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COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE - CMF CORRESPONDÊNCIA COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE CASA DE NHOZINHO Rua Portugal, 185 – Praia Grande CEP 65.010-480 – São Luís – Maranhão Fone: : (0xx98) 3218-9951 As opiniões publicadas em artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, não comprometendo a CMF. BOLETIM DA CMF Nº 40 DIRETORIA Presidente: Maria Michol P. de Carvalho Vice-presidente: Roza Maria dos Santos Secretária: Nizeth Aranha Medeiros Tesoureira: Lenir Pereira dos S. Oliveira CONSELHO EDITORIAL: Carlos Orlando de Lima Lenir Pereira dos S. Oliveira Maria Michol Pinho de Carvalho Mundicarmo Maria Rocha Ferretti Roza Maria dos Santos Sérgio Figueiredo Ferretti Zelinda de Castro de Lima SUMÁRIO EDIÇÃO: Maria Michol P. de Carvalho Mundicarmo M. R. Ferretti Roza Maria dos Santos REVISÃO DE TEXTO: Antonio Regino de Carvalho Neto VERSÃO PARA A INTERNET: www. cmfolclore.u fma.br ISSN: 1516-1781 JUNHO 2008 CNPJ 00.140.658/0001-07 Editorial ............................................................................................................................................................... 2 Alegrias Juninas .................................................................................................................................................... 2 Jeovah França Lugares sagrados e encantarias maranhenses ........................................................................................................................ 3 Mundicarmo Ferretti A Festa de São Gonçalo no Maranhão .................................................................................................................................. 5 Ester Marques O Porto Camundá ................................................................................................................................................................... 8 João Batista Machado Grupos de Bumba-meu-boi do Maranhão .............................................................................................................. 9 CCPDVF/SECMA Brincadeiras de São João: esquecimentos e desaparecimentos em meio aos processos socioculturais no Maranhão .................................................................................................................................................. 13 Antonio Evaldo Almeida Barros Uniões místico-conjugais no Tambor de Mina ................................................................................................................... 15 Viviane de Oliveira Barbosa Resumos e resenhas ................................................................................................................................................................ 17 Sergio Ferretti (org.) Janela do Tempo: A morte do bumba-meu-boi ................................................................................................................... 18 Nonnato Masson Notícias ................................................................................................................................................................................... 18 Roza dos Santos Perfil Popular: Mundica Estrela .......................................................................................................................... 20 Mundicarmo Ferretti

A Festa de São Gonçalo no Maranhão

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Page 1: A Festa de São Gonçalo no Maranhão

COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE - CMF

CORRESPONDÊNCIACOMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE

CASA DE NHOZINHO

Rua Portugal, 185 – Praia Grande CEP 65.010-480 – São Luís – Maranhão

Fone: : (0xx98) 3218-9951

As opiniões publicadas em artigosassinados são de inteira

responsabilidade de seus autores,não comprometendo a CMF.

BOLETIM DA CMF Nº 40

DIRETORIA

Presidente: Maria Michol P. de Carvalho

Vice-presidente: Roza Maria dos Santos

Secretária: Nizeth Aranha Medeiros

Tesoureira: Lenir Pereira dos S. Oliveira

CONSELHO EDITORIAL:Carlos Orlando de LimaLenir Pereira dos S. OliveiraMaria Michol Pinho de CarvalhoMundicarmo Maria Rocha FerrettiRoza Maria dos SantosSérgio Figueiredo FerrettiZelinda de Castro de Lima

SU

RIO

EDIÇÃO:Maria Michol P. de CarvalhoMundicarmo M. R. FerrettiRoza Maria dos Santos

REVISÃO DE TEXTO:Antonio Regino de Carvalho Neto

VERSÃO PARA A INTERNET:www.cmfolclore.ufma.br

ISSN: 1516-1781JUNHO 2008

CNPJ 00.140.658/0001-07

Editorial ............................................................................................................................................................... 2

Alegrias Juninas .................................................................................................................................................... 2Jeovah França

Lugares sagrados e encantarias maranhenses ........................................................................................................................ 3Mundicarmo Ferretti

A Festa de São Gonçalo no Maranhão .................................................................................................................................. 5Ester Marques

O Porto Camundá ................................................................................................................................................................... 8João Batista Machado

Grupos de Bumba-meu-boi do Maranhão .............................................................................................................. 9CCPDVF/SECMA

Brincadeiras de São João: esquecimentos e desaparecimentos em meio aos processossocioculturais no Maranhão .................................................................................................................................................. 13Antonio Evaldo Almeida Barros

Uniões místico-conjugais no Tambor de Mina ................................................................................................................... 15Viviane de Oliveira Barbosa

Resumos e resenhas ................................................................................................................................................................ 17Sergio Ferretti (org.)

Janela do Tempo: A morte do bumba-meu-boi ................................................................................................................... 18Nonnato Masson

Notícias ................................................................................................................................................................................... 18Roza dos Santos

Perfil Popular: Mundica Estrela .......................................................................................................................... 20Mundicarmo Ferretti

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Boletim 40 / junho 200822

Editorial

O número 40 do Boletim da Comissão Maranhense de Fol-clore gira em torno principalmente do festejo de São João,

que tem no Bumba-meu-boi o seu “carro-chefe”, da devoçãoaos santos e da crença do maranhense em encantados.

Em relação ao primeiro, Antonio Evaldo fornece infor-mações sobre o São João maranhense no passado; NonnatoMasson discorre sobre a morte do Bumba-meu-boi; e, aten-dendo a pedido de nossos leitores, apresentamos uma rela-ção de grupos de Bumba-boi cadastrados em 2003 pelo Cen-tro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho. Apesar dessarelação estar longe de ser exaustiva e não contemplar todosos municípios do estado, mostra a dimensão da brincadeirade Bumba-boi no Maranhão, a proliferação dos Bois de Or-questra (114), a ênfase menor dos Bois do sotaque Costa deMão, típico de Cururupu, e traz ao conhecimento do públi-co mais amplo, os Bois de Encantados, organizados em vári-os terreiros de religião afro-brasileira do estado, em homena-gem a entidades espirituais ali recebidas.

Ester Marques trata nesse número do Boletim CMF so-bre a Festa de São Gonçalo, santo casamenteiro que disputacom Santo Antonio, festejado no dia 13 de junho, as aten-ções das moças solteiras e das viúvas.

O tema encantaria maranhense é abordado nos artigosde Mundicarmo Ferretti, de Viviane Barbosa e do codoenseJoão Machado. Esses trabalhos tratam sobre produções doimaginário maranhense que integram: crença nos encanta-dos, memória de fatos ocorridos, relatos de pescadores e deexperiências náuticas narradas por maranhenses.

Esse número do Boletim CMF apresenta na sessão PerfilPopular dona Mundica Estrela, mãe do terreiro de mina co-nhecido por Terreiro do Justino, vodunsi de Averequete, enti-dade africana associada a São Benedito, e, como ele, consi-derado no Maranhão apreciador de Tambor de Crioula, brin-cadeira muito freqüente nos arraiais de São João. O Terreirodo Justino, um dos mais antigos de São Luís, foi aberto nofinal do século XIX, por vodunsi da Casa de Nagô – terreirode mina fundado por africanas.

Resumos e Resenhas divulga três monografias de alunosde Comunicação Social da UFMA e uma do curso de Histó-ria da UEMA sobre cultura popular e sua representação namídia, ou sobre discriminação religiosa, problema que ame-aça a liberdade de crença e a diversidade cultural.

Em Notícias, Roza dos Santos, presidente da CMF emexercício, noticia com orgulho a posse de Carlos Lima naAcademia Maranhense de Letras e a aprovação de MicholCarvalho para doutorado na Universidade de Aveiro (PT); edestaca uma justa homenagem da Biblioteca do Centro deCultura Popular/SECMA a seu patrono - Roldão Lima. Foitambém divulgado o lançamento de CD do Tambor de Cri-oula de Mestre Felipe; anunciado o pedido de registro doBumba-meu-boi do Maranhão, o início dos trabalhos para aelaboração do Plano de Salvaguarda do Tambor de Crioulae a conclusão do restauro do prédio da Casa das Minas peloIPHAN. Foi ainda noticiado o encontro dos cortejos do Di-vino da Casa das Minas e da Casa de Nagô, sua co-irmã,ocorrido no dia 11 de maio, fato que não se realizava há maisde duas décadas.

Desejando a todos um animado São João, esperamos en-contrá-los novamente em agosto, por ocasião das comemora-ções do dia do Folclore.

Em meio a um ano promissor para a cultura popularmaranhense, diante de alvissareiras propostas depolítica para diversos campos da gestão cultural, a

Secretaria da Cultura do Maranhão regozija-se com todos,através de sua Superintendência de Cultura Popular, quese têm dedicado a fazer efetivas essas mesmas iniciativas depolíticas publicas para a cultura, contribuindo aqui e alicom sua parcela de trabalho e luta, com seus estudos epesquisas, com sua arte, seja no cantar, seja no dançar,seja no bordar, sempre fazendo brilhar a chama da mara-nhensidade.

Esta Superintendência buscará ainda buscar vários pro-jetos até ao final deste ano: Projeto Sabença, Tríduo Joa-nesco, Mostra Refestança de cinema, Historia da Fotogra-fia, Memória de velhos, Ô de Casa, Revista de Ciência eCultura, entre outros, além da Cantata Natalina.

A verdade é que há muito por fazer para ter-se o devidoreconhecimento da diversidade cultural maranhense, aquino Estado e no país. Tem-se, normalmente, uma visão seg-mentada da cultura ou, quando muito, um olhar regional,pois o comum é ater-se a vista apenas ao local, visto comoa referencia exclusiva do mundo. É ver-se de onde se fala, éo ponto-de-vista, é o que chamam de segmentação, que oscientistas chamam de clivagem; outros, de bairrismo ou,ainda, de etnocentrismo.

Mas uma necessidade premente é que precisamos teruma visão de conjunto dessa diversidade, para melhor com-preende-la e promove-la, no todo e no que tem de especial,no que cabe e merece promoção cultural.

Não podemos apequenar-nos diante dessa grandeza edessa riqueza, ainda que saibamos das dificuldades materi-ais por que passa a grande massa populacional pobre des-te nosso Maranhão, aviltada por políticos e políticas nefas-tas ao longo de décadas, culminando em gigantesca dívidasocial: aqui faltam políticas publicas para melhorar a qua-lidade de vida, soerguer a auto-estima dessa população,repor o brio e a dignidade desse povo talentoso, que res-ponde com criatividade a tamanhas adversidades e mes-quinharias da gestão política e pública de outrora nestepaís.

Saibamos, pois, ser grandes, como grande é o São Joãodo Maranhão: rico, variegado, brilhante, pujante.

O poeta maiobeiro canta: mas como existe tudo isso, meupovo, eu vou guarnicer meu batalhão de novo! Cantemoscom ele e com o povo, que é hora de guarnicer! Feliz SãoJoão a todos!

ALEGRIAS JUNINAS

1 Superintendnte de Cultura Popular; membro da Comissão Maranhense deFolclore.

Jeovah França1

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3Boletim 40 / junho 2008 3

As pessoas sempre se apegam aoslugares onde nasceram e vive-ram e, quando precisam se afas-

tar deles, costumam retratá-los de for-ma fantasiosa, como se fossem os me-lhores lugares do mundo. Na terra natalestão geralmente os seus parentes mor-tos, os lugares onde ocorreram milagrescontados por seus antepassados (apariçãoda imagem de santo ou de um santo), lo-cais de culto a “almas milagrosas” ou “al-mas benditas” (de pessoas que viveramali, a quem se recorre em momentos deaflição) e se encontram pedras, árvores,lagos, ilhas etc. que atestam a veracida-de de seus mitos. As pessoas, mesmoquando saem de sua terra natal, costu-mam voltar a ela periodicamente para re-ver parentes, amigos e para visitar àque-les lugares sagrados, como ocorre freqüen-temente no Brasil em torno do dia doisde novembro, data consagrada aos mor-tos. A fama de alguns daqueles lugaressagrados às vezes extrapola as fronteiraslocais, estaduais, nacionais e, até mesmo,continentais. É por essa razão que tantosvão a Meca, a Jerusalém, a Lourdes e, noBrasil, a Aparecida (SP), Juazeiro (CE),São José de Ribamar (MA).

A transferência de populações de umterritório há muito tempo ocupado a ou-tro, costuma acarretar a elas não apenasperdas econômicas e materiais e desar-ticular suas visões de mundo e organiza-ções sociais. Pode também abalar pro-fundamente suas identidades, causarperdas de tradições culturais e criar paraelas vários problemas religiosos. MuriloSantos, no vídeo Terra de quilombo – umadívida histórica (SANTOS, 2004), dáexemplo de um desses problemas ocor-rido com as comunidades negras rema-nescentes de quilombos de Alcântara,no Maranhão, transferidas da área hojeocupada pela Base Espacial para agro-vilas construídas para abrigá-las. Comoaquela população poderia levar para oseu novo local (as agrovilas) o cemitério,onde estão os restos mortais de seus an-tepassados, e transportar para lá encan-tarias tão preciosas para ela? Será quena nova localidade a população removi-da poderia sentir a proteção espiritualque sentia no seu local de origem? Até

Mundicarmo Ferretti2

1 Retoma trabalho apresentado em 7/2004, no Simpósio: Territórios étnicos e conflitos na Base de Lançamento de Alcântara, coordenado pela professora MaristelaAndrade (UFMA) - 56ª Reunião Anual da SBPC-Regional. A autora agradece as informações fornecidas pela antropóloga Ivana César e pelo pai-de-santo João Gualberto(Vila Nova – São Luís-MA).

2 Doutora em Antropologia; professora colaboradora dos Programas de Pós-graduação em Políticas Publicas e em Ciências Sociais (UFMA); Membro da ComissãoMaranhense de Folclore.

que ponto a população transferida ad-mite que os seres espirituais ligados àslocalidades que ela foi obrigada a dei-xar irão proteger os seus novos ocupan-tes (o pessoal da Base de Lançamento)?Será que para aquela população os en-cantados vão se transformar em “assom-brações” e passar a perturbar os que che-garam ali sem ter ligação com eles e sema obtenção de sua licença?

