era da produo real. Para ele, no h mais distino entre realidade e artifcio, entre experincia e fico, entre histria e histrias (ficcionais).38 Tudo se transforma num mundo de personagens e cenrios, em que as histrias j foram vividas e os lugares visitados. Somente o olhar estrangeiro capaz de compreender o universo da repetio em que se transformou a cultura contempornea. Segundo Nelson B. Peixoto,o estrangeiro toma tudo como mitologia, como emblema. Reintroduz imaginao e linguagem no que era vazio e mutismo. Para ele, personagens e histrias ainda so capazes de mobilizar. Ele o nico que consegue ver atravs dessa imagerie.3936. No cinema, o dinheiro tempo. Nesse sentido, a mercadoria que ele e que representa deve ser capaz de financiar o tempo (da produo, por exemplo) e de garantir o espao da exibio durante algum tempo... 37. NOVAES, A. et al. (1988), O olhar. So Paulo, Companhia das Letras, pp. 361-365. 38. Ibid., p. 362. 39. Ibid., p. 363.

35. Com efeito, no virtual que no se torne atual em relao ao atual, com este se tornando virtual sob esta mesma relao: so um avesso e um direito perfeitamente reversveis. So imagens mtuas, como diz Bachelard, nas quais se efetua uma troca. A indiscernibilidade do real e do imaginrio, ou do presente e do passado, do atual e do virtual, no se produz portanto, de modo algum, na cabea ou no esprito mas o carter objetivo de certas imagens existentes, duplas por natureza. Ibid., p. 89.

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Essa a viso anunciada por Babette com cada gesto, que preenche de significados o sentido das imagens e que remete identidade e ao lugar, num esforo de pertena e integrao capazes de romper o ciclo repetitivo das horas. A unidade de um filme advm da justaposio de peas e fragmentos numa seqncia criadora,40 da mesma forma que a memria, segundo a concepo de Bergson,41 corresponderia a um armazenamento cumulativo, que conteria a totalidade da experincia adquirida. A memria possibilita e conduz uma narrativa at certo ponto da histria. Nesse sentido, conserva o passado e atua no presente, oscilando entre os hbitos assimilados, incorporados, apreendidos pela repetio, e as lembranas, resultado de experincias singulares, impossveis de serem repetidas, porm extremamente evocativas em funo do carter nico e irrepetvel que conservam e que vem tona no momento de sua atualizao. Essas duas memrias (memrias-hbito e imagens-lembranas) se sobrepem no filme A festa de Babette. A homogeneidade dos hbitos das irms e dos velhos fiis, partes do processo de adestramento mecnico s prticas de sobrevivncia na pequena aldeia, em oposio imagem-lembrana configurada na presena de40. A esse propsito, vide MARTIN, M. (1990), A linguagem cinematogrfica. So Paulo, Brasiliense. 41. Henri Bergson, em Matire et memoire, citado por DELEUZE, G., op. cit., cap. 1 a 6.

Babette e no modo como essa convivncia interferiu e modificou suas vidas, simbolicamente representada na ceia que celebra uma data, ao mesmo tempo que inaugura um novo tempo na vida de todos eles.42 No filme, o condutor da narrativa o flash-back, aliado voz em off, portanto, o passado tornado presente que contm e explica o futuro atualizado pelo olhar do espectador. Como diz Deleuze,em vez de uma memria constituda, como funo do passado que relata uma narrativa, assistimos ao nascimento da memria, como funo do futuro que retm o que se passa para dele fazer o objeto por vir da outra memria. (...) A memria nunca poderia evocar e contar o passado, se no tivesse se constitudo por vir. E por isso mesmo que ela conduta: no presente que se faz uma memria, para ela servir no futuro, quando o presente for passado.43

A imagem e a memria so, no filme, o fundamento da experincia histrica de Babette, isto , os dois elementos interagem como substrato da temporalidade que torna possvel a leitura e a interpretao do presente, de42. BOSI, Eclea. (1979), Lembranas de velhos. So Paulo, T. A. Queiroz. Ao mencionar essas duas memrias, referindo-se ao esquema bergsoniano, a autora relaciona-as, por um lado, ao comportamento cotidiano (memrias-hbito) e, por outro, ao sonho e devaneio, em que as lembranas singulares fluem, constituindo-se autnticas ressurreies do passado (p. 11). 43. DELEUZE, G., op. cit., p. 68.

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tal forma que a simbologia, em certo sentido universal, do banquete (ou da ceia), ao ser reconstruda pelo conhecimento anterior de Babette, torna o passado algo vivo. Aqui, possvel mais uma aproximao com o pensamento de W. Benjamin. Jeanne-Marie Gagnebin, ao comentar o mtodo do historiador materialista segundo W. Benjamin e sua relao com a esttica proustiana, afirma:A mesma preocupao de salvar o passado no presente graas percepo de uma semelhana que os transforma os dois: transforma o passado porque este assume uma forma nova que poderia ter desaparecido no esquecimento; transforma o presente porque este se revela como sendo a realizao possvel dessa promessa anterior, que poderia ter-se perdido para sempre, que ainda pode se perder se no a descobrirmos, inscritas na linha do atual.44

