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A FESTA DE SÃO PEDRO EM PONTA GROSSA DOS FIDALGOS – APONTAMENTOS
ETNOGRÁFICOS SOBRE A CELEBRAÇÃO DO SANTO PESCADOR
Thais Nascimento Cordeiro
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia PPGSA,
do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos para obtenção do título de Mestre em
Sociologia (com ceoncentração em Antrpologia).
Orientadora: Profª. Drª. Elina Gonçalves da Fonte Pessanha
Coorientadora: Profª. Drª. Karina Kuschnir
Rio de Janeiro
Março de 2009
Livros Grátis
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1
NASCIMENTO, Thais.
A Festa de São Pedro em Ponta Grossa dos Fidalgos – Apontamentos Etnográficos sobre a Celebração do Santo Pescador / Thais Nascimento Cordeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, PPGSA, 2009.
VIII – 103f. il.
Orientadora: Profª. Drª. Elina Gonçalves da Fonte Pessanha Coorientadora: Profª. Drª. Karina Kuschnir
A Festa de São Pedro em Ponta Grossa dos Fidalgos – Apontamentos Etnográficos sobre a Celebração do Santo Pescador (mestrado) Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, 2009.
1. Festa de São Pedro. 2. Ritual. 3. Ponta Grossa dos Fidalgos. 4. Lagoa Feia I. Pessanha, Elina Gonçalves da Fonte; Kuschnir, Karina. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia. III. A Festa de São Pedro em Ponta Grossa dos Fidalgos – Apontamentos Etnográficos sobre a Celebração do Santo Pescador.
2
Todas as minhas humildes reverências aos Pés
de Lótus de Sri-Bhagavan, sem cuja a
inspiração esse trabalho não seria possível.
Em Memória de Regina Márcia Cordeiro.
3
Resumo: Ponta Grossa dos Fidalgos é um povoado pesqueiro localizado no interior do estado do
Rio de Janeiro, às margens da Lagoa Feia. Um dos eventos rituais mais importantes do povoado
é a festa de São Pedro, Santo protetor dos pescadores, comemorado em junho. O envolvimento
de um vereador na organização da festa de São Pedro divide a população local sobre a influência
política na festa religiosa e ressalta conflitos existentes em torno da disputa de poder sobre a
organização do festejo. Nesse contexto, as memórias de um modelo antigo dessa festa são
recuperadas e comparadas à festa atual. As lembranças da velha festa de São Pedro evocam a
Ponta Grossa dos Fidalgos do “tempo dos antigos”, e, com ela, um modo de organização social
que não existe mais. Este passado é usado como argumento retórico para confirmar ou questionar
o presente.
Palavras-chave: Festa de São Pedro – Ritual – Ponta Grossa dos Fidalgos – Lagoa Feia.
Abstract: Ponta Grossa dos Fidalgos is a fishing community located in Rio de Janeiro state, on
the edges of Feia Lagoon. One of the most important ritual events of the commnunity is the Saint
Peter festivity, the fishermen protector saint, celebrated in June. The involvement of a local
politician in the organization of Saint Peter feast divides the local population opinion about the
political influence on the religious feast, at the same time, it reinforces the existing conflicts
around the dispute of power on the festivity organization. In this context, the memories of an old
feast style are recalled and compared to the actual one. The old Saint Peter feast memories recall
the Ponta Grossa dos Fidalgos of the “ancient time”, and, with it, it is reminded a mode of social
organization that does not exist anymore. This past is used as a rhetorical argument to confirm or
to question the present days.
Keywords: Saint Peter Feast – Ritual – Ponta Grossa dos Fidalgos – Feia Lagoon.
4
AGRADECIMENTOS
Uma vez li em algum lugar que amigos são anjos que aparecem em nossas vidas para nos
ajudar em nossa caminhada. Muitos foram os anjos que cruzaram meu caminho desde a
graduação até aqui, e que contribuíram de forma direta ou indireta para que este trabalho fosse
concluído.
Quero começar a agradecer aos meus colegas do mestrado, à melhor turma à qual eu
poderia pertencer, pelo companheirismo e amizade que nasceu entre nós. E deixar meu carinho
especial para Edilson Pereira e João Paulo Reis, pela acolhida e pelos momentos bons e tensos
que compartilhamos.
Ao meu amigo e orientador da graduação, Arno Vogel, e também a Vera Vogel, Mariana
Lima e Brígida Renoldi, pela amizade, força, incentivo e por abrirem as portas de sua casa pra
mim
Aos meus amigos André Zamana, Camila Daniel, Mariana Alves, Natacha Jabor, Luisa
Borges, Daniel Caetano, Rafael Caetano e Tahiana Fernandes, por tantas coisas que, se fossem
colocadas aqui, resultariam em páginas e páginas de agradecimentos.
Aos meus amigos de aventuras etnográficas, em especial Bonnie Azevedo e Lorena de
Oliveira e Alves, amigas com quem o contato e a amizade não esfriaram com o término do
período de campo.
Às queridas amigas que me ajudaram em momentos de profundo desânimo com o
trabalho, obrigada pela associação: Sri Radhe devi dasi (Samira Simões), Aline Codeço e Liliane
d’Almeida.
Meu muito obrigada aos Professores Marco Antonio da Silva Mello e Karina Kuschnir,
pelo apoio e incentivo, e pelas valiosas sugestões na banca de qualificação, quando eu me
encontrava desmotivada para continuar este trabalho. A Karina por todas as sugestões e o
trabalho que teve comigo depois disso também.
A Elina Pessanha, minha querida orientadora, que me salvou tantas vezes.
À minha família que, mesmo sem entender (até hoje) em que consiste meu trabalho, me
deixou livre para escolher o meu caminho. E à minha eterna segunda família: Suze, Juliana,
Thereza Cristina e Francisco José.
E por fim, com um carinho muito especial, meu muito obrigada pela paciência, amor e
dedicação em todos esses anos a você, Carlos Abraão Moura Valpassos. Esse trabalho é, de certo
modo, seu também.
5
Hácele Dios al hombre el día de fiesta, para que se le dé todo y él se da casi
todo a sus deleites, muchas veces a sus maldades.
Juan de Zabaleta
6
Índice
INTRODUÇÃO 7
NO CAMINHO DE PONTA GROSSA DOS FIDALGOS 8
PARTE I 19
O LUGAR 19
PONTA GROSSA DOS FIDALGOS: O LUGAR 20
O “TEMPO DOS ANTIGOS” 28
PARTE II 34
A TRADICIONAL FESTA DE SÃO PEDRO EM PONTA GROSSA DOS FIDALGOS 34
AS FESTAS DE SÃO PEDRO 35
2002 35
2003 40
2004 43
2005 49
2006 55
PARTE III 59
A FESTA É MAIS QUE FESTA: REFLEXÕES SOBRE AS COMEMORAÇÕES DO SANTO PESCADOR 59
PENSANDO O RITUAL 60
PENSANDO A FESTA 68
PARTE IV 76
EM BUSCA DA FESTA PERDIDA 76
CANOAS E ATRASO 77
COMO O POVO VÊ A FESTA 82
O DISCURSO DO RETORNO 87
CONSIDERAÇÕES FINAIS 96
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 102
7
INTRODUÇÃO
8
No Caminho de Ponta Grossa dos Fidalgos
Toda jornada tem um primeiro passo e não foi diferente com esta dissertação. Meu
“campo” começou a ser delineado antes mesmo que eu soubesse que ele seria “meu”. Posso
dizer que comecei a envolver-me com aquilo que viria a ser minha dissertação de mestrado no
ano de 2002, quando, ainda na Universidade Estadual do Norte Fluminense, onde fiz meu
Bacharelado em Ciências Sociais, o Professor Arno Vogel procurava por alunos que pudessem
trabalhar com ele numa pesquisa sobre a pesca artesanal em Ponta Grossa dos Fidalgos. Os
alunos que tomaram este tema como seus projetos de iniciação científica foram José Colaço Dias
Neto, meu colega de classe, e Carlos Abraão Moura Valpassos, então meu veterano e amigo
íntimo que viria, anos mais tarde, a se tornar meu marido.
Naquele contexto, Ponta Grossa dos Fidalgos freqüentemente se fazia presente nas
conversas dos corredores da universidade assim como nos momentos de descontração em bares e
mesmo nas festas dos estudantes. Aqueles eram os primeiros estudantes, com os quais eu tinha
contato, a empreender um “trabalho etnográfico” e as histórias do “campo” despertavam em mim
um certo fascínio. As narrativas expunham diversas dificuldades enfrentadas na inserção naquele
outro universo, se é que podemos falar desse modo, mas também giravam em torno das gafes
cometidas por aqueles aspirantes a antropólogos.
Foi numa dessas conversas que Carlos Abraão me convidou a fazer uma curta visita ao
arraial, apenas para descobrir a data e o horário oficiais da abertura da festa de São Pedro.
Naquele dia percorri pela primeira vez os 35km que separam a sede do município de Campos
dos Goitacases de Ponta Grossa dos Fidalgos. Passamos por Donana e Goitacases antes de
chegar ao distrito de Tócos. Eu já conhecia os dois primeiros distritos, ainda que de passagem,
pois ficam na mesma estrada que leva à praia campista de Farol de São Tomé. Não me
recordava, contudo, de já ter visitado Tocos. Após virar à direita no local conhecido como “trevo
de Goitacases”, entramos na estrada RJ 236, já no distrito de Tócos. A paisagem era tomada por
canaviais, de onde se destacava, imponente, o prédio jesuíta do antigo Solar do Colégio, onde
hoje funciona o Arquivo Público Municipal de Campos.
No distrito de Tócos havia uma placa indicando a direção e o nome dos sub-distritos
pelos quais passaríamos antes de chegar o arraial de pescadores. O cheiro de vinhoto, que é
possível sentir desde Goitacases, tornava-se cada vez mais forte à medida que nos
aproximávamos da Usina Paraíso, em Tócos. Era época de moagem e por isso muitos caminhões
carregados de cana-de-açúcar transitavam por aquelas estradas.
9
Foto: Carlos Abraão Moura Valpassos - 2002
Placa de Indicação do Caminho de Ponta Grossa dos Fidalgos em Tócos.
Passamos então pelos locais que mais tarde soubemos que se chamavam Coqueiros de
Tócos, Panta Leon e Caxias de Tócos antes de percorrer a sinuosa estrada municipal (CA 116,
chamada pelos pontagrossenses de “Estrada Zéca Póvoa”) que leva até Ponta Grossa dos
Fidalgos.
Foto: Cyntia Jorge - 2005
Pessoas sentadas no banquinho em frente à casa de Zé Lisboa (à direita)
10
Esta estrada, ao se cruzar com a principal rua do povoado, a João Cabral Neto, amplia-se
formando um largo cruzamento asfaltado de ruas conhecido como “Praça do Ingá”. Numa das
esquinas deste cruzamento pude ver um mercadinho. Em frente a quase todas as casas havia um
banquinho de madeira preso ao chão onde os moradores se sentavam para observar o movimento
da rua e conversar nas horas vagas.
A estrada Zéca Póvoa continuava numa rua cheia de casas que culminava na Lagoa Feia,
que não podia ser vista dali. Percorremos os cerca de 2,5km de extensão da rua João Cabral
Neto, indo desde o lugar chamado Ingá até a Ponta, na extremidade leste do arraial1.
Neste rápido passeio pelo povoado vi quatro igrejas: uma Católica, uma Batista, uma
Presbiteriana e uma Congregação Cristã do Brasil. Mais tarde descobriria que o povoado possui
também uma Assembléia de Deus, mas não pude identificá-la naquele momento porque não
possuía, como ainda não possui, qualquer placa ou letreiro indicativo.
A rua que cruza a João Cabral Neto para levar à Capela de Nossa Senhora da Conceição,
como é chamada a Igreja Católica local, é a mesma que leva ao porto principal do povoado, o
Porto da Beirada, onde se localiza o Pesque-Pague.
1 Um mapa detalhado do Arraial encontra-se em anexo.
Rua João Cabral Neto
Pesque Pague
Porto da aBeirada
Estrada para
Campos
Ingá Beirada Ponta
Praça do
Ingá
Praça da Beirada
Igreja Nossa Senhora da Conceição
Lagoa Feia
Croqui de Ponta Grossa dos Fidalgos. (VALPASSOS: 2006)
11
Foram estas as paisagens que pude ver naquela minha primeira visita à Ponta Grossa dos
Fidalgos. Naquele primeiro contato, que durou menos de uma hora, notei que éramos
constantemente observados pelos moradores locais, que nos dirigiam olhares que me transmitiam
uma certa desconfiança. Era um sentimento ambíguo, pois do mesmo modo que os sentia
desconfiados com relação a nós, sentia também a existência de uma preocupação em nos receber
e tratar bem. Éramos estrangeiros naquele lugar e sabíamos que, apesar de nossas intenções não
serem ainda claras para eles, podíamos contar com sua hospitalidade.
Este primeiro contato gerou uma impressão positiva sobre o lugar e também sobre as
possibilidades de empreendimentos de pesquisa. Isso me fez procurar o Prof. Arno Vogel e,
desse modo, integrar-me ao grupo de pesquisa que então se constituía.
No dia 19 de outubro de 2002 fui pela primeira vez à Ponta Grossa dos Fidalgos como
pesquisadora. Estava interessada em temáticas relacionadas ao parentesco, à transmissão de
patrimônio, ao casamento, aos papéis sociais e, talvez, às questões de gênero.
Nessa época já havia uma casa alugada no arraial que servia como base de pesquisa, e
naquele dia fui com Carlos Abraão na casa de um casal de moradores para buscar as chaves da
nossa “base”. Quando lá chegamos, presenciamos uma briga entre o casal e, mesmo sem nunca
ter me visto na vida, a mulher me abraçou chorando e reclamando do marido, que não gostou
muito da atitude dela. Assim, ela me tomou como amiga e confidente, de forma que só
conversava comigo sobre o quão ruim era seu marido, sem responder ao que eu perguntava nem
me apresentar às outras mulheres do povoado. Meus colegas de pesquisa só tinham contato com
os homens e eu tinha dificuldade em estabelecer contato com as mulheres do lugar.
Além disso, tive outros pequenos problemas no campo que me pareciam enormes diante
de minha inexperiência e insegurança. O empreendimento etnográfico numa comunidade rural
revelou-se bastante árduo para mim durante todo o período em que lá trabalhei, de 2002 a 2007,
ainda que no início tenha sido mais sofrido. Eu sofria as mesmas dificuldades dos meus colegas
em função de nossa inexperiência como etnógrafos, todavia no meu caso havia um complicador
a mais: por alguns meses fui a única mulher numa equipe masculina.
Os espaços de sociabilidade e as relações entre homens e mulheres eram bem
delimitados. Como não tínhamos ainda esta percepção e eu ainda não estabelecera contato com
interlocutores específicos, achávamos natural que minhas primeiras incursões a campo fossem
em companhia dos rapazes, embora houvesse lugares que eu não pudesse frequentar. Os bares,
por exemplo, não eram frequentados por mulheres, pois a estas poderiam ser dirigidos
comentários maliciosos. Um incidente ocorrido no campo com uma colega de pesquisa ilustra
12
muito bem essa interdição moral que as mulheres sofrem com relação a frequentar os espaços
sociais considerados masculinos.
Certa vez, uma das moças do grupo de pesquisa estava conversando com um ex-pescador
de cerca de 60 anos em frente a uma casa. Na porta dessa casa, alguns homens sentados num
banquinho observavam em silêncio a conversa do ex-pescador com a pesquisadora. De repente,
uma mulher surge na porta da casa vizinha e chama por um dos homens que estavam no
banquinho. A mulher parecia irritada, e depois de levar para casa aquele homem, que era o
marido dela, voltou para a porta da casa segurando uma vara de madeira numa das mãos e
batendo-a na outra mão, enquanto olhava para a pesquisadora com expressão aborrecida, batendo
a ponta do pé impacientemente. Desconcertada, a pesquisadora pediu licença ao ex-pescador, ao
qual não conseguia mais prestar atenção às palavras, e foi até o bar de Dóba e Elinha beber uma
coca-cola e se acalmar. Como chegara muito nervosa, Elinha perguntou o que acontecera, e a
pesquisadora relatou. Foi então que ela escutou Elinha dizer “Mas também, né, você fica
frequentando bar, você quer que ela pense o que?” A pesquisadora só ia ao bar de Dóba e
Elinha, e ao de sêo Tico para conversar com os próprios donos dos estabelecimentos, que além
de serem alguns dos primeiros interlocutores estabelecidos no campo, eram também pessoas que
conheciam e estavam sempre dispostas a colaborar com nosso trabalho etnográfico. Assim, este
episódio que ficou conhecido entre nós como “a história da vara” explicitou as sanções morais
que as mulheres poderiam sofrer por serem constantemente vistas nos bares, ainda que não
estivesse bebendo. Os bares e as pescarias eram, pois, os lugares ideais para os meus
companheiros de pesquisa, pois lá estavam sempre reunidos homens a conversar sobre pesca,
mas não somente sobre isso. Nesses espaços de sociabilidade masculino conversava-se também
sobre as mulheres e se aprendia a “ser homem”, ou seja, os homens mais velhos ensinavam aos
mais jovens como um homem deve se comportar com relação às mulheres.
Quando estava com os rapazes, pela interdição moral que eu sofria, eles não podiam ir
aos bares coletar informações. Houve mesmo uma ocasião em que fui explicitamente impedida
de acompanhar os rapazes numa saída de barco pela Lagoa, pois só havia homens na embarcação
e minha presença poderia causar constrangimentos aos tripulantes.
Os interlocutores de meus companheiros eram homens e por isso eu me via incapaz de
estabelecer com eles uma relação etnograficamente proveitosa. Além disso, não conseguia me
aproximar das mulheres do povoado, pois só andava com os rapazes, que não possuíam relações
com as mulheres.
13
Estes não foram meus únicos percalços no trabalho etnográfico. Certa vez, José Colaço
e Carlos Abraão entrevistavam um atravessador de peixes2 de Ponta Grossa dos Fidalgos. Um
pouco distante deles, apenas observando a entrevista, estávamos eu e João Paulo Gama de
Oliveira, o quarto estudante a se integrar à equipe. Em um dado momento, apareceu um
marimbondo e João o matou. Eu disse, então: “Valeu, João. Salvou minha vida, porque eu sou
alérgica, sabe?”, e coloquei a mão no ombro de João Paulo. Karina Kuschnir percebe, analisando
sua experiência etnográfica junto a dois vereadores do Rio de Janeiro, que “uma antropóloga
mulher talvez seja exposta com mais facilidade e recorrência a questões morais do que
pesquisadores do sexo masculino”.3 Esta foi uma das primeiras coisas que aprendi no campo,
quando, no dia seguinte, sabendo que eu era namorada de Carlos Abraão, Dóba4 e alguns outros
pescadores que estavam no local, dissessem a João que “a menina de Abraão estava dando em
cima” dele. João e José tentaram explicar que fora uma atitude inocente, mas Dóba ficou
desconfiado de mim. Este acontecimento foi crucial para chamar minha atenção para a forma
como se dão as relações de gênero no povoado. Naquele momento, eu pretendia trabalhar com o
tema da casa, do parentesco e do casamento, então considerei positivo aquele fato, mesmo tendo
que redobrar meus cuidados ao me dirigir a José e João no campo. Os indícios de flertes e
paqueras em Ponta Grossa dos Fidalgos rapidamente se mostraram distintos daqueles com os
quais eu estava acostumada e, por isso, era necessário manter sempre um distanciamento
estudado para não criar situações embaraçosas no campo.
Passei então a andar sempre na companhia de Carlos Abraão, evitando muitos contatos
com meus outros colegas. Foi assim até que uma outra pesquisadora se integrasse ao grupo, o
que aconteceu em janeiro de 2003. A partir dali passei a ter uma outra companhia feminina, o
que ampliou meu campo de ação – até então limitado aos contatos de Carlos Abraão. Além
disso, pouco a pouco os integrantes do grupo de pesquisa foram se tornando mais íntimos dos
habitantes locais, o que ajudou a evitar mal entendidos e a criar um ambiente menos coibido no
campo.
Estes problemas iniciais me deixavam bastante desanimada. Sentia-me sempre tendo que
agir com enorme cautela para não infringir normas que nem mesmo conhecia. Consegui, no
entanto, superar estas questões, mas logo me deparei com outro problema: por sempre fazer
etnografia ao lado de meu namorado passei a ser vista não como pesquisadora, mas como “a
2 Um atravessador é alguém que vende o pescado da Lagoa Feia para os comerciantes do mercado de Campos dos Goitacases. 3 Kuschnir: 2003, p. 29. 4 Um dos primeiros moradores com quem meus companheiros travaram contato, e que veio a se tornar um de seus principais interlocutores.
14
namorada de Abraão”. Ainda que meus maiores interlocutores no campo me vissem como
pesquisadora, havia pessoas que acreditavam que eu estava ali somente acompanhando meu
namorado.
É importante ressaltar que meu comportamento no campo não era de “namorada”, mas
que por eu estar sempre ao lado de Carlos Abraão e por ser de conhecimento geral nosso
relacionamento, algumas pessoas acreditavam que eu estava somente “ajudando”, e não
trabalhando.
Para tentar resolver essa questão, passei a ir ao campo sozinha ou com outras pessoas do
grupo, e quando eu estava com um rapaz e nós conhecíamos um(a) novo(a) morador(a) de Ponta
Grossa dos Fidalgos, este(a) sempre perguntava se éramos namorados, e nós respondíamos que
éramos somente colegas de trabalho. No começo éramos olhados com desconfiança, mas aos
poucos as pessoas foram compreendendo que as relações de proximidade que os membros do
grupo de pesquisa mantinham entre si não possuíam uma conotação sexual.
Estava claro para mim que o sexo do pesquisador representava uma questão de suma
importância na elaboração de um trabalho etnográfico, ao contrário do que sugeriu Evans-
Pritchard5. Ser homem ou mulher, naquele contexto, significava um passaporte para âmbitos da
vida social que, se não eram inacessíveis a um dos sexos, eram ao menos de difícil acesso. Isso
ficou ainda mais nítido quando o número de pesquisadoras foi se ampliando. Ao passo que os
pesquisadores tinham acesso a informações sobre técnicas de pesca, conhecimentos
naturalísticos, conflitos ambientais e questões políticas, as pesquisadoras passaram a coletar
informações sobre economia doméstica, questões relacionadas à organização familiar, conflitos
relacionados às fofocas locais, adultérios e outras coisas mais. Enquanto os homens faziam
trabalho de campo na Lagoa e nos bares, as pesquisadoras do grupo realizavam as entrevistas nas
casas das mulheres pontagrossenses, na igreja ou em outros ambientes de “socialização
feminina”.
As próprias histórias e o tipo de conhecimento ao qual se teve acesso depois da entrada
das moças na equipe de pesquisa6 mudaram. Se antes, quando havia somente homens no grupo
5 1978. 6 Cada membro do grupo de pesquisa focou em um determinado tema em seus trabalhos de conclusão de graduação em Ciências Sociais. Em seu trabalho monográfico José Colaço Dias Neto tratou de como através do uso dos saberes relativos à geografia lacustre, aos hábitos da ictiofauna e das técnicas de captura, se criam os “pesqueiros”, locais onde os pescadores propiciam a constante presença de peixes. Discutiu, ainda, o direito de uso destes pesqueiros e as maneiras empregadas, nas conversas sobre pescarias, para que a localização dos pesqueiros não caia em domínio público. Já em sua dissertação de mestrado, Colaço tratou dos diversos calendários de reprodução de peixes existentes: o calendário biológico, o calendário político e o calendário do IBAMA. O conhecimento que os pescadores têm dos hábitos de cada espécie através de um complexo sistema classificatório constituiu o assunto principal da monografia de João Paulo Gama de Oliveira. Carlos Abraão Moura Valpassos analisou em seus trabalhos de graduação e mestrado como se articularam os grupos sociais e as diferentes perspectivas sobre as quais
15
de pesquisa, as histórias a que se tinha acesso versavam sobre pescaria, a Lagoa Feia, política e
futebol, após a inserção das mulheres no grupo etnográfico tomamos conhecimento acerca dos
conflitos familiares, das brigas ocorridas entre os moradores do lugar, das práticas religiosas e
dos namoros, casamentos e envolvimentos sexuais das pessoas no povoado. Minha história
pessoal de inserção no campo, portanto, fornece importantes elementos reveladores das
concepções nativas de gênero.
O processo de percepção destas sutilezas do trabalho etnográfico, todavia, foi bastante
lento e acabou por gerar um afastamento de minhas intenções iniciais de empreender a pesquisa
sobre as questões relacionadas ao parentesco e à família em Ponta Grossa dos Fidalgos.
Gradualmente fui prestando cada vez mais atenção nos comentários que as pessoas
faziam sobre a celebração da festa de São Pedro. Nesse ínterim, eu já havia percebido que a
Igreja Católica do arraial era um espaço freqüentado sobretudo por mulheres, o que facilitaria
meu acesso àquele universo. Eu, que já tinha algum interesse em assuntos como religião, crenças
e ritual, notei que a festa de São Pedro era o palco de grandes polêmicas no arraial, além de ser o
maior evento ritual do lugar. Desse modo, acabei por mudar de tema e tomar a celebração do
Santo Pescador em Ponta Grossa dos Fidalgos como meu objeto de pesquisa.
Eu, que fui criada numa família kardecista, estudaria então uma festividade católica. O
lado positivo disso para a pesquisa foi meu grande estranhamento diante daquele universo
simbólico: não conhecia os ritos e nem mesmo a hierarquia eclesiástica, desconhecia os cânticos
e muitos dos costumes que faziam parte das celebrações que viria a estudar. Nesse sentido,
acabei por realizar aquele exercício tão caro à formação antropológica: o de transformar o
familiar em exótico e o exótico em familiar.
Para tanto foi de grande valia a parceria com as novas pesquisadoras daquele grupo de
jovens estudantes: Bonnie Moraes Manhães de Azevedo e Lorena de Oliveira e Alves, duas
moças criadas em contato direto com a doutrina católica. Eram elas que me forneciam as
informações necessárias para entender os mitos e os símbolos que se apresentavam a mim
estes grupos conceberam o espaço lagunar na década de 1970, quando os pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos resolveram paralisar por duas vezes as obras do DNOS - Departamento Nacional de Obras de Saneamento, cuja as máquinas empreendiam a construção de um canal submerso na Lagoa Feia. Lorena de Oliveira e Alves mostra em seu trabalho monográfico como a Associação de Pescadores Artesanais de Ponta Grossa dos Fidalgos apresenta as características de um novo modelo de clientelismo e como o órgão representativo dos pescadores exerce a importante tarefa de mediação entre a comunidade e os órgãos governamentais relacionados ao meio ambiente. A participação e o papel da mulher no arraial e na economia doméstica, por sua vez, constituem o tema abordado por Flávia Rúbia Arêas, em sua monografia. O trabalho de Cyntia dos Santos Jorge trata das alianças matrimoniais em Ponta Grossa dos Fidalgos focalizando o que lá se chama de ‘casamento-fugido’, termo que designa a prática local da abdução da noiva, ou ainda, de fuga consensual, com vistas à realização do casamento. A festa de Nossa Senhora da Conceição, padroeira do povoado, foi o tema da monografia de Bonnie Moraes Manhães de Azevedo, na qual mostra que a religiosidade local se apresenta como uma importante fonte de identidade, e analisa as relações sociais em torno da igreja.
16
durante as missas que vim a assistir ao longo do trabalho de campo e também nas celebrações do
Santo propriamente ditas.
É interessante notar que toda minha experiência de campo foi em companhia de meus
colegas de pesquisa. Em poucos momentos me vi “sozinha”, ou seja, sem ninguém do meu grupo
de referência, em Ponta Grossa dos Fidalgos. Desse modo, nunca tive aquele sentimento que
caracteriza o trabalho de campo como um rito de passagem na formação antropológica7 e que foi
expresso de maneira primorosa pelo grande etnógrafo que foi Bronislaw Kaspar Malinowski:
“Imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipamento, numa
praia tropical próxima a uma aldeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o
trouxe afastar-se no mar até desaparecer de vista. Tendo encontrado um
lugar para morar no alojamento de algum homem branco – negociante ou
missionário – você nada tem para fazer a não ser iniciar imediatamente seu
trabalho etnográfico. Suponhamos, além disso, que você seja um principiante,
sem nenhuma experiência, sem roteiro e sem ninguém que o possa auxiliar –
pois o homem branco está temporariamente ausente ou, então, não se dispõe
a perder tempo com você. Isso descreve exatamente minha iniciação na
pesquisa de campo, no litoral sul da Nova Guiné8”.
A sensação mais próxima disso foi a de ver o ônibus ou o carro que me trouxe afastar-se
gradualmente, deixando-me ao lado de um ou dois colegas de pesquisa, mas com a certeza de
que aquele meio de transporte tinha data e hora certa para voltar e nos buscar.
Eu era e continuo a me considerar como uma principiante. Apesar da inexperiência e da
falta de um roteiro, eu contava sempre com a companhia de uma outra pessoa que compartilhava
comigo as mesmas ansiedades e objetivos, diminuindo assim as angústias típicas do labor
etnográfico.
Além disso, cabe dizer que os momentos em que todos os pesquisadores se reuniam na
base, fosse nas refeições ou mesmo na hora de dormir, eram de grande valia. Sempre
passávamos as informações do dia uns para os outros e debatíamos todas as novidades e até
mesmo a reincidência de alguns acontecimentos que passavam a se destacar.
7 Damatta: 2000. 8 Malinowski: 1978, 79.
17
Nesse sentido, esta dissertação não é apenas minha. Ela não foi construída sozinha, pois
cada informação, cada acontecimento narrado ou cenário descrito teve alguma contribuição de
meus companheiros de pesquisa.
A troca de informações entre os membros do grupo, desse modo, foi um dos fatores que
muito ajudaram na elaboração deste trabalho. Mesmo após a conclusão das monografias de
graduação, alguns dos estudantes mantiveram Ponta Grossa dos Fidalgos como palco etnográfico
de suas dissertações de mestrado, como foi o caso de Carlos Abraão (VALPASSOS: 2006), José
Colaço (COLAÇO: 2007), Lorena Alves (ainda em fase de elaboração), e eu mesma, claro. Isso
proporcionou um amadurecimento das questões anteriormente abordadas, assim como a
continuidade das conversas e debates em torno daquelas “histórias de pescador”.
É claro que toda rosa possui espinhos e não foi diferente no caso deste trabalho conjunto.
A relação nem sempre foi harmoniosa e muitos percalços se colocaram no caminho: diferenças
de personalidade se abalroavam, problemas pessoais diversos se interpunham e alguns momentos
de estresse eram criados.
Em todos esses momentos de pequenas ou grandes crises (que ao menos nos pareciam
grandes enquanto elas aconteciam), a equipe também foi importante, pois mais do que
informações sobre Ponta Grossa dos Fidalgos, encontrávamos apoio e amizade uns nos outros.
Por tudo isso e por coisas que são difíceis, senão impossíveis, de descrever, afirmo que este
trabalho é o fruto de um empreendimento coletivo.
Nesse sentido, esta dissertação afasta-se do modelo etnográfico do “pesquisador solitário”
proposto por Malinowski e aproxima-se da idéia de trabalho de campo aproveitando as diferentes
qualidades proporcionadas pelas distintas personalidades que compõem uma equipe de pesquisa,
tal como sugeriu Marcel Griaule9.
Malinowski também sugeria um período prolongado de permanência do etnógrafo em
campo. Um ou dois anos, segundo ele, era o período recomendado. No meu caso isso nunca foi
possível, pois a pesquisa em sua maior parte foi realizada em concomitância às aulas de
graduação e, posteriormente, às do mestrado. Assim, as idas a campo eram feitas, em sua grande
maioria, durante os finais de semana e feriados. Em períodos festivos - como os da festa de São
Pedro e de Nossa Senhora da Conceição, ou em Maio, que é o Mês de Maria10 - faltava algumas
aulas para permanecer por mais tempo em campo11.
9 Sobre Marcel Griaule, ver Clifford: 2002. 10 Durante o Mês de Maria (maio), a imagem de Nossa Senhora da Conceição sai da Igreja e visita a casa das devotas que desejam receber a Santa e que se inscreveram para isso previamente. A Santa sai de uma casa para outra todas as noites mais ou menos às 19h. com as mulheres em procissão cantando ladainhas. Assim, assistíamos a romaria da Santa nos fins de semana do mês de maio e naqueles dias durante a semana em que conseguíamos um
18
Em dois dos cinco anos de etnografia da festa de São Pedro, acompanhei a organização
da festa e trabalhei voluntariamente na preparação do festejo durante a semana anterior a sua
realização. Não atuei sozinha. A equipe se dividia em "frentes de trabalho", tentando se
aproximar do método etnográfico proposto por Marcel Griaule, no qual vários pesquisadores
observam diferentes atividades de um mesmo evento no mesmo horário a fim coletar a maior
quantidade possível de informações. Desta forma, por exemplo, enquanto dois pesquisadores
estavam acompanhando e trabalhando junto com as mulheres na ornamentação do andor que
carregaria São Pedro durante a procissão por terra, outros dois estavam ajudando na
ornamentação dos barcos da procissão, enquanto um quinto elemento ficava na Associação de
Pescadores conversando sobre a festa e observando a movimentação dos bastidores.
Foi dessa forma que coletei as informações que alicerçaram meu trabalho monográfico de
conclusão de graduação em Ciências Sociais12. Ao término desta etapa, no entanto, fiquei com a
sensação de que poderia ter utilizado o material etnográfico de um modo diferente. Um
determinado acontecimento no campo foi suficiente para me fazer perceber que meu olhar estava
por demais influenciado por um dos grupos locais, e que era necessário levar em conta também
as outras perspectivas existentes sobre a festa de São Pedro.
Foi com esse propósito que ingressei no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Lá obtive o espaço e o tempo
necessários para tanto. Além disso, posso dizer que o rito acadêmico da “Qualificação” foi de
suma importância. Nela, os comentários dos Professores Marco Antônio da Silva Mello e Karina
Kuschnir, associados aos de minha orientadora, Prof. Elina Pessanha, foram de grande valia para
que eu pudesse repensar meu material etnográfico e assim, enfim, redigir a narrativa que se
segue.
Foi este o caminho percorrido até a elaboração desta dissertação. Agora, antes que o texto
recaia sobre a festa propriamente dita, creio ser necessário apresentar com maior quantidade de
detalhes o cenário onde se desenrolaram os acontecimentos que aqui serão abordados.
carro para ir e voltar do povoado, já que o horário do último ônibus que sai de Ponta Grossa para Campos é às 17h30. 11 No ano de 2006 nasceu meu filho, o que tornou escassas as idas à campo justamente no período que me vi livre das atividades discentes para realização da etnografia. Desse modo, não pude acompanhar os preparativos da Festa de São Pedro de 2007, tendo presenciado o evento apenas por 2 dias. 12 Nascimento: 2005.
19
PARTE I
O LUGAR
20
Ponta Grossa dos Fidalgos: O Lugar
Ponta Grossa dos Fidalgos está situada a 21°56’ Sul e 41°20’ Oeste, nas margens
setentrionais da Lagoa Feia, que é a maior lagoa de água doce do Brasil. O arraial é subdistrito
de Tócos, que por sua vez é o 17º distrito do município de Campos dos Goitacases, localizado na
região norte do Estado do Rio de Janeiro – Brasil.
Paralelamente às margens lacustres está disposta, a certa de 300 metros, a principal rua
do povoado, a João Cabral Neto. Esta, por sua vez, é cortada por ruas que levam aos locais onde
ficam atracadas as embarcações, os chamados portos. Ao todo são 9 noves situados, de leste para
oeste, na seguinte ordem: porto do Trator, de Normélia, da Beirada, do Chiquinho, do Macaco,
de Amaro Bagre, do Campo, de Balmineira, e dos Soares13.
Fonte: Google Earth – Janeiro de 2008
Localização de Ponta Grossa dos Fidalgos no Estado do Rio de Janeiro
13 Cf. Colaço: 2007.
21
Fonte: Google Earth – Janeiro de 2008
Foto de Satélite do Povoado de Ponta Grossa dos Fidalgos – Altitude do ponto de visão: 1,27 km
O povoado é dividido em partes, nas quais se podem reconhecer rudimentos de bairros,
separadas por pequenos largos conhecidos respectivamente como as praças do Ingá e da Beirada.
Há quatro partes distintas - Ingá, Macaco, Beirada e Ponta – sendo que o Macaco é uma área de
interseção entre o Ingá e a Beirada. Segundo a percepção de alguns dos moradores mais velhos,
foi a partir do Ingá que o povoado se desenvolveu gradualmente, até chegar ao que hoje se
conhece por “Ponta”.
Esta informação confere com os dados etnográficos de Luiz de Castro Faria, que estivera
naquele povoado entre os anos de 1938 e 1941, pois em suas anotações deste período são
mencionados apenas o Ingá e a Beirada, não havendo qualquer menção sobre a Ponta. A área do
Macaco também não é mencionada, pois, agora de acordo com alguns entrevistados, esta área só
recebeu esta classificação em tempos recentes, em virtude do tipo de movimentação do lugar.
22
Foto por Marcelo, morador de Ponta Grossa dos Fidalgos.
Vista da rua João Cabral Neto do alto da Caixa d’água. O prédio verde é a Escola Municipal Colônia de Pesca, em
frente está estacionada a ambulância do Posto de Saúde que se situa a seu lado.
O Macaco é sempre apontado como um local agitado e barulhento. Lá está localizada a
maior parte dos bares de Ponta Grossa. Diante desses estabelecimentos, é freqüente a presença
de carros tocando música em alto volume, isso quando a música não parte das caixas de som dos
próprios bares. Os moradores, sejam eles dali ou de outros “bairros”, apontam o Macaco como
uma área onde as brigas são constantes, mas não apenas entre os freqüentadores dos bares como
também entre os próprios vizinhos.
Ponta Grossa dos Fidalgos, além de 13 bares, conta ainda com 01 mini-mercado, 01 salão
de festas, 01 drogaria, 02 padarias, 02 lojas de roupas e miudezas, 01 oficina de bicicletas, 01
trailer que serve como lanchonete, além de uma lanchonete que funciona nos fins de semana, 01
clube recreativo (lugar com piscina, onde são realizados shows de forró e festas), 03 açougues e
05 armazéns, e também 01 posto de saúde, 02 escolas municipais (sendo uma para o pré-escolar
e outra da alfabetização até a 4ª série), 01 quadra de esportes e 01 campo de futebol.
De acordo com o levantamento feito por uma das estudantes, Cyntia dos Santos Jorge,
com base nas fichas de cadastro do Posto de Saúde do lugar, atualmente há em Ponta Grossa
cerca de 2000 pessoas que habitam em 650 casas. Destas pessoas, aproximadamente 400
trabalham diretamente na pesca, embora nem todas elas sejam cadastradas na Associação de
Pescadores Artesanais de Ponta Grossa dos Fidalgos (APAPGF) – capatazia da Colônia de Pesca
do Farol de São Tomé..
23
A pesca artesanal representa a principal atividade econômica do lugar, encontrando ali
uma profundidade histórica mais que secular, tal como revelam as menções feitas por José
Alexandre Teixeira de Melo (1886), em fins do século XIX: “No lugar conhecido pelo nome de
Ponta-grossa dos fidalgos, nas margens desta lagoa, há uma povoação, de cerca de 400
habitantes, que vivem da pesca14”.
Nos dias de hoje, os habitantes de Ponta Grossa dos Fidalgos encontram ocupação em
outras atividades econômicas. Há pessoas que trabalham no núcleo urbano de Campos dos
Goitacases, atuando na construção civil, no comércio ou mesmo ocupando postos de trabalho
oferecidos na Prefeitura Municipal. Existem também aqueles que trabalham nas fazendas que
circundam o arraial e os que se empregam na Usina Paraíso, tanto temporariamente, abandonado
a pesca no período de moagem, ou de modo principal, atuando nela ao longo de todo o ano.
Os tipos de ocupação em Ponta Grossa dos Fidalgos não foram a única coisa a sofrer
transformações ao longo do século XX. A arquitetura das habitações é um dos principais
exemplos disso.
Se no final da primeira metade do século passado os escritos de Luiz de Castro Faria
descrevem a preponderância das casas de “pau-a-pique” recobertas por telhados de taboa15, e a
pequena presença de edificações de alvenaria, no século XXI isso já havia mudado bastante.
As casas de alvenaria foram ganhando mais e mais espaço no arraial, substituindo
paulatinamente as antigas habitações de pau-a-pique. Hoje estas não mais existem, mas uma
nova substituição dos padrões arquitetônicos parece estar em pleno andamento.
O modelo de habitação que substituiu as casas de pau-a-pique repete um certo padrão.
São casas cobertas por telhas de cerâmica, que não possuem laje e, em poucos casos, chegam a
se utilizar de estuque.
A primeira casa que alugamos e usamos como "base" de pesquisa situava-se no meio de
um terreno amplo com árvores frutíferas. A disposição dos cômodos segue o modelo utilizado
pela maioria das casas locais: dois quartos, o maior localizado na parte da frente da casa, o outro
virado para um corredor ou já uma sala; nos fundos a cozinha, entre esta e a sala, notamos
repetidas vezes a construção de um banheiro. No croqui abaixo, pode-se ter uma idéia da
disposição dos cômodos. Os traços verdes são janelas, os traços vermelhos são portas. Os quartos
e a cozinha não possuem portas, mas sim umbrais, espaços em geral da largura e altura de portas,
porém no lugar delas os moradores costumam usar cortinas improvisadas, em sua maioria
cortadas de lençóis antigos. No croqui da "Casa 1", que desenhei baseada na primeira casa em
14 Teixeira de Melo: 1886, p. 38. 15 Vegetação nativa.
24
que ficamos no arraial, o risco cor de rosa que se vê em duas das quatro paredes do banheiro
representam paredes que não iam até o teto, deixando um vão entre o telhado e a parede.
Esboço da Planta do Interior das Habitações
Nos dias de hoje tem aumentado o uso de estuque ou mesmo de forro PVC (cuja
instalação é realizada por empresas de Campos dos Goitacases), o que diminui a entrada de
poeira e fuligem no interior das residências. Todavia, o que chama mais atenção é a construção
de casas com lajes e telhas de amianto, cujos tijolos são comprados fora do arraial, criando assim
um outro tipo de modelo arquitetônico.
Não apenas os tijolos e telhados mudam, mas também o uso de portas no interior das
residências. Se as antigas casas de alvenaria possuíam apenas cortinas separando os cômodos e a
única porta do interior doméstico era a do banheiro, nas novas casas isso não mais acontece, pois
os cômodos são quase sempre separados por portas.
Antes que o leitor comece a pensar que esta menção aos modos de habitação dos
pescadores não passa de uma digressão, gostaria de justificar-me argumentando que as casas em
Ponta Grossa dos Fidalgos representam algo mais que apenas um lugar onde se pode morar, elas
são símbolos de um modo de vida e constituem verdadeiros artefatos mnemônicos. Para perceber
isto, basta recordar as incessantes narrativas sobre a casa de Sêo Zé Lisboa.
25
Foto: Luiz de Castro Faria – Entre 1939 e 1941.
Casas de pau-a-pique na Ponta Grossa dos Fidalgos de meados do século XX
Fotos: Thaís Nascimento – 2003 e 2004
À esquerda, Carlos Abraão e João Paulo em frente à casa que foi a 1ª base de pesquisa. À direita, a casa que serviu
como 3ª base.
Zé Lisboa era um antigo pescador que, quando iniciei minha pesquisa, já contava com
mais de 90 anos. Ele morava numa casinha que se destacava na paisagem, chamando a atenção
daqueles que andavam pelo arraial. Era uma casa bastante velha, cujas paredes pareciam se
equilibrar através do contato com o telhado, tão inclinadas que eram.
Por repetidas vezes ouvi diferentes pessoas contarem uma história na qual Arnaldo Viana,
ex-prefeito de Campos dos Goitacases, oferecia a Zé Lisboa a construção de uma nova casa de
26
alvenaria no lugar da antiga, oferta que fora recusada pelo antigo pescador, que alegava que a
demolição de sua casa resultaria em sua própria morte.
A casa de Zé Lisboa era um modelo arquitetônico limiar, algo que não era nem uma casa
de pau-a-pique e nem mesmo uma de alvenaria, fora erguida, pelo próprio pescador, há quase 70,
nos moldes de uma casa de pau-a-pique. Com o passar dos anos, a casa recebeu algumas
reformas, como telhas de cerâmica e algumas paredes de tijolos. Tratava-se, pois, de uma casa de
taboa metamorfoseada em casa de alvenaria, mas de um modo híbrido, ou seja, não se
enquadrando, no final das contas, nem em um nem em outro modelo16.
Foto: Carlos Valpassos - 2002
Zé Lisboa e sua Casa
Nesse sentido, mais que uma mera habitação, a casa de Zé Lisboa era um símbolo:
“A Casa de Zé Lisboa é, pois, um símbolo da história do povoado e, mais que
isso, um símbolo de um modo de vida: o do pescador. A casa representa um
modus vivendi em sua forma pretérita. Não é o pescador contemporâneo que
é representado por ela, mas sim o pescador ‘antigo’, aquele que navegava
16 Cf. Valpassos: 2006.
27
uma canoa sem motor, fazendo uso dos ventos da Lagoa e do remo para
impulsionar sua embarcação.
Desse modo, a Casa constitui para Zé Lisboa uma reafirmação de sua
condição de pescador antigo, detentor dos conhecimentos relativos à Lagoa e
à história do povoado, representando, portanto, um aspecto que reafirma e
realça seu elevado status no grupo17”.
A casa representava o elo entre o passado e o presente de Ponta Grossa dos Fidalgos. Era
a última remissão erguida que evocava de algum modo as antigas casas de pau-a-pique. Assim,
sempre que as pessoas narravam a recusa de Zé Lisboa em demolir sua velha casa por uma nova,
elas encerravam a história emitindo a opinião de que “ele agiu da maneira certa!18”.
Em dezembro de 2005, contudo, Zé Lisboa faleceu. Sua casa permaneceu erguida até
março de 2006, quando seus familiares “desmancharam-na”. Lembro que, ao comentar sobre
isso, uma pessoa chegou a dizer que tal ato “foi um pecado”.
A casa de Zé Lisboa é tão emblemática no imaginário coletivo pontagrossense que é
referência até para aqueles que não moram mais em Ponta Grossa dos Fidalgos e seus filhos.
Numa comunidade dedicada ao povoado no site de relacionamentos Orkut19, uma adolescente
carioca cuja a mãe nasceu e tem família em Ponta Grossa dos Fidalgos lançou um tópico na
comunidade poucos dias antes da demolição perguntando sobre Zé Lisboa e se a casa dele
continuava de pé.
Zé Lisboa e sua casa, enquanto símbolos concretos do antigo modo de vida do arraial,
serão importantes para pensar algumas idéias nativas acerca da festa de São Pedro. Assim
também será importante saber como era a vida nesse passado do qual o pescador e sua casinha
velha representavam. Para compreender as comparações feitas pelos pontagrossenses é
necessário traçar um primeiro cenário onde se dava a “festa antiga”, categoria continuamente
invocada como argumento nos conflitos existentes em relação à “festa atual”. Assim, antes de
narrar as festas que ali presenciei, empreendamos uma verdadeira viagem através do tempo rumo
à Ponta Grossa dos Fidalgos de meados do século XX através de narrativas mnêmicas.
17 Valpassos: 2006, 34. 18 Valpassos (2006, 33) diz que: “Fotografando as ruas e pessoas do arraial, me detive, certa vez, em frente à casa antiga, para registrar sua imagem. No mesmo instante, um pescador que passava pelo local me disse que aquilo sim era importante de ser registrado, pois fazia parte da história de Ponta Grossa dos Fidalgos”. 19 http://www.orkut.com – comunidade ‘Ponta Grossa dos Fidalgos’ – endereço da comunidade: http://www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?cmm=7480960
28
O “Tempo dos Antigos”
O chamado “tempo dos antigos” poderia ser ilustrado pelos anos entre 1939 e 1941,
período durante o qual o professor Luiz de Castro Faria fez alguns registros etnográficos do
arraial. Com base nos relatos nativos e nas notas etnográficas do período, podemos fazer uma
breve incursão a este passado.
Luiz de Castro Faria estimou em aproximadamente 1000 (mil) os moradores do
assentamento pesqueiro. Nesta época, a população masculina adulta de Ponta Grossa dedicava-se
quase exclusivamente à pesca, atividade que se desenvolvia sem interrupções ao longo de todo o
ano. Havia, então, cerca de duzentos pescadores registrados na Colônia de Pesca Z-22. Cento e
doze crianças freqüentavam a escola mantida por este órgão. Castro Faria afirma que embora o
número de crianças que freqüentavam a escola fosse bastante elevado, estava longe de
representar a totalidade da população infantil local, pois muitas dessas crianças estavam, desde
cedo, empregadas em atividades auxiliares da vida econômica familiar.
Foto: Luiz de Castro Faria
Crianças conduzindo carros com e sem caprinos para transportar água da Lagoa (ao fundo) para casa.
29
As mulheres não participavam, nem mesmo indiretamente, dos afazeres da pesca.
Dedicavam-se, em geral, aos afazeres domésticos, e na época da moagem empregavam-se como
cortadoras de cana nas fazendas próximas, sob o regime de diária. Embora houvesse homens
lavradores também, esta atividade complementar, realizada periódica e regularmente nos meses
de junho a novembro não modifica de maneira apreciável o quadro da economia local.
Em algumas casas, praticava-se a pequena agricultura e/ou uma pequena jardinagem para
cultivo de certas plantas medicinais. Também se mantinha a pequena criação doméstica para o
provimento da carne bovina e suína, consumida no povoado ou eventualmente comercializada. É
preciso ressaltar, todavia, que sua produção não se destinava essencialmente nem ao consumo
próprio nem ao comércio, embora eventualmente assim fossem utilizados, pois o alimento
favorito era o peixe.
Esta criação, portanto, era utilizada como animais de tração. Os bovinos e eqüinos
levavam o produto da pesca para a sede do Município, e os caprinos, sobretudo, eram usados no
transporte de água da Lagoa para as residências, visto que não havia água encanada na povoação.
Essa tarefa era confiada às crianças de ambos os sexos, que conduziam pequenos carros que
tanto podiam ser puxados por um caprino como pelos próprios garotos; ou quando não possuíam
carro, transportavam a água à cabeça, em latas de querosene. Em casa, a água era armazenada em
grandes tonéis.
Como já mencionado, o alimento mais apreciado era o pescado da Lagoa Feia.
Pescavam-se bagres, robalos, tainhas e traíras em abundância. Parte desse pescado era
consumida pelos próprios pescadores e suas famílias, outra era vendida no Mercado Municipal
de Campos.
A comunicação entre Campos dos Goitacases, sede do município do qual Ponta Grossa
dos Fidalgos era o 3º distrito20, e o referido arraial efetuava-se através de uma longa e sinuosa
estrada de chão, chamada Estrada de Tocos. Durante o verão, período de intensas chuvas,
tornava-se quase impossível empreender a viagem para o transporte do pescado da Lagoa Feia
para Campos devido aos atoleiros. Os pescadores, então, durante as horas mais frescas da
madrugada, transportavam os peixes acondicionados em balaios de cipó entre folhas verdes de
bananeira, no lombo de cavalos de carga ou mesmo a pé.
O povoado estava dividido em três partes: Ingá, Beira e Ponta. O arraial era uma única
estrada que, procurando terreno firme, avançava sinuosamente até o ponto mais denso do
20 Cf. Castro Faria, em trabalho inédito sob título provisório de Os Pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos: Um Estudo de Morfologia Social. 1941.
30
tabual21. Essa estrada, a futura Rua João Cabral Neto, dividia-se formalmente em duas partes: a
primeira delas seguia da estrada de Tocos até a extremidade oeste chamando-se Estrada do Ingá;
enquanto a metade oposta era conhecida como Estrada da Beirada.
A maior concentração e uniformidade dos tipos de construção, além das principais casas
de comércio, estavam localizadas na faixa limítrofe entre a Beirada e a Ponta, no início do
caminho que levava à Capela de Nossa Senhora da Conceição, única Igreja do lugar.
Foto: Luiz de Castro Faria
Construção de barro e taipa com telhados de tabúa em Ponta Grossa dos Fidalgos na década de 40.
A aldeia tinha cerca de cento e vinte casas distribuídas irregular e espaçadamente ao
longo da rua principal. As casas, em geral de taipa, lascas de coqueiro e barro, cobertura de
palhas de tabua e piso de terra batida, vinham sendo lentamente substituídas por habitações feitas
de tijolos fabricados no próprio local, cobertas de telhas e com paredes rebocadas e quase sempre
caiadas em branco e azul. Estas casas de alvenaria eram casas de comércio ou moradias das
poucas pessoas que não desempenhavam funções necessariamente ligadas à pesca.
A construção dessas residências de barro e taipa era ritualizada. Os construtores, em geral
os próprios moradores da casa, cantavam e dançavam ritmados pelo bater de palmas e dos pés
21 Tabual é um extenso aglomerado de tabuas, erva que vegeta em brejos e margens de rios, cujo nome científico é Typha dominguensis, e que pode receber também as designações de albardim, bunho, espadana, landim, morrião-dos-fogueteiros, paineira-do-brejo, partasana, pau-de-lagoa e tabua-larga. Cf. CASTRO FARIA, 1941; Houaiss: 2001.
31
para fazer o chão de terra batida da casa. Para cobrir a armação de tabua, coqueiro e bambu das
paredes, dois indivíduos, um por dentro da casa e outro pelo lado de fora, arremessavam o barro
úmido no mesmo lugar, ao mesmo tempo, um contra o outro, de maneira que o barro jogado de
dentro e de fora se juntasse com o impacto e grudasse na armação das paredes da casa. O rito da
construção das casas de barro me foi relatado por alguns moradores de modo bastante saudoso e
romântico.
As casas estavam geralmente com suas frentes voltadas para a estrada e, na estação seca,
a distância que as afastava da borda da Lagoa era superior a duzentos metros. Na época das
cheias, entretanto, as águas vinham banhar os cercados das casas mais próximas.
Devido à ausência de energia elétrica - que só chegaria no povoado em 1961 -, as carnes
bovina e suína eram conservadas em grandes recipientes de banha de porco e a iluminação era
feita através de lampiões de querosene. A comida era cozida em panelas de ferro no fogão à
lenha, este localizado fora de casa, numa “construção acessória, geralmente erguida em época
posterior e independente do corpo principal, destinada à função de cozinha”.22
Algumas moradoras de Ponta Grossa me contaram com um sorriso romântico nos lábios
que, na falta de água encanada, roupas e panelas eram lavadas na margem da Lagoa, onde as
mulheres competiam entre si para ver quem deixava as panelas brilhando mais; criando,
recriando e fortalecendo suas redes de sociabilidade.
Como costuma acontecer nas populações rurais, a família apresenta uma prole numerosa
e com diferenças mínimas de idade entre seus membros, quase que em intervalo estritamente
biológico. A população de Ponta Grossa dos Fidalgos se envaidecia do número elevado de filhos,
embora a regra geral fosse a redução do número total de nascimentos a cerca da metade, devido
ao alto índice de mortalidade na primeira infância. Castro Faria, no entanto, afirma que
usualmente citava-se o número total de nascidos, e não o correspondente aos filhos vivos, dado
que só se obtinha mediante solicitação explícita.
Assinala finalmente a longevidade da população pontagrossense, fato que ainda nos dias
atuais se verifica, sendo apresentado pelo grupo como prova da superioridade do seu lugar e
estilo de vida.
Outro motivo de orgulho para os habitantes de Ponta Grossa dos Fidalgos era a própria
Lagoa Feia, que além de sustento, proporcionava lazer. Em suas límpidas águas margeadas a
leste e ao sul por uma faixa de areia branca, era possível banhar-se logo nas primeiras horas da
manhã.
22 Castro Faria, em trabalho inédito sob título provisório de Os Pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos: Um Estudo de Morfologia Social. 1941.
32
Por tudo de bom que a Lagoa Feia lhes proporcionava, sob o manto azul da Senhora das
águas, Nossa Senhora da Conceição, Padroeira do local, muitos eram os devotos de São Pedro,
Santo protetor dos pescadores. Um padre da paróquia de São Gonçalo, localizada no povoado
vizinho de Goitacases, “oficia[va] nos dias de festa e presta assistência religiosa aos que
solicitam a sua presença. A maioria da população é católica; uma pequena parte é
protestante”.23
Foto: Luiz de Castro Faria.
Ponta Grossa dos Fidalgos e as margens da Lagoa Feia dos anos 40.
No mês de junho, os pescadores arrecadavam dinheiro com a população católica do
povoado para uma festa dedicada a São Pedro, realizada sempre, rigorosamente, no dia 29 de
junho. Nessas festas, cujo festeiro era o pescador Manoel Clarindo, o dinheiro era arrecadado
somente com os pescadores católicos. Este pescador era considerado por seus conterrâneos como
“um homem de respeito”. A festa durava geralmente dois dias. Os fiéis cantavam o hino de São
Pedro em frente ao prédio da Colônia de Pesca, onde acontecia a Missa. Esta, no entanto, não era
celebrada sempre, pois poderia ocorrer, em alguns anos, de o Padre não poder ir ao povoado no
período festivo, porque, como já dissemos, o acesso a Ponta Grossa era difícil e se tornava quase
23 Idem. Não há, contudo, igreja protestante no arraial.
33
impossível em períodos de chuvas. Neste caso havia canto de ladainhas para São Pedro.
Havendo Missa, costumava haver também batizados.
Havia uma imagem de São Pedro no povoado, que ficava no prédio da Colônia de Pesca.
Tratava-se de um quadro com o desenho do Santo. Esta imagem era conduzida em procissão – e
ainda nos dias de hoje é levado em procissão pelas águas da Lagoa durante o festejo de São
Pedro.
A procissão percorria a rua que margeava a Lagoa, onde também aconteciam gincanas:
corridas de saco e com um ovo sobre uma colher, para as crianças; corridas de cavalo e de
bicicleta, para os adultos. Quadrilhas eram dançadas, e bandeiras e balões de São João
pendurados, homenageando o outro Santo de junho.
Na última noite da festa aconteciam bailes simultâneos com música orquestrada, em
diferentes pontos do povoado. Eram três ou quatro bailes ao mesmo tempo, sendo todos eles
muito concorridos. Os lugares onde costumavam acontecer esses bailes eram o prédio da Colônia
de Pescadores, o Salão de Festas - que foi, na década de 1960, convertido em cinema, e que nós
encontraríamos, em 2002, reconvertido ao seu antigo papel, - e a “Casa do Governo”, uma das
primeiras construções de tijolo e telha do povoado, cuja destinação original, entretanto,
permanece desconhecida para nós.
Os católicos com mais de 70 anos de hoje contam que nos bailes da antiga festa de São
Pedro só se podia entrar muito bem vestido. Jamais um homem poderia entrar num baile trajando
bermuda ou sem camisa. Sêo Chico Bento, um senhor septuagenário, relatou que certa vez,
vindo de Coqueiro de Tocos, onde ele morava, foi impedido de entrar no baile da Colônia de
Pesca, porque, mesmo trajando calça e camisa social de manga comprida, esquecera a gravata.
Um dos homens que na ocasião trabalhava como segurança na porta do baile, compadecido pela
expressão desiludida do rapaz, foi até sua casa, ali mesmo em Ponta Grossa, e buscou uma
gravata para emprestar a Chico Bento para que assim ele pudesse entrar no baile.
A festa de São Pedro, organizada pelos próprios pescadores, era narrada como uma
homenagem ao Santo que inspira suas vidas, que entende o viver do pescador e suas
dificuldades. É uma festa voltada para dentro do povoado, um momento no qual os pescadores
testemunham sua devoção ao Santo e exercem sua fé.
A festa atual tem uma característica nova, a de ser uma festa que deseja atrair muitas
pessoas ao povoado. Eis o momento de descrever as festas testemunhadas pela equipe de
etnógrafos no povoado entre os anos de 2002 e 2006.
34
PARTE II
A TRADICIONAL FESTA DE SÃO PEDRO EM PONTA GROSSA DOS FIDALGOS
35
As Festas de São Pedro
2002
Conta-se que em 200124 a então presidente da Associação de Pescadores Artesanais de
Ponta Grossa dos Fidalgos (APAPGF), Virgimar Magalhães de Oliveira Clér, propôs à Marinês,
zeladora da Capela local, a realização de uma festa em louvor a São Pedro. Fora também em
2001 que Virgimar, recém-chegada ao povoado, fundou e se elegeu presidente da Associação de
Pescadores. O processo de eleição nunca é narrado com clareza pelos membros da comunidade.
O que se diz é que a escolhida era também a única candidata. Em sua monografia, Lorena de
Oliveira e Alves escreve sobre Virgimar:
Ora, é no mínimo curioso que uma mulher (já que a atividade pesqueira na região é
predominantemente masculina) ocupe um cargo de chefia de tamanha influência,
levando em conta o fato de ela não ser pescadora e mais, que ela tenha sido a única
candidata a pleitear o cargo. É importante ainda observar que Virgimar não é natural
do povoado, caráter de distinção muito prezado pelos moradores, que sempre
classificam os não nascidos no povoado como “os de fora”, ainda que estes lá residam
já por muitos anos.25
Em Ponta Grossa dos Fidalgos o território é percebido como um ser com “personalidade
política própria”, parafraseando Christine Chaves em seu trabalho sobre Buritis, e ser nascido
naquela terra é percebido como uma insígnia de confiabilidade, dedicação e amor ao povoado.26
Assim, Virgimar era sempre apontada como uma pessoa ‘de fora’, que não tem o mesmo amor e
dedicação a Ponta Grossa dos Fidalgos do que alguém que fosse ‘filho de Ponta Grossa’.
Virgimar justificava seu interesse em fundar e sua qualificação para gerir a Associação de
Pescadores27 dizendo que era filha de pescador e que fizera diversos cursos sobre educação
24 Minha inserção efetiva no grupo de pesquisa foi em outubro de 2002, como dito anteriormente, portanto, entre as festas que aqui relato, a de 2002 foi aquela que não testemunhei. O que aqui descrevo são narrativas dos moradores do povoado e da etnografia realizada pelos primeiros integrantes do grupo de pesquisa, bem como alguns registros audiovisuais a que tive acesso – imagens de vídeo e fotografias da festa. 25 Oliveira e Alves: 2007, p. 25. 26 Cf. Chaves, 1996. 27 Antes da Associação de Pescadores, Ponta Grossa dos Fidalgos tivera uma Colônia de Pesca, a Z-22. Após a desativação desta há algumas décadas por motivos que desconhecemos e num período do qual não se tem o registro exato, os pescadores precisavam ir até Farol de São Thomé, distrito litorâneo de Campos dos Goytacazes , a 54 quilômetros da sede do município, para se cadastrarem na Colônia Z-19. O papel da Associação de Pescadores é, principalmente, o de mediar os trâmites burocráticos dos pescadores locais com a Colônia Z-19, à qual a Associação é subordinada. Para mais informações a respeito da Associação de Pescadores Artesanais de Ponta Grossa dos Fidalgos, ver a monografia de Lorena de Oliveira e Alves, disponível na Biblioteca do Centro de Ciências do Homem da Universidade Estadual do Norte Fluminense.
36
ambiental e pesca. Os pescadores, quando perguntados a respeito, respondem quase sempre a
mesma coisa: que ela chegara ao povoado com o vereador Russo Peixeiro para fundar a
Associação de Pescadores, ou seja, Virgimar assumiu a liderança dos pescadores porque
apoiava-se em redes pessoais que a legitimavam como alguém capaz de exercer tão função.
Mesmo sendo uma mulher numa posição de liderança num órgão relacionado a uma atividade
tradicionalmente masculina, ela possuía outras características que são esperadas de um líder e era
considerada uma presidente “eficiente”.28
Virgimar, Marinês e outras mulheres freqüentadoras da Igreja local organizaram uma
pequena comemoração que contou com a ajuda de Russo Peixeiro. Este doou à Capela local uma
imagem da Santa Padroeira do lugar, Nossa Senhora da Conceição, e duas imagens de São
Pedro: a maior representando o jovem Pedro, e a menor mostrava o Santo Pescador grisalho.
Enquanto as duas primeiras imagens foram alocadas na Capela local, esta última foi mantida na
casa de Virgimar.
A Capela pontagrossense possuía uma pequena imagem com aspecto de “coisa antiga” de
Nossa Senhora da Imaculada Conceição, mas nenhuma imagem esculpida do Santo Patrono dos
pescadores, exceto por um quadro com a gravura do primeiro Papa da Igreja Católica que já
contava mais de meio século.
Assim, em 2002 o vereador assumiu o patrocínio da festa, e junto com seu filho Pedro
Nísio, localmente conhecido como Pedrinho, então chefe do gabinete do Prefeito Arnaldo França
Vianna, efetuou os encaminhamentos burocráticos necessários à realização da festa através de
pedidos de recursos à Prefeitura da cidade e à Guarda Civil Municipal. Solicitou o trio elétrico,
equipamento de som, iluminação, banheiros químicos, segurança, contratação de artistas para
shows e contratação e transporte da banda marcial da Guarda para toque da alvorada e das
músicas durante a procissão.
Virgimar e as mulheres da Igreja29 ficaram responsáveis pela organização religiosa do
evento: combinar com e pagar ao Padre da Paróquia responsável pela Capela local a realização
da Missa durante a festa, organizar as procissões, combinar quem paraninfaria a Missa e quem
ficaria na barraquinha montada pela Igreja, comprar as coisas que seriam vendidas na barraca e
as flores para arrumar o andor, ornamentar o andor antes da procissão, entre outras tarefas.
28 Cf. Oliveira e Alves: 2007. 29 Quando digo “grupo católico” ou “mulheres da Igreja”, refiro-me às frequentadoras habituais da Capela de Nossa Senhora da Conceição, isto é, às fiéis assíduas, que são um grupo de cerca de 15 a 20 pessoas, em sua maioria, mulheres casadas com mais de 35 anos.
37
Na tarde da sexta-feira, 28 de junho de 2002, véspera do dia do Santo, os preparativos
encontravam-se em andamento e a festa era o assunto mais comentado pelas pessoas, ainda que
não fossem religiosas ou estivessem diretamente envolvidas com o festejo.
A maior parte dos eventos da festa ocorreu no Porto da Beirada, onde estavam um trio
elétrico e cerca de dez barracas improvisadas de lona e bambu vendendo comidas e bebidas. A
barraca de Nossa Senhora da Conceição, idealizada por Marinês e organizada juntamente com
outras pessoas do grupo católico, vendeu, além das comidas e refrigerantes, crucifixos, pequenas
imagens de Nossa Senhora da Conceição e buttons e ímãs da Santa e de São Pedro.
Foto: José Colaço
Barraquinhas no Porto da Beirada e barcos enfeitados para a procissão da festa de São Pedro de 2002.
A festa iniciou-se na noite de sexta-feira, quando um grupo de oração da Igreja de Nossa
Senhora da Conceição de Caxias de Tocos, que também tem a Santa como padroeira, coordenou
e realizou o canto de ladainhas, dirigiu orações a Deus e Nossa Senhora e contou a história de
São Pedro.30
30 São Pedro foi um pescador na Galiléia que se tornou discípulo de Jesus quando este o convidou a aprender a “pescar gente”. Negou Jesus três vezes quando este foi preso e levado para crucificação, depois arrependeu-se e saiu pregando as palavras de seu mestre até ser também preso e crucificado. Por não se sentir digno de morrer como Jesus, pediu para ser crucificado de ponta-cabeça.
38
Ao término do canto das ladainhas31, houve um show de forró no trio elétrico, o que foi
bastante esperado e que contou com a presença de pessoas de outras localidades, como
Coqueiros e Caxias de Tócos.
No sábado, dia 29 de junho de 2002, dia do Santo, aconteceu um evento conhecido como
“alvorada”. Nas primeiras horas do dia, a banda da Guarda Civil Municipal de Campos
percorreu a rua João Cabral Neto realizando uma evolução pelo povoado, desde o Ingá até a
Ponta. Após percorrer toda a rua principal, deteve-se por instantes em frente à casa de
“Pedrinho”,32 filho de Russo. Só então seguiu para o Porto da Beirada, onde se deu a Celebração
da Palavra e rezou-se o “Pai Nosso” em homenagem aos pescadores e à Lagoa Feia.
Agradecimentos foram feitos a Pedrinho e Virgimar, os festeiros; a Marinês; e ao vereador
Russo Peixeiro, que permaneceu ao lado direito do Sacerdote durante toda a Celebração. A
seguir, apresentou-se o Coral Infantil da Igreja de Caxias de Tócos.
À tarde uma procissão de oito barcos levou as duas imagens de São Pedro do Porto da
Beirada ao Porto Antônio Soares, o último do lado do Ingá, de onde retornou, em procissão por
terra ao porto de onde partiu.
Durante a procissão de barcos preces foram feitas, ladainhas entoadas, e hinos religiosos
cantados, além do que os moradores chamam de “hino a São Pedro”, que na verdade se trata de
um hino patriótico. Mais tarde encontramos a letra deste hino, no Manual do Patrão de Pesca
como “Hino do Pescador Brasileiro”33. Eis sua letra:
Pescador, larga as velas ao vento
Rumo ao mar com destreza e valor
Em teu barco do salso elemento
O domínio tu tens, pescador.
Pouco importa se a brisa refresca
Ou se rugem procela e tufão
Sê herói em teu barco de pesca,
31 O dicionário eletrônico Houaiss define ladainhas como “prece litúrgica estruturada na forma de curtas invocações a Deus, a Jesus Cristo, à Virgem, aos santos, recitadas pelo celebrante, que se alternam com as respostas da congregação (fiéis e/ou religiosos)”. HOUAISS, 2001. 32 Pedro foi chamado de “festeiro” da festa de 2002. É casado com uma das vocalistas do Ministério de Louvor “Sagrada Família”, que sempre toca em Ponta Grossa dos Fidalgos em dias festivos. 33 O livro que traz a letra e a pauta musical do hino, informa ainda que ele foi escrito por Bastos Tigre e sua melodia, composta por Eduardo Souto. O hino foi premiado com o primeiro lugar no concurso promovido pelo Comandante Frederico Villar, organizador do livro Manual do Patrão de Pesca, e demais oficiais do Cruzador “José Bonifácio”, em 1922 no Rio de Janeiro.
39
Com valor conquistando teu pão.
Quer o mar seja um manto trevoso
Ou esplendor em puríssimo azul
Leva à Pátria o pendão majestoso
Do Amazonas aos mares do sul.
Não esqueças que é tua esta terra
Como é tua esta faixa de mar
Defendendo-a na paz e na guerra,
Pescador, tu defendes teu lar.
O hino tem um ar patriótico, de exaltação ao pescador. Faz referências à Pátria, o Brasil,
e à bandeira nacional (“o pendão majestoso”), e também ao lugar onde o pescador vive e pesca,
área sobre a qual tem domínio e responsabilidade reconhecida.
Antes da saída dos barcos em procissão, a insígnia de São Pedro, uma chave de papel foi
elevada aos céus, içada por balões de gás. No retorno ao Porto da Beirada, quando já era noite,
dezenas de pessoas, segurando velas e rezando, acompanharam a imagem do Santo em
procissão.
À noite, foram realizados novos shows no trio elétrico, sendo o número de pessoas
presentes maior que o da noite anterior.
No domingo as barraquinhas continuaram funcionando e as pessoas, em considerável
parcela, permaneceram no Porto da Beirada, embora o trio elétrico já se tivesse retirado. Este dia
coincidiu com a final da Copa do Mundo de 2002, ocasião em que a seleção brasileira
conquistou o pentacampeonato mundial de futebol. A Prefeitura precisou mandar aquele trio
elétrico a outro lugar para animar a festa de comemoração do penta-campeonato da Seleção
Brasileira de Futebol.
Nesse mesmo dia, pela manhã, um grupo de cavaleiros desfilou pelo povoado, saindo do
Porto da Beirada, percorrendo a rua João Cabral Neto do Ingá à Ponta, e retornando ao Porto,
onde se desfez. Esse evento, que é chamado de “cavalgada”, foi o único relativo aos festejos de
São Pedro, neste dia em que as pessoas se dedicaram às comemorações da vitória da seleção
canarinho.
Durante todo o mês de junho acontecera a “peregrinação de São Pedro” pelo povoado, i.
e., a visita da imagem do Santo às casas dos pescadores que aceitaram recebê-la. A visita ocorreu
40
nos mesmos moldes da peregrinação de Nossa Senhora da Conceição realizada em Ponta Grossa
dos Fidalgos em maio, “mês de Maria”, durante o qual a imagem da Santa sai de uma casa para a
outra,34 em procissão. Nas casas que a recebem, cantam-se ladainhas e realizam-se orações toda
noite, antes da saída da imagem para a casa seguinte. A visita de São Pedro às casas dos
pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos ocorreu apenas em 2002.35
Russo Peixeiro discursou na abertura dos shows de sexta e sábado, e seguiu no mesmo
barco que conduzia a imagem de São Pedro durante a procissão por água. Na procissão por terra,
foi uma das pessoas que carregou o andor do Santo, e, durante as Missas, esteve sempre ao lado
do Padre. No dia do Santo Pescador, neste ano de 2002, após a apresentação do Coral Infantil, o
vereador discursou revelando que seu filho Pedro nascera com sérios problemas de saúde no dia
de São Pedro. Sendo devoto do Santo, Russo deu ao filho o nome de Pedro, e fez uma promessa
de patrocinar uma festa de São Pedro durante alguns anos caso seu filho se curasse. Russo
assinalou que aquela era a oportunidade do cumprimento de uma promessa do devoto ao Santo
que curara seu filho.
Russo também se comprometeu com o povo construir de uma Capela ou Gruta para São
Pedro no Porto da Beirada, onde é realizada a festa do Santo. Assim, uma imagem de São Pedro
ficaria na Igreja e a outra na Gruta que ele pretendia construir, o que não foi possível porque a
obra do porto foi embargada pelo IBAMA, que acreditava que o a construção do porto alterava a
Lagoa, pois um aterro de uma pequena parte era necessário.
2003
A festa de 2003 seguiu os moldes da anterior. Registrou, no entanto, um acréscimo
quantitativo nos eventos. Em 2003 houve apresentação de quadrilhas de São João contratadas
para animar as comemorações, além de shows com bandas de forró durante os três dias da festa.
Houve ainda a corrida esportiva, o passeio de trenzinho para as crianças, e um show com um
grupo de animadores infantis - Show Riso -, bem como apresentação de bandas musicais
católicas, a cargo dos Ministérios de Louvor36 “Adorar-te”, no sábado; e da “Sagrada Família”,
no domingo.
Desta vez, a Alvorada, que ocorreu no domingo, ficou a cargo de uma banda de Tócos e a
Cavalgada, ao contrário de 2002, contou com os cavaleiros desfilando uniformizados. As
34 Sobre os ritos relativos a Nossa Senhora da Conceição em Ponta Grossa dos Fidalgos, ver AZEVEDO, Bonnie. Nossa Senhora da Conceição: religião, ritual e simbolismo em Ponta Grossa dos Fidalgos. 2006. 35 As casas visitadas são sempre das pessoas que se inscrevem previamente para receber a visita da Santa ou do Santo. Sempre inscritas nestas visitas estão as mulheres que freqüentam a Igreja e a família de sêo Antonio Soares, um senhor que em 2002 contava 108 anos de idade e que faleceu em 2006, aos 112 anos. 36 Um Ministério de Louvor é um grupo musical que canta “louvores”, músicas religiosas católicas.
41
camisas usadas por eles mostravam o desenho da imagem de São Pedro, na parte da frente, com
os dizeres: “3ª Festa de São Pedro de Ponta Grossa dos Fidalgos”. Após a Cavalgada, a banda de
Tócos tocou “Parabéns pra você” no Porto da Beirada. Os participantes da Cavalgada
concentraram-se na entrada de Caxias de Tócos, numa curva da estrada, de onde saíram rumo a
Ponta Grossa dos Fidalgos, ao Porto da Beirada, precedidos por um carro de som que transmitia
uma canção de Roberto Carlos37 em louvor a Nossa Senhora. O locutor Sandro Lima,38 que de
2003 a 2006 esteve presente na festa divulgando-a, saudou os cavaleiros, anunciando uma única
vez o quadro com a imagem de São Pedro, que precedia o cortejo, numa charrete puxada por
dois cavalos. Em seguida saudou o vereador Russo Peixeiro, que participava da cavalgada,
agradecendo-lhe pela festa, que elogiou exaustivamente. Foi então que Russo retirou o chapéu e
o levou ao peito, em sinal público de sua devoção ao Santo, gesto imediatamente repetido pelos
demais cavaleiros, sem que nenhuma palavra de ordem fosse pronunciada neste sentido.
Em dado momento, o apresentador, talvez para situar os visitantes de Ponta Grossa dos
Fidalgos, foi além de suas declarações costumeiras, afirmando que aquela era “a Terceira Festa
de São Pedro em louvor a Russo Peixeiro”.
Desta vez a Missa Campal contou com a presença do Bispo da Diocese de Campos, Dom
Roberto Guimarães, e foi paraninfada pelo Grupo de Oração da Capela de Nossa Senhora da
Conceição de Ponta Grossa dos Fidalgos. O rito foi celebrado no palco montado no Porto da
Beirada, que ostentava uma faixa onde se lia: A população de Ponta Grossa dos Fidalgos
agradece ao vereador Russo Peixeiro, ao Prefeito Arnaldo Vianna e à Prefeitura de Campos.
Certa ocasião, Marinês falou sobre a necessidade de conversar com Russo sobre o
“problema da bebedeira” no dia principal da festa. Durante a cavalgada o vereador distribuía
cerveja aos cavaleiros, fato ao qual se atribuíram os conflitos ocorridos próximo às pessoas que
assistiam à Missa celebrada pelo Bispo. Foi Durval Tavares Rocha,39 o festeiro daquele ano, que,
com a ajuda de algumas pessoas, conseguiu apartar a briga antes que esta atrapalhasse a
celebração. Marinês apontou como solução para este problema a realização da cavalgada em dia
diferente da Missa, ou a mudança do horário desta para as oito da manhã, antes da cavalgada,
evitando, dessa forma, a presença de “pessoas embriagadas para atrapalhar a Missa”.
Em 2003 as barracas eram de madeira40 e tinham sido doadas aos moradores pela
Prefeitura de Campos. Neste ano, a barraquinha de Nossa Senhora da Conceição não foi
37 Tratava-se da canção “Nossa Senhora”, composição de Erasmo Carlos e Roberto Carlos. 38 Locutor oficial da Prefeitura de Campos para eventos no interior do município. 39 Durval é um pescador, habitante de Ponta Grossa, que também trabalha na Prefeitura. 40 No ano anterior, as barracas eram de ripas de madeira e lona de plástico improvisadas pelos moradores. Em 2003, as barracas eram feitas do mesmo material, porém possuíam melhor acabamento e padronização de tamanho.
42
montada, pois, segundo Marinês, “não compensou o trabalho que deu”, ou seja, não houve lucro,
o que ela explica argumentando que ali não se tinham vendido bebidas alcoólicas, e a maioria
das pessoas queria beber cerveja ou cachaça. A Santa Padroeira do povoado, todavia, foi
representada durante a procissão pelas águas, quando Sua imagem seguiu num barco ao lado do
que levava a imagem de São Pedro. Esta procissão, por sua vez, contou com um número de
barcos ligeiramente superior ao do ano precedente, pois, além dos barcos do povoado, recebeu os
das pessoas de fora do arraial que tinham vindo participar da festa.41
Observando as festas de 2002 e 2003, foi possível notar uma ampliação considerável das
comemorações. Em 2003, as festividades de São Pedro, além de contar com maior variedade de
eventos, foram também mais divulgadas, o que, por sua vez, colaborou para atrair mais gente ao
arraial.
A divulgação se deu através de cartazes pendurados desde a rodoviária de Campos,
passando pelos povoados vizinhos, até Ponta Grossa dos Fidalgos, além do interior dos ônibus da
Viação Siqueira, empresa responsável pelas linhas que ligam Campos dos Goitacases ao
povoado e redondezas. Também houve anúncio nas rádios campistas e em alguns jornais locais
que fizeram reportagens durante a festa.
Ao microfone o locutor anunciava que os festeiros deste ano eram Pedrinho e Durval,
embora no cartaz estivesse apenas o nome de Durval. A cavalgada contou com a organização de
festeiros próprios, Daniel e José Hipólito, pequenos proprietários de terras no povoado,
associados aos festeiros principais. Virgimar, depois de um desentendimento com Russo, foi
deixada de fora.42 Os eventos religiosos permaneceram sendo organizados pelo grupo de oração
local.
Um fato importante para o catolicismo local aconteceu no final de 2003. A chave da
Capela local ficava com Marinês que, junto com algumas de suas mais assíduas freqüentadoras,
limpava a “Casa da Santa”43 e arrecadava dinheiro, para possíveis obras no prédio e outros
gastos necessários, através de rifas de bolos ou trabalhos manuais feitos e doados por uma dessas
mulheres. Uma vez por mês o Padre Jorge vinha ao povoado celebrar a Missa, e uma vez por
semana o ministro extraordinário da santa Comunhão44, sêo Paulinho, de Caxias de Tocos, vinha
ao povoado realizar a Celebração da Palavra.
41 Infelizmente, não tenho os dados exatos de quantos barcos participaram da procissão por água. 42 Desconheço a natureza do desentendimento. As pessoas disseram apenas que eles brigaram “por causa de política”. 43 “Casa da Santa” é a forma como as devotas se referem à Capela de Nossa Senhora da Conceição. 44 Um Ministro pode segurar a hóstia consagrada e celebrar a comunhão, coisas que pessoas comuns não podem fazer, permitidas somente aos ministros extraordinários da santa Comunhão, Padres ou às pessoas em escala hierárquica eclesiástica superior. Durante muitos anos a função foi chamada pelos católicos de “ministro da
43
Padre Jorge havia convidado Sidney, morador de Caxias de Tócos, a assistir ao curso
para tornar-se ministro extraordinário da santa Comunhão, e este aceitou. Quando finalmente
recebeu o título referente à função, em outubro de 2003, Sidney solicitou autorização para atuar
na Igreja de Ponta Grossa. Esta dependia da disponibilidade do ministro de Caxias de Tócos para
que houvesse a celebração da Palavra. Como tal, criou o Conselho Capelar para cuidar dos
interesses da Igreja local, reorganizou o Grupo de Oração Nossa Senhora da Conceição - que
canta os hinos católicos durante as Celebrações do calendário eucarístico do povoado - e realizou
as Celebrações da Palavra durante a festa de Nossa Senhora da Conceição de 2003.
2004
Na sexta-feira, dia 25 de junho de 2004, às 20:00, minhas companheiras de pesquisa45 e
eu estávamos no Porto da Beirada para assistir à abertura oficial da “4ª Festa de São Pedro”,
conforme anunciava uma faixa pendurada na praça do Ingá. Havia um palco da Prefeitura de
Campos dos Goitacases montado no local, um estande da Secretaria de Meio Ambiente, dez
barraquinhas e muitas bandeirinhas de São João. A presença da Secretaria de Meio Ambiente na
festa do povoado pesqueiro pode ser interpretada como uma forma de Russo Peixeiro dizer aos
habitantes locais que tinha interesse em construir a prometida Gruta para São Pedro, já que as
obras do porto embargadas pelo IBAMA foram empreendidas pela Prefeitura através da
Secretaria de Meio Ambiente.
Quinze policiais militares cuidavam da segurança. Sandro, o mesmo locutor do ano
passado, anunciava ao microfone o apoio de Arnaldo França Vianna, de sua esposa, Ilsan
Vianna46, e do vereador Russo Peixeiro. O movimento de pessoas no Porto era escasso e alguns
barraqueiros diziam que a festa seria “fraca”, prevendo o comparecimento de poucas pessoas
“devido à pouca divulgação”.
Em 2004, a festa fora divulgada por meio de cartazes afixados nos lugarejos vizinhos e
nos ônibus que levam à Ponta Grossa; e também por um carro de som que anunciava os festejos,
convidando os ouvintes a comparecer. Os moradores, quando questionados a respeito desse
inédito meio de divulgação - o carro de som -, diziam que ele só ia até Tócos e que isto era
Eucaristia”, expressão proibida pelo Papa João Paulo II com a publicação do documento Redemptionis Sacramentum em 2004, sob a justificativa de que apenas um Padre pode celebrar o sacramento da Eucaristia, jamais um leigo. Assim, a ambigüidade da expressão “ministro da Eucaristia” poderia levar a erro, julgando-se que o leigo possa exercer funções próprias do sacerdote. 45 Refiro-me aqui a Bonnie Moraes Manhães de Azevedo e Cyntia dos Santos Jorge. 46 Na época, Arnaldo Vianna era Prefeito de Campos dos Goitacases e Ilsan, sua esposa, diretora da Fundação Teatro Trianon.
44
insuficiente. Reclamavam da Prefeitura de Campos que, alegando contenção de despesas,47 não
anunciara a festa nas rádios locais. Portanto a festa seria prestigiada por poucas pessoas oriundas
“da cidade” e também dos outros lugares não diretamente vinculados ao assentamento pesqueiro.
Foto: Cyntia dos Santos Jorge
Faixa afixada na praça do Ingá, com a programação de shows da 4ª festa de São Pedro.
Os barraqueiros argumentavam que por volta das 20:00 do primeiro dia da festa de 2003
a circulação no Porto da Beirada era muito maior do que naquele mesmo horário em 2004.
Percebi, contudo, que após as 22:00 muita gente começou a chegar. Concluí, com outras pessoas
do povoado, que tinham deixado para ir à festa somente após a transmissão do último capítulo da
novela “Celebridade”,48 onde se revelaria finalmente o assassino de um de seus personagens.
Numa barraquinha de cachorro-quente do Porto da Beirada havia um televisor instalado. Em
torno dele cerca de dez pessoas estavam reunidas para assistir às revelações do capítulo
conclusivo da telenovela.
47 Esta contenção de gastos provavelmente estava ligada ao fato de ser aquele ano eleitoral. Sobre isso falarei mais adiante. 48 Transmitida pela Rede Globo de Televisão.
45
No primeiro dia da festa não houve nenhum evento especificamente religioso, ou seja,
ladainhas, missa, procissão ou apresentação dos ministérios de louvor. Segundo Sandro, a
Prefeitura de Campos, a Fundação Teatro Trianon e a Secretaria de Meio Ambiente tinham
assumido a parte recreativa da festa, enquanto a parte religiosa tinha ficado aos cuidados da
APAPGF. Mais tarde descobri que os preparativos religiosos foram feitos por Virgimar e Ruth,
esposa de Russo Peixeiro.
Tampouco no sábado 26 de junho de 2004 houve qualquer acontecimento de cunho
religioso, relativo ao Santo Pescador, limitando-se as atividades festivas à apresentação de um
grupo de música baiana. Algumas barraquinhas funcionaram normalmente, vendendo bebidas e
comidas variadas. Foi, de certo modo, um dia comum no campo. Um dos barraqueiros afirmou
que a festa só ficaria animada no domingo, dia da cavalgada.
Foto: Cyntia dos Santos Jorge
Russo Peixeiro caminhando à direita da banda da Guarda Civil Municipal de Campos durante a Alvorada.
Neste dia acordamos bem cedo para assistir à Alvorada. Quando a banda da Guarda Civil
Municipal chegou já era dia claro. Às seis e meia ouvimos o som de fogos e marchinhas. Ao
chegar na praça do Ingá vimos que Russo Peixeiro marchava ao lado direito do Maestro Amaro.
46
A Alvorada marchava rápido porque já estava atrasada e por isso nem todas as pessoas
conseguiam acompanhá-la. Foi até o Ingá de onde voltou em direção à Ponta dirigindo-se,
finalmente, à Capela de Nossa Senhora da Conceição, onde concluiu sua apresentação com o
“Parabéns pra você”. A seguir, seus membros foram até a Escola Municipal José de Azevedo
para o café da manhã que Russo lhes oferecia.
Na casa deste houve também um café da manhã para os homens do povoado e visitantes,
que iriam participar da Cavalgada: café, suco de caju, bolo de farinha de trigo e pão francês com
mortadela. Houve ainda distribuição de uma camiseta aos participantes da Cavalgada. Na parte
dianteira da camisa havia uma estampa de São Pedro idoso com os dizeres “4ª Festa de São
Pedro de Ponta Grossa dos Fidalgos” e, na parte de trás, “Apoio: Vereador Russo Peixeiro e
Comissão de Festas”, onde as palavras “Apoio” e “Comissão de Festas” estavam na cor azul,
enquanto “Vereador Russo Peixeiro” em vermelho e com um corpo de fonte maior para “Russo
Peixeiro”. Os festeiros da Cavalgada eram os mesmos do ano anterior.
Foto: Cyntia dos Santos Jorge
Cavaleiros tomando o café da manhã oferecido por Russo Peixeiro em sua casa.
47
Ao término desta ocorreria uma procissão por água. Os barcos estavam quase prontos.
Sandro e a líder do Show Riso49 anunciaram a procissão, convidando as pessoas a participar.
Dirigimo-nos, pois, ao Porto da Beirada enquanto o Show Riso continuava no palco animando as
crianças. Lá, descobrimos que a procissão já tinha ido e voltado. Segundo Marinês e outras
mulheres do Grupo de Oração local, durante menos de um quarto de hora, quinze barcos saíram,
“rodaram no meio da Lagoa”, e retornaram. Como Zeladora da Igreja, caberia a Marinês puxar
as ladainhas durante essa procissão, mas, também ela, ao chegar ao Porto, descobriu que os
barcos já haviam partido. Quando um dos barqueiros a viu, retornou para buscá-la. Segundo ela,
não houve reza nesta procissão. Assim descobrimos que não tínhamos sido as únicas a perdê-la,
pois várias outras pessoas chegaram depois de nós e se manifestaram surpresas ao saber que a
procissão já terminara.
Ao fim do Show Riso, por volta das quatro e meia da tarde, o locutor convocava as
pessoas para a Missa: “Queria convidar todas as famílias religiosas para ter Jesus dentro do
coração simbolizando a festa de São Pedro”. O celebrante, Pe. Jorge, agradeceu “especialmente
a Russo Peixeiro e sua mulher Ruth pela festa”. Dentre as duas centenas de pessoas presentes,
cerca de oitenta pareciam prestar atenção à Missa. O padre afirmou que em cada pescador ou
trabalhador havia um pouco da alma de São Pedro, sem acrescentar maiores esclarecimentos à
afirmativa. No momento das orações e pedidos, Pe. Jorge rogou a Deus que as pessoas
aprendessem a cuidar das águas e pediu por Russo Peixeiro e seu mandato. Ao fim da Missa, o
Padre agradeceu à Prefeitura e ao vereador pela organização da festa e relatou a disposição do
Prefeito em providenciar a pavimentação do Porto e a doação ao povoado de uma gruta para São
Pedro. Concluiu dizendo que no ano seguinte essas obras estariam concluídas e que isto
certamente favoreceria a festa. Em seguida, deu dois “vivas!” a São Pedro e um aos pescadores.
Tentamos seguir a procissão por terra, mas havia cavaleiros e crianças de bicicleta no
meio dela. O cortejo não avançou além da praça do Ingá, de onde retornou rumo à Capela e só
então conseguimos acompanhá-lo. Tudo na procissão nos pareceu muito confuso. Havia um
carro de som que tocava hinos religiosos, enquanto os participantes recitavam o terço. O
combinado era intercalar os mistérios do rosário com hinos. O que de fato aconteceu foi a
superposição das duas coisas. Pouco mais de cinqüenta pessoas acompanharam a Procissão até a
praça do Ingá. Em geral, a Procissão vai até o Ingá e volta com um número maior de
participantes, às vezes até dobrando a quantidade. Desta vez, a Procissão diminuiu, e apenas
pouco mais de quarenta pessoas retornaram com ela até a Igreja. Esta procissão foi abandonada
49 No Show Riso, grupo de animação infantil, diversos personagens cantam e dançam, sendo a líder do grupo uma “boneca”, ou melhor, uma mulher fantasiada de boneca.
48
por algumas pessoas com medo de que acontecesse algum acidente por causa dos cavaleiros
misturados ao cortejo; outras se aborreceram porque Ruth, esposa do vereador e responsável pela
organização da parte religiosa da festa, reclamou durante a procissão que as pessoas não estavam
rezando e começou a brigar com elas. “A procissão estava fraca”, disseram os fiéis. Na Igreja
terminaram o terço. Russo era um dos portadores do andor. Ao final, ele lembrou a todos que, na
terça-feira, dia do Santo, haveria Missa e Procissão dedicadas a São Pedro.
Conversando com alguns freqüentadores da Igreja sobre a desorganização das procissões,
eles me revelaram que “o povo estava insatisfeito com Russo”, e a prova disso viria no resultado
das eleições.50 As principais razões para a insatisfação do “povo” eram, em segundo plano, a
contratação de uma moça de fora de Ponta Grossa para substituição de uma moça do povoado
que trabalhava na Escola Municipal José de Azevedo, e cujo contrato havia terminado; e, como
razão principal, o desrespeito de Russo para com o Grupo de Oração local no tocante à
organização e participação na festa de São Pedro. Ressalte-se aqui a exclusão de Marinês e suas
companheiras da organização da festa, como já mencionado, neste ano feita por Virgimar e Ruth.
Também a missa campal fora paraninfada por um grupo de oração de um povoado vizinho em
detrimento do grupo de oração local. Desta forma, os católicos que costumavam participar
ativamente da festa de São Pedro resolveram “boicotar a festa de Russo”, de diferentes maneiras.
Alguns não assistiram à Missa, muitos não participaram das procissões e outros ainda
percorreram ou tentaram percorrer o trajeto da procissão por terra, mas sem acompanhar a reza, o
que deixou Ruth irritada e fez com que ela brigasse com as pessoas no meio do cortejo.
Padre Jorge alegou que “não sabia” de nada, e que fora Russo e Ruth quem lhe disseram
que seria o grupo de oração de Tócos, da Igreja Nossa Senhora da Penha, que paraninfaria a
Missa. Sidney ficou muito irritado com a displicência do Padre, pois na sua opinião, a atitude
correta do Sacerdote seria de, no mínimo, perguntar ao vereador se o grupo de oração local
estava de acordo com a decisão. Padre Jorge, no entanto, nada fez, e Sidney discutiu com ele
pelo que julgou um desrespeito àquelas mulheres que freqüentam a Capela pontagrossense.
Exigiu assim que o Padre se desculpasse com suas paroquianas e com ele, mas esta exigência foi
feita através de um recado, e não pessoalmente. Sidney entregou o cargo de ministro
extraordinário da santa Comunhão e mandou dizer ao Padre que somente quando este se
desculpasse com as mulheres de Ponta Grossa retornaria ao cargo. Padre Jorge, por sua vez,
disse que pediria desculpas a Sidney caso este fosse até a Paróquia de São Gonçalo para recebê-
las. Não tendo nenhum dos dois cedido, o impasse permaneceu.
50 Em outubro de 2004 se realizaria o pleito para Prefeito do Município e vereadores.
49
Assim, o grupo de oração local decidiu realizar uma comemoração especial para São
Pedro no dia oficial do Santo. Geralmente, quando o dia do Santo cai no meio da semana, eles
fazem apenas uma Celebração da Palavra, deixando para realmente comemorar o Santo Pescador
no fim de semana em que sua festa é realizada. Desta vez, na terça-feira seguinte, dia 29 de
junho, a Capela local estava abarrotada de pessoas para assistir à Missa ministrada pelo Pároco
local, e também do lado de fora da Igreja muitos fiéis acompanharam as palavras do Pe. Jorge.
Após a Celebração da Eucaristia, houve uma procissão com cinco vezes mais pessoas que a
ocorrida no domingo.
2005
No dia 26 de maio de 2005, quinta-feira de Corpus Christi, acompanhei a saída da
imagem de Nossa Senhora da Conceição da casa de “dona Nenete” para a cada de “dona Silíca”,
duas senhoras com mais de sessenta anos que recebem a visita da Santa em suas casas todos os
anos no mês de Maria. Não houve comemoração de Corpus Christi, pois a data pede Celebração
da Eucaristia, já que o objetivo da festa é celebrar solenemente o mistério da Eucaristia - o
Sacramento do Corpo e do Sangue de Jesus Cristo, e não havia ministro extraordinário da santa
Comunhão ou Sacerdote que pudesse celebrar.
Depois de passar a Santa de uma casa à outra, de fazer as orações e cantar as ladainhas, a
dona da casa que recebe a imagem oferece um lanche às pessoas que acompanharam a
transposição da mesma, e segue-se um momento de interação social feminina, já que os poucos
homens que acompanham a ida da Santa de uma casa à outra nunca entram nas casas, ficam
sempre no lado de fora.
Nessas breves reuniões femininas, as mulheres discutem assuntos particulares e pessoais,
além de temas de relevância para o grupo católico local, tais como eventos de interesse do grupo.
Acompanhei todas as visitas da Santa passando de uma casa para outra do dia de Corpus Christi
até dia do retorno da Santa à Igreja, a “casa dela”. No dia 29 de maio, após a transposição da
Santa de uma casa à outra, as mulheres confraternizavam entre si quando Marinês perguntou a
Valéria, a tesoureira do Conselho Capelar, se haveria mesmo festa de São Pedro. Seguindo o
prognóstico que alguns me fizeram ao fim da festa de São Pedro de 2004, Russo Peixeiro não se
reelegeu, ainda que tenha sido muito votado em todo o município, e boatos corriam de que em
2005 ele não realizaria a festa. Quando Marinês tocou no assunto, uma acalorada discussão teve
início.
Alguém disse que Russo teria dito em reunião com os pescadores que não realizaria a
festa, fato que não se confirmou nem foi refutado. Marinês então falou que isso era uma falta de
50
respeito dele, afinal, a política não deveria interferir na religiosidade. Ela então propõe fazer uma
procissão para São Pedro e cantar ladainhas, fazendo uma comemoração. As mulheres se
mostram entusiasmadas em fazer a quinta festa de São Pedro, e neste momento uma mulher
chamada Dionéia51 diz: “Tradicional festa de São Pedro, mas a tradição só durou quatro
anos?”. Então elas começaram a falar que a festa de 2004 não foi boa porque “era só política”, já
que a Igreja, ou seja, aquele grupo de mulheres, ficou de fora. A recusa de Russo em fazer a festa
naquele ano era, para elas, uma corroboração da opinião que então expressavam. Nelson52 disse
que gostaria de conversar com Marinês sobre a festa de 2005, mas não sabia se poderia ajudar
muito, pois ainda não era presidente efetivo da APAPGF.
Neste momento elas começam a relembrar o passado: diziam que na “festa dos antigos”
cantava-se o hino de São Pedro em frente ao prédio da Colônia e que Virgimar “ressuscitou” a
festa em 2001. Contaram que naquele ano as mulheres se reuniram, durante quinze dias, até de
madrugada na casa de Virgimar para fazer bandeirinhas. Armaram barracas com artesanatos. A
festa de 2001, segundo elas, foi simples, mas foi muito boa porque teve mais fé e devoção. A
procissão de barcos saiu do Porto da Beirada e foi até o Porto Antonio Soares, depois seguiu por
terra de volta ao porto principal do povoado. Como em 2002, e como seria o ideal sempre. Já em
2004, a procissão de barcos esqueceu Marinês e voltou pra pegá-la, depois rodou no meio da
Lagoa sem reza e voltou ao mesmo lugar. Em 2001 não teve muita gente de fora e Russo ajudou
só um pouco, tomando a frente do patrocínio somente no ano seguinte. Em 2005, contudo, até
aquele momento não se sabia se Russo patrocinaria ou não o festejo.
Assim, festa deste ano foi organizada às pressas, com pouco mais de uma semana de
antecedência, quando os pontagrossenses ainda especulavam se haveria ou não festa de São
Pedro em 2005. Russo Peixeiro recebera 3573 votos no município, porém estes foram
insuficientes para mantê-lo na Câmara. Por este motivo, ele anunciara que não realizaria a festa
naquele ano.
Muitas denúncias de compra de sufrágio foram feitas envolvendo os dois principais
candidatos a Prefeito da cidade de Campos dos Goitacases, o que determinou a suspensão do
mandato do Prefeito e Vice-Prefeito eleitos. Assim, no início de junho de 2005, o Presidente da
Câmara de Vereadores campista (Alexandre Mocaiber) assumiu a Prefeitura Municipal,
51 Dionéia é tesoureira da APAPGF e em alguns dias seu marido, Nelson, se tornará presidente oficial da Associação, que mantém boas relações com Russo Peixeiro. 52 Nelson era vice-presidente da APAPGF. Quando no início de 2005, Virgimar deixa Ponta Grossa dos Fidalgos, ele assume o posto abandonado e sua esposa, Dionéia, assume a tesouraria da Associação. Alguns pescadores dizem que Virgimar saiu “fugida” do povoado devido à descoberta dos roubos que ela fazia na Associação. As acusações nunca foram levadas à justiça, não tendo assim sido refutadas ou confirmadas. Para saber mais sobre a Associação de Pescadores Artesanais de Ponta Grossa dos Fidalgos ver a monografia de Lorena de Oliveira e Alves: 2006.
51
deixando uma cadeira vaga na Câmara. Pela grande quantidade de votos obtida, ainda que não
tenha sido suficiente para manter-se como vereador, Russo Peixeiro reassumiu sua cadeira na
Câmara até que o problema político municipal fosse resolvido. Foram nessas circunstâncias que
Russo convocou a “população de Ponta Grossa dos Fidalgos” para uma reunião53 em sua casa no
povoado, onde anunciou que realizaria a festa de São Pedro.
Nesta reunião, onde compareceram apenas pessoas que já o apoiavam, Russo mostrou-se
profundamente decepcionado com a população do distrito de Tócos, pois ele sabia que fora lá
que recebera votação menor que a esperada54. Então o político fala sobre tudo o que ele sempre
fez pelos moradores de Ponta Grossa dos Fidalgos, desde pequenos favores como conseguir
médico para alguém que necessitasse até convencer o Prefeito a não realizar concurso público
para a Guarda Civil Municipal, a fim de que os seguranças contratados de Ponta Grossa
continuassem empregados, pois ele sabia que provavelmente aquelas pessoas perderiam no
concurso e teriam dificuldades para sustentar suas famílias.
A reunião foi um verdadeiro desabafo do político derrotado no pleito que se sentia traído
por aqueles a quem ele exclamava amar e a quem tanto ajudou: a população de Ponta Grossa dos
Fidalgos. Nesta reunião ele também disse que naquela semana, no dia da sua primeira reunião na
Câmara dos Vereadores após reassumir a cadeira, um ônibus iria buscar aqueles que quisessem ir
à reunião, e pediu aos presentes que fossem e levassem cada um mais cinco amigos ou
parentes.55
Tomada a decisão de realizar a festa em data tão imediata ao acontecimento, não foi
possível fazer a divulgação adequada: não houve cartazes com a programação da festa nem
anúncios em rádio ou televisão. Com isso, algumas pessoas, que montaram suas barracas nos
anos anteriores, desistiram de fazê-lo, temendo o prejuízo. Ainda assim, o número de barracas se
manteve alto. Além da barraca de Samuel,56 transformada num bar permanente após a festa de
2004, cerca de dez outras foram armadas no Porto da Beirada, que permanecia sem o prometido
calçamento e a sonhada Gruta de São Pedro.
53 A “convocação” para esta reunião foi feita na base do “boca-a-boca”, isto é, inicialmente através de Nelson e de Durval, Russo fez com que circulasse por todo o povoado a notícia de que Russo faria uma reunião em sua casa. O convite era extensivo a quem quisesse participar, e por isso Cyntia Jorge, única integrante do grupo de pesquisa que se encontrava em campo naquela ocasião específica, participou da reunião e me entregou a gravação da mesma para que eu transcrevesse. A ela, meus agradecimentos por esta preciosidade etnográfica. 54 Segundo o próprio Russo, ele obtivera 732 votos nos distritos de Goitacases e Donana, de um total de 3573 votos em todo o município. 55 A análise do discurso do político nesta reunião se encontra na Parte IV deste trabalho. 56 Samuel é um homem de meia-idade, instruído em escolas da cidade de Campos, como ele mesmo gosta de ressaltar. Tem um salão de festas em Ponta Grossa, onde promove eventos e lida com equipamentos de som, além de um bar no Porto da Beirada, construído em 2004.
52
Oficialmente a festa começou na sexta-feira, dia 1º de julho, porém os únicos eventos
extra-ordinários ocorridos foram os shows de Sagrada Família e Oswaldão57. Já no sábado,
aconteceu apenas um show de forró. Os eventos costumeiros do festejo de São Pedro se
concentraram no domingo.
Na manhã de domingo, um grupo de músicos, cujos integrantes fazem parte da Guarda
Civil Municipal, realizou a alvorada pelas ruas do povoado. Eles não estavam fardados desta vez,
pois, segundo um dos músicos, a banda da Guarda não existia mais porque Carlos Alberto
Campista58 decidira não mais apoiá-la, supostamente para conter os gastos da Prefeitura. Tinham
sido levados ao povoado por um ônibus alugado por Russo Peixeiro, pois a Prefeitura não mais
disponibilizou o ônibus da Guarda para a banda. Alguns daqueles músicos, contudo, resolveram
continuar tocando em festas religiosas da região por conta própria, já que são pagos para tal e é
sempre um “dinheirinho a mais que entra” no limitado orçamento familiar.
Foto: Thaís Nascimento
A banda que toca a alvorada seguida pelos moradores no final da Ponta, já amanhecendo.
57 Oswaldão, também conhecido como Dom Américo, é um cantor do município de Campos dos Goitacases que tem um estilo irreverente e falastrão. 58 A decisão foi tomada enquanto Carlos Alberto Campista exercia o cargo de Prefeito do município campista. Na ocasião da festa de São Pedro, o político estava impedido de exercer seu mandato devido a denúncias de compra de votos no pleito, porém sua decisão foi mantida por Alexandre Mocaiber, Prefeito em exercício.
53
Num trecho da rua João Cabral Neto, na Beirada, dois rapazes saíram de suas casas, em
frente às quais passava o cortejo da alvorada, e ordenaram aos músicos que parassem de tocar.
Um deles tentou agredir Durval, além de segurar o trompete de uma integrante, que reagiu.
Alguns homens seguraram os dois rapazes e os levaram para dentro de casa. O cortejo, então,
prosseguiu em silêncio, e a banda só voltou a tocar em frente à caixa d’água. A alvorada
terminou diante da Associação de Pescadores Artesanais de Ponta Grossa dos Fidalgos
novamente com o “Parabéns pra você”.
A versão apresentada pelos moradores locais sobre o conflito mencionado acima foi a de
que este fora motivado por fatores políticos. Segundo contaram, Russo Peixeiro prometera aos
rapazes um emprego, promessa que não cumpriu. Após passarem a noite bebendo no forró
realizado pelo dono do Pesque-Pague, os rapazes tentaram quebrar o carro do vereador e
ameaçaram agredi-lo, motivo pelo qual este não participou da alvorada neste ano. Quando o
cortejo passou diante de suas casas, os jovens enraivecidos detiveram a banda de música no
intuito de manifestar sua insatisfação com o político e de atrapalhar sua festa.
Do palco cedido pela Prefeitura pendia uma faixa com os dizeres: “Os moradores de
Ponta Grossa agradecem ao Pref. Alexandre Mocaiber e ao Sr. Russo Peixeiro. Obrigado!”. O
local estava enfeitado com bandeirinhas de São João e um arco de bambu enfeitado com as
bandeirinhas ficava na entrada do Porto, como nos anos anteriores. Este arco, de certa forma,
delimitava até onde os carros podiam ser estacionados e os cavaleiros podiam entrar com seus
cavalos.
A cavalgada foi menos prestigiada que no ano anterior, embora tenha tido mais
participantes do que a de 2003. Além disso, não foram confeccionadas camisas para o evento e
não havia imagem do Santo acompanhando aos cavaleiros.
A procissão por água contou com oito embarcações e correu o risco de sair sem a imagem
do Santo pescador, pois a zeladora da Igreja, responsável por conduzi-la ao Porto da Beirada,
permaneceu em casa. Marinês também não compareceu ao primeiro dia da festa e ficou pouco
tempo no local dos festejos durante a segunda noite. As outras mulheres que freqüentam a Igreja
e até mesmo as que compõem o Conselho Administrativo da mesma, juntamente com Marinês,
não sabiam o que estava acontecendo e por quê ela não comparecia à festa. Sua justificativa,
quando perguntada a respeito, foi a de que seu filho pequeno estava doente, impedindo-a de sair
de casa. Sua ausência, no entanto, pode ter sido intencional, a fim de mostrar sua insatisfação
com a inserção do vereador na festa. Isto porque no ano anterior, ao falar sobre o fato de a
procissão de barcos ter saído sem ela, Marinês questionou: “Como pode a procissão sair sem a
54
zeladora da Igreja?”; idéia que foi reforçada por Valéria, secretária do Conselho Administrativo
da Igreja: “Sem Marinês, que é zeladora, a procissão não pode sair”.
Foto: Thaís Nascimento
Barcos enfeitados para a procissão por água no Porto da Beirada.
Nelson, novo presidente da Associação de Pescadores, enviou um menino à casa de
Marinês a fim de chamá-la para a procissão por água, e só então ela apareceu com o quadro que
retrata São Pedro. O percurso dos barcos durante a procissão foi o mesmo do ano anterior, ou
seja, as embarcações fizeram uma espécie de “oito” dentro da Lagoa e retornaram ao Porto.
Somente no barco onde estava Marinês com algumas mulheres da Igreja houve canto e ladainha.
Entre a procissão por água e a Missa Campal, decorreram cerca de duas horas. Foi o
tempo necessário às pessoas para tomarem banho e se arrumarem para o evento. Russo Peixeiro,
desta vez, estava no palco, apadrinhando uma criança batizada na ocasião. Após a Missa e o
batismo da menina, Padre Jorge afirmou que no ano seguinte a Missa seria realizada na Igreja às
oito horas da manhã de domingo, atendendo à solicitação da comunidade católica local,
representada por Marinês. Se o argumento da febre do filho foi apenas uma desculpa para um
boicote à festa, dadas as suas críticas à conduta de Russo Peixeiro na festa religiosa, então sua
manifestação rendeu frutos, ou pelo menos, uma promessa de boas colheitas.
55
Foto: Thaís Nascimento
Os homens segurando o andor de São Pedro e as mulheres, o de Nossa Senhora da Conceição, preparando-se para a
procissão por terra após a Missa Campal.
O ritual religioso foi encerrado com uma procissão bastante prestigiada onde os homens
levaram o andor do Santo, e as mulheres, logo atrás, levaram o andor de Nossa Senhora da
Conceição, com a imagem grande da Santa. A festa foi encerrada após a procissão com show de
forró.
2006
No ano de 2006 eu estava morando na cidade do Rio de Janeiro, onde cursava as
disciplinas do meu curso de mestrado. Mantive, todavia, contato com os colegas do grupo de
pesquisa e através deles soube que a festa de São Pedro aconteceria nos dias 30 de junho, 1° e 02
de julho, respectivamente sexta-feira, sábado e domingo. Desta forma, como estava em aulas,
resolvi viajar para Campos somente na sexta-feira, já que nada especial fora anunciado para o dia
do Santo, e eu teria aulas na quinta-feira.
No ônibus que me levou de Campos a Ponta Grossa dos Fidalgos naquela sexta-feira,
encontrei Marinês, que me relatou que não haveria Missa na festa de São Pedro deste ano. Isto
56
porque Pedrinho, que estava à frente da organização da festa de 2006, combinara a Missa com o
pároco da Igreja de Santo Antônio, no bairro Jardim Carioca, em Campos. Acontece que um
pároco não pode celebrar Missas em Igrejas pertencentes a Paróquias que não a sua sem a devida
autorização do pároco responsável pela diocese onde acontecerá a celebração. Ou seja, este
pároco contatado por Pedrinho não poderia celebrar em Ponta Grossa sem a autorização de Padre
Jorge, visto que a Capela local pertence à Paróquia de São Gonçalo, localizada em Goitacases.
Quando Padre Jorge soube que outro Padre fora convidado a celebrar a Missa em Ponta Grossa,
não só não permitiu que o outro celebrasse como também afirmou que não celebraria a Missa na
festa de São Pedro. “A mesma coisa que fizeram com Padre Jorge foi o que ele fez com a gente
há dois anos”, afirmou Marinês referindo-se ao ocorrido na festa de 2004, em que outro grupo de
oração fora convidado para auxiliar o Padre na Missa.
No dia 29 de junho de 2006 ocorrera um louvor com o Ministério de Música Sagrada
Família e, ainda que no dia seguinte, sexta-feira 30 de junho, tenha ocorrido somente um louvor
com outro grupo de adoração, da mesma maneira que no dia anterior, as pessoas só
consideravam que a festa havia começado na sexta-feira. Este ano as barracas eram
padronizadas, todas de lona branca, mas na sexta-feira à noite elas não estavam todas montadas.
O vento forte na beira da Lagoa dificultava sua armação. No sábado à noite cerca de quinze
barracas estavam montadas no Porto da Beirada, além do palco de shows e um pula-pula para as
crianças.
A maioria das pessoas neste segundo dia de festa só começou a chegar no Porto da
Beirada após as 22h. Desde o final da tarde Sandro Lima já estava lá anunciando os eventos
daquela noite: apresentação do grupo de quadrilha de salão ‘Brilho do Luar’ e show de ‘Sabor de
Beijo’, um grupo de música baiana. Depois deste, haveria um show de forró do grupo ‘Cartão
Postal’ no Pesque-Pague. No meio do show de ‘Sabor de Beijo’ o gerador de energia apresentou
problemas e parou de funcionar. Assim, o show de ‘Cartão Postal’ começou antes do show de
‘Sabor de Beijo’ terminar, já que este fora interrompido e Amaro, dono do Pesque-Pague, não
queria deixar o movimento dispersar. Com isso, as pessoas foram para o Pesque-Pague e não
retornaram para o término do show de ‘Sabor de Beijo’, o que deixou Nelson e Durval
insatisfeitos. Segundo eles, Amaro quis fazer um show de graça no mesmo horário do show da
festa de São Pedro porque Russo não deu a ele o prometido aterro do Pesque-Pague, para evitar o
contato das águas dos tanques com as da Lagoa em período de cheia. Também Daniel,
organizador da cavalgada nos anos anteriores, não quis ajudar na festa pois Russo não lhe dera o
prometido emprego. Assim, a cavalgada da 6ª festa de São Pedro foi organizada por Silvinho,
57
um homem de aproximadamente 40 anos que costuma doar as flores para o andor em períodos
festivos.
Foto: Thaís Nascimento
Procissão de barcos em 2006.
A alvorada, marcada para cinco e meia da manhã de domingo, começou com uma hora de
atraso. Como sempre, foi tocada pela banda da Guarda Civil Municipal59, seguida por pessoas
que cantavam e dançavam e, atrás destas, um grupo de homens soltando fogos. Este ano, porém,
os homens que soltavam fogos estavam com um vidro de acetona que passava de mão em mão
entre eles, cujo conteúdo cada um deles aspirava antes de passar adiante. O término da alvorada
foi com a execução de “Parabéns a você” em frente à Associação de Pescadores, onde foi
oferecido um café da manhã aos músicos da Guarda Civil Municipal. Ali, presenciei uma
conversa entre Sandro, Nelson e Durval e assim eu soube que haveria apenas a procissão de
barcos. Isto ficou assim decidido porque, segundo eles, as pessoas estavam cansadas, e por isso a
procissão por terra poderia ficar para outro dia festivo. Disseram também que não havia banda
para puxar os hinos durante a procissão por terra, e isto desanimaria as pessoas, então era melhor
59 Em 2006, a banda da Guarda Civil Municipal voltou a se organizar com apoio da Prefeitura de Campos.
58
não fazer a procissão naquela ocasião. Como forma de estimular a participação dos pescadores,
houve o sorteio de uma bicicleta entre os donos de barcos que participaram da procissão lacustre.
Sandro reclamou para mim do povo de Ponta Grossa dos Fidalgos, que ao invés de ficar feliz
com a festa, reclama da política, e é contra a festa porque é contra o partido de Russo ou porque
este não cumpriu alguma promessa. Disse também que a festa não é do político, é de São Pedro,
e que o político maior é Deus.
Eles discutiram ainda durante alguns minutos se os cavaleiros deveriam ou não ir até o
Porto. Decidiram que sim, tendo Durval argumentado que o cavaleiro que vem de Goitacases ou
Farol que “dar sua voltinha” no local da festa, onde está a “badalação”. Começaram então a
discutir como fariam para retirá-los de lá depois, pois estava marcado para às 16h a apresentação
do Show Riso.
A cavalgada estava marcada para chegar às 14h, como nos outros anos, mas chegou no
povoado ao meio-dia e meia, e meia hora depois já tinha percorrido a rua principal e estava no
Porto. Havia uma Kombi tocando músicas do Padre Marcelo Rossi e um carro com carroceria
picape levava o andor do Santo. Não havia mais que cinqüenta cavaleiros participando do
evento, realmente um número muito pequeno comparado aos anos anteriores. Havia três
charretes e pouquíssimas mulheres participando da cavalgada. Sandro saudou os cavaleiros e
pediu a eles para não deixarem os cavalos ali por causa do show infantil. Quando a cavalgada
chegou ao Porto, Samuel desligou o forró que tocava em seu bar, só voltando a ligar o aparelho
de som quando os cavaleiros foram se retirando.
No meio da tarde aconteceu a procissão por água com sete barcos. Os participantes
cantaram o hino do pescador, deram vivas a São Pedro, Nossa Senhora da Conceição, São João
Batista, Nossa Senhora dos Navegantes e aos pescadores. Rezaram um Pai Nosso e uma Ave
Maria. Ao término da procissão Sandro Lima agradeceu aos pesquisadores da UENF no
microfone. Logo depois começou o Show Riso e a cantora agradeceu “a Pedro Nísio e a Russo
Peixeiro, que tantas vezes foi nosso anfitrião”. Mesmo Russo não tendo aparecido na festa, esta
continua sendo “de Russo” no imaginário das pessoas, e assim também falou Pedro, quando em
discurso no final da festa afirmou que sem Russo Peixeiro nos bastidores da festa, esta não teria
sido possível.
Ao final do Show Riso houve o sorteio de uma bicicleta entre os donos dos barcos que
participaram da procissão por água. O prêmio foi doado pela Associação de Pescadores para o
sorteio, a fim de incentivar a participação na procissão. Com o cair da tarde, houve a queima de
fogos e o show de Dom Américo. Assim se encerrou mais uma festa de São Pedro.
59
PARTE III
A FESTA É MAIS QUE FESTA: REFLEXÕES SOBRE AS COMEMORAÇÕES DO
SANTO PESCADOR
60
Pensando o Ritual
Os escritos bíblicos relatam que Jesus andava pela beira do lago da Galiléia quando viu
dois irmãos pescando em seus barcos e os convidou a acompanhá-lo para ensiná-los a pescar
gente. Os irmãos pescadores eram Simão, conhecido como o apóstolo Pedro, e André. Logo à
frente, viu e chamou outros dois irmãos pescadores, Tiago e João.
Pedro nasceu em Betsaida, vilarejo pesqueiro às margens do mar da Galiléia ou de
Tiberíades, na verdade, uma lagoa de 247km², também conhecida como Lago de Genezaré,
situada a duzentos metros abaixo do nível do Mediterrâneo, e cuja comunicação com o Mar
Morto é feita através do rio Jordão. Também a Lagoa Feia se comunica com o mar através do
Canal das Flechas e seu nível é dois metros mais baixo que o do mar. Sua extensão é de 160km²,
embora já tenha sido maior que o lago de Genezaré, tendo 123km² a mais que este. Há, portanto,
muitas características que permitem a identificação dos pescadores da Lagoa Feia com seu Santo
padroeiro, e estas são apontadas, com orgulho, por alguns deles.60
Antes do século IV, uma festa em memória ao Santo era realizada no dia 28 de dezembro,
data arbitrariamente escolhida para comemorar São Pedro e São Paulo, sem nenhuma referência
à data da morte dos dois Apóstolos. A partir do ano de 258, a memória dos dois mártires passou
a ser celebrada em 29 de junho na Via Appia ad Catacumbas, pois esta data evoca a transposição
de seus restos mortais para este local.
A festa de São Pedro faz parte do ciclo festivo dos santos do mês de junho, composto
ainda por Santo Antônio e São João, celebrados, respectivamente, nos dias 13 e 24 de junho.
Todos os três são santos tradicionalmente muito festejados pela população rural brasileira, que se
identifica com eles de distintas maneiras.61 Gastão de Bettencourt diz que “São Pedro, o humilde
pescador das margens do lago de Genezareth, que havia de vir a ser o fundador da igreja do
Senhor, pescador de homens, (...) é festejado também, no Brasil, como em Portugal, com certo
entusiasmo”.62
Não se sabe quando a festa de São Pedro foi feita pela primeira vez em Ponta Grossa dos
Fidalgos. Também é desconhecido o ano preciso em que foi interrompida por um tempo,
também ele incerto, que varia de um interlocutor para outro. Tudo que se sabe é que a festa foi
retomada em 2001, tendo o grupo de pesquisa feito registros das festas de 2002 a 2006. A
comparação destas comemorações permite alinhar as diversas seqüências, que fazem parte do
60 Ver imagens de satélites das duas lagoas em Apêndice I. 61 Cf. Bettencourt: 1947; Lima: 2003. 62 Bettencourt: 1947; P. 157.
61
processo ritual. Com esta finalidade, consideremos, pois, o quadro sinóptico das festas de São
Pedro ocorridas naqueles anos.
Como se vê, a festa tem durado sempre três dias, com uma abertura na noite da sexta-
feira que antecede o fim de semana em que se realizará. Os acontecimentos propriamente rituais
tendem a se concentrar em um só dia, o principal do festejo. O quadro sinóptico revela algumas
variações de um ano para o outro. Há variações quanto ao número de eventos, por exemplo. E
também quanto ao tipo de evento, dentro de uma mesma categoria. Assim é que as ladainhas e
orações da festa de 2002 não se repetiram nos anos seguintes. A partir de 2003 se acrescentaram
as “quadrilhas de salão”. Outra variação de aspecto quantitativo é o acréscimo de eventos numa
mesma categoria, podendo haver mais ou menos shows ou quadrilhas. A impressão que se tem é
a de que a organização da festa parece estar adquirindo um padrão, no que se refere à ordem dos
acontecimentos. Pode-se observar, por exemplo, que toda festa se inicia e finda com um show de
forró. Esses shows acontecem em todos os dias festivos, com exceção do dia 30 de junho de
2002, quando o trio elétrico se retirou do Porto da Beirada para animar a comemoração, em outra
localidade, do pentacampeonato mundial de futebol.
Peças únicas são a Alvorada, a Cavalgada, a Missa. Esta última só não ocorreu em 2006
por conflitos entre os organizadores da festa e o Pároco local. A Procissão que era uma só, ou
melhor, duas Procissões articuladas, transformou-se num evento em dois tempos, separados pela
Missa. Primeiro, a Procissão pelas águas, depois a Procissão em terra.
A Alvorada acontece sempre no alvorecer do dia mais importante da festa, quando
ocorrem também a Missa e as Procissões e, nos últimos quatro anos, a Cavalgada.
O vocábulo “alvorada” pode ser entendido em três diferentes acepções. Uma delas refere-
se ao crepúsculo da manhã ou aos primeiros raios solares. A outra se relaciona à prática militar
do toque de corneta ou banda marcial para levantar a guarnição a bordo dos navios de guerra ou
dos quartéis. Por fim, de acordo com o uso regionalista brasileiro, a palavra “alvorada” indica
uma manifestação ruidosa, seja com foguete, toque de música ou salva de tiros, ao alvorecer de
dia festivo.63 Trata-se de uma convocação a todo o povoado para participar da festa. O toque da
alvorada inaugura o tempo festivo, chamando a atenção para um importante acontecimento
naquele lugar. A Alvorada acontece sempre no dia da Missa e das Procissões porque estes são os
acontecimentos especiais da festa do Santo, já que o ritual está diretamente relacionado à
festividade religiosa, à celebração do Santo, à realização de uma procissão e a uma celebração
litúrgica.
63 Cf. Houaiss: 2001.
62
Victor Turner define “ritual” como o comportamento formal prescrito para ocasiões não
devotadas à rotina tecnológica, tendo como referência a crença em seres ou poderes místicos.64
Este comportamento, contudo, não é estático, podendo ser um meio de transições sociais,
enquanto a cerimônia está ligada a estados sociais. 65 Isto explica que o pescador festeiro desde
2003, durante o período do ritual de São Pedro, fique em destaque devido à posição de liderança
que assume, enquanto ao longo do ano tende a ser tratado por seus pares como um igual.
O sistema ritual pode ser definido por incluir, não apenas o encantamento de todos os
ritos nos livros litúrgicos de dada religião, mas também os ritos transmitidos oralmente pelas
tradições paralitúrgicas populares.
Marinês, a Zeladora da Capela, disse, certa vez, que são imprescindíveis, na festa de
Nossa Senhora da Conceição, a Missa, a coroação da Santa e a procissão no dia 08 de dezembro,
data vinculada à Padroeira do povoado; e, em festas de São Pedro, são essenciais a Missa; a
procissão de barcos, pois o barco e a água são símbolos do pescador de quem São Pedro é
patrono; e a procissão por terra, para levar o Santo de volta ao Porto, de onde a procissão de
barcos saiu. Ainda que seja uma leiga, dentro do universo católico, no sentido em que o padre e,
em certa medida, o ministro extraordinário da santa Comunhão, são os especialistas, Marinês faz
uma interpretação interessante acerca dos símbolos do ritual católico.
O símbolo seria, então, a menor unidade do ritual que mantém a estrutura específica em
um contexto ritual, ou seja, um símbolo tipifica, representa ou lembra algo na medida em que
possui qualidades análogas ao que está sendo representado ou pela associação através de fatos e
pensamentos. Os símbolos, contudo, não são absolutamente fixos, e novos significados podem
ser adicionados a eles. Levar a imagem de São Pedro em um barco através das águas lacustres
simboliza o ofício cotidiano do pescador, que labuta sob o sol a fim de sustentar sua família. Da
mesma forma, retornar com o Santo através de terra firme ao Porto de onde ele saiu para
trabalhar, representa o regresso seguro do pescador à sua casa e seus familiares. Ao apontar o
barco e a água como símbolos dos pescadores, Marinês deseja ressaltar que a festa de São Pedro
é a “festa dos pescadores”, posto que é dedicada a um pescador, que é o Santo.
São Pedro é também o símbolo do papel social esperado dos homens naquele grupo.
Pode-se fazer uma analogia com a análise de Jean-Pierre Vernant sobre a escultura de Hestia e
Hermes, esculpida por Fídias. O que chama a atenção de Vernant para a associação
entre Hermes e Hestia é o fato de estes dois deuses não terem ligação aparente: não são irmãos,
nem mãe e filho, nem marido e mulher, e não têm também nenhum laço de dependência pessoal.
64 Cf. Turner: 2005. 65 Cf. Turner: 1968.
63
O autor, contudo, identifica, através do Hino homérico a Hestia, uma afinidade de função entre
os deuses: as duas forças divinas, presentes nos mesmos lugares, desenvolvem lado a lado
atividades complementares.
Hestia representa a lareira no centro do habitat humano, símbolo de imutabilidade e
permanência. Já Hermes representa o movimento, as transições. Na casa, seu lugar é junto da
porta, protegendo a soleira. Em todos os lugares em que os homens se reúnem, deixando suas
casas, Hermes está presente. O simbolismo dos deuses do panteão grego é muito próximo do que
simbolizam São Pedro e Nossa Senhora da Conceição enquanto representação de papéis sociais
esperados pelos pontagrossenses. O espaço de socialização do homem é o exterior, como em
Hermes, em especial os bares e a Lagoa, de onde devem tirar o sustento de suas famílias, tal qual
São Pedro fazia. O dever do homem é proteger e prover sua família, enquanto a mulher deve
cuidar da casa e dos filhos. Assim como o lugar de permanência de Hestia é o centro da moradia
privada, também a Capela é a “casa” da Santa padroeira do lugar. Ambas são representativas do
principal espaço de sociabilidade da mulher: a casa. Neste sentido, a Igreja, enquanto “casa da
Santa”, pode ser considerada uma extensão do lar privado. É na sua casa e na casa das outras
mulheres (e neste sentido, é incluída a “casa da Santa”), que as mulheres compartilham, ensinam
e aprendem os valores de “ser mulher” naquele grupo.
Vernant afirma que
“o espaço doméstico, espaço fechado, com um teto (protegido), tem, para os gregos, uma
conotação feminina. O espaço de fora, do exterior, tem conotação masculina. A mulher
está em casa em seu domínio. Aí é o seu lugar; em princípio, ela não deve sair. O
homem, pelo contrário, representa, no oîkos, o elemento centrífugo: cabe-lhe deixar o
recinto tranqüilizador do lar para defrontar-se com os cansaços, os perigos, os
imprevistos do exterior; cabe-lhe estabelecer os contatos com o que está fora, entrar em
comércio com o estrangeiro.” 66
O autor afirma ainda que a “permanência” de Hestia na casa não é de natureza apenas
espacial. Como ela confere à casa o centro que a fixa no espaço (a palavra Hestia designa
também, no grego, a lareira), Hestia assegura ao grupo doméstico a sua perenidade no tempo. É
pela Hestia que a linhagem familiar se perpetua e se mantém semelhante a si mesma,67 ou seja, é
através da mulher que a família se organiza e que os valores são passados de geração a geração,
pois é dela a responsabilidade do cuidado com os filhos. A analogia com Hestia e Hermes nos
66 Vernant: 1990; p. 197-198. 67 Cf. Vernant: 1990.
64
permite, portanto, compreender como Nossa Senhora da Conceição e São Pedro são símbolos
representativos dos valores vinculados aos papéis de gênero aceitos e esperados em Ponta Grossa
dos Fidalgos.
Enquanto os símbolos instrumentais constituem meios para o fim principal do rito, os
símbolos dominantes são mais que isto, pois se referem a valores que são considerados fins em si
mesmos, quer dizer, a valores axiomáticos. Utilizando esta perspectiva de Turner, interpreto
esses símbolos apontados por Marinês como símbolos instrumentais do ritual, sendo a imagem
do Santo o símbolo dominante ou focal. No caso da festa que narro, o ritual evidencia valores,
reconhecidos pela população católica como ideais e corretos, destacando a postura de homem
trabalhador e católico.
O momento de máxima focalização de São Pedro são as procissões, quando o Santo fica
literalmente acima dos homens, elevado no andor em que é carregado.68 Na procissão pelas
águas, os homens saem como se fossem pescar acompanhando São Pedro, ocasião em que o
Santo também está “acima” deles – o andor com a imagem (ou o quadro) de São Pedro é levado
pelo barco maior e mais enfeitado. Elevado acima dos fiéis, o Santo os irmana, no momento de
sua passagem, através de uma relação de proteção, ligando-se aos fiéis que o acompanham e que
o vêem passar, e de mediação, ligando os fiéis entre si, que, ao sair de suas casas, se tornam
companheiros de fé.69
Durante a procissão pelas águas de 2002, a chave de São Pedro foi elevada aos céus presa
a balões de gás, numa alusão à promessa de Cristo a São Pedro: “Eu lhe darei as chaves do
Reino do Céu; e o que você ligar na terra será ligado no céu, e o que você desligar na terra será
desligado no céu”.70 Essa passagem se refere ao poder sacerdotal de estabelecer ou desfazer
vínculos sagrados, e foi mencionada durante a festa de São Pedro de 2002, após a abertura com
ladainhas e cânticos.
A promessa feita encontra sua explicação em Isaías, no qual é conferida a Eliaquim, filho
de Hilquias, a plena autoridade do reino de Judá: “Colocarei a chave da casa de Davi sob a
responsabilidade dele: quando ele abrir, ninguém poderá fechar; quando ele fechar, ninguém
poderá abrir”.71 Cristo, por conseguinte, designa sua intenção de conferir a São Pedro a suprema
autoridade sobre sua Igreja.72
68 Cf. Damatta: 1983. 69 Idem, Ibidem. 70 Mateus 16:19. 71 Isaías 22:22. Grifos meus. 72 Cf. Enciclopédia Católica. Esta assinala que a São Pedro foi dada a chave do poder (clavis potentiae), e a São Paulo, a chave do conhecimento (clavis scientiae). A idéia da chave do conhecimento deriva das palavras de Cristo
65
Outro simbolismo ligado à procissão por água é o do peixe, pois a procissão evoca o
ofício do pescador. O símbolo, ele mesmo, pode ter sido sugerido pelo milagre da multiplicação
de pães e peixes, ou pelo aparecimento de Jesus aos sete discípulos, após a ressurreição, nas
margens do mar da Galiléia, quando, após uma noite inteira sem pegar peixe algum, jogaram as
redes, a pedido de Jesus, e encheram os barcos.73 Sua popularidade entre os cristãos, contudo, se
deveu principalmente, ao que parece, ao famoso acróstico, consistindo nas letras iniciais de cinco
palavras gregas, que formam a palavra peixe - Ichthys. Tais palavras descrevem a característica
principal de Jesus para seus fiéis: Iesous Christos Theou Yios Soter, i.e., Jesus Cristo, Filho de
Deus, Salvador. A palavra Ichthys, então, representa, para os cristãos, tanto o peixe, quanto a fé
na divindade de Cristo.
A própria Lagoa Feia tem implicações simbólicas, na medida em que evoca a história de
São Pedro, pois o mar da Galiléia era na verdade, como sabemos, o grande lago de Genezaré ou
de Tiberíades. Também Marinês aponta o caráter simbólico da água, que é fonte e origem da
vida, e a imersão nela pode dissolver ou regenerar. É usada no batismo, nas bênçãos, nos
exorcismos, nas abluções rituais e em muitas outras ocasiões litúrgicas. São Pedro navegou nas
águas, andou sobre elas e temeu a fúria do mar da Galiléia, cujas ondas tempestuosas Jesus
acalmou.
O foco da procissão por terra é o Santo, que sai do templo e vai ao encontro dos fiéis, os
quais o aguardam em suas casas, de onde o verão passar, ou seguem o seu andor, participando da
sua peregrinação pelo povoado. O centro da procissão é rigidamente ordenado.74 Aí estão o
Santo e as autoridades que o carregam – neste caso, o vereador, os organizadores da festa de São
Pedro e os católicos do povoado. É importante ressaltar que a maioria dos homens não costuma
freqüentar a Igreja, cujos fiéis assíduos são, na sua maioria, mulheres. Alguns homens do
povoado, contudo, costumam participar ativamente da festa, carregando o andor durante a
procissão; ajudando a arrumar o palco, para a missa campal; e reorganizando a Capela, após o
encerramento da festa.
A imagem no andor ornamentado é acompanhada por um séqüito, durante a procissão por
terra, pela rua principal do povoado, num momento em que o Santo se mostra aos fiéis. A
procissão une as autoridades ao povo, pois ao mesmo tempo em que o Santo está acima do povo
aos fariseus: “Ai de vocês, especialistas em leis, porque vocês se apoderaram da chave da ciência. Vocês mesmos não entraram, e impediram os que queriam entrar”. (Lucas 11:52). 73 Cf. João 21. 74 Cf. Damatta: 1983.
66
e separado dele pelas autoridades que o carregam e estão mais próximas dele, caminha com os
fiéis que lhe dedicam suas orações e cânticos.75
O quadro sinóptico mostra que as procissões por água e por terra estavam integradas nos
anos de 2002 e 2003, tendo sofrido um deslocamento em 2004 e 2005, quando foram separadas
pela Missa. Nos anos de 2002 e 2003, as procissões em périplo, palavra que deriva do grego
períploos ou períplous,ou, “circunavegação”, “navegação em torno de”, possuíam o caráter de
via sacra, saindo do Porto da Beirada rumo ao Porto Antonio Soares, de onde os moradores
retornavam em procissão por terra, percorrendo todo o povoado. A partir de 2004 a procissão de
barcos levou o quadro do Santo e, após a missa campal, o andor, com a imagem de São Pedro,
foi retirado do palco e carregado em procissão por terra. Esta separação ocorreu devido à
dificuldade de organizar a procissão de barcos, pois é escassa a adesão dos donos de barco ao
evento.
Já os shows de forró são eventos explicitamente lúdicos, enquanto os chamados “shows
católicos” parecem, a princípio, difíceis de classificar como religiosos ou não. A palavra “show”
remete a “espetáculo”, e à sua origem no verbo inglês “to show”, i. e., mostrar, exibir, expor. A
idéia de espetáculo é incompatível com a de religiosidade, de modo que o termo “show católico”
une duas substâncias heterogêneas que parecem ser inconciliáveis. As bandas, também chamadas
de Ministérios de Louvor, são formadas por pessoas católicas pertencentes a alguma paróquia
campista, mas podem contar, eventualmente, com um músico não-católico contratado para um
show. Suas músicas podem ser classificadas, quanto ao gênero musical, entre o rock e o pop,
utilizando, inclusive, riffs de músicas conhecidas, como Satisfaction, da banda de rock inglesa
Rolling Stones. As letras, contudo, falam de Deus, Jesus e passagens bíblicas, e os aplausos são
pedidos “para Jesus”. Os católicos cantam, dançam, e se preparam para o show de forró que virá
a seguir. Esses shows de forró são os bailes populares por excelência em Ponta Grossa dos
Fidalgos.
As chamadas “quadrilhas de salão” foram inseridas na festa de São Pedro em 2003.
Trata-se de grupos contratados para dançar quadrilha nas festas juninas, i. e., algo explicitamente
relacionado a São João, incorporado ao festejo de São Pedro. Sobre o folclore dos três santos de
junho, Gastão de Bettencourt escreve: “Se práticas há, que se prolongam desde a celebração de
Santo Antônio à de S. Pedro, irradiaram da marca de S. João, no intervalo daquelas”.76
75 Idem, Ibidem. 76 Bettencourt: 1947; p. 16.
67
A missa, além de representar o sacrifício de Cristo, 77 é uma oportunidade para falar de
pessoas e da dívida para com elas. O Padre agradece aos organizadores da festa e aos políticos
que a apóiam, no caso, o Prefeito e o vereador Russo Peixeiro. Entre as dádivas que este oferece
à comunidade, encontra-se a festa de São Pedro. A propósito, convém lembrar, com assinala
Marcel Mauss, a assimetria entre o dar e o receber, em que aquele que dá fica numa posição
superior àquele que recebe. Por isso, o doador tem poder sobre o receptor, na medida em que
este passa, em virtude da dádiva, à posição de devedor. Assim o vereador considera que a
população está em dívida com ele,78 o que lhe permite esperar retribuição, sob forma de voto.
Ao patrocinar a festa do Santo Pescador, o vereador procura afirmar-se como líder moral
dos pescadores e dos católicos do lugar e reafirmar-se enquanto líder político, além de ligar sua
imagem ao padroeiro da festa, para se tornar, ele mesmo, patrono dos pescadores.79 Através da
festa, o vereador promove a si mesmo como o instituidor, ou patrocinador, dela.80
O símbolo ritual pode condensar vários significados, que colocariam as normas éticas e
jurídicas da sociedade em contato íntimo com fortes estímulos emocionais. A excitação social e
os estímulos diretamente sensoriais da festa de São Pedro, tais como a música, a dança e o
álcool, levariam o símbolo ritual a um intercâmbio de qualidades entre os seus pólos de
significação.81 As normas e valores evocados pelo Santo Pescador e por sua festa saturam-se de
emoções distintas, de acordo com o momento festivo. Os valores e sentimentos despertados no
momento da Missa são diferentes daqueles ressaltados durante o show.
A Missa evoca a comunhão com Cristo, o louvor ao Santo homenageado e a fé católica,
exigindo, portanto, um comportamento de recato e respeito, coerente com esses sentimentos e
valores. Já os shows de forró despertam sensações de divertimento, lazer e brincadeira,
conduzindo ao prazer da dança, por vezes libidinosa, da bebida e da paquera. Os valores cristãos
ficam, com estes espetáculos, temporariamente suspensos.
Entre a Missa e os shows de forró, o show católico surge como um evento ao mesmo
tempo recreativo e religioso. Pode-se considerar estes shows como não sendo nem sagrados nem
77 Cf. Mateus 26:26; Marcos 14:22; Lucas 22:19. 78 Cf. Mauss: 2003. 79 Os vocábulos “patrono”, “padroeiro” e “patrocinador” têm a mesma origem etimológica, derivados da raiz latina pater-, “pai”, porém com um valor mais social e religioso do que de simples paternidade física, esta designada por parens. Do antepositivo pater-, se originam as palavras patrónus, “protetor dos plebeus”; padrom, “protetor”; padroeyro, “santo que protege”; e patrocinìum, “proteção dos patrícios aos plebeus, patrocínio, apoio”. 80 Turner afirma que, ao patrocinar o ritual do Mukanda, o chefe Ndembu obtém o reconhecimento amplo, dentro e fora de sua aldeia, de líder moral, quando não de líder político dela. No caso da festa de São Pedro em Ponta Grossa dos Fidalgos ocorre o mesmo, mas em outro sentido, pois Russo já o líder político local. 81 Cf. Turner: 2005
68
profanos, configurando-os assim em um instrumento de mediação entre dois momentos distintos
da festa: o ritual e o lúdico.
Pensando a Festa
A festa de São Pedro pode ser pensada como um fato social total82 dentro de Ponta
Grossa dos Fidalgos, pois envolve os aspectos mais variados da vida naquele povoado pesqueiro.
O primeiro plano em que se pensa ao falar da festa de São Pedro é o religioso, já que o festejo se
propõe a reverenciar um santo católico que é padroeiro dos pescadores. Isto nos leva à esfera
social da economia doméstica, profissão e mesmo identidade dos homens do arraial. Assim como
a maioria deles, São Pedro exercia o ofício de pescador antes de começar a seguir Jesus,
identidade, aliás, que se manteve mesmo depois de se tornar discípulo: ele parou de pescar
peixes para aprender com Jesus a “pescar homens”, mas conservou sua identidade de pescador.
Embora haja o exercício de outras profissões no arraial (há os que trabalham em
estabelecimentos comerciais no povoado, os que trabalham nas fazendas vizinhas de cana-de-
açúcar e os contratados pela Prefeitura de Campos dos Goytacazes para serviços com vigia,
servente e fiscais de banheiro público), o ofício que para os locais confere mais valor em termos
identitários, é o da pesca.
Esta ‘identidade compartilhada’ entre seu santo patrono e o pescador de Ponta Grossa dos
Fidalgos não fica limitada, contudo, ao ofício de seu sustento. Contada durante na abertura da
festa de 2002, a história do apóstolo Pedro evoca os valores que o homem ideal deve ter no
imaginário daquela população,83 valores estes que devem ser buscados no futuro marido das
moças. Esta característica nos remete à esfera da reprodução da estrutura social, tanto no que se
refere aos pais ensinando aos filhos o ofício da pesca desde pequenos, quanto ao tipo de parceiro
que se busca para o casamento.
Existem duas formas de se casar em Ponta Grossa dos Fidalgos. Os moradores
denominam ‘casamento-noivo’ a cerimônia nupcial realizada na Igreja, com a noiva trajando
vestido de noiva, véu e grinalda, em que a festa é patrocinada pelo pai da noiva e a casa e os
móveis desta são pagos pelo pai do noivo. Este tipo de casamento é pouquíssimo frequente no
povoado. Devido ao seu alto custo financeiro, os namorados em geral preferem o ‘casamento-
fugido’, que segue um processo ritualizado para o estabelecimento das alianças matrimoniais e é
a forma mais usada de enlace matrimonial. Geralmente, o primeiro contato para o início de um
namoro que pode resultar em casamento-fugido se dá “após o primeiro contato visual ou verbal,
82 Cf. Mauss: 2003. 83 A este respeito falarei mais detalhadamente em “Canoas e Atraso”, na Parte IV deste trabalho.
69
quando o par, ou apenas um pretendente passa a flertar demonstrando seu interesse e
provocando a atenção do outro com expressões fisionômicas e gestos significativos; todos eles
realizados com cautela, para não suscitar a atenção dos circundantes”.84 A festa de São Pedro,
com seus shows e eventos recreativos é um momento privilegiado para o flerte e início de
namoro no povoado.
Além dos aspectos religioso, político, identitário, de reprodução social e lúdico, a festa de
São Pedro engloba ainda o âmbito econômico, pois muitas famílias se organizam para montar as
barraquinhas e ganhar uma renda extra para o orçamento doméstico durante a festa.
Ao analisar as várias ‘festas brasileiras’ e suas características comuns, Rita de Cássia
Amaral afirma que, mesmo não tendo como objetivo atrair turistas, a festa assim se permite usar
em certos pontos, caso o Estado tente transformá-la em produto turístico. Para a autora, através
da vontade de realização da festa, muitos grupos se organizam, crescendo política e
economicamente, ainda que em modo local. A própria população compreende e ressalta a
importância de um intenso fluxo de pessoas de fora de Ponta Grossa dos Fidalgos durante o
período festivo, que consomem nas barraquinhas e movimentam a economia do lugar.
O interesse em atrair pessoas de fora do povoado não está somente no caráter econômico
da festividade. Se refletirmos a respeito da dimensão simbólica da festa, trazer pessoas de
povoados vizinhos é aumentar as possibilidades de reprodução social do lugar. As pessoas são
atraídas ao arraial na ocasião da festa de São Pedro pela homenagem ao Santo católico; pela
vontade de dançar, cantar, beber e paquerar nos shows de forró e música baiana; e pela
realização da cavalgada.
Pode-se afirmar que a cavalgada é um evento que não representa os pescadores, mas os
fazendeiros e proprietários de terras da região. Apesar disto, acontece todos os anos como um
evento inscrito dentro do rito calendário de São Pedro, o retorno e a inserção desses cavaleiros
no povoado ocorrem dentro de uma sazonalidade, posto que a divisão anual corresponde à
periodicidade do rito. O calendário festivo-religioso exprime o ritmo da atividade coletiva e
assegura sua regularidade. 85
Sabe-se que há uma tensão latente entre os fazendeiros de terras marginais à Lagoa Feia,
em sua maioria, ilhas situadas dentro dela, e os pescadores que da Lagoa tiram seu sustento.
Quando falam dos problemas que costumam enfrentar por não poderem pescar em determinados
pontos da Lagoa porque os fazendeiros não permitem que os pescadores entrem em suas terras,
84 Jorge: 2006, p. 42. 85 Cf. Durkheim: 2000.
70
muitos dos pescadores mais antigos relatam um conflito ocorrido na década de 1970, em que, por
duas vezes, a população de Ponta Grossa se reuniu para paralisar o trabalho que uma draga do
DNOS (Departamento Nacional de Obras de Saneamento) realizava na Lagoa para construção de
um canal submerso que, segundo os pescadores, removeria um ressalto topográfico chamado
Durinho da Valeta, o que acarretaria no escoamento da água da Lagoa até que ela secasse
completamente.86 Como boa parte dos nativos que participam da cavalgada são proprietários de
terras marginais à Lagoa Feia, convém tentar compreender a importância deste evento dentro do
rito do Santo Pescador. Afinal, este evento tem sua regularidade garantida na festividade e o
contato mantido pelos pequenos fazendeiros e os pescadores se configura como algo freqüente,
uma vez que parte dos cavaleiros são pessoas do povoado ou possuem terras nele.
De 2002 a 2006 a cavalgada aconteceu sempre aos domingos, terceiro dia de festividade.
Ela se mostra importante porque, exceto em 2002, o último dia de festa é o dia principal das
comemorações, quando se concentram eventos considerados centrais na celebração do santo
pescador: procissão de barcos, procissão por terra e missa campal.87 Em 2002 esses eventos se
concentraram no sábado, que foi considerado o dia principal da festa, mas havia uma
peculiaridade naquele ano. Como afirmei anteriormente, naquele domingo acontecera a final da
Copa do Mundo de futebol, e o Brasil estava disputando a partida. Conquistando o
pentacampeonato ou não, o trio elétrico animaria uma festa em outra localidade, e por isso a
Prefeitura precisou deslocá-lo de Ponta Grossa. Assim, para “não competir” com o futebol, as
procissões e a missa aconteceram no dia anterior. Este é um ponto importante de se ressaltar.
Quando as mulheres que frequentam a Igreja organizam a festa, prestam atenção a essas
questões, embora a maioria delas não se interesse por futebol. A preocupação é antes em não
desagradar ao Santo com uma missa e procissões esvaziadas do que com os interesses
masculinos por esporte. Colocar os eventos religiosos para concorrer com o futebol poderia
resultar em pouca adesão masculina às homenagens litúrgicas e, talvez, a procissão de barcos
nem ocorresse.
Ainda assim, o único evento relacionado à festa de São Pedro ocorrido naquele domingo,
último dia da festa de 2002, foi a cavalgada. Esta representa o momento em que os cavaleiros
“fazem-se visíveis” no povoado pesqueiro. Eles também fazem parte daquela comunidade e,
embora não sejam pescadores, de alguma forma se identificam com o Santo. Ainda que não
86 Cf. Valpassos: 2006. 87 Ver quadro sinóptico no Anexo II. Em 2006, dos três eventos religiosos considerados centrais, dois deles não ocorreram. A festa de São Pedro continuou sendo considerada ‘festa’, mas foi classificada pela população como ‘fraca’.
71
sejam pescadores, os homens do povoado procuram se identificar com as qualidades de São
Pedro. A primeira delas é que ele é um homem ‘trabalhador’, ‘honesto’, de respeito.
Neste momento de display e ostentação, é possível ver muitos homens e rapazes de Ponta
Grossa dos Fidalgos andando a cavalo com vestimentas que não são rotineiras no povoado:
camisa xadrez por dentro da calça jeans, botas e chapéu de vaqueiro, por vezes cinto de fivela no
mesmo estilo. No dia-a-dia os habitantes do povoado não usam este tipo de roupa, mas muitos se
apresentam assim durante a cavalgada, às vezes dispensando apenas a camisa xadrez, quando há
uma “camisa da cavalgada”. Assim, a cavalgada chama a atenção para a categoria “cavaleiros”,
que são os afazendados ou ainda, o sujeito que vai para ser como um afazendado.88 Isto porque
os donos de fazendas marginais à Lagoa Feia que participam da cavalgada costumam emprestar
seus cavalos e charretes a outros homens do povoado que desejem participar do evento mas que
não sejam donos de terras e/ou não tenham cavalo.
Basicamente três tipos de pessoas participam das cavalgadas em Ponta Grossa dos
Fidalgos: 1) os proprietários de terras marginais à Lagoa Feia; 2) os afazendados que vêm de
outras localidades para prestigiar a cavalgada de São Pedro de Ponta Grossa; e 3) os homens e
rapazes locais que desejam mostrar-se como “afazendados” durante o evento e os ‘curiosos’, isto
é, pessoas que não são donas de terras e nem rapazes fazendo-se de cowboys. Podem ser
mulheres ou homens de dentro ou de fora do povoado interessados em participar da cavalgada
por gostarem de andar a cavalo, porque acham divertido, porque são devotas de São Pedro ou
mesmo apenas por curiosidade, e por que não dizer, entre os “curiosos” também podem estar
pessoas com motivações etnográficas, como Bonnie, Cyntia, Lorena e eu em 2004.
Os cavaleiros que vêm de fora, em geral participam de diversas cavalgadas em um
circuito de festas religiosas pelos distritos do município campista e, às vezes, dos municípios
vizinhos de São João da Barra e São Francisco do Itabapoana.89 A idéia de display pode ser
demonstrada pelo argumento usado por Durval quando, em 2006, discutia com Nelson e Sandro
sobre a ida ou não dos cavaleiros até o Porto da Beirada. Durval pensava no grupo de cavaleiros
visitantes quando disse que o cavaleiro que vem dos povoados vizinhos que “dar sua voltinha”
no local onde está a “badalação” da festa.
Após o passeio dos cavaleiros pelo Porto, o locutor Sandro costuma pedir para que eles
prendam os cavalos nas terras vizinhas ao Porto da Beirada, pertencentes a Daniel, festeiro da
88 Esta idéia da cavalgada como um display, um momento de ostentação para ‘fazer-se ver’ dentro do povoado me foi sugerida por Arno Vogel. 89 Em 2004, por exemplo, agradeceu-se durante a cavalgada à presença de cavaleiros oriundos de São Martinho, Baixa Grande, Farol de São Tomé, Tocos, Caxias de Tocos e Coqueiros de Tocos, todas localidades do município campista.
72
cavalgada durante os anos de 2003, 2004 e 2005. Muitas vezes, alguns desses homens que vêm
de fora e também os rapazes locais que se vestem de vaqueiros para o evento ficam transitando
pelo Porto da Beirada mesmo depois de Sandro pedir para que eles se retirem. Surgem então
conflitos de valores e pensamentos entre esses homens, que querem se exibir para as mulheres e
se divertir bebendo, dançando forró e andando a cavalo, e as mulheres que frequentam a Igreja e
alguns católicos com mais de 60 anos. Este é, basicamente, o grupo que acusa os cavaleiros de
falta de respeito a elas e ao Santo.
Esses cavaleiros, contudo, não se vêem desrespeitando ninguém, mas participando de
uma festa no povoado, na qual desejam se divertir. Ainda que tenha caráter religioso, a festa de
São Pedro mantém igualmente aspectos bastante secularizados, que criam conflitos com o grupo
católico local. Segundo Rita do Amaral, na maioria das festas religiosas brasileiras “a
participação popular se dá mais pelo aspecto turístico, do divertimento e alegria, do que pelo
aspecto religioso propriamente dito do evento”. 90 A antropóloga ressalta, ainda, “que para
aqueles que realmente dominam o código da festa, a leitura dos símbolos que ela contém é
sempre diferente da leitura dos turistas e visitantes, que a vêem, geralmente, como espetáculo e
diversão”.91 Em Ponta Grossa dos Fidalgos, os que vêm de fora participam da festa buscando o
prazer - bebendo, dançando forró e paquerando - enquanto os cavaleiros, além deste tipo de
diversão, procuram divertir-se andando a cavalo. Isto não significa, contudo, que diversão seja a
única motivação para a participação destas pessoas na festa religiosa. Assim como as
manifestações de religiosidade fazem parte da festa de São Pedro, também o fazem os eventos
lúdicos. O lúdico e o religioso são dois dos muitos aspectos na mesma festa.
Nunca ouvi um pontagrossense dizer que vê problemas em haver recreação na festa de
São Pedro. Pelo contrário, muitos afirmam que se não houver shows de música e dança a festa
fica “fraca”, em oposição a uma festa “boa” ou “forte”. Também a festa antiga possuía aspectos
lúdicos e tinha um caráter recreativo, representados nas gincanas e nos bailes. Segalen afirma
que o lúdico sempre fez parte dos grandes rituais:
“De fato, se o ritual é aceito, compartilhado, ele se acomoda às atitudes mais
descontraídas, quem sabe até lúdicas; apenas quando imposto é que vai apresentar
marcas de distanciamento e respeito convencional (...). A alegria e os
90 Amaral: 1998; P. 36. 91 Idem; P. 278.
73
transbordamentos sempre acompanharam os grandes rituais; por que recusar-lhes
isto hoje?”.92
Segundo Rita de Cássia Amaral, os jesuítas permitiam, durante a Colônia, que os índios e
os negros dançassem, pois a dança era considerada uma maneira de agradar a Deus. A presença
das danças profanas nas festas religiosas, portanto, seria o “resquício da catequese jesuítica”.93 É
necessário, pois, que haja aspectos lúdicos na festa para garantir o estado de efervescência
coletiva, para o qual contribuem fortemente “os elementos presentes em todas as festas: música,
bebidas, comidas específicas, comportamentos ritualizados, danças, sensualidade etc.” 94
Uma das grandes críticas sobre desrespeito aos cavaleiros está relacionada aos efeitos
etílicos. Quando participei da cavalgada em 2004, ao chegar ao ponto de concentração numa
curva da estrada de Caxias de Tocos, percebi que Russo, seu filho Pedro, e os festeiros do evento
José de Hipólito e Daniel95 estavam distribuindo cerveja aos cavaleiros. Havia uma caminhonete
com a caçamba cheia de gelo e latinhas de cerveja e os quatro homens se esforçavam para
organizar os cavaleiros e a distribuição das bebidas. Durante a cavalgada, Russo disse ao
microfone que a cerveja era só para refrescar e não para beber e “ficar doido”. Mesmo assim, o
vereador foi muito criticado pelo grupo que o acusou de falta de respeito ao Santo, pois ele
colaborou, com a distribuição de bebidas, para que os cavaleiros ficassem bêbados e se
comportassem de maneira licenciosa, dizendo obscenidades às moças.
Extinguir a embriaguez tupinambá nas festividades foi uma das principais batalhas dos
jesuítas quando chegaram ao Brasil no século XVI. A ebriedade era já encarada como raiz de
todo o mal e perdição, causa da discórdia entre os povos pela Igreja Católica Européia.96 O que
se percebe na literatura antropológica, todavia, é que a bebida faz parte da festa religiosa no
Brasil, sempre dividindo as opiniões a respeito. Pode-se citar, como exemplo, a festa de São
João, em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, sobre a qual João Carlos de Souza escreve:
“Em carta publicada pelo Iniciador97 de 1º de julho de 1883 (...), o missivista registrou
que na noite de São João a animação fora grande, com muitas fogueiras, muitas salvas e
muitos gatos pretos (bebedeira). (...) Considerou que Corumbá não oferecia nenhuma
92 Segalen: 2002; P. 150. 93 Amaral: 1998; P. 65. 94 Idem; p. 22. 95 Proprietários de terras marginais à Lagoa Feia, moradores de Ponta Grossa dos Fidalgos. 96 Cf. Fernandes, 2007. 97 Jornal de Corumbá.
74
distração e, quando ocorria uma festa, ela se tornava verdadeiramente popular. O texto
sugere que, ao referir-se ao popular, o autor pensasse nessa dimensão de liberdade,
algazarra, bebedeira e desregramento, próximos dos rituais carnavalescos.”98
Esta analogia da festa católica com o rito carnavalesco foi feita também por Isidoro Alves
em “O Carnaval Devoto”, quando fala sobre o Círio de Nazaré, em Belém, no Pará. Também ali
há a tentativa de separar o “núcleo estruturado” das áreas “marginais”, o puro e do impuro, o
absolutamente sagrado e do profano absoluto.
A tentativa de separação destes dois loci festivos, portanto, está presente em diversas
festas católicas brasileiras, se não em todas, em maior ou menor grau. O que aquele grupo de
Ponta Grossa dos Fidalgos critica é a falta de limites desses homens. Nenhum problema há em se
divertir na festa, desde que sejam respeitados os momentos rituais, como a Missa Campal. É
permitido beber, porém seria de bom tom não exagerar. Paquerar é normal e também os católicos
mais velhos do lugar o faziam nas festas antigas, todavia dizer indecoros às mulheres e moças é
desrespeito. Dançar forró é muito divertido e todos gostam, mas é desnecessário que a dança seja
feita de modo licencioso. Muitas vezes, os que vêm de fora não estão atentos a essas pequenas
regras de conduta observadas pelos católicos assíduos à Igreja. Daí a acusação, por parte desses
últimos, de desrespeito.
Os cavaleiros não agem propositalmente dessa forma que parece tão ofensiva e
desrespeitosa ao grupo católico. Eles agem assim porque não estão submetidos às características
e tendências peculiares aos fiéis católicos, e nesse sentido eles estão distantes do grupo. Sua
proximidade está relacionada com traços comuns da natureza social, como o gosto pelo forró,
para dar um exemplo, ou genericamente humana, como a necessidade e desejo de recreação. Não
é simples, todavia, a oposição entre devoção e diversão. Há complexas formas devocionais
associadas a modos de diversão, como por exemplo, o “beber para o Santo”, uma devoção que
tende a escapar da regulação da instituição católica. Neste sentido, o cavaleiro, ainda que
também católico, se afasta dos fiéis locais99. A proximidade e a distância produzem uma tensão
particular entre o cavaleiro e o grupo em que se inseriu, gerando uma forma particular de
interação. Em Ponta Grossa dos Fidalgos, essa interação é conflituosa e evoca uma discussão
sobre o respeito ou a falta dele.
Há uma divisão entre ‘parte religiosa’ e ‘parte recreativa’ da festa de São Pedro em Ponta
Grossa dos Fidalgos. Esta divisão é adotada pela própria população, dado que todo evento
98 Souza, 2004: P. 345. 99 E quando digo fiéis, neste caso, refiro-me aos freqüentadores assíduos da Igreja, que criticam esses excessos.
75
ocorrido na festa de São Pedro é um evento “religioso”, posto que esta é uma festa para o Santo.
Há uma idéia, contudo, nos valores dos católicos praticantes do local, de que paquera, bebida e
política não devam ser misturadas a coisas da Igreja. Beber e paquerar na festa do Santo, ao
menos durante os momentos em que a imagem de São Pedro se encontra no Porto da Beirada, é
um desrespeito ao Santo e encarado pelos mais velhos como sinal de falta de fé e devoção. Já a
política partidária é considerada por muitos no povoado como algo intrinsecamente pejorativo,
como uma entidade malévola capaz de conspurcar tudo aquilo em que toca. Assim, muitos dos
conflitos existentes na festa de São Pedro são resultado desta visão maniqueísta que os habitantes
de Ponta Grossa dos Fidalgos têm com relação a certos assuntos. Se a festa não tiver as partes
econômica, religiosa, política e de sociabilidade, ela fica “fraca”, dentro da categorização nativa,
e deixa de ser um fato social total.
76
PARTE IV
EM BUSCA DA FESTA PERDIDA
77
Canoas e Atraso
A maioria dos moradores de Ponta Grossa dos Fidalgos tende a dividir o mundo em
poderes opostos e incompatíveis, como no caso de política e religião. Eles também agem assim
com relação ao passado, àquela Ponta Grossa do tempo dos antigos que eu descrevi no primeiro
capítulo e da qual muito ouvi falar, mas não cheguei a conhecer. É perceptível, no entanto, que
estas memórias podem ser interpretadas tanto com valorização positiva, quanto com negativa.
Assim, tem-se uma diferença de concepção do passado que chamarei de “tempo das canoas” e de
uma outra, chamada de “tempo do atraso”.
O “tempo das canoas” é recordado como um período de pesca abundante, numa Lagoa
bela, cujas margens são como uma praia. Neste sentido, a frase “não havia luz, mas havia
respeito” denota a nostalgia de tempos difíceis, porém considerados por muitos como tendo sido
melhores para se viver do que os atuais, senão do ponto de vista do conforto, que não se compara
ao de hoje, ao menos do ponto de vista moral.
Não pense o leitor que não havia conflitos. Ao lado dessa visão idílica do “tempo das
canoas”, onde, nas palavras de Castro Faria, “tudo parece refletir a simplicidade do ambiente em
que toda aquela vila se agita”, 100 surge um olhar menos romântico, que vê as pessoas desta
época como “atrasadas”, “primitivas”, invocando neste sentido os conflitos entre os moradores
do Ingá e os da Beirada e da Ponta, quando os membros de um desses grupos residenciais não
podiam transitar pelo território do outro sem uma permissão do xerife do lado rival, sob pena de
desencadear brigas.
Essa visão se refere à época em questão como o “tempo do atraso”, época em que o
asfalto ainda não chegara ao povoado e as estradas que levavam à Ponta Grossa dos Fidalgos
eram lamacentas, dificultando o acesso ao lugar, mantendo-o isolado do resto do município e
atrapalhando o transporte da safra de peixes para o Mercado Municipal de Campos.
Era um período em que os moradores do Ingá e da Beirada brigavam entre si. Conta-se
que cada lado tinha seu “xerife”, que atuava como uma espécie de diplomata e tinha autoridade
para permitir ou não que os moradores do lado oposto adentrassem seu território. Essa dualidade
opositiva traduzia-se também na existência de dois times de futebol; um do Ingá, outro da
Beirada, que jogavam apenas entre si. O time oficial de Ponta Grossa dos Fidalgos, contudo, era
o Colonial, composto por jogadores dos dois times pontagrossenses, que disputava campeonatos
da região contra times das localidades vizinhas. No mês de fevereiro havia a disputa entre os
“ranchos de carnaval” dos dois lados, espécie de blocos carnavalescos que desfilavam e tinham
100 Castro Faria, em trabalho inédito sob título provisório de Os Pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos: Um Estudo de Morfologia Social. 1941.
78
pontuação atribuída às fantasias e à música. Ao final do desfile, no local hoje conhecido como
Macaco, grande parte dos foliões dos lados rivais travava uma batalha campal.
A mesma Ponta Grossa dos Fidalgos é, portanto, vista de duas formas distintas: a visão
idílica do “tempo das canoas” destaca os aspectos positivos que os moradores julgam que a
aldeia tinha naquele então, ao passo que o rótulo “tempo do atraso” relembra e enfatiza os
aspectos negativos da vida no arraial, como as dificuldades de uma vida árdua e os conflitos
entre as facções locais.
As evocações mnésicas dos pontagrossenses parecem contraditórias se não estivermos
atentos para o fato de que o tempo dos antigos é um argumento retórico. Por isso o passado pode
ser utilizado para justificar os mais diferentes pontos de vista sobre os assuntos mais diversos.
A festa “é o reviver do passado e projeção de utopias”.101 A memória da nova festa de
São Pedro evocou as festas antigas, sua religiosidade e seu respeito, supostamente inexistentes
nos dias de hoje, porém, em perfeita harmonia no passado. Assim, de um modo geral, as pessoas
quando se referem ao “tempo das canoas” afirmam que havia mais respeito na festa antiga de
São Pedro. Não encontrei, todavia, pessoa alguma que, mesmo defendendo seja a visão do
“tempo das canoas” ou a do “tempo do atraso”, desconsiderasse ou ignorasse quaisquer fatores,
negativos ou positivos, do tempo antigo. Ainda que possam privilegiar uma dessas formas de
recordar o passado, todos estão conscientes de que havia fatores, da vida cotidiana pretérita,
melhores ou piores que os atuais. Apesar disso, muitos, ao recordar o passado, terminavam
suspirando – “ah, minha filha, mas era tão bom...”. Em iguais circunstâncias, outros,
aproximadamente na mesma proporção, protestam contra esta idealização, sobretudo as
mulheres, que assinalam a redução do dispêndio de energia na execução das tarefas domésticas,
muito menor hoje do que antigamente.
Não se pode afirmar, contudo, que todas as mulheres prefiram os dias atuais em
detrimento do tempo antigo. Pelo menos no plano do discurso, algumas mulheres disseram que
preferiam viver como antigamente, pois havia mais respeito, mais moral, mais religiosidade e fé,
e “as moças se casavam virgens”. Se bem que, entre todas as mulheres que me argumentaram
que o tempo dos antigos era melhor porque as moças se casavam virgens, nenhuma delas casou-
se efetivamente de tal modo, como elas mesmas afirmam. Boa parte delas nem mesmo se casou
na Igreja, maneira defendida como sendo a ‘correta’; a maioria adotou a fuga como forma de
contrair matrimônio.
101 Amaral: 1998; P. 273.
79
Isso mostra que também há mulheres que idealizam o passado, a despeito das
dificuldades materiais e do trabalho árduo que era cuidar da casa, carregando latas d’água na
cabeça da Lagoa para a casa, cozinhando em fogão à lenha e conservando o alimento em tonéis
com banha de porco, já que não havia eletricidade.
Esta idealização por parte dessas mulheres com relação à virgindade feminina no passado
demonstra ainda uma transformação ocorrida nos valores da sociedade. Essa mudança não se deu
de forma abrupta, foi e ainda é um processo, portanto o que se vê hoje são valores a priori
contraditórios coexistindo não somente no mesmo lugar, mas demonstrados pelas mesmas
pessoas. Assim é que, por exemplo, um pai afirmou não deixar sua filha de quinze anos assistir a
novela das oito horas, da Rede Globo de Televisão, pois acredita que haja cenas inapropriadas
para a garota, com muitas referências a sexo. Mas esta mesma moça freqüenta o Porto da
Beirada durante a festa de São Pedro, onde a sensualidade dos casais dançando forró pode ser
percebida até pelo mais desatento dos visitantes. A libidinosidade da dança e dos carinhos
trocados por muitos namorados em público durante a festa é reconhecida pelo pai, mas não se
constitui enquanto problema para ele, ao contrário da telenovela.
O que isto nos revela? Creio que este seja um exemplo justamente deste choque de
valores ‘tradicionais’, compatíveis com o modo de vida antigo, com os novos valores trazidos
com a ‘modernidade’ junto com o contato mais próximo com a sede do Município e com as
informações do exterior de Ponta Grossa dos Fidalgos, veiculada pela programação tanto
informativa quanto de entretenimento da tv, aparelho inexistente nos tempos dos antigos. A
intensificação dos contatos com o mundo além de Ponta Grossa dos Fidalgos, somada aos
próprios processos de transformação ocorridos localmente, deram lugar a novos valores e modos
de comportamento no povoado.
Algumas histórias são vividas “por tabela” e contadas por muitos que não a
experimentaram pessoalmente. Fazem parte do imaginário coletivo.102 Assim, mesmo aqueles
que não conheceram a Lagoa com seus 370km² ressaltam que a Lagoa era muito bela no tempo
dos antigos e demonstram a mesma nostalgia que Georges Duby atribui aos idosos, que “choram
os bons tempos passados em que tudo era mais belo”,103 num fenômeno que Pollak chama de
“acontecimentos vividos por tabela”, i.e., acontecimentos vividos pelo grupo ou pela
coletividade à qual a pessoa sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre
participou, mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase
impossível que ela consiga saber se participou ou não. São eventos que não se situam dentro do
102 Cf. Pollak: 1992. 103 Cf. Duby: 1988.
80
espaço-tempo de uma pessoa, mas, ainda assim, por meio da socialização política ou da
socialização histórica, criam um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado
passado tão forte que Pollak fala de “uma memória quase que herdada”.104
Pollak afirma que a memória é um fenômeno construído, pois é “organizada em função
das preocupações pessoais e políticas do momento”.105 Ele afirma que o que a memória
individual grava ou exclui, recalca ou relembra, resulta de um verdadeiro trabalho de
organização, e isto pode se dar consciente ou inconscientemente. Ela é seletiva e nem tudo fica
gravado ou registrado, constituindo-se assim como verdadeiro registro tentacular dos
acontecimentos da vida.
Comemorar é trazer à lembrança, recordar, memorar. Deriva do latim commemáre, de
memoráre, “o que se lembra, o que se faz lembrar”. Quando a festa deixou de ser realizada, os
católicos continuaram a fazer a procissão e rezar a ladainha em frente ao prédio da Colônia de
Pesca. Como, mesmo quando eles chamavam a comemoração de festa, nem sempre havia Missa,
não ficou claro para todos que a festa não mais estava sendo realizada. Ou seja, continuou
existindo um rito para (re)lembrar São Pedro. A grande diferença entre a festa antiga e a simples
comemoração religiosa, eram os bailes realizados na festa antiga, mas ninguém lembra ao certo
em que ano eles deixaram de acontecer.
Halbwachs diferencia o tempo coletivo do tempo individual, ou ainda, diz que a divisão
do tempo, que resulta de convenções e costumes a fim de expressar a ordem social, é diferente da
noção, impressão ou consciência individual que se tem da duração do tempo. Assim, os
indivíduos criam “durações individuais” que dividem o tempo. O que se observa em Ponta
Grossa dos Fidalgos é que as pessoas, embora não lembrem o ano exato da morte do antigo
festeiro e o conseqüente hiato entre os dois modelos de festa, se lembram de um “contexto de
dados temporais” a que a lembrança da antiga festa está ligada de alguma forma: falta de energia
elétrica e de água encanada, existência de times de futebol e ranchos de carnaval que rivalizavam
no povoado, inexistência de outras igrejas além da católica, o tipo de habitação, as margens da
Lagoa Feia etc. É justamente nesse sentido que, “graças a primeira série de reflexões desse tipo,
muitas vezes uma lembrança toma corpo e se completa”, como escreve Halbwachs.106
São Pedro não é o símbolo focal da festa simplesmente porque a festa é feita em sua
homenagem, mas porque o Santo evoca os valores que o homem ideal deve ter em Ponta Grossa
dos Fidalgos: deve ser trabalhador e prover o seu lar. São Pedro é a máxima expressão do que é
104 Cf. Pollak: 1992. 105 Idem; ibidem. 106 Halbwachs: 2006, p. 124.
81
ideal em um homem no povoado, ou seja, o homem que as mulheres buscam em Ponta Grossa
possui as características atribuídas ao Santo: um homem honesto, trabalhador, que vive da pesca,
que ama Deus. A identificação começa na profissão, visto que a pesca é ainda hoje a principal
atividade econômica desenvolvida no local, mas não pára por aí. São Pedro não é simplesmente
um homem que vive da pesca, mas um ‘pescador nos moldes tradicionais’, i.e., que fazia uso de
saberes naturalísticos e redes de pesca. O pescador de status alto no povoado é aquele que
conhece bem a ictiofauna e a geografia da Lagoa Feia: os hábitos de cada espécie de peixe, suas
formas de alimentação e reprodução, os lugares em que gostam de ficar, os solos e águas da
Lagoa e as técnicas de captura apropriadas a cada espécie. É preciso lembrar que dentro de uma
Lagoa de 160m², nem sempre é possível avistar suas margens. Assim, o pescador precisa
conhecer a técnica de marcas de encruzo e o solo da Lagoa para se localizar dentro dela e saber
para que lado precisa navegar quando for voltar para casa.
O pescador que mais se aproximou, em tempos recentes, do pólo de significado
normativo deste símbolo focal, ou seja, dos valores de ordem moral e social associados a São
Pedro, foi Zé Lisboa. Vale recordar ao leitor o que foi dito sobre este homem na primeira parte
deste trabalho. Zé Lisboa era um pescador nos moldes tradicionais. Conhecia muito bem a
geografia lagunar e os hábitos das espécies de peixes, assim como diversas técnicas de captura.
Seu modo de vida e sua casa eram símbolos do antigo pescador e modo de vida nos tempos
atuais. Ele era a representação viva da coetaneidade do não coetâneo.
Ele não era simplesmente o passado inserido no presente. Zé Lisboa era o símbolo vivo
das transformações ocorridas no povoado no último meio século. Quando Abraão chegou a
Ponta Grossa pela primeira vez e disse que queria saber sobre pesca, foi levado para conhecer Zé
Lisboa, então decano da pesca no local. Os pescadores que levaram o jovem pesquisador para
falar com Zé Lisboa consideraram naquele momento que era importante o visitante conhecer as
histórias do passado, como era a pesca antigamente em antagonismo à pesca hoje, e conhecer e
ouvir as histórias a respeito da casa daquele senhor, uma casa de tijolos, mas que em muito se
assemelhava às antigas casas de tabúa do arraial.
O passado também é relembrado quando os conflitos em torno da organização da festa
entre o vereador e o grupo de oração local se tornam explícitos em 2004. Assim, uma versão
diferente da festa do Patrono dos pescadores começou a ser evocada para argumentar que Russo
usara a festa como meio de autopromoção política.
Desse modo, a vida de Ponta Grossa dos Fidalgos continua sendo fortemente marcada
pela presença de um passado que, longe de ser relegado ao status de meras recordações de
82
períodos já distantes, mostra-se o arcabouço argumentativo para questionamentos e avaliações de
iniciativas e decisões do presente.
Como o povo vê a festa
A população de Ponta Grossa dos Fidalgos, obviamente, não possui uma opinião
homogênea a respeito da inserção do vereador na festa católica. As pessoas têm visões
diferentes, de acordo com o ‘grupo’ em que elas se inserem, de acordo com seus interesses
conscientes ou não. Há no povoado, desse modo, protestantes e católicos; os ‘contra’ e os ‘a
favor’ de Russo no cenário político municipal; os que montam barraquinhas durante o festejo e
os que não o fazem; os católicos que freqüentam a Igreja local assiduamente e os que vão apenas
nas procissões e ocasiões litúrgicas especiais. Não só os interesses e pontos de vista destes
grupos são diferentes, como muitas vezes eles se entrelaçam e por isso surge uma multiplicidade
de opiniões e de “graus” do quanto se é contra ou a favor do modelo atual da festa. Como a
mesma pessoa pode expressar, de acordo com a situação em que se encontra, diferentes “graus”
destas opiniões e nenhuma pesquisa sistemática foi realizada no sentido de “medir” essas
variações, limito-me aqui a apresentar os argumentos genéricos sobre a festa enquanto uma
estratégia política ou não.
Há, pelo menos, duas maneiras de ver a festa: de que esta é um artifício do vereador para
obtenção de votos, argumento que passou a ser usado explicitamente após os conflitos de
interesse entre Russo Peixeiro e as mulheres do grupo de oração local; e o argumento de que a
festa necessita da política, sem a qual, aquela não aconteceria. Este raciocínio começou a ser
explicitado por alguns moradores em contraposição à idéia da festa como algo excessivamente
político.
Como já dito anteriormente, em 2004 a esposa do vereador e a presidente da Associação
de Pescadores organizaram os eventos religiosos da festa de São Pedro e Russo Peixeiro
convidou um grupo de oração de outra localidade a paraninfar a Missa. Esta atitude causou
grande insatisfação às mulheres do grupo de oração local, mesmo entre aquelas que apoiavam
politicamente Russo. Foi a partir daí que estas mulheres organizaram um “boicote” àquela festa,
ato qualificado como uma manifestação do grupo de oração em oposição à inserção e influência
de Russo, enquanto político, na festa. Este grupo considerou que desta forma o ritual religioso se
transformava em momento de “propaganda política” e que havia desrespeito não só da parte do
vereador para com elas e com o Santo, mas também da parte de alguns visitantes e cavaleiros.
Este, contudo, foi o argumento explícito que elas utilizaram para explicar o gesto de
repúdio por terem sido deixadas de fora da organização da festa. Há, no entanto, mais sobre o
83
que refletir. Se encararmos a política de forma mais ampla, e não somente como uma prática
partidária e busca por votos, poderemos concluir que aquelas mulheres estavam reivindicando
seu espaço político dentro da organização do festejo. Afinal, até o ano anterior, elas tinham o
poder de decidir quem estaria no palco no momento da Celebração da Eucaristia para cantar os
louvores durante a liturgia, a que horas ocorreriam as procissões e a Missa, como seriam
ornamentados os andores, onde ficaria o andor com o Santo até o momento de ele ser levado ao
Porto da Beirada, se haveria Ministérios de Louvor realizando shows católicos durante o festejo
etc. Todas as pequenas decisões e sua viabilização eram tarefa de Marinês e das outras mulheres
do Conselho Capelar. No momento em que o vereador, enquanto o grande patrono da festa,
homem que a fazia acontecer, as ignorou e colocou outras pessoas para tomar estas decisões, elas
perderam seu espaço político dentro da festa. Perderam seu poder de atuação na esfera religiosa
da festa não somente no processo decisório que ocorre antes de sua realização, mas também no
processo participativo, já que outro grupo de oração viera acompanhar o Padre durante a Missa.
Ainda que o objetivo destas mulheres não fossem votos, elas também faziam um uso
político da festa, num sentido mais amplo, angariando prestígio entre seus pares e/ou satisfação
pessoal com a organização da festa, além de conquistar neste evento um lócus privilegiado para a
exaltação de suas crenças religiosas. Talvez até mesmo fosse uma busca por prestígio perante
São Pedro, visto que não raras vezes os pontagrossenses atribuem manifestações da natureza
ocorridas principalmente durante o período comemorativo dos Santos ao humor destes. Se
chover durante a festa de São Pedro, por exemplo, costuma-se dizer que é porque o Santo está
chateado pois as pessoas não soltam fogos suficientes para ele, ou não prestam a devida atenção
à Missa, ou mesmo não prestigiam as procissões como deveriam.
Muitos católicos de Ponta Grossa dos Fidalgos, por já não nutrirem simpatias político-
partidárias com Russo, aderiram ao boicote à festa de 2004. Cito esta festa porque ela foi o caso
mais extremo e emblemático do conflito que se apresentou de forma latente durante os anos
anteriores, e, num estado menos vigoroso, nos anos posteriores. Os católicos do local que não
viam essa dramática ‘transformação’ do rito religioso em puro marketing político participaram
normalmente da festividade, comparecendo aos shows, montando barraquinhas, enfeitando os
barcos para a procissão, soltando fogos durante a alvorada, assistindo à Missa. Desta maneira, a
população se dividiu, e ainda que parecesse, aos olhos de um visitante que fosse pela primeira
vez à festa de São Pedro naquele vilarejo, que havia muitas pessoas assistindo à Missa Campal,
por exemplo, quem tinha a experiência das festas anteriores percebia que o número de fiéis
atentos era ínfimo. Se esse mesmo visitante ficasse atento às conversas dos moradores no
povoado, poderia perceber essa divisão de opiniões entre os católicos locais, pois a todo o
84
momento ouviam-se discussões de pequenos grupos de três ou quatro pessoas, cada um
defendendo seu ponto de vista a respeito de a festa ser uma estratégia política de Russo ou não.
Nessas pequenas rodas de debates, volta e meia alguém mencionava a festa do tempo dos
antigos. Em geral, as pessoas que apontam a festa antiga como melhor que a atual têm acima de
60 anos e muitas não participam da festa de hoje, devido à idade avançada, ou mesmo católicos
que são politicamente contra Russo Peixeiro e por isso o acusam de desrespeito e falta de
religiosidade. É bom mencionar também que os freqüentadores assíduos da Igreja são mulheres
em sua grande maioria, e com idade acima de 35 anos. Poucos são os jovens que freqüentam a
Igreja, e uma parcela considerável deles vai acompanhando suas mães. Muitos jovens,
especialmente as moças, participam das procissões que ocorrem no povoado, mas não são
assíduas às celebrações litúrgicas. Quando os jovens vão à Igreja, ficam na pracinha que há em
frente, conversando ou namorando, tornando sua presença no interior da Igreja um
acontecimento não muito comum.
Mas se a festa antiga era tão boa, por que não voltar a organizar o festejo de São Pedro
nos moldes antigos, prescindindo do patrocínio e influência de um político? Ora, inúmeros
conflitos se desenvolveram no povoado. Para citar um exemplo, entre a presidente da Associação
de Pescadores, Virgimar, e parte dos pescadores credenciados na Associação: desvio da verba
destinada ao pagamento do seguro-defeso e o credenciamento de pessoas que não viviam da
pesca para o recebimento deste seguro, numa relação de clientelismo, eram algumas das
acusações correntes feitas pelas pessoas à presidente.107 Assim é fácil concluir que, se um
festeiro fosse pessoalmente até cada uma dessas pessoas que diz que prefere a festa antiga a fim
de arrecadar dinheiro e organizar uma festa nos moldes antigos, ele seria em algum momento
acusado de roubar o dinheiro, não importa quem fosse. Além disso, como afirmou o antigo
festeiro quando questionado sobre o motivo de não retornar ao modelo antigo da festa, uma
celebração organizada pelos próprios moradores não teria a grandiosidade da festa que tem o
apoio político. Mais que isso, como argumentou o ex-festeiro, o emprego do dinheiro arrecadado
seria sempre alvo de suspeitas e críticas, o que diminuiria o interesse de uma pessoa em assumir
para si as responsabilidades diante da realização do evento.
Além disso, os jovens, para quem a festa é um importante momento de lazer,
confraternização e diversão, ficariam insatisfeitos, achando a festa “fraca” e ruim. Uma festa
fraca não atrairia pessoas dos povoados vizinhos para consumir nas barraquinhas, o que
107 Para mais informações a respeito da Associação de Pescadores e seu funcionamento, ver a monografia de Lorena de Oliveira e Alves: Práticas Políticas, Produções Ideológicas e Discursos de Legitimação na Associação de Pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos.
85
atrapalharia aos barraqueiros, que fazem um investimento anual para comprar as bebidas e
comidas necessárias para vender durante a festa de São Pedro e arrecadar um dinheiro extra.
Também os barraqueiros provavelmente reclamariam, e não só eles, de ter que dar dinheiro para
realização da festa, ao invés de obter algum lucro durante o momento festivo.
Coisas que o político consegue com alguma facilidade junto à Prefeitura, a qual
intermedeia para o povoado, seriam mais difíceis de se conseguir, tais como iluminação,
segurança, palco, estrutura de som, geradores de energia elétrica, trio elétrico, bandas, banheiros
químicos, divulgação e o pagamento do Pároco para realização da Missa Campal. Para o
vereador, a liberação destes recursos para a festa é muito mais fácil do que para uma pessoa
comum, porque ele dispõe de acessos os quais os cidadãos não têm. Já para uma pessoa comum,
distante de um posto de poder político, há todo um trâmite burocrático para pedir e, por vezes, só
se consegue parte do que foi pedido.
De forma resumida, são estes os argumentos que elencam a impossibilidade de realização
da festa tal qual o modelo pretérito ressaltado nas narrativas que enfatizam os aspectos positivos
dos tempos de outrora. Aquilo que era já não é mais, e a possibilidade de um retorno se mostra,
senão impossível, ao menos de difícil realização. Desse modo, aquilo que pode parecer uma
proposição de mudança, surge, de certa forma, como uma argumentação queixosa contra aquilo
que se considera problemático.
Assim, a grande tensão entre os grupos durante a festa do Santo Pescador destaca
exatamente uma disputa de poder, uma disputa política no sentido amplo da palavra. Quando a
zeladora da Igreja reclama que Russo não a consultou sobre os assuntos religiosos relacionados à
festa e que substituiu o grupo de oração local por um grupo de fora para auxiliar o Padre na
Missa, ela está requisitando para si (e consequentemente para suas companheiras) o poder
relativo aos assuntos religiosos locais, do qual, entre os católicos, ela é referência.
No contexto da festa, a política partidária emerge como o aspecto profano de um evento
voltado para aquilo que é sagrado, pois é encarada como uma prática danosa e suja. Acontece,
todavia, que a vida social não pode ser reduzida a poucos pares maniqueístas, e a própria
repartição do mundo em campos religiosos, econômicos, políticos, pessoais etc, é uma forma de
organizar o pensamento a fim de facilitar a compreensão das coisas.
Neste sentido, a festa não pode ser considerada apenas como recreativa, tampouco como
unicamente política ou religiosa. Não poderia ser compreendida se tais aspectos fossem tomados
como partes distintas do processo ritual. Eles são faces de um mesmo evento e a desconsideração
de qualquer um deles levaria à incompreensão do todo, pois este só pode ser apreendido em sua
amplitude se levarmos todos esses aspectos que no discurso nativo surgem como antitéticos e
86
que, no fim das contas, apresentam-se melhor através da idéia de opostos complementares. A
festa, desse modo, contém em si “vários pares de oposição sem representar de modo exclusivo
nenhum deles, constituindo-se, antes de todos108”.
É preciso, portanto, ter em conta quem relata as festas e em quais contextos, pois a
suposta ambigüidade é fruto de narrativas formuladas de modo relacional e contextual. Assim,
podemos incorrer que tanto as festas do passado moldam o discurso sobre as festas
contemporâneas quanto o contrário. Passado e Presente, desse modo, possuem uma interpretação
flutuante que caracteriza, de acordo com a pessoa e o contexto, o dinamismo das narrativas sobre
a festa de São Pedro.
É necessário, então, pensar o ritual por um prisma que priorize a relação dos diferentes
personagens que o realizam. É precisamente nessas circunstâncias que a história aparece como
“um tal emaranhado de sucessos e fracassos, e tão cheia de interpretações duvidosas, que quase
todos os grupos podem encontrar algum precedente favorável às suas atuais demandas e alguma
circunstância para invalidar as dos seus rivais109”.
Nesse sentido, Russo Peixeiro e Marinês destacam-se como atores operando valores e
discursos numa disputa por prestígio, seja este mostrado através de votos ou através dos elogios
e da admiração dos pares. Estamos lidando, pois, com um campo social onde ocorre a
“coexistência e a competição situacional de vários critérios que conferem prestígio, mas não
ensejam o controle sobre os outros110”, no qual os “líderes rivais saquearam o repositório das
façanhas pretéritas para justificar seus atos e objetivos111”.
E essa disputa simbólica tem na festa de São Pedro seu locus privilegiado por ser este o
momento ritual que propicia aquilo que certa vez se chamou de “efervescência social”, ou, dito
de outro modo, um verdadeiro “fenômeno social total” onde, como queria Marcel Mauss:
“(...) exprimem-se, de uma só vez, as mais diversas instituições: religiosas, jurídicas e
morais – estas sendo políticas e familiares ao mesmo tempo -; econômicas - estas
supondo formas particulares da produção e do consumo, ou melhor, do fornecimento e da
distribuição; sem contar os fenômenos estéticos em que resultam esses fatos e os
fenômenos morfológicos que essas instituições manifestam112”.
108 Amaral: 1998; P. 272. 109 Turner: 2005; 226. 110 Idem; 208. 111 Idem; 229. 112 Mauss: 2003; p. 187.
87
Todas essas “instituições” surgem de modo destacado ao longo das celebrações do Santo
Pescador e, apesar dos esforços dos distintos grupos sociais do arraial em separá-las
analiticamente, encontram-se associadas umas às outras de maneira indivisível, fazendo do
momento um verdadeiro florescer dos símbolos que hão de colorir e mesmo compor as disputas
locais anteriores às festividades.
O discurso do retorno
A compreensão do discurso do vereador redivivo é muito importante para apreender os
valores e mecanismos que movem o comportamento e pensamento político de Russo Peixeiro.
Em 2005, após a cassação do mandato do prefeito e vice eleitos em 2004, o então
presidente da Câmara de Vereadores assumiu temporariamente a Prefeitura, vagando assim uma
cadeira entre os parlamentares municipais. Russo Peixeiro, não reeleito, mas bem votado no
município, por ocasião destes acontecimentos, retornou à Câmara. Convocou, então, toda a
população de Ponta Grossa dos Fidalgos, para uma reunião em sua casa no povoado. Nesta
reunião, ele falou sobre sua desilusão por ter perdido as eleições dentro da comunidade à qual
teria se dedicado tanto e acusou seus adversários de terem o vencido através da compra de
sufrágio, como se segue:
“(...) Eu no dia da eleição minha [dá ênfase na palavra ‘minha’], eu acabei de votar, meu
compadre Amaro, oito horas da manhã, fui