Santuários e encantarias maranhenses

Quando se fala em lugares sagradosdo Maranhão pensa-se logo na cidade deSão José do Ribamar, que atrai todos osanos, no mês de setembro, grande núme-ro de devotos daquele santo e onde sãoencontrados na praia muitos barquinhostrazendo bilhetes, retratos e ex-votos depessoas que receberam milagres dele. Acidade de Ribamar é cheia de mistérios.Conta-se que a igreja construída para SãoJosé caiu várias vezes e só ficou de péquando foi edificada na posição deseja-da por ele... Mas existem no estado doMaranhão outros lugares de atração reli-giosa. Em Vagem-Grande, realiza-se umagrande romaria de devotos de São Rai-mundo e de Raimundo Nonato - vaquei-ro santificado pelo povo, que viveu emorreu tragicamente no povoado de Mu-lundus -, daí porque a romaria é partici-pada por grande número de vaqueiros daregião. Em Rosário, durante muitos anos,o Sr. José de Paula promoveu uma gran-de festa em pagamento de promessa auma “alma milagrosa” - de pessoa quemorreu ali numa epidemia de peste. Afesta daquela alma milagrosa terminavacom um Tambor de Crioula dançado porgrupos locais, da capital e de municípiosvizinhos, que se revezavam durante a noi-te toda. E, em Codó, na estrada que vaipara Santo Antônio dos Pretos, existe osantuário de Pardinha - garoto pobre edeficiente que morreu atropelado -, ondemuitos depositam ex-votos e garrafasd´água em pagamento de promessa.

Mas os lugares sagrados do Maranhãonão são apenas aqueles onde aparece-ram imagens de santos ou onde desen-carnou uma alma milagrosa. Várias lo-calidades são conhecidas como moradade encantados - seres mitológicos que,

vez por outra, aparecem a alguém emsonho ou em vigília e que baixam nosterreiros de mina, terecô, umbanda e nossalões de curadores e pajés. Esses encan-tados, recebidos em transe durante ritu-ais, são também invocados pela popula-ção em momentos de aflição. Entre osencantados que comandam o Maranhão,citados no livro do pai-de-santo Jorge Ita-ci (OLIVEIRA, 1989) podem ser citados:

1) Dom Luís, que comanda a ilha de SãoLuís, tem sua corte encantada na Baiade São Marco e domina da Pontad´Areia até a Ilha do Medo;

2) Rei Sebastião cuja encantaria fica naPraia dos Lençóis e que domina do Bo-queirão ao Itaqui;

3) Dom José Floriano, que domina o Bo-queirão e a “cerca” de Alcântara3 ;

4) Rei da Bandeira (João da Mata ou Reida Boa Esperança), Princesa Doralice,encantados na pedra de Itacolomi;

5) Dom João Soeira (Rei de Minas ou Rei doJuncal), que domina a praia do Calhau;

6) Dom Pedro Angassu, que comanda asmatas do Codó.

Nas letras de musicas cantadas nosterreiros maranhenses existem muitas re-ferências a eles e suas encantarias e tam-bém a outros encantados e encantariasdo Maranhão. Se pegarmos um mapa doestado e direcionarmos o nosso olhar paraa região litorânea que vai da ilha de SãoLuís em direção ao Pará, encontramosvárias das localidades referidas nas le-tras daquelas músicas como locais de en-cantarias. Na ilha de São Luís: as praiasdo Itaqui, de Olho d´Água, Pontad´Areia, São José de Ribamar, apresenta-das naquelas músicas como moradas daPrincesa Ína, da Rã Preta, da Meninada Ponta d´Areia e de outros encanta-dos. Depois da ilha de São Luís, no meiodo mar, o tão temido Boqueirão, ondetem ocorrido muitos naufrágios e ondese acredita que muitos se encantaram,e a pedra de Itacolomi, que pertence aJoão da Mata, o Rei da Bandeira. Sãotambém conhecidos como lugares de en-cantarias: a Praia dos Lençóis, de Rei Se-bastião, e as pontas de Mangunça e deCaçacueira, moradas de Mãe d´Água.

Não se deve pensar que, para o povomaranhense que conhece encantado, só

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CONTINUAÇÃO

existe encantaria no litoral ou na águasalgada. Uma das encantarias maranhen-ses mais conhecidas é a da mata de Codó,no interior de estado, onde reina DomPedro Angasso e Rainha Rosa e ondeLégua Boji Boa comanda uma grandelinha de caboclo. Fala-se também queonde tem mata tem Curupira e váriosencantados que assumiram formas deanimais: calangos, lagartixas, jacarés, ma-cacos, borboletas, onça e outros. E, tan-to na região litorânea quanto no interi-or, existem rios, lagos, poços e nascentesconhecidos como moradas de Mãesd´Água e de encantados que já aparece-ram a alguém como cobras, peixes, bo-tos e outros animais.

Os locais de encantaria são descritospelos médiuns como lugares de muitaenergia, de muito poder, de uma forçainexplicável ou como lugares de muitomistério, de muita “mironga”, de muitosegredo. Afirma-se que nos principaispassam muitas correntes espirituais. Emvários deles existem encontros de águas(do mar com água doce), de rios e matas,e em muitos deles existem pedreiras. Oslugares mais isolados, intocados, virgens,concentram mais força. É por isso que seafirma que o turismo e o afluxo de pesso-as para aqueles locais pode ser prejudici-al. Fala-se que em Alcântara há uma con-centração muito grande de forças vindasda África, pois recebeu grande númerode escravos, e de forças de lá mesmo.

Ao contrário do que ocorre com os lo-cais de santos e almas milagrosas, a apro-ximação de encantarias só é permitida apoucas pessoas, as que recebem encan-tados de lá e foram autorizados por eles.E quem se aproxima de lugares encan-tados (nas águas ou nas matas) para fa-zer uma oferenda ou buscar algo solici-tado pelos guias espirituais (como pedra,areia etc. para assentar um terreiro etc.),costuma sair de lá sem olhar para trás,pois fala-se que muitos dos que viramencantados ficaram doentes ou morre-ram logo depois. Adverte-se também queintromissões, curiosidades e profanaçõesde encantarias são severamente punidas,pois quem não pertence às suas linhas érejeitado pelos donos do lugar. Quem nãotem vidência não sabe que às vezes umaduna esconde um palácio e pode quererpisar ou construir uma casa em cima daencantaria, da casa dos donos do lugar.Quem vai a um lugar de encantaria é

3 São também citados entre os encantados que dominam a região de Alcântara: Barão de Guaré, das cercanias de Alcântara até o Boqueirão (ANDRADE, 2002); Dom Manoel; JoséRaimundo (camaroeiro) e Menino Louro. Fala-se também bastante em Rei Leão, encantado do Boqueirão, e das ligações das ilhas do Caranguejo e do Medo com o Rei Sebastião.

4 Doutrina do Caboclo Pedra Preta – Francelino de Xapanã (In: PRANDI, 2001, p.323).

ANDRADE, Joel Carlos de Sousa. Os Fi-lhos da Lua: poéticas sebastianistas na Ilhados Lençóis-MA. Dissertação de Mestra-do: Fortaleza: UFCE - PPG em HistóriaSocial. Nov. 2002.ARAÚJO, Mundinha. Breve memória dascomunidades de Alcântara. São Luís: SIO-GE, 1990.BRAGA, Ana Socorro. Romaria de São Ra-imundo de Mulundus. P.201-204. NU-NES, Izaurina de Azevedo (org.). Olhar, me-mória e reflexões sobre a gente do Maranhão.São Luís: CMF, 2003.FERRETTI, Mundicarmo. Desceu naguma: o caboclo do Tambor de Mina emum terreiro de São Luís. 2. ed. São Luís:EDUFMA, 2000.———. Encantaria de “Barba Soeira”: Codó,capital da magia negra?. São Paulo: Sicilia-no, 2001.FERRETTI, Sergio. Festa da alma milagro-sa, simbolismo de um ritual de aflição. Re-vista Ciências Sociais e Religião, n. 6, 2004.LIMA, Zelinda. Romaria a São José de Ri-bamar. Boletim da Comissão Maranhensede Folclore, n.20, ago. 2001, p18.

porque tem um pedido de proteção, desaúde, tem um descarrego, uma firmezaa fazer ou uma promessa a pagar.

As encantarias são apresentadas porpais-de-santo maranhenses como locaisde reabastecimento de forças, que àsvezes estão definhando por causa de “de-mandas” ou que precisam ser armaze-nadas, para que se possam enfrentar asdificuldades que surgem durante o ano.É por isso que procuram fazer ali lava-gens de cabeça ou de contas. Explicamque, se uma área daquelas for cercadaou interditada por alguém, há um gran-de prejuízo para a população e granderisco de ocorrerem ali muitas mortes,como ocorreu no porto do Itaqui e naBase de Lançamento de Alcântara. De-pois do funcionamento do porto, comonão se podia mais entrar livremente naárea, os médiuns tiveram que arranjaroutros locais para fazer suas obrigações,como deve estar acontecendo em Alcân-tara. Em São Luís, terreiros que depen-dem de força da pedra de Itacolomi fa-zem sua obrigação em uma gruta exis-tente na Ilha, que fica na direção da-quela pedra...

Apesar de nem todos acreditarem ecultuarem santos e encantados, ninguém

tem o direito de, em nome do progresso,da modernidade ou de seja lá do quefor, impedir um povo ou alguém de acre-ditar neles e de cultuá-los. A identidadede um povo é assentada em suas tradi-ções e a religião ocupa um lugar especi-al nessas tradições.

A transferência de populações, quan-do precisa ser realizada, deve ser proce-dida com cautela, pois pode acarretargrandes perdas culturais e desencadearuma crise de identidade e visão de mun-do. Uma forma de compensação dasperdas ocorridas com a transferência éa integração de divindades locais ao pan-teão das populações transferidas. Háquem explique a introdução das entida-des espirituais caboclas (dos ´donos daterra´) nos cultos afro-brasileiros comodecorrente desse processo, daí porque asentidades caboclas, quando não são re-presentadas como índios brasileiros, temalguma ligação mítica com populaçõesindígenas que entraram em contato comos africanos trazidos para o Brasil comoescravos.

Minha mãe é brasileira,meu pai imperador (bis)Eu sou do Brasil,brasileiro eu sou. 4

MESQUITA, Ilma Martins de. O festejode São Raimundo Nonato dos Mulundusem Vargem-Grande-MA. São Luís: UEMA.Monografia de conclusão de curso de Li-cenciatura em História. 1997MORAES, Jomar. O rei touro e outras len-das maranhenses. São Luís: SIOGE, 1986.OLIVEIRA, Jorge Itaci. Orixás e Vodunsnos terreiros de Mina. São Luís: VCR,1989.PEREIRA, Madian de Jesus Frazão. O ima-ginário fantástico da Ilha dos Lençóis: umestudo sobre a construção da identidadeAlbina numa ilha maranhense. Belém. Dis-sertação de Mestrado em Antropologia/UFPA, 2000. (inédita).PRANDI, Reginaldo (org.). Encantaria Bra-sileira: o livro dos Mestres, Caboclos e En-cantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.ROCHA, Raimundo. Romaria das carro-ças a Ribamar. Boletim da Comissão Mara-nhense de Folclore, n.27, dez. 2003, p14.

VídeoSANTOS, Murilo. Terras de Quilombo –uma dívida histórica. 2004. Documentário.

REFERÊNCIAS E BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA

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“Nas horas de Deus AmémNas horas de Deus SeráGlorioso São GonçaloSuas danças vão começarDei licença São GonçaloLicença me queira darEu mais a minha parelhaSua jornada vamos começar”

APRESENTAPRESENTAPRESENTAPRESENTAPRESENTAÇÃOAÇÃOAÇÃOAÇÃOAÇÃO

Ainda hoje, a Festa de São Gonçalono Maranhão é uma festa votiva ruralque existe para o pagamento de umapromessa particular, sem a interferênciada autoridade eclesiástica ou de qual-quer dos seus dogmas, funcionando comoparte do que se denomina no Brasil decatolicismo popular6 . O ritual que legi-tima a festa transita entre o sagrado e oprofano mantendo, ao mesmo tempo,uma matriz mítica, lendária que se con-solidou através do tempo e ajudou a po-pularizar o Santo no país, e uma matrizutilitária e doméstica que permitiu asrelaborações processionais que marcama dinâmica da festa (tempo de duração,custos, participação masculina ou femi-nina, natureza da festa, roupas, instru-mentos, adereços, personagens, comidase bebidas).

Estas duas matrizes compõem o uni-verso simbólico da festa, que pode serrealizada em qualquer época do ano,sem a definição de um calendário fixoanual, apenas dependendo da capacida-de financeira do promesseiro ou tambémda conjugação desta festa com as deoutros Santos tão populares quanto eleno Maranhão como São Benedito, SãoSebastião, Santo Antonio, São Francis-co e Nossa Senhora do Rosário. A conju-gação das duas matrizes dá o tom dafesta que se expressa de modo mais ou

A Festa de São Gonçalo no MaranhãoEsther Marques5

menos faustosa; mais ou menos lúdica;mais ou menos dramática; mais ou me-nos permissiva; mais ou menos piedosae que pode ser caracterizada por rezas ebenditos, por uma jornada7 , por umbaile ou bailado, por um terço, por umtrocado, por uma rodada de músicas,versos e passos que se alternam confor-me a tradição da comunidade, a vonta-de do promesseiro ou a capacidade dostocadores e participantes.

Assim, enquanto a matriz mítica ousagrada reforça a raiz lendária e servede memória para atualizar a história devida de São Gonçalo8 – que nasceu nodistrito de Amarante, na freguesia deTalgide em Portugal no século XIII, foipadre dominicano ou beneditino, toca-dor de viola e protetor dos violeiros, dan-çarino, marinheiro, engenheiro, evange-lizador de prostitutas e um exemplo devida dedicada à alegria e à fraternidade-, a matriz utilitária ou profana tornou-oum dos Santos mais populares do Brasil,protetor das moças donzelas, das causaspossíveis, dos faustos coletivos, cuja fes-ta se espalha por todo o Brasil9 , mas es-pecialmente pela região Nordeste. Acomplementação das duas experiênciashumanas é que tornam possível ao ho-mem se posicionar em relação a si mes-mo, aos outros e ao mundo.

Junto com o Santo Antonio, São Gon-çalo é considerado o Santo casamentei-ro do Brasil, capaz de resolver os impas-ses, as angústias e a solidão das moçassolteiras que não conseguem arranjarmarido. Mas, também por ter vivido notempo da religiosidade marcante e fra-terna de São Francisco de Assis, é consi-derado o Santo dos pobres em situaçãode miséria, das causas populares, dascomunidades carentes. Comumente o

seu nome é invocado por aqueles que jánão acreditam no catolicismo oficial eeclesiástico, nem nos discursos terrenos,e que preferem apostar numa devoçãodireta com o céu e com o Santo que nãodesampara ninguém, segundo a memó-ria popular.

Isto porque, o catolicismo popular éestruturado no princípio básico da trocarecíproca e da solidariedade e prediz abusca de uma ajuda superior no planodivino. Sem abdicar da sua fé católica,o devoto opta por individualizar sua re-lação diretamente com o divino, estrei-tando seus laços de comunicação com oser sagrado. Assim, o que vale aqui é atentativa de humanizar a relação entreos dois mundos, numa relaboração cons-tante do sagrado e do profano. É por issoque, ao estabelecer através do Santo/Santa um canal de comunicação com odivino, o devoto garante proteção eter-na; facilidades para conquistar benefí-cios; prestígio coletivo; autoridade parafalar em seu nome; poder para promo-ver suas festas e procissões; atenção pararesolver os problemas insolúveis da co-munidade.

ENTRE A PROMESSA E A FESTENTRE A PROMESSA E A FESTENTRE A PROMESSA E A FESTENTRE A PROMESSA E A FESTENTRE A PROMESSA E A FESTAAAAA

Sem a fixação de um calendário reli-gioso rigoroso, tudo é motivo para feste-jar São Gonçalo durante o ano, desde opagamento da promessa recebida ou ain-da por receber (contrato fiduciário a pri-ori ou a posteriori); passando pela conju-gação com outras festas comunitáriasonde o Santo recebe as honras e influ-ências indígenas e africanas de São Be-nedito e São Sebastião, das quais rece-beu parte de sua herança ancestral noBrasil até a comemoração das fundações

5 Professora do Departamento de Comunicação, da Universidade Federal do Maranhão; membro da Comissão Maranhense de Folclore.6 Através do catolicismo popular, o homem comum repõe a sua religiosidade, sem deixar de lado seus ritos, deuses, práticas e mitos, partes de um imaginário secularmente

transmitido nas lendas e narrativas cotidianas. Assim, o catolicismo popular é visto como o espaço das práticas religiosas de pessoas batizadas que se professamcatólicas sem a presença da constelação sacramental, funcionando como uma variante do catolicismo oficial, utilizado no processo de evangelização do mundo novo. Oque o caracteriza é a individualização das relações do homem com os seres sagrados, sobretudo com as almas e os Santos. É em torno deles que gira todo o processo detrocas, de pedidos, de cumprimentos, de promessas. Nesta perspectiva, a religião atua como reguladora de uma desordem ao atribuir uma ordem significativa àsexperiências individuais, tornando-as coletivas e totalizantes, moldando-as num mundo social com sentidos singulares, únicos. Um mundo em que os princípios daordem social são considerados não só como úteis, desejáveis ou justos, mas também como inevitáveis para as representações desse mesmo mundo. «Um sistema desímbolos que atua para estabelecer duradouras disposições e motivações nos homens, através de uma ordem de existência geral e, vestindo essas concepções com talaura de fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas.» (Geertz1989 p.105).

7 As jornadas constituem cenas cantadas, em que o ato de louvor é dedicado a São Gonçalo. Uma jornada é uma série de versos cantados sem interrupção desde o séculoXVI quando as comédias e mesmo as loas sacras adotaram esse estilo em vez dos atos.

8 São Gonçalo nasceu supostamente em 1187, no século XIII na freguesia de Tagilde, próximo do distrito de Guimarães, filho de uma família importante. Fez os seusprimeiros estudos com um sacerdote devoto da região e depois freqüentou a escola episcopal de Braga. Já ordenado sacerdote, foi nomeado pároco de São Paio de Vizelaonde ficou até a sua peregrinação por 14 anos a Roma e Jerusalém. Depois que voltou do exílio, viveu como eremita, fez pregação popular e virou mendicante, para sódepois se tornar dominicano. “Homem humilde, íntegro e austero, as suas virtudes não são as de um qualquer homem de Deus; ele é um asceta, um verdadeiro eremita,adepto do despojamento total, um radical, enquadrado depois numa ordem mendicante, que, com a licença do seu superior, à experiência do eremitismo acrescentouuma preocupação eminentemente pastoral” (Cunha, 1995: 39-46). São Gonçalo morreu em 10 de janeiro de 1259, sendo o seu culto permitido pelo Papa Júlio III em1551, confirmado depois em 1561 pelo Papa Pio IV, enquanto o Papa Clemente X estendeu o seu culto a toda a ordem dominicana. (Serejo, 2002: 17).

9 A dança de São Gonçalo é realizada em todas as regiões do país e, mais precisamente, nos Estados de Pernambuco, Alagoas, Piauí, Maranhão, São Paulo, Minas Gerais,Paraná, Sergipe, Bahia, Rio Grande do Norte, Paraíba, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Ceará.

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CONTINUAÇÃO

das cidades que levam o seu nome. Oimportante é festejar e pagar as promes-sas acumuladas durante o ano ad aeter-num, cujo custo é feito por um promes-seiro oficial, normalmente de classesabastada, que faz ou não parte da dan-ça. Esta festa, apesar de particular, pos-sui uma natureza coletiva porque podeser utilizada por outras pessoas que soli-citam o empréstimo da imagem do San-to para pagar as suas próprias promes-sas, as de outras pessoas vivas ou de pes-soas já mortas.

Conforme o contexto sócio-históricoonde a festa é realizada as mudanças decenário, de personagens e tipos de dan-ça são perceptíveis através dos mais va-riados registros. Em alguns locais, ho-mens e mulheres dividem o mesmo es-paço para louvar o Santo que ora apare-ce com as suas vestes camponesas profa-nas (calça curta, camisa de mangas com-pridas, bota braguesa, meias pretas, umaviola na mão, chapéu na cabeça e capaazul nas costas), ora surge como um pa-dre dominicano, vestido como a ordemreligiosa sugere (batina, crucifixo no pes-coço, chapéu de padre, sapatos com pre-gos).

Em outros locais, somente os homenstem o privilégio de dançar cabendo àsmulheres apenas a função subalterna decarregar o Santo que às vezes tambémaparece vestido de marinheiro, enquan-to que em outros locais apenas as mu-lheres desenvolvem os passos valsados eritmados por violas (ou violões e rabe-cas), violinos, rabecas, cavaquinhos, san-fonas, caixas, pandeiros, ganzás, reco-recos. A dança é variável de local paralocal, podendo ter no mínimo 05 voltas10

e no máximo 21 voltas, isto é, cada roda-da pode demorar de 40 minutos a 03horas para ser completada até a próxi-ma volta, oportunidade em que os bai-lantes cantam loas e sapateam em rit-mo sincopado para homenagear SãoGonçalo em altares improvisados den-tro de uma casa ou em local coberto.Cada volta possui uma série fixa de evo-luções que se repetem e se alternam con-forme a música completando o ciclo quepode durar de quatro a nove dias, segun-do a vontade e a benevolência do pro-messeiro.

Desde o seu primeiro registro no Bra-sil, em 1718, na cidade de Salvador11 , adança de São Gonçalo sofreu influênci-as locais diversas, conforme os ambien-tes culturais onde foi adotada. Inicial-mente, a festa trazida ao Brasil pelosJesuítas para o processo de evangeliza-ção e pelos primeiros colonos portugue-ses, era realizada no interior das Igrejascom uma alegria vibrante e erótica, fatoque causou a sua proibição pelo Vice-Rei Vasco Fernandes César de Menezes,conde de Sabugosa, nos santuários e nascidade, mas que manteve a sua perma-nência nas zonas rurais.

Mas, tal como em Portugal em que oseu culto foi sempre forte e persistentesuplantando até o culto a São Santiago,no Brasil serviu desde o início como umabandeira no processo de evangelizaçãoe de nacionalização dos primeiros habi-tantes do país. “Compareceu o Vice-ReiMarques de Angeja, tomando parte dadança furiosa dentro da Igreja, com gui-tarras e gritaria de frades, mulheres, fi-dalgos e escravos num saracoteio deli-rante. No final, os bailarinos tomaram aimagem do santo, retirando-a do altar edançaram com ela...” (Cascudo, 1988:364-367).

Junto com outras danças votivas e denatureza lúdica, a dança de São Gon-çalo manteve através dos tempos o nú-cleo básico de uma memória recitativae a representação dramática que a ca-racterizou desde o início como uma ce-lebração festiva e cerimoniosa. O de-sempenho da solenidade assemelha-se auma representação teatral dançante,com os pares bem trajados, usando flo-res, cantos e expressões que lembram osfolguedos do ciclo natalino. “A dança deSão Gonçalo é um dos últimos vestígiosda dança religiosa, das fórmulas univer-sais da súplica pelo ritmo dos bailados.Humilde, paupérrima, anônima, analfa-betos os cantores, inconscientes os bai-larinos, é uma sobrevivência contra acorrente resistindo. Essa permanênciavaloriza o poder de vitalidade psicológi-ca invencida” (Cascudo, 1988: 364-367).

Todo o baile se desenvolve num cli-ma de respeito e veneração pelo Santoque ora atende as súplicas dos pedintes,ora revela a sua alegria concedendo gra-

ças aos participantes que se revezam nospapéis de patrão, guia ou mestre, con-tra-guia ou contra-mestre, bailantes oudançarinos. A dança ritualística é caden-ciada pelos cantos divididos entre coroe solo, cuja função é indicar o começo,o meio e o fim de cada jornada, a partirde um tema central, escolhido pela co-munidade. O que importa, no entanto,é que o ritual se repita como núcleo cen-tral de solidariedade e coesão dos san-gonçalistas que disputam a proteção doSanto em cada gesto, em cada canto eem cada música em sinal de respeito eadmiração.

UM RITUAL DE TRANSIÇÃO

E o ritual, baseado na promessa, con-grega as duas matrizes, a sagrada e aprofana, numa mesma relação simbóli-ca entre o homem e a divindade. Daíporque é importante manter a observân-cia de certas normas e de certos costu-mes como, por exemplo, a de que a moçaque não é donzela (impura) erra os pas-sos todas as vezes em que tenta comple-tar uma jornada ou, então, quando a dan-ça é feita em memória de um defunto,os participantes devem estar com o cor-po limpo, isto é, devem ter um períodode abstinência sexual para que a almado morto encontre a paz eterna.

Na concepção de Mircea Eliade, arelação entre o sagrado/profano é umadefinição entre o real e o irreal ou entreo natural e o sobrenatural. A passagemde uma experiência para outra depen-de, portanto, de uma mediação que seestabelece na forma como o homem vi-vencia cada experiência no seu cotidia-no ou em situações-limite tais como osrituais de transição ou as celebrações re-ligiosas, nas quais a emoção, o sentimen-to de pertencimento e o envolvimentoafetivo sobrepõem-se a qualquer racio-nalidade pressupostamente estabelecidapela realidade. Nesta perspectiva, en-quanto o sagrado (gans andere) aparececomo uma revelação numinosa, isto é,como uma realidade divina, diferente daordem comum das coisas, a partir deuma hierofania (algo sagrado que se nosmostra), o profano sugere o que está nasuperfície literal da realidade.

10 As voltas também recebem nomes variados como”despontam”, “Marcas-passo”, “Parafuso”, “Confissão”, “Casamento”, “Cajuru”, “Nas horas de Deus amém”, “Vosso reipediu a dança”, “Adeus parente”, “Jiruaê”, “Mamãe Zambi”, “Suzanê”, “Chula”

11 O registro foi feito pelo viajante francês Gentil de La Barbinais na Igreja de São Gonçalo, no atual bairro da Federação. No evento estavam presentes o Vice-Rei Marquesde Angeja, fidalgos, mulheres e escravos que dançavam com tamanha intensidade que faziam vibrar a nave da Igreja. (Volpatto S.d.4)

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CONTINUAÇÃO

Mas, o que parece uma oposição aca-ba revelando uma complementaridadenecessária à sobrevivência da experiên-cia religiosa no mundo contemporâneo.A experiência religiosa neste caso é vis-ta aqui não como uma opção devocio-nal (católica, protestante etc.), mas simcomo resultado de uma relação com ocosmos, de uma relação com o universosimbólico das coisas. Assim, cumprida apromessa, a matriz sagrada dá lugar àmatriz profana que se revela nos bailesdançantes que duram a noite toda, nosalimentos que são distribuídos aos con-vidados ou nas bebidas que são disputa-das por todos como se de água benta setratasse.

O Santo, do alto do seu altar a tudopercebe, a todos encanta, a todos sorricomo o santo extravagante que é. E,participa da festa com a sua viola na mãotocando os mesmos ritmos que se desen-rolam pela noite adentro. Afinal, segun-do Lima, “o nosso catolicismo cabocloadaptado à nossa índole, ao nosso jeitode ser permite que os santos sejam ínti-mos, deuses-lares, pessoas de casa, mem-bros de nossa família, com quem nãotemos cerimônia para pedir os mais ex-travagantes milagres e a quem até casti-gamos se não nos atendem” (Lima 2007:5). É uma fé singular e estrangeira e, porisso mesmo, epidérmica, imposta a ferroe fogo, mas capaz de racionalizar o irra-cional dando-lhe um sentido de realida-de imanente que atravessa os temposmarcando épocas, pessoas e lugares deum modo lúdico, dançarino e sensual.

Deste modo, enquanto a matriz sa-grada da festa pressupõe perenidade,potência, universalidade, memória an-cestral e contemplação, a matriz profa-na da festa racionaliza estas caracterís-ticas dessacralizando tudo à sua volta,apenas privilegiando a fruição efêmeradas coisas, folclorizando/sublimando arelação entre o que pode ser dito e ex-plicado e o que é apenas sentido/com-preendido como algo divino. A matrizprofana explica-se pela versão dos fatosque suportam a sua realidade semprefragmentada, assim como a matriz sa-grada legitima-se pela credibilidade comque é vivida em sua totalidade e, só en-quanto totalidade absoluta. Ou seja, en-quanto a experiência profana pode servivida por etapas, em tempos e espaçospreviamente delimitados, a experiênciareligiosa só pode ser vivida como únicae singular não podendo jamais ser repe-

tida porque o seu espaço é an-espacial eo seu tempo é atemporal.

Por isso, a cada vez que a festa acon-tece não é somente um ritual de transi-ção que completa o seu ciclo. Ele abreespaço para os dois rituais que comple-mentam a festa: o ritual de iniciação,que repõe todos os significados propos-

CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 6. ed. Belo Horizonte:Itatiaia: São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.

CUNHA, Arlindo de Magalhães Ribeiro da. São Gonçalo, história ou lenda. Portugal,Amarante: Gráfica do Norte, 1995.

DANTAS, G. Beatriz. Dança de São Gonçalo. Rio de Janeiro. Ministério da Educação eCultura: Funarte, Cadernos de folclore, 1976.

ELIADE Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões.(Col. Vida e Cultura):Lisboa: ed. Livros do Brasil, S/D

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, l989.

LIMA, Carlos de .A religião católica e a religiosidade popular. Comissão Maranhense deFolclore: Boletim N. 37, junho, 2007.

SEREJO, Lourival. O Baile de São Gonçalo. São Luís: Edições AML, 2002

VIEIRA FILHO, Domingos. A dança de São Gonçalo. São Luís, 1976.

VOLPATTO, Rosane. Dança de São Gonçalo. Em http:www.rosanevolpatto.trad.br.dancasaogoncalo.html

BIBLIOGRAFIA

tos pela matriz profana a cada vez queo promesseiro se propõe a pagar por ummilagre recebido (e tudo o que isso acar-reta em termos de custos) e o ritual depermanência, que sedimenta a memó-ria secular e reforça a devoção no San-to, atualizando a fé e a relação com otranscendental.

No dia 13 de junho, com o falecimento deDona Lucia, aos 103 anos de idade, amina sofreu uma perda irreparável.Como ninguém da Casa ou de outroterreiro detém todos os fundamen-tos necessários à realização do Tam-bor de Choro na mina-nagô, DonaDomingas, sua sucessora, foi orien-tada por ela a não executar aqueleritual após o seu falecimento. A Casade Nagô, fundada por africanas naprimeira metade do século XIX, é con-sagrada a Xangô e Dona Lúcia recebiao orixá Lego Xapanã. No próximo nú-mero do Boletim deverá ser publicadoum artigo sobre o nagô do Maranhão e aimportância de Dona Lúcia para aqueleterreiro e para o tambor de mina em geral.A Comissão Maranhense de Folclore lamenta essa grande perda, mastem esperança de que a Casa de Nagô possa continuar preservando sua iden-tidade e realizando a missão iniciada por suas fundadoras.

NOTA DE FALECIMENTOMãe Lucia, dirigente

da Casa de Nagô

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O Porto Camundá

O Maranhão é detentor de um ricoimaginário. Os Camundá, famíliatragicamente desaparecida nas

águas do Itapicuru, originaram diversas es-tórias que pelas suas dramacidades passarama integrar a vivência codoense.

A estória do Porto do Camundá é umaficção respaldada na tragédia dos Camundá,todavia afirmo que o Porto é uma verdade.A estória é a seguinte:

Convidou José o seu amigo Miguel parauma pescaria que se realizaria no Itapicuru,lá para as bandas do Camundá.

O compadre Elias havia feito uma provei-tosa pescaria na noite anterior, mesmo debai-xo de um violento temporal. Enfrentara ven-tos atemorizantes e assovios, acompanhadosde horripilantes coriscos, mas a canoa voltoucheia de peixes. Até surubim de metro e meiocaiu na rede do compadre. Foi um Deus nosacuda para recolhê-lo. O surubim reagia vio-lentamente, defendia sua liberdade e acima detudo, o sagrado direito de viver. Ouviu-se umavoz misteriosa a dizer-lhe: “ajudo-te, vamos”.

Sentiu que um calafrio corria pelo seucorpo. Frio de sezão. Os seus cabelos fica-ram eriçados, o seu corpo foi tomado poruma força estranha. O surubim foi domina-do tranqüilamente. Rendeu-se

Sabia que estava lidando com os invisíveis.Agradeceu ao bem feitor, com palavras malpronunciadas e truncadas que escapavam desua boca nervosa. Certo, não prosseguiria nasua pescaria. Entrou na canoa e rumou paracasa. Não contaria aos amigos o acontecido.Haveriam de dizer – “conversa de pescador”.

Caso Miguel não aceitasse o convite, Joséhavia resolvido ir só, não haveria de perder aoportunidade do tempo chuvoso própriopara as rendosas pescas.

José preparou o alforje. Não deixaria delevar uma boa pinga, costelas assadas de bode,farinha de mandioca e um pedaço de fumode rolo. Para atrair os peixes, a melhor dasiscas, minhocas.

Miguel aceitou o convite. Saíram reman-do o velho casco à boquinha da noite. O solescondia-se atrás das palmeiras de babaçu.Fim de dia, começo de noite. A lua solitária, mas risonha, aparecia na curva do rio. Alu-miava com os seus reflexos de ouro a esteiradas águas do Itapicuru.

Depois de muito remarem, encostaramo casco na beira do rio. Alojaram-se em cimade uma pedra lodosa, escorregadia. Aquieta-dos jogaram os seus anzóis e a esperança defisgarem um peixe. Esperavam pacientemen-te, a fatal mordida na isca. E nada.

Remaram o casco à procura de outro pon-to de pescaria. As águas borbulhavam. A lua

clareava toda a extensão do abençoado rio. Osilencio era tão grande que chegava causarirritação. Pararam num porto, onde vicejavaum florido ingazeiro. Lugar de repouso decanoeiros e de remadores de balsas que se abri-gavam do forte calor do verão de outubro.

Novos planos foram traçados, feito levan-tamentos. Lembraram-se do Porto do Camun-dá. Lá sem dúvidas era morada de peixes. Olugar era evitado à fama de suas assombraçõese da existência dos traiçoeiros redemoinhosque puxavam as embarcações para dentro daslocas do grande lajedo. O rio se entragava àviolência das correntes bravias e encapeladas.

As águas nervosas, irritadas causavampavor aos navegantes desavisados. Os co-mandantes dos gaiolas acostumados comaquela situação avisavam aos passageiros:“Estamos atravessando o Camundá. Olha aságuas revoltas. Que espetáculo”. Os viajan-tes localizavam-se na balaustrada do navio eapreciavam o show das águas. Alguns fica-vam amedrontados.

Não somente os redemoinhos, as águasencapeladas e revoltas, as correntes braviasrealçavam a fama do Camundá, localizadono povoado Santo Antonio, contribuíramfortemente para o encantamento do local.Surgiram diferentes estórias do triste afo-gamento como o da família Camundá, suga-da tragicamente às locas do lajedo. A frágilcanoa desapareceu com seus passageiros. Oscorpos não foram encontrados.

Codó, pequena vila que se desenvolvia,enlutou-se. O macabro e fatal acontecimen-to virou lenda, adquiriu diversas nuanças.O codoense é biologicamente criativo. Ima-ginação fértil.

O Porto de Camunda seria a salvação dapescaria. Chegando lá, após o enfrentamen-to dos conhecidos obstáculos, escolheramum lugar descampado de vegetação rasteira.

Resolveram jogar as linhas. Passando umbom tempo, não sentiram os beliscões dospeixes nos anzóis. Puxaram as linhas, umadelas submergiu facilmente, a outra estavapresa a uma pedra. Por mais que fosse puxa-da, não aparecia.

José mergulhou para desprender o anzol.Foi às profundezas do rio. Estava estupefa-to, surpreso com o que via a sua frente: Umpreto velho sentado em uma rede de cor bran-ca, pitava um cachimbo e mantinha o anzolpreso sob seus pés.

Impossibilitado de agir subiu à tona daságuas, sem voz. Não podia explicar o que viraao seu companheiro. Muito depois, comgrande esforço, ajudado por mímicas pro-nunciou algumas palavras. Miguel entendeulogo e disse: “O preto velho está pedindo

fumo. Conheço esta estória. Tem fumo decorda contigo?”.

Apressado, José tirou o fumo do bolso dacalça, cortou-o em tiras jogando-o carinho-samente na água. Antes, porém pediu aopreto velho uma farta pescaria.

Correu uma agradável brisa. Os redemo-inhos fizeram trégua. Os peixes bailavam naságuas. Ouviu-se uma canção, palavras deagradecimento. José e Miguel estavam ine-briados. Caíram numa letargia momentânea.Miguel, mais forte e mais decidido, disse:“Não podemos ficar bestificados. É hora depuxarmos o anzol”. E assim o fizeram.

O anzol trazia preso uma grande curi-matã. E daí para diante foi uma fartura depeixes de variedades diferentes: mandubés,dourados, curimatãs e até um enorme suru-bim de 10 quilos. Não houve obstáculos emretirá-los do anzol. Entregou-se de corpoaberto aos pescadores.

Casco cheio, pesado, pescaria excelente.Chegara às suas moradias quando o sol nas-cia sobre as palmeiras de buriti.

As mulheres foram despertadas pelo for-te odor dos pescados. O almoço estava ga-rantido. A vizinhança seria convidada parasaborear os deliciosas peixes, acompanhadosde um apimentado pirão. Certamente, umaboa pinga, cairia bem, para esquentar a co-memoração do êxito da pescaria.

O naufrágio dos Camundá, sugados edesaparecidos no interior da grande loca,abalou toda região ribeirinha do Itapicuru.

Na vila do Codó, onde residiam os infortu-nados, a tristeza por vários anos habitou noscorações dos moradores. O vigário da paróquiacodoense foi convidado a rezar missas e ladai-nhas. A igreja de Santa Rita e de Santa Filo-mena se encheu de devotos para prestaremhomenagens aos queridos desaparecidos. Osterecôs se iluminaram sob a luz de velas, ento-aram “pontos”, pediam proteção aos seus ori-xás. A vila entrou em luto. As “meninas” sem-pre alegres e joviais sofreram uma recessão for-çada. Os rapazes seus companheiros de traba-lho desapareceram. Estavam pesarosos pelaperda irremediável de amigos. Depois tudoentrou na normalidade esperada.

O codoense é muito criativo. Imagina-ção rica e fértil. Renova-se sempre. Aparece-ram estórias mirabolantes, de encantamen-tos e sobrenaturais. Fantásticas.

Virgens de longos cabelos dourados enfei-tiçam pescadores. Vozes maviosas cantam can-ções de amor. Românticas e ternas. Corcéisbelos e resistentes cavalgam sob as ondas dosbravios redemoinhos. Felizes os que obtêm agraça de ver a sedutora Mãe d´Água. Muitosagraciados não resistem, entregam-se aos en-cantos e aos fascínios da deliciosa sereia.

João Batista Machado12

12 Escritor codoense. Autor do livro “Codó: histórias do fundo do baú”.

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GRUPOS DE BUMBA-MEU-BOI DO MARANHÃO13

13 Baseado em cadastro realizado em 2003 pelo CCPDVF, atualizado em 2007 pela SECMA.

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Nota:Total de Bois maranhenses cadastrados pelo Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho (2003) e SECMA (2007) - 403.

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13Boletim 40 / junho 2008 13

O final dos anos 1930 foi marcado pelodesaparecimento ou pelo esquecimento deum conjunto múltiplo e variado de mani-festações culturais realizadas durante os fes-tejos juninos no Maranhão. Em São Luís,embora fosse claramente o mais importantee difundido, o bumba-meu-boi, que se tor-naria símbolo máximo da identidade e cul-tura regional, não estava só.16 Havia outrasmanifestações e elas guardavam muitas ca-racterísticas similares ao boi. Embora hajareferências a elas já em 1883, somente nosanos 1920-30, quando passam a circular emSão Luís dois jornais que se diziam relacio-nados ao “povo”, Folha do Povo (FPV) e Tri-buna (TRB), torna-se possível elaborar umacaracterização mínima dessas manifesta-ções.

Assim como os bois, essas manifestaçõesculturais eram denominadas de “cordões”,“danças” ou “brincadeiras”; eram simboliza-das por um animal; percorriam diferenteslugares cantando e dançando, e visitando al-gumas casas e famílias; poderiam passarmuitas semanas ensaiando suas canções quetambém eram denominadas de “toadas”;nelas se utilizavam diferentes instrumentosmusicais; podiam ser organizadas por famí-lias, lugarejos, vilas, bairros, cidades, gruposprofissionais; na maioria das vezes, aquelesque as organizavam eram denominados de“rapaziada”; podiam ser feitas como formade pagamento de promessa. Muitas delaseram organizadas onde havia grupos de bum-ba-boi.

Há registros sobre Águia, Caboré, Ca-chorro, Canário, Carneiro, Capivara, Ca-traio (galinha-d’angola), Cavalo, Girafa, Gua-rá, Lobisomem, Onça, Pavão, Peixe-Boi eVeado. Entretanto, havia diferenças entreos bumbas e essas brincadeiras. Eram diver-sos os cordões de bumba-boi, ainda que como mesmo estilo/sotaque, enquanto que es-sas danças eram únicas, isto é, não costuma-va haver mais de uma brincadeira simboliza-da por um mesmo daqueles animais. Elas

BRINCADEIRAS DE SÃO JOÃO:Esquecimentos e desaparecimentos em meioaos processos socioculturais no Maranhão14

Antonio Evaldo Almeida Barros15

14 Este texto corresponde basicamente ao item 3.3 “De diversas brincadeiras à brincadeira por excelência” da dissertação de mestrado “O PANTHEON ENCANTADO:Culturas e Heranças Étnicas na Formação de Identidade Maranhense (1937-65)”, apresentada em outubro de 2007, no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação emEstudos Étnicos e Africanos (PÓS-AFRO) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

15 Licenciado em História pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela UFBA, e doutorando em História pela UniversidadeEstadual de Campinas (UNICAMP).

16 Sobre o processo de ascensão do bumba-meu-boi a símbolo de identidade maranhense ver, dentre outros, ALBERNAZ (2004) e BARROS (2005; 2007).17 O couro significa tanto a cobertura (de tecido, veludo ou outro material) de uma armação de madeira que tem o formato do animal, quanto o próprio animal no conjunto.

Um bumba-meu-boi podia ter um ou mais couros (representação do animal), ou seja, mais de um boi (couro) poderia dançar numa única brincadeira. José Maioba, em1937, assim se referia ao couro, em sua poesia “Bumba-meu-boi”. “O ‘boi’ é boi só na armação, / Vem todo cobertinho de velludo, / E tem estrella na testa, estrellas emtudo, / O boi de papelão, / O boi brincalhão” (MAIOBA, 1937).

pareciam ter mais liberdade para percorrer operímetro urbano da cidade e não eram vis-tas pela imprensa como algo tradicional ousemibárbaro. Suas toadas eram apresenta-das como algo distante da lógica do improvi-so, que comumente era reputada aos canta-dores de bumba-meu-boi; elas tinham dire-ção técnica e musical, em geral, de “profissi-onais”; as letras das canções podiam ser es-critas por poetas locais. Embora próximasao que se entendia por popular, em diversosaspectos elas escapavam ao universo identi-ficado como tradicional, se se tem comoponto de comparação os bumbas. Diferen-temente dos bois, a maioria dessas brinca-deiras tinha vida curta; algumas delas eramrealizadas num único ano, outras com maisfreqüência. Essas manifestações não eramvistas como brincadeiras da negrada ou dacaboclada; embora sua organização, como ado boi, fosse reputada à rapaziada, na maio-ria das vezes, nelas a rapaziada era compostapor jovens (rapazes principalmente, mas tam-bém moças), ao passo que no boi a rapaziadase constituía pela presença massiva de ho-mens (adultos especialmente, mas tambémjovens).

A exemplo dos bois, havia o “couro” doanimal.17 Em 1933 existia a brincadeira doTupi, cujo couro era “um mimoso cachorri-nho de madeira” (TRB, 23/6/1933, p. 6). Ébem provável que o uso do couro nessas brin-cadeiras tenha sido uma influência dos bum-bas-meu-boi. Não se pode dizer, entretanto,se havia o “miolo” do animal, isto é, o ho-mem que dançava dentro do couro, o queocorria com os bumbas.

Influências e trocas recíprocas devem terocorrido entre os bois e essas manifestações,tanto no nível da organização quanto noâmbito das apresentações. Além disso, em-bora se saiba que, na maioria das vezes, essesbrinquedos fossem realizados separadamen-te, algumas vezes eles foram misturados,como em 1883. Nesse ano, anunciavam-sedanças por ocasião dos festejos juninos de

Alcântara. “Temos danças de boi, onça e ca-chorro: estes todos juntos”. “O Caboré dan-çará só”. (PACOTILHA, 21/6/1883) Numoutro anúncio da mesma festa, afirmava-seque haveria “danças especiais de Boi e Ca-boré” (PACOTILHA, 22/6/1883).

Nos anos 1860, havia o “boi careta” quedançava no Cutim e na Maioba, na ilha deSão Luís (SACRAMENTO, 1868). Tambémna Maioba foi organizada no início da déca-da de 1930, por um certo João da Paciência,a brincadeira do Lobisomem (TRB, 23/6/1933, p. 6). O Cutim e a Maioba eram locaisque organizavam bumbas. Se, em meadosdo século XIX, a Maioba era lembrada nãopelos bumbas-meu-boi, mas pelos bois care-ta, no final desse mesmo século já começama se tornar freqüentes bumbas nessa locali-dade, que passa a ser apresentada como umberço de bois tradicionais. Nos festejos ju-ninos de 1899, anunciava-se que no bar doAlbino, que costumava preparar seu bar parareceber sobretudo membros das elites ludo-vicenses no Anil durante os festejos juni-nos, ia dançar o boi da Maioba (PCT, 22/6/1899, p. 2).

O boi careta foi uma daquelas brincadei-ras que não desapareceu do estado. No mu-nicípio de Caxias, no ano de 1947, nas ruase praças as “alegrias populares” se manifesta-vam entusiásticas “nas folias brejeiras dosbois careteiros bem enfeitados, tangidos porhomens e rapazinhos em vestes semicarna-valescas, exibindo ao som das violas, dos gui-zos, gaitas e sanfonas, cantorias meludiosasao compasso de dansas semibárbaras” (CRU-ZEIRO, 28/6/1947). As visões sobre o boicareta em Caxias nos anos 1940 são estrutu-radas no contexto mais amplo das represen-tações sobre o bumba-meu-boi e a culturapopular do período. Do mesmo modo quefazia a imprensa ludovicense em relação aosbumbas-meu-boi (BARROS, 2005), a impren-sa caxiense inscrevia os bois caretas comodanças alegres cujo caráter popular de certo

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18 Nas letras de alguns intelectuais e para membros da imprensa do período, para ser vista como autêntica e tradicional, a cultura popular, particularmente o bumba-meu-boi, deveria afastar-se ao máximo do que se entendia por “civilização”. Quaisquer mudanças nos bumbas costumavam ser vistas pelos letrados como algo negativo. Estaera uma preocupação menos dos que viviam do que dos que viam e escreviam sobre os bumbas. Como afirmava, em 1953, COSTA, os bumbas estavam “recebendoinfluências impuras e numa faze de decadência o tema das ‘tiradas’ adquire caráter banal, liberto da preciosa ingenuidade primitiva, e o ritmo absorve marcações‘civilizadas’”. Nesta perspectiva, a “civilização” dos bumbas implicaria irremediavelmente sua “decadência”. (COSTA, 1953, p. 10) O fato é que, para o desgosto de muitosletrados, os bumbas escapavam às caracterizações que os construíam como algo imóvel e voltado exclusivamente para o passado, e utilizavam de maneira ousada e criativaos mecanismos e recursos disponibilizados pelo chamado mundo moderno.

19 Como já lembrava Ernest Renan, em sua clássica conferência de 1882, o passado histórico de uma nação (e acrescente-se, de uma região) não é uma realidade que seimpõe por si mesma, mas uma construção contínua que repousa no olvido e no erro histórico. Ver POUTIGNAT; STREIFF-FENART (1998), especialmente pp. 35-6.

modo se relaciona às suas características di-tas semibárbaras.18

No início dos anos 1930 fizera muitosucesso na ilha de São Luís a brincadeira doVeado, realizada na Vila Operária. A dançaera organizada por um grupo de rapazes, to-dos da cidade de Rosário. Muitas pessoasparticipavam do ensaio dessas brincadeiras,cujas toadas costumavam ser elogiadas pormembros da imprensa. O Veado era compos-to por “caçadores”, que se apresentavam tra-jando calça branca, blusa e chapéu caqui,espingardas e cartucheiras. Em 1930, o Vea-do – o couro – fora confeccionado na cida-de de Rosário “pelo hábil operário João dosSantos”. (FPV, 20/6/1930, p. 6; TRB, 26/3/1930, p. 2) Também organizada por rapazesde Rosário era a brincadeira do Catraio, cujo“poleiro” ficava na rua Jacinto Maia, zonaurbana da capital (TRB, 24/6/1932, p. 7). Épossível que muitas dessas brincadeiras te-nham sido trazidas do interior do estado portrabalhadores, que vieram para São Luís noinício do século XX, em busca de trabalho emelhores condições de vida, êxodo esse queteve incentivo da prefeitura da capital. Em1953, José Sarney Costa (1953, p. 9), nasci-do em 1930, afirmava ter conhecido “commuita animação, feita em vários anos, cum-prindo uma promessa, ‘a brincadeira da Gi-rafa’, pelo São João” e durante o Natal naBaixada Maranhense. Ainda segundo Sar-ney, haveria resquícios de brincadeiras dotipo “na chamada ‘fase do açúcar, dos senho-res de engenho’, em nosso Estado”.

O Tupi era organizado por um grupo deoperários. Acompanhado de orquestra, elepercorria as ruas da zona urbana de São Luísvisitando algumas famílias (TRB, 23/6/1933,p. 6). O Guará era “um dos mais apreciados egalhardos devido não só a disciplina da rapa-siada, como as cantigas as quais foram bemmusicadas e ensaiadas cuidadosamente”(TRB, 29/6/1934, p. 3). O Canário Belga eraorganizado no bairro São Pantaleão, na zonaurbana (TRB, 24/6/1932, p. 7). A Águia, en-saiada na Quinta Belira, subúrbio da capital,era composta por 24 pessoas, sendo 12 rapa-zes e 12 moças e sua direção técnica e musi-cal seria das melhores (TRB, 21/6/1932, p.5). Tal participação feminina, em númeroigual ao dos homens e dançando na brinca-deira, dificilmente ocorreria nos bumbas.

Sediado à rua Herculano, o Pavão eradirigido por dois senhores, e constituído porum grupo de rapazes. Suas letras de 1932foram compostas pelo poeta Ribamar Pereirae Alves, e a música por Antonio Guanaré.

Acompanhado por um conjunto musical, oPavão se apresentava em diversas casas de fa-mília. (TRB, 24/6/1932, p. 7) A Capivara, em1930, também apresentou-se em diversas ca-sas de família, e o Peixe-Boi percorreu a cida-de nas noites de São João (TRB, 26/6/1930,p. 2). Se havia exceções como o Lobisomem,organizado no interior da ilha, essas brinca-deiras, em sua maioria, eram sediadas nas zo-nas urbanas e suburbanas de São Luís.

Muitas ou poucas, realizadas com maisou menos freqüência, já não há notíciasdessas brincadeiras no final da década de1930. Se elas continuaram a ocorrer, deixa-ram de ser assunto de interesse da impren-sa. Importa salientar que o desaparecimen-to dessas danças e a continuidade dos boisforam apresentados como uma espécie deprova de que estes mantinham uma relaçãopermanente e atávica com os maranhenses,que independentemente das transformaçõessociais que ocorressem eles eram capazes deperseverar sua existência. Em junho de 1938,Diário do Norte, dirigido por Antonio Lopes,era enfático na comparação: ao contrário dediversos “brinquedos” que haviam desapare-cido, os bumbas mostravam que eram pere-nes e continuavam fortes e vivos (DIÁRIODO NORTE, 26/6/1938, p. 1). Em 1954,Domingos Vieira Filho, o mais destacado es-tudioso da cultura popular da época, lembra-va que, diferentemente dos bumbas, diversasdanças populares haviam desaparecido ouperdido “importância” no Maranhão (VIEI-RA FILHO, 1954, p. 75-7).

O desaparecimento ou esquecimentodesses brinquedos, particularmente em São

Luís, talvez esteja relacionado ao própriocontexto dos anos 1930. Neste período, pra-ticamente só haverá espaço para louvar aque-las brincadeiras vistas como tradicionais, emesmo bárbaras, a exemplo dos bois. De al-gum modo, não era assim que aqueles brin-quedos eram percebidos. Faltava-lhes a mís-tica da perseguição e do disciplinamento, deserem realizados pela negrada e pela cabocla-da, de serem vistos como potencialmenteindóceis e violentos, como ocorria com osbumbas. Se antes estes elementos eram per-cebidos sobretudo como algo negativo, apartir dos anos 1930 eles são positivados.

De fato, nem tudo que existe objetiva-mente numa determinada sociedade servepara ser definido como seu símbolo. O olvi-do é parte constituinte dos processos de for-mação de identidades étnicas, nacionais eregionais.19 Se não se pode superestimar,também não se deve subestimar o fato de quea resistência histórica dos populares diantedos processos de repressão perpetrados pelaselites levou parte significativa da populaçãomaranhense, em geral ligada aos grupos su-balternos, a manter relações profundas comos bumbas-meu-boi, e isto deu condições depossibilidade para que essa produção cultu-ral sobrevivesse. Se, posteriormente, indiví-duos como intelectuais, por exemplo, selecio-nam, a partir de suas próprias perspectivas,determinadas produções culturais como te-mas das tradições regionais, isso só se tornapossível porque diversos atores e sujeitos so-ciais contribuíram, ao longo da história, paraa efetiva existência dessas produções.

ALBERNAZ, Lady Selma Ferreira. O “urrou”do boi em Atenas. Instituições, experiênciasculturais e identidade no Maranhão. 2004. Tese(Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto deFilosofia e Ciências Humanas, Campinas, Uni-versidade Estadual de Campinas, 2004.BARROS, A. Evaldo A. O Pantheon Encanta-do: culturas e heranças étnicas na formação deidentidade maranhense. 2007. 317 p. Disserta-ção (Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos)– Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,Salvador, Universidade Federal da Bahia, 2007.______. “A terra dos grandes bumbas”: a ma-ranhensidade ressignificada na cultura popu-lar. Caderno Pós Ciências Sociais, São Luís,v. 2, p. 94-120, 2005.COSTA, José Sarney. Notas sobre o Bumba-meu-boi. O Imparcial. São Luís, 26 de jul. de 1953.CRUZEIRO. Caxias, 1934-59.DIÁRIO DO NORTE. São Luís, 1937-45.

REFERÊNCIAS

FOLHA DO POVO. São Luís, 1923-9.MAIOBA, José. Bumba-meu-boi. Diário doNorte, São Luis, 26 de jun. de 1937.PACOTILHA. Hebdomadário crítico e notici-oso. São Luís, 1880-1938.POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-FE-NART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. SãoPaulo: Editora da UNESP, 1998.SACRAMENTO, J. P. D. do. Crônica Interna. Se-manário Maranhense, São Luís, p. 7-8, jul. de 1868.SOUSA, Carmem de Jesus Rabelo. A cidade emfoco: imagens visuais e escritas das condiçõesurbanas de São Luís na Primeira República. 2005.Monografia (Graduação em História) – Universi-dade Federal do Maranhão, São Luís, 2006.TRIBUNA. Matutino Independente. São Luís,1930-7.VIEIRA FILHO, Domingos. Folklore sempre.Revista de Geografia e História do Mara-nhão, São Luís, dez. de 1954.

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UNIÕES MÍSTICO-CONJUGAISNO TAMBOR DE MINA20

Viviane de Oliveira Barbosa21

Oimaginário e as sensibilidadesdo passado e do presente apresentam-se como elementos cuja

análise pode contribuir significativamen-te para a compreensão das histórias dosindivíduos, grupos e sociedades. As re-lações “místicas”, os “casamentos divinos”e as “uniões diabólicas” constituem ob-jeto curiosíssimo, mas praticamente dei-xado de lado pelos historiadores da reli-gião e da religiosidade popular (SOU-SA, 1998, p. 125). Diante dessa consta-tação, pretende-se examinar relações en-tre filhas ou mães-de-santo e seus “mari-dos do fundo” e “maridos da terra” notambor de mina maranhense, através dedepoimentos de mulheres que estrutu-ram muitas de suas experiências cotidi-anas nesse universo religioso.

Na tradição oral, o tambor de minaaparece como a “manifestação de reli-gião afro-brasileira mais conhecida noNorte do Brasil”. Surgira no “Maranhãocom a Casa das Minas-jeje e a Casa deNagô (abertas em São Luís por africa-nas, em meados do século XIX) e, ape-sar de ter sido levada por migrantes paraoutras regiões brasileiras, continua a sermais praticado no Maranhão e no Pará”.(FERRETTI, M. 2000a, p. 25)

Nessa manifestação religiosa “são cul-tuadas e recebidas, em transe, entida-des espirituais africanas (voduns e ori-xás) e entidades espirituais que come-çaram a ser conhecidas pelos negros doBrasil (gentis e caboclos)”. Histórias doscaboclos no Tambor de Mina “começamnum tempo não primordial, pouco de-terminado, misturando-se com relatoshistóricos de épocas e lugares longín-quos” e continuam na “atualidade, comações por eles realizadas nos terreiros (in-corporados)”. (FERRETTI, M., 2000a, p.25-30) É possível que na vida desses su-jeitos a história se configure na vivênciade um tempo ao mesmo tempo mítico esocial, algo que certamente não é exclu-sivo de sociedades africanas.22

No Maranhão, além de receberemcaboclos durante os rituais de tambor de

20 Uma versão anterior deste texto foi apresentada em BARBOSA, Viviane de Oliveira; BARROS, Antonio Evaldo Almeida. Maridos do fundo e da terra: gênero, imaginárioe sensibilidade no tambor de mina maranhense. Ciências Humanas em Revista, São Luís, Centro de Ciências Humanas, v. 2, n. 2, 2004.

21 Licenciada em História pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Mestra e Doutoranda pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos eAfricanos (PÓS-AFRO), Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected].

22 Sobre o lugar da história na sociedade africana, ver HAMA, Boubou; KI-ZERBO, Joseph. Lugar da história na sociedade africana. In.: KI-ZERBO, Joseph (Coord.). HistóriaGeral da África. São Paulo: Ática / Unesco, p. 61-71, 1982.

mina, algumas mulheres afirmam man-ter contatos e relações com o que deno-minam de “marido do fundo” – que con-traporia ou complementaria o “maridoda terra”. Estas relações podem ser in-terpretadas como experiências místico-conjugais que evidenciam ambíguasquestões de gênero.

Convém lembrar que as relações en-tre o masculino e feminino com todas assuas contradições, ao mesmo tempo de-mandando e questionando as concepçõesde natureza e de cultura, têm sido obje-to amplamente discutido no campo dasciências humanas e sociais. Assim comoFlax (1992, p. 228), entende-se que asrelações de gênero são relações sociaisou conjunto mutante de processos soci-ais historicamente variáveis, são relaçõescomplexas e instáveis constituídas porpartes inter-relacionadas. Nesse sentido,o gênero constitui uma categoria relaci-onal, na qual dialogam representações,definidas cultural e historicamente, emtorno do “ser homem” e do “ser mulher”.

O “marido do fundo” que aparece nasexperiências de mulheres praticantes dotambor de mina é uma entidade espiri-tual; pode tratar-se de um caboclo, deum guia, de um encantado. Nos ritoscelebrativos sua presença se dá como ade uma entidade comum e não propria-mente como a de um “marido do fun-do”. Isto ocorre porque as obrigações paracom ele diferem das obrigações e rituaiscomuns empregados na religião. Trata-se de uma entidade que diante de umadada mãe ou filha-de-santo exerce tam-bém o papel de marido.

A visão de praticantes da mina pare-ce se configurar para além da percep-ção cartesiana ocidental, na qual o espi-ritual e o material se apresentariam dis-sociados. Há uma intensidade e intimi-dade nas relações entre filhas e mães-de-santo e suas entidades, especialmen-te seus “maridos no fundo”. De fato, “oimaginário rompe com as fronteiras dotempo e espaço e, em sua lógica, as di-vindades são construídas a partir das ex-

periências sociais” sem que haja distin-ção “entre a essência da divindade, comoser existente e participante do cotidia-no social, e a noção de estar no mundodos mortais” (TRINDADE, 200b, p. 5).

As categorias enunciadas pelas entre-vistadas (“marido do fundo” e “maridoda terra”) parecem apontar para a pre-sença de elementos ameríndios na tessi-tura de seus imaginários e sensibilida-des. Tentando descrever e interpretar deque modo a população do povoado Bar-roso, no município maranhense de Be-quimão, classificaria suas entidades so-brenaturais, Laís Sá destaca cinco gru-pos/categorias: Deus, Diabo, Santos,Vagantes e uma última denominada “Ou-tros”. Nesta, são elencados personagenscomo Mãe d’Água (responsável pelo do-mínio das águas), Curupira (controla odomínio da mata), Curacaganga e Lobi-somem (seres humanos que sofrem trans-formação momentânea em determina-das circunstâncias). Também mostra que“aparece freqüentemente no discursosobre a Mãe d’Água o termo ‘encanta-do’, que também é sinônimo de ‘com-panheiro do fundo’”. Para a autora, arepetida utilização deste último concei-to, “já bastante distanciado do sentidoque teria no contexto indígena puro,provocou uma generalização difusa dotermo”. (SÁ, 1975)

Descrevendo a vida religiosa de umavila no Baixo Amazonas, ficticiamentechamada de Itá, Eduardo Galvão des-taca a crença em sobrenaturais, deno-minados pelos moradores da vila de“companheiros do fundo” ou “caruanas”,que habitam o fundo dos rios e dos iga-rapés, “um ‘reino encantado’, espéciede mundo submerso” (GALVÃO, 1976,p. 67).

Estudando o sebastianismo na Ilhados Lençóis no Maranhão, Andradeconstatou que, naquele lugar, foi cons-truído um imaginário que legitima coti-dianamente a presença do Rei DomSebastião, sendo este reverenciado nosrituais de Pajelança e Mina. Também

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mostra que o Reino de Dom Sebastiãocompreende dois espaços distintos quese entrecruzam. “O mundo de cima,onde habitam os seus crentes/devotos,e, o mundo do fundo, moradia do pró-prio rei e de seus encantados”. Afirmaainda que há momentos em que taispersonagens “mantêm contatos e atra-vés de várias narrativas é produzida umavisibilidade do mundo do fundo, multi-plamente descrito para os habitantes decima pelos pajés, pais-de-santo e pesca-dores”. (ANDRADE, 2002, p. 84)

Na experiência de mães e filhas-de-santo, a manifestação do “marido do fun-do” e o papel que ele exerce se revelamem contextos específicos, podem ou nãoaflorar em certos rituais. Entretanto, omais significativo é que os “maridos dofundo” (em algumas ocasiões, mais queos “maridos da terra”) informam, de di-ferentes modos, as relações e decisõescotidianas daquelas mulheres.

Dona Alzira Gomes diz ter aprendi-do tudo que sabe com sua mãe, JoanaSilva Pereira. Para ela, ser mãe-de-santoé uma dádiva, um dom, e como tal, pro-vém de Deus. Ser mineiro ou mineira éuma obrigação, é algo que, em certo sen-tido, ultrapassa sua própria vontade, pois“quem não quer assumir a obrigação levacada tombo, às vezes nem sabe o que é,mas é o encantado”. Existe, desse modo,um envolvimento que escaparia às suasdecisões, que dependeria unicamente deuma determinação divina.

Dona Maria do Carmo Ribeiro tam-bém pontuou que não aprendeu ser mi-neira, mas que trouxe um dom que Deuslhe deu. Faz culto ao Espírito Santo eSão Sebastião (“nossos protetores”). Tra-balha com umbanda e quimbanda. Seuguia de cabeça é Urubatã de frente. Oguia do culto espírita é João de DeusCosta. Ela mencionou: “Urubatã, meuesposo do fundo, é um príncipe”. “Meumarido me levou na Casa de Nagô [emSão Luís] até Mãe Dudu. Ela fez minhainiciação na linha branca de Urubatã.A iniciação na linha negra foi com PaiTeodoro de Codó. Meu outro guia é Vi-torino, Caboco Roxo”.

A filha-de-santo Dona Francisca Sou-sa tem como guia Ubirajara. Para ela,“os encantados são uma luz divina”, queembora pertençam ao “mundo invisível”,com muitos segredos que não podem serrevelados, vivenciam íntimos contatoscom o mundo visível. Em “MaranhãoEncantado”, Mundicarmo Ferretti(2000b) salienta que os encantados esta-

belecem uma relação dialogal com oshomens, fazendo parte constitutiva davida social. Eles indicam tabus, valorese práticas, e castigam seus escolhidosquando não ouvidos por estes.

“Maranhão Encantado” é uma cole-tânea de narrativas maranhenses sobreentidades espirituais recebidas em tran-se em terreiros de mina, terecô, umban-da, salões de curadores e de pajés. Umadas narrativas, “Filho de Mãe d’Água”,conta que, “uma vez, no interior doMaranhão, uma mulher teve um filhocom um Mãe d’Água. A mulher viu tudoo que o Mãe d’Água fez com ela e ficougrávida, sem ter outra pessoa, fora aque-la ‘sombra’, que ‘teve passado’ com ela”.Aquele Mãe d’Água “era um caboclo[que] veio como homem”. Essa história,segundo M. Ferretti, lembra a de don-zelas que são “engravidadas por botosencantados que, assumindo forma hu-mana, vêm ter com elas” (FERRETTI,M., 2000b, p. 65).

A determinação divina da obrigaçãoé algo recorrente no Tambor de Mina.Assim, as filhas e mães-de-santo cumpri-riam suas obrigações por necessidademístico-religiosa e, de modo geral, aco-lheriam com estima seus maridos do fun-do. Dona Alzira, por exemplo, dedicadias exclusivamente para sua vida mari-tal com o seu marido no fundo, comoela própria acentua: “tem uns dias des-tinados ao marido no fundo, nesses diasmeu marido da terra não pode chegarperto. Tu sabe como é vida de homem emulher, não sabe?”. De fato, a relaçãoda mãe-de-santo, tanto com um maridoquanto com outro, é parte dinâmica deseu universo cotidiano e afetivo.

O caboclo de dona Alzira se chamaValdivino. Este é também seu marido nofundo. Ela comenta que “muitos mari-dos no fundo não se unem com o da ter-ra”. Muito marido da terra não quer quesua mulher “siga naquilo”. Também con-ta uma história envolvendo uma mãe-de-santo: “Uma vez, numa brincadeira, umamãe-de-santo, amiga minha, que tinhaum marido da terra que não aceitava omarido no fundo, na hora em que rece-beu o caboclo [o marido do fundo], numtambor, e ele viu o outro, saiu estapean-do. E tem muito caso desse...”. Muitasdoenças que a mãe-de-santo apresenta,segundo Dona Alzira, se devem a essetipo de desavenças entre maridos.

Para dona Alzira, o marido da terraque não aceita o do fundo “tá errado,

porque é um dote que Deus dá, é umdote que vai melhorar até a situaçãodele, pode até ganhar dinheiro com aqui-lo”. Ela insiste em lembrar a importân-cia da união entre os dois maridos, di-zendo que “pra não dar briga é só o ma-rido da terra fazer as coisas que o mari-do do fundo pede; deixar fazer os servi-ços, a brincadeira...”. E fala de sua ex-periência: “Eu nasci, Valdivino nasceucomo dote. Meu marido se une com elee o marido da minha mãe se unia com omarido do fundo dela”.

“Para que o marido do fundo não in-terfira na vida conjugal é preciso quehaja um acompanhamento do maridoda terra nas obrigações da esposa”, afir-mou dona Francisca Sousa, filha-de-santodo Tambor de Mina. Dona Maria doCarmo disse que quando tinha 34 anosseu marido (da terra) morreu. Nessa épo-ca, apareceram-lhe “muitos pretenden-tes, e de condição! Mas Urubatã nãodeixava”. Segundo a mãe-de-santo, “se omarido da terra fizer gosto fica com umavida em paz, se não, pode haver atémorte. Ele [o marido do fundo] diz praonde eu devo ir. Não adianta teimar”.

Nessa perspectiva, as relações entremães e filhas-de-santo e seus maridos dofundo parecem ultrapassar as obrigaçõesmístico-religiosas que são feitas às enti-dades de modo geral. Os maridos do fun-do assumem um poder que chega até ainterferir nas relações que filhas e mães-de-santo estabelecem com seus maridosda terra. A escolha do marido da terrapor uma filha ou mãe-de-santo, que tam-bém tem um marido no fundo, passa poruma relação de aceitabilidade do primei-ro por este último e, concomitantemen-te, por uma relação de respeito do mari-do da terra para com o marido do fundoe de união entre ambos.

Daqui, pode-se depreender que as re-lações de gênero são relações de poder,e como tal, não são estáticas, mas dinâ-micas. Sem dúvida, “na história e nopresente, a questão do poder está nocentro das relações entre homens e mu-lheres” (PERROT, 1992, p. 184). Poderé aqui compreendido sob a óptica fou-caultiana, como algo ao mesmo tempo“visível” e “invisível”, uma coisa investi-da em toda parte, que necessita de per-manente (re)negociação entre os atoresem cujas relações o poder se dissemina(FOUCAULT, 1993, p. 75).

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Dona Roxa não sabe exa-tamente o nome de seu mari-do no fundo, contudo o co-nhece em seus sonhos. “Sonhoabraçando e cheirando meumarido do fundo. Ele é mui-to bonito, louro, tem os olhosverdes. Quando não tô fazen-do certo minha obrigação vejoele de costa até que ele some”.Como é perceptível, estemarido no fundo tem seu per-fil identificado com o padrãode beleza masculina ociden-tal. Segundo a filha-de-santo,ele a beija nos sonhos, fazen-do-a acordar contente – “é tãobom ter um carinho”. Ambi-guamente, falou que “as obri-gações para o marido do fun-do são as mesmas feitas paraseu guia e as outras entida-des que recebe”, mas que“existem coisas que não po-dem ser ditas” acerca disso.

Pode-se sugerir que as vi-vências dessas mulheres comseus maridos do fundo e daterra são experiências cotidi-anas, que lhes imprimem um

sentido na vida, que chegammesmo a agir diretamente natomada de decisões em suahistória. Não se trata de umaexperiência mística num sen-tido antitético a uma experi-ência concreta. Aqui, o espi-ritual e o material imbricam-se na teia de conformação desua existência; o espaço eté-reo da mística e da religiãoestá associado ao mundo con-creto da vida, oferecendo umpainel das sensibilidades e damentalidade dessas pessoas ede suas práticas religiosas,mas também da sociedade, demodo geral, na qual elas es-tão inseridas.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Joel Carlos de Sou-za. Os Filhos da Lua: PoéticasSebastianistas na Ilha dos Len-çóis-MA. Dissertação (Mestradoem História Social) – Institutode Filosofia e Ciências Huma-nas, Universidade Federal doCeará, 2002.

BARBOSA, Viviane de Oliveira; BARROS, Antonio Evaldo Almei-da. Maridos do funda e da terra: gênero, imaginário e sensibilidadeno tambor de mina maranhense. Ciências Humanas em Revista,São Luís, Centro de Ciências Humanas, v. 2, n. 2, 2004.FERRETTI, Mundicarmo Maria Rocha. Desceu na Guma: o ca-boclo no Tambor de Mina em um terreiro de São Luís – a CasaFanti-Ashanti . São Luís: EDUFMA, 2000a.FLAX, Jane. Pós-modernismo e as relações de gênero na teoria fe-minista. In.: HOLLANDA, B. de H. (Org.). Pós-modernismo e po-lítica. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 11. ed. Rio de Janeiro:Graal, 1993.GALVÃO, Eduardo. Santos e Visagens. Um estudo da vida religio-sa de Itá, Baixo Amazonas. 2. ed. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília:INL, 1976.HAMA, Boubou; KI-ZERBO, Joseph. Lugar da história na socieda-de africana. In.: KI-ZERBO, Joseph (Coord.). História Geral daÁfrica. São Paulo: Ática / Unesco, p. 61-71, 1982.PERROT, Michelle. Os excluídos da história. Operários, mulhe-res e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.SÁ, Laís Mourão. Sobre a Classificação de Entidades Espirituais.In.: MATTA, Roberto da; PRADO, Regina de Paula Santos; SÁ,Laís Mourão. Pesquisa Polidisciplinar “Prelazia de Pinheiro”;Aspectos Antropológicos. São Luis: IPEI; CENPLA, 1975.SOUZA, Laura de Mello e. Ambigüidade amorosa. De santas a mulas-sem-cabeça. In.: ______. Inferno Atlântico. Demonologia e Colo-nização. Séculos XVI – XVIII. São Paulo: Cia. das Letras, p. 25-46,1998.TRINDADE, Liana. Prefácio. In.: FERRETTI, Mundicarmo Ma-ria Rocha. Maranhão Encantado. Encantaria Maranhense e Ou-tras Histórias. São Luis: UEMA Ed. 2000b.

MONOGRAFIAS

FERREIRA, Bruno Soares.Símbolos na capoeira - Da al-quimia à física quântica. SãoLuís, Comunicação Social –UFMA, 2008. Orientador: Jur-neli Dias Moraes.

RESUMO: Monografia sobrea capoeira e alguns de seus símbo-los. Estudo alquímico dos toquesde fundamento, de ginga, do jogode suas estratégias. Análise inter-disciplinar da Comunicação Soci-al através da Psicologia Analítica,Física Quântica e Taoísmo, expres-sa através de um ensaio com ima-gens mentais e fotografias p&b.

FIGUEIREDO, AnaméliaCruz. Da jamaica ao Brasil:Como o reggae é retratado namídia do Maranhão. São Luís,Comunicação Social –UFMA, 2008. Orientador:Glaydson Botelho.

RESUMO: O reggae fez umalonga trajetória ao sair da Jamai-ca, seu pais de origem, até sua che-gada ao Maranhão, onde encon-

RESUMOS E RESENHAStrou uma popularidade inegávelnas ultimas décadas. Durante essepercurso sofreu algumas transfor-mações e adaptações de acordocom a realidade sócio-cultural doEstado onde aportou, como exem-plo Bahia e Maranhão. Essa cons-tante presença do ritmo no dia-a-dia, na cultura do maranhense pos-sibilitou o surgimento de algumaspeculiaridades do estilo em SãoLuis. No tocante ao campo damídia, o que se pode perceber éuma intensa modificação desde aaceitação do ritmo pelos vínculosde comunicação de massa até a suatransformações ocorridas na vei-culação do reggae na mídia localdesde o primeiro formato ate a pro-dução atual, bem como a influên-cia que exerce nos freqüentado-res dos salões de reggae.

MARTINS, Léa Verônica Tei-xeira. O 3x4 de evangélicos,pais-de-santo e homossexuaisnas páginas de polícia dos jor-nais Folha de São Paulo e Jor-nal Pequeno. São Luís, Comu-nicação Social – UFMA, 2008.Orientador: Francisco Gon-çalves da Conceição.

RESUMO: Enfoca-se aconstrução da imagem de evan-gélicos, pais-de-santo e homos-sexuais nas páginas dos jornaisFolha do Maranhão e Jornal Pe-queno. Apresenta-se as teoriasdo discurso e da enunciaçãojornalística. Aponta-se o jorna-lismo como construção da rea-lidade através de recursos comocódigos, normas e regras doscampos da linguagem. Inclui-seas noções de jornalismo polici-al para explicarmos como ma-tutinos selecionam persona-gens da notícia.

SILVA, Márcia Andréa Tei-xeira da. Liberdade de culto:uma abordagem do processode diminuição às perseguiçõespoliciais em terreiros de cultoafro-brasileiro de São Luís, nadécada de 1960. São Luís,História – UEMA, 2008. Ori-entadora: Ana Lívia BomfimVieira; Co-orientadora:Mundicarmo M.R Ferretti.

RESUMO: Esta pesquisa sedireciona a um estudo acerca dasperseguições aos terreiros emSão Luís, analisando a respeitoda diminuição das coerções a es-sas casas de culto durante o perí-odo que compreende a década de1960. São observados dois ele-mentos que influenciam essaabertura às representações da re-ligião afro na cidade: fatores po-líticos no cenário nacional e noestado do Maranhão e a criaçãoda Federação de UMBANDA Es-pírita e Cultos Afro-Brasileirosdo Maranhão – entidade insti-tucional que oferece apoio jurí-dico aos terreiros a ela filiados,viabilizando suporte legal aoscultos. O trabalho remete-se auma perspectiva de estudo dasrepresentações culturais doscultos de matriz africana emSão Luís, não sob o ponto devista etnográfico, mas a partir doexame de um processo sócio-cul-tural da redução da intolerânciaexistente dentro da relação en-tre religião e Estado.

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JANELA DO TEMPOJANELA DO TEMPOJANELA DO TEMPOJANELA DO TEMPOJANELA DO TEMPO

Mundicarmo Ferretti2 Por Nonnato Masson23

23 Globo - 21 de junho de 1955. Foi respeitada a ortografia do texto original.24 Raimundo Nonato da Silva Santos – Nonnato Masson – escritor e jornalista maranhense, membro da Academia Maranhense de Letras, nasceu em Araioses, em 28/02/

1924, e faleceu em 08/03/1998.

A morte do bumba-meu-boi24

Estou lendo nos jornais que “é proibido aos cordões de bumba-meu-boi

percorrer as ruas da cidade, em demonstra-ções de suas danças características, o que sóserá permitido no perímetro suburbano apartir da esquina da Avenida Getúlio Vargase rua Senador João Pedro”.

Isso é triste, sabe? É triste para nós que opernambucano, o alagoano, carioca saibamser crime o celebrar-se a tradição nas ruas dacidade de S.Luiz do Maranhão.

Oh! agitada metrópole que expulsas, dastuas ruas moderníssimas, a brincadeira ingê-nua e poética do “bumba-meu-boi”.

Oh! tu que deixastes de ser Província e nãosuportas mais sôbre o asfalto dos teus logra-douros, os pés humildes dos teus filhos quedançavam sôbre as pedras dos bêcos e das la-deiras coloniais, enchendo as noites joaninascom a nostalgia profunda de suas toadas, quevinham do âmago e da sensibilidade da raçabrasileira como um “exultat” do teu povo!

Oh! tu , cidade cosmopolita, que renegaso que de mais nativo existe correndo nasveias de tua gente, eu sinto piedade de ti!Pois sombrio é o futuro, de quem renega oseu passado.

Que mal fará um “bumba-meu-boi”, dan-çando nestas velhas e esburacadas ruas de SãoLuiz, pelas noites de São João, de S.Pedro, deSão Tiago, de S. Felipe e de São Marçal?

A nota típica, característica, dos folgu-êdos joaninos e pedrinos, em São Luiz, sem-pre foi o “bumba-meu-boi”. Nas noites ver-melhas das fogueiras dos santos que gostamde fogo, o povo se agita, num encantamentoatávico, para ver os cordões com Pai Francis-co e Casumbá e ouvir as toadas de sinhô-meu-amo. É a alma popular que desperta, aosom das matracas e dos tambores, para asbodas com a tradição.São as três raças quese reencontram no noivado das lendas colo-ridas pelos fogos-de-artifício, embaladas pe-

los ritmos bárbaros que o negro das senzalase o índio das selvas seculares ensinaram eacalentada pela canção dolente do brancoque veio do outro lado do mar, compor essamistura que fez a nacionalidade.

E o que acontece, então? O povo que é feitode arroz de cuchá e peixe-frito, que tem no san-gue pimenta malagueta e caruru, corre ao JoãoPaulo para assistir o “bumba-meu-boi” dançar.

Mas o “boi” não aparece. Aquêles queainda conseguem manter acêsa a chama sa-grada da tradição, sem o auxílio de ninguém,lutando com os mais ingentes sacrifícios, sedeixam ficar no seu “habitat”, que é a Maio-ba, Vinhais, Furo, Vila do Paço, Ribamar,Guimarães, Cururupú.

E o que se vê é gente indo e vindo, pra láe pra cá, no largo do João Paulo, andandofeito bêsta, sem saber porquê. No mais, sãouns bailes imoralíssimos, fedendo a cacha-ça, e várias barracas anti-higiênicas, onde um“taquinho” de carne de porco com um piresde farinha caroçuda custa os olhos da cara.

Enquanto isso, no Recife à época tradi-cional, os “Maracatus”, subvencionados pelamunicipalidade, percorrem as ruas da legen-dária cidade, com o seu primitivismo e a suacoreografia encantadora.

Enquanto isso, o govêrno de Alagôas, no“mês das congadas”, ajuda os “lanceiros” nacompra de suas vestes características, a fimde que não desapareça da Crônica de Ma-ceió aquela brincadeira que é página viva dahistória e do folclore da terra.

Enquanto isso, em João Pessôa, as auto-ridades oferecem apôio, de geração a gera-ção, à realização dos “cordões dos Tabajaras”e êstes percorrem as ruas principais daquelacapital, despertando os sentimentos de bra-silidade na alma popular da gente paraibana.

Enquanto isso, pelas ruas festivas de Sal-vador, cheias de bandeiras que a Prefeituramanda confeccionar, e colocar nas sacadas

dos velhos sobradões, gente da “linha do fun-do”, com seus trajes primitivos e seus cos-tumes bárbaros e estranhos, desfilam naprocissão negra de Inhansã, em todo o es-plendor de sua tradição litúrgico-profano.

Enquanto isso, em plena Capital da Re-pública dos Estados Unidos do Brasil, quan-do chega o dia de Santa Bárbara, prestigiadaspela Polícia de Costumes, gentes dos terreirosde santo vão à Copacabana, em trajes deOgum e de Exú e deixam na beira da praia,dançando e cantando “Sarava”, os presentespara Yemanjá, senhora dessas águas todas.

A tradição do “bumba-meu-boi”, docu-mento de nossa evolução social e humana,“folha corrida” das nossas transformaçõesculturais, com profundas raízes na históriada terra se constitue, ainda, mesmo decaden-te, no seu regionalismo puro e simples, umvasto campo de estudo para os que se desti-nam a penetrar nos atavismos do nosso povo,seguindo as correntes que se entrelaçaramno caldeamento étnico da raça brasileira.

Temos notícia de que rarissimos “bum-ba-meu-boi” sairão êste ano. Organizar a“brincadeira” está custando uma fortuna.Penas, sêdas, arminho, instrumentos e ou-tros adereços não se conseguem com pou-co dinheiro. Os que fazem o “bumba-meu-boi” são homens pobres e, à falta de apôio ede auxílio, muitos já não “brincam” mais.

E como desapareceram o “Fandango”, a“Chegança”, o “Carimbó”, a “Dança de SãoGonçalo”, a “Caninha Verde”, o “Tambôrde Criôla”, está condenado à morte o nosso“Bumba-meu-Boi”.

E isso é triste, sabe?Em futuro bem próximo não será mais

preciso proibi-los de penetrar em nossasruas, São Luiz, que já tem tanta coisa, pas-sará a ser terra que já teve também o bum-ba-meu-boi mais famoso do Brasil...

NotíciasJandiá Peixe do Fundo é o título do ter-

ceiro CD do Tambor de Crioula União deSão Benedito mais conhecido como Tam-bor de Mestre Felipe, lançado dia 5 de abril,na casa do Maranhão. O disco tem 11 toa-das, todas de autoria do mestre, e foi produ-zido com a participação dos 37 integrantesdo grupo; direção musical do cantor e com-

positor César Nascimento e gravado no es-túdio Pepê Junior Produções. O título Pei-xe do Fundo é uma homenagem à mãe doMestre Felipe que cantarolava essa cantigaquando ele era pequeno. Nascido em SãoVicente de Férrer, região da Baixada Mara-nhense, em 1924, Mestre Felipe que brincatambor desde os 3 anos é mais um dos gran-

des mestres do Tambor de Crioula que, devi-do a idade (83) e problemas de saúde, já nãopode mais cantar nem bater tambor, masacompanha o grupo nas apresentações, com-põe músicas e ministra aulas para quem qui-ser aprender a tocar tambor de crioula emsua casa na Vila Conceição, no Coroadinho.Contato e venda do CD: fone 32532331.

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IPHAN ENTREGA CASA DAS MINAS À IRMANDADE JEJE

O presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –IPHAN, Luiz Fernando de Almeida, entregou, no dia 24 de abril, para a

chefe da Casa das Minas Jeje, Dona Denil Prata Jardim e à irmandade o prédioda Casa restaurado com recursos do Governo Federal. A entrega aconteceu às16:00 horas, com a presença da superintendente regional do IPHAN, KátiaSantos Bogéa, do prefeito de São Luís, Tadeu Palácio, secretário de cultura,Joãozinho Ribeiro, representantes do CCN, chefes de casas de culto afro, pes-quisadores e comunidade em geral. Como parte da solenidade, foi inaugurado oMemorial da Casa, com uma exposição de 22 fotografias antigas do acervo doterreiro, restauradas pelo fotógrafo Francisco Otoni, com recursos do IPHAN; elançada uma publicação com fotos da Casa reproduzidas por Edgar Rocha etextos do antropólogo Sérgio Figueiredo Ferretti, pesquisador e estudioso daCasa das Minas; Kátia Santos Bogéa, historiadora e superintendente do IPHANno Maranhão; e Stella Regina Soares Brito, arquiteta da superintendência regio-nal do IPHAN, ambas responsáveis pela instrução do processo de tombamentoda Casa das Minas. A obra de restauração da Casa das Minas, também denomi-nada Querebentã de Zomadônu (Terreiro de Zomadônu), foi iniciada em setem-bro de 2007, atendendo a uma demanda antiga das vodunsis, preocupadas comas instalações físicas do terreiro de culto afro-brasileiro mais antigo do Mara-nhão. A superintendente Kátia Bogéa revelou que uma das preocupações daSuperintendência Regional era concluir a restauração antes do final da Quares-ma, quando as atividades do terreiro, suspensas na Quarta-feira de Cinzas seriamretomadas, e principalmente, antes da Festa do Divino, uma das maiores daCasa, que atrai grande número de pessoas e que tem todo um preparo no períodoque antecede a semana entre Quinta-feira de Ascensão e Domingo de Pentecostes.A Casa das Minas Jeje foi tombada pelo IPHAN em 25 de novembro de 2002 emresposta ao requerimento da chefe da Casa, Dona Denil Prata Jardim, represen-tando a irmandade. Com o tombamento, a Casa passou a contar com a proteçãolegal do Estado Brasileiro por ser considerada patrimônio nacional que abriga umconjunto de elementos de valor simbólico e que fazem parte da memória culturalda sociedade brasileira. Antes desse terreiro maranhense, foram tombados peloIPHAN o terreiro da Casa Branca do Engenho Velho Ilê Axé Iyá Nassô Oká, em1987; e o Terreiro Axé Opô Afonjá, em 1999, ambos localizados em Salvador, noEstado da Bahia. De acordo com o parecer do conselheiro Luiz Phellipe de Carva-lho Castro Andrés, constante do processo de tombamento da Casa das Minas, aCasa “foi, por todos os especialistas que a estudaram até hoje, classificada como aúnica no nosso País, que cultua divindades originárias do antigo Reino do Daomée que tem como principal manifestação religiosa o culto às divindades denomina-das voduns, que são invocadas através de cânticos e danças e cuja maioria sãovinculadas à família real do Daomé. O conselheiro destacou, também, uma carac-terística peculiar da Casa: a gerontocracia feminina, na qual “o poder é transferidoem cadeia sucessória, de forma respeitosa e consensual de uma liderança paraoutra, segundo dotes de sabedoria, antigüidade no culto e equilíbrio demonstradosao longo da convivência entre elas.” Com a obra realizada pelo IPHAN, o Estadocumpre o seu papel de desenvolver ações de salvaguarda dos bens por ele protegi-dos. No caso da Casa das Minas, a intervenção nas instalações físicas é uma medidaque garante a preservação material de um bem cultural que abriga um conjunto deoutros bens culturais de natureza imaterial.

IMPÉRIOS DAS CASAS DE NAGÔ EDAS MINAS EM GRANDE ENCONTRO

Na manhã do Domingo de Pentecostes (11 de maio) aconteceu um fatomaravilhoso do ponto de vista religioso: os cortejos da Casa das Minas e

o da Casa de Nagô encontraram-se na esquina da Rua de Santana com a Rua SãoPantaleão. O cortejo de Nagô vinha da Igreja de Santo Antonio e o das Minas daIgreja de Santana. Momento singular. As bandeiras do Divino das duas casasseguiram cruzadas como duas espadas, simbolizando a união, o companheiris-mo, o respeito e a irmandade entre as casas; as caixeiras entoaram cânticos desaudação. O revezamento de canto de caixeiras das duas casas com os toques dabanda de música da Policia Militar, com músicas católicas, seguiu-se pela RuaSão Pantaleão até esquina com a Rua Santiago, quando o cortejo da Casa deNagô desceu a rua até a Casa na Rua das Crioulas. Dona Celeste (Casa dasMinas) disse que há mais de duas décadas não acontecia um encontro assim e quesignifica bom presságio. No encontro dos impérios as duas bandeiras se cruzame as caixeiras cantam “Vai meu barco a vela/meu navio sem pelouro/Veja comoé tão bonito/um espírito santo encontrar com o outro”.

PLANO DE SALVAGUARDA DO TAMBOR DE CRIOULA

A Gerência de Salvaguarda do Departamento de Patrimônio Imaterial/IPHAN realizou, dia 15 de maio, a primeira reunião com a finalidade de

estruturar as condições necessárias para a realização do Plano de Salvaguarda doTambor de Crioula cuja implementação deve acontecer ao longo dos próximoscinco anos. A reunião envolveu representantes de órgãos públicos de culturalocal, representantes de associações e de grupos de tambor de crioula, Gerente deSalvaguarda, Teresa Maria Paiva Chaves, Superintendente Regional do IPHANno Maranhão, Kátia Bogéa, e técnicos deste órgão.

NotíciasMEMBRO DMEMBRO DMEMBRO DMEMBRO DMEMBRO DA CMF “IMORTA CMF “IMORTA CMF “IMORTA CMF “IMORTA CMF “IMORTALALALALAL” D” D” D” D” DA AA AA AA AA ACADEMIACADEMIACADEMIACADEMIACADEMIA

MARANHENSE DE LETRASMARANHENSE DE LETRASMARANHENSE DE LETRASMARANHENSE DE LETRASMARANHENSE DE LETRASCarlos de Lima é o mais novo “imortal” maranhense. O folclorista,

pesquisador e poeta tomou posse, dia vinte um de fevereiro, da cadeiranº7, patroneada por Gentil Homem de Almeida e fundada por Alfredode Assis Costa, escritor que também foi um dos doze fundadores origi-nais, em 1908, da Casa Antonio Lobo. Aos 88 anos de idade, Carlos deLima foi recepcionado por Sebastião Moreira Duarte que o saudou emnome dos confrades. A solenidade abriu em grande estilo as comemora-ções do centenário da Academia Maranhense de Letras. Acadêmicos,familiares, amigos e mestres da cultura popular maranhense prestigia-ram a posse de Carlos de Lima.

PRESIDENTE DA CMF - DOUTORADO EM AVEIROSA presidente da Comissão

Maranhense de Folclore, MariaMichol Carvalho está em Aveiro/Portugal desde o dia 31 de março,cursando doutorado. Para tanto,pediu licença de seis meses àCMF, onde foi substituída pelaVice-presidente Roza Maria dos

BIBLIOTECA ROLDÃO LIMAOs usuários da Biblioteca do Centro de Cultura Popular Domingos

Vieira Filho que leva o nome do artista plástico e pesquisador da culturapopular Roldão Lima, estão sendo brindados com marcador de textocom foto e dados biográficos de Roldão e informações sobre o acervo dabiblioteca especializado em cultura popular. O CCPDVF fica na Ruado Giz, 205, Praia Grande. Site: www.culturapopular.ma.gov.br

Santos, atual presidente, em exer-cício. Com o afastamento de Mi-chol, a CMF passou a concentrarsuas atividades administrativas emsua sede, na Casa de Nhozinho(Rua Portugal, 185 – Praia Gran-de)-, para onde deverá ser endere-çada sua correspondência.

Foi aberto, no Instituto do Patrimônio Histórico e ArtísticoNacional – IPHAN, o processo de registro do Bumba-meu-boi doMaranhão como Patrimônio Cultural do Brasil. A solicitação foifeita por uma comissão formada por representantes dos gruposde Bumba-meu-boi, da Comissão Maranhense de Folclore, repre-sentando a sociedade civil, e do poder público que atua na área decultura popular, representado pelas instâncias federal, estadual emunicipal.

Com a abertura do processo, têm início a etapa de instruçãotécnica, que consiste na reunião, sistematização e produção dedocumentação histórica, etnográfica e audiovisual sobre o Bum-ba-meu-boi. O pedido de abertura do processo foi assinado poruma comissão composta pelos representantes dos grupos de Bum-ba-meu-boi dos sotaques de Costa-de-mão, Antoniel Alves dosSantos; Zabumba, Antonio Fausto Silva; Matraca, NatividadeCristina Costa Mendes; Baixada, José de Jesus Figueiredo; Or-questra, Wilson Lopes de Carvalho e Bois Alternativos, JailsonPereira Boas; além dos representantes da Superintendência doIPHAN no Maranhão, Kátia Santos Bogea; da Secretaria de Es-tado da Cultura, João Batista Ribeiro Filho; da Comissão Mara-nhense de Folclore, Roza Maria dos Santos; do Grupo de Pesqui-sa Religião e Cultura Popular, do Departamento de Sociologia eAntropologia da Universidade Federal do Maranhão, Sérgio Fi-gueiredo Ferretti; e da Fundação Municipal de Cultura, Raimun-do Edirson Gama Veloso. Paralelamente à instrução do processo,a Superintendência do IPHAN no Maranhão, com o apoio daSecretaria de Estado da Cultura, está realizando uma Campanhade Coleta de Assinaturas para o Livro de Adesão ao pedido deregistro do Bumba-meu-boi como Patrimônio Cultural do Brasil,em visitas a terreiros dos grupos durante os ensaios e a arraiais deSão Luís durante a temporada junina.

ABERTO PROCESSO DE REGISTRODO BUMBA-MEU-BOI NO IPHAN

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Perfil Popular

Mundicarmo Ferretti25 Averequete no Terreiro do Justino

CULTURAwww.culturapopular.ma.gov.br

25 Dra. Antropologia, pesquisadora de Religião afro-Brasileira e membro da CMF.

Em São Luís, no segundo domingo de Agos-to, se festeja São Benedito e muitos terreirostocam para Averequete, vodum associado aaquele santo preto que gosta de Tambor deCrioula, de mata e que, por isso mesmo, é reve-renciado na mina, no terecô, na umbanda e emterreiros de curadores.

Averequete ou Verequete é o chefe do ter-reiro do Justino, chefiado atualmente por Rai-munda Venância Sousa Viegas, mais conheci-da por Mundica Estrela. A casa foi aberta nofinal do século XIX (10 de agosto de 1896), porMaria Cristina Baima, filha da Casa de Nagô,quando aquela casa esteve com suas ativida-des suspensas. Apesar de ser muito antigo, deter um calendário litúrgico extenso, de ter sidoprocurado por jornalistas (AKOMABU, 1986) ede ter sido tema de monografia e dissertação deCiências Sociais (Marilande Abreu, 2002 e2005), é pouco conhecido por pesquisadores efreqüentadores de casas de mina. O terreiro seinstalou no sitio “Santo Antônio do Monte Ale-gre”, numa área na época de difícil acesso, pró-xima ao rio Bacanga, hoje denominada VilaEmbratel e tornou-se conhecido pelo nome domarido da fundadora. Depois de 1980, já nachefia de dona Mundica Estrela, quando pas-sou a ser realizado ali rituais de mesa-branca(astral), recebeu a nome de Casa Fé, Esperançae Caridade.

O Justino teve quatro mães-de-santo: MariaCristina, de Averequete, a fundadora, que che-fiou a casa durante cerca de 40 anos e que,segundo fontes orais, morreu com 130 anos;Antônia da Silva Raposo, de Averequete e João-zinho, que comandou a casa por uns 7 anos eque parece ter morrido em torno de 1954; Otá-via Enedina Serrão (Tatá), de Averequete, Reido Junco e Salineiro, que chefiou a casa por 27anos e faleceu em 1979, aos 107 anos; Raimun-da Venância Sousa Viegas (Mundica Estrela),nascida em 1927, que assumiu o comando dacasa após o falecimento de dona Otávia (Tatá).Dona Mundica Estrela foi iniciada na mina ena cura por dona Otávia (Tatá) e introduziu noJustino os rituais de mesa-branca. No Justinofoi também preparada Mundica Pacheco Fer-reira, a Mundica da Vila Passos, falecida noano de 2000, com 84 anos. Dona Mundica daVila Passos preparou o conhecido José Itapa-randi, que tem terreiro no Maiobão, hoje per-tencente ao município de Paço do Lumiar.

Dona Mundica Estrela tem como entida-des principais Barba Soeira, Joãozinho, Avere-quete, o patrono do terreiro, e Salineiro, entida-de da família de Rei do Junco, que “desce” maisfreqüentemente e que está à frente de todas asatividades do terreiro. Além das festas de san-tos e encantados e as obrigações especificas damina (entre elas: Bancada, Obrigação do Furá,Mesa dos Inocentes) dona Mundica Estrela fazfesta do Espírito Santo, Queimação de Palhi-nhas do presépio, realiza anualmente um ritualde cura/pajelança e quinzenalmente o de mesabranca aberto ao público.

Dona Mundica nasceu em São Luís, no Ita-qui. É uma mulher ativa, corajosa e amável.Começou a apresentar sinais de mediunidade,como visões, aos 8 anos de idade e levada aMaximiana, conhecida mãe de terreiro de SãoLuís, soube que seu dom era de nascença eque tinha linha de chefia – Bárbara Soeira. Aos13 anos de idade, no tempo de Maria Cristina,foi a uma festa no Terreiro do Justino, acompa-nhando a irmã da “gogozeira” (tocadora de fer-ro) de lá, recebeu sua senhora e depois delaoutra entidade. Ficou dois dias no terreiro, teveque fazer alguma coisa para ela. Foi para casade cabeça amarrada, mas voltou no dia seguin-te para devolver a “espada” (pano) que haviasido amarrado em sua cabeça e “caiu” novamen-te, dançando a noite toda. Meses após, numacura realizada em outro terreiro, “caiu” com DomJoão e depois com Joãozinho, dançando a noitetoda com ele. Ficou 13 anos sem ir a terreiro,mas começou a receber Salineiro em casa e, porvolta de 1953, já na época de dona Otávia, ter-

minou voltando ao Justino e se preparando, pois,como nos explicou em entrevista, “não ia ficardoida”... Ficou no terreiro 40 dias, nos últimos10 dias podia sair do quarto e conversar comsua mãe-de-santo, quando não havia na casapessoas de fora.

Foi preparada por Tatá na Cura e na Mina,mas, como algum tempo depois começou a verfreqüentemente espíritos e guias, passou a fre-qüentar sessões astrais (de mesa branca). Foina de dona Totó, na Coréia, que recebeu Pedrodos Astros e soube que podia abrir sessão. De-pois de estar participando daquela sessão maisou menos um ano, dona Totó viajou e ela inter-rompendo aquele trabalho adoeceu e ficou ummês sem andar. Quando aquela voltou, foi acon-selhada por ela a realizar sessões em casa, elogo voltou a andar. E, assumindo a chefia doJustino, levou a sessão para lá.

Mundica Estrela é muito querida no terreiroe bastante procurada por pessoas da Vila Em-bratel que tem “perturbações espirituais”. Suasfestas costumam levar as terreiro pessoas de di-ferentes credos religiosos. Suas relações com sa-cerdotes e militantes católicos é muito boa, prin-cipalmente com os cambonianos, congregaçãoque trabalha na África e que desenvolve traba-lhos em comunidades carentes ou de baixa-ren-da. Mas já teve problemas com grupos evangéli-cos do bairro que, mal informados sobre religiãoafro-brasileira, lançam sobre o terreiro suas des-confianças e dirigem a ele ameaças. Uma boaparte do bairro Vila Embratel é fruto de invasãode área que já pertenceu ao terreiro, ocorridalogo após o falecimento de Tatá, mãe-de-santo eantecessora de dona Mundica Estrela.

Quando fez o seu preparo no terreiro doJustino dona Mundica Estrela era casada comum homem que não gostava muito daquelasexperiências religiosas. Separou-se dele e maistarde casou-se com seu João Pernambuco, quejá colaborava com o terreiro e que dá grandeapoio a ela. Teve com ele três filhos, mas ne-nhum deles está vivo. Mas, apesar de ter ape-nas uma filha-de-santo com iniciação completae de ter realizado nas demais apenas uma “fir-meza”, para poderem dançar mina, a continui-dade do terreiro do Justino não parece ameaça-da. Na falta dela alguém deve assumir o co-mando do terreiro e receber Averequete, o donoda casa, tal como ela e as três mulheres que aprecederam no cargo.