W. Benjamin faz uma distino entre o tempo controlado pelo relgio (tempo homogneo e vazio) e o tempo do calendrio. O tempo do relgio corresponde ao processo de acumulao dos acontecimentos como algo que vai se acomodando dentro de um recipiente.45O tempo do calendrio, ao contrrio, no se desenrola mecanicamente, pontua a existncia com dias de recordao, momentos que capturam o tempo em pontos de concentrao. Nestes dias as coisas relembradas subitamente se tornam atuais, retornam existncia nos momentos de recordao. Este o carter diferencial do tempo histrico; no a badalada regular do relgio que nivela todas as ocorrncias em um contnuo indiferente, mas a sbita pausa do colecionador; no o frio avano do processo infinito, mas sua transgresso.46

A festa de Babette revela, num duplo sentido, esse aspecto. Em primeiro lugar, como objeto a servio de uma esttica visual e sonora, que tem na sua linguagem um fluxo contnuo entre o passado e o futuro; e, em segundo lugar, pela forma e disposio de um contedo em que a personagem central (Babette) luta pela sobrevivncia procurando salvar sua identidade do esquecimento, inscrevendo-se, assim, no presente (da mesma forma que um filme).

Babette, ao resgatar do tempo o passado significativo perdido nas lembranas (a figura do General, sua relao com as irms e o pastor, o jantar em sua homenagem no Caf Anglais; por sua vez, a prpria lembrana de Achilles Papin e sua amizade com Babette numa poca em que ela era une chef de cuisine), representa o prprio colecionador, que, interferindo no continuum dos dias, das horas, do cotidiano homogneo e sempre igual da aldeia, produz, por meio do banquete, um momento de interrupo.45. MATOS, O. C. F. (1989), Os arcanos do inteiramente outro, So Paulo, Brasiliense. 46. Ibid., p. 31.

44. GAGNEBIN, J. -M., (1987), Introduo a Walter Benjamin Obras escolhidas, magia e tcnica, arte e poltica. 3a. ed., So Paulo, Brasiliense, p. 16.

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Esse momento de pausa, Benjamin o caracteriza como Jetztzeit, elemento primordial de uma nova interpretao do passado, da tradio, como construo.47

E aqui o sentido da tradio se revitaliza, deixa de representar algo esttico e cristalizado (desprovido e esvaziado de qualquer sentido histrico) presente nas prticas rotineiras, simbolizado nas oraes, rezas e cultos celebrados pelas irms e os fiis, universo de uma elite dominante ao qual Babette vem se agregar, para se transformar em atitude revolucionria pelo choque que o banquete provoca. Tradio que se celebra com o simples jantar que as trs irms imaginavam, seria mera repetio, mas que, idealizada por Babette, construo histrica. Nesse sentido, o banquete de Babette redime no s seu prprio destino, como os de todos os demais. E, segundo Benjamin, se a histria redeno do destino, porque a histria constitui-se de memria, isto , de experincia. 48 A figura de Babette se identifica com a figura do historiador, que repete o passado em sua singularidade, recolhendo o excedente de significao de que portador, melhor dizendo, o nico e irrepetvel49. Toda a preparao e execuo do banquete um ritual de rememorao, pelo qual

a memria, a lembrana acalentam a dor, o sofrimento e a morte no sentido de sua redeno. No se age de forma a recalcar o passado, a fim de arquivlo e produzir a apologia acrtica do Presente.

A histria que se resgata no a de glrias (do pastor) e conquistas (do General), mas acrnica da destruio e das coisas corrodas pelo tempo. A histria massacre, a memria sua redeno, luta contra a morte, como relembrana e transcendncia.50

O que Babette experimenta a mesma sensao de quem vive na grande metrpole, o sentimento de estranheza de quem luta pela sobrevivncia num mundo que se assemelha precariedade e ao desamparo. Tal como a vida do proletariado na grande cidade. E tal como o proletariado, Babette tambm est margem do mundo, como mulher e como indivduo. Nesse universo, a atuao herica de Babette implica a ausncia dos sentidos das demais pessoas, petrificadas que esto na rigidez do velho, imagem mimtica da morte. O abandono racional das sensaes que permitiria aos velhos fiis apreciar o banquete corresponderia perda da dimenso do olhar,51 o que significa a prpria dissoluo do sujeito.

47. Ibid., p. 32. 48. Ibid., p. 47. 49. Ibid.

50. Ibid., pp. 57 e 58. 51. Ibid., p. 73.

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A crtica benjaminiana se faz em nome da individualidade que agoniza antes da realizao de seus valores. O esquecimento do indivduo, sua integrao na vida da grande metrpole e amnsia social: o passado arquivado no sentido da perda simultaneamente da memria e do pensamento crtico.52

A linguagem cinematogrfica, carregando consigo, sob vrios aspectos, a impresso desse olhar, aponta para uma dissoluo em que o tempo pleno das imagens exclui o tempo do olhar, pretendendo, quem sabe, com os vrios recursos disponveis e ainda por vir, provocar uma interrupo no continuum do tempo e viajar no sentido contrrio ao da morte.

Recebido em 26/4/2002 Aprovado em 30/6/2002

Maristela Guimares Andr, filsofa e professora do Departamento de Teologia da PUC-SP. E-mail: [email protected]

52. Ibid., p. 74.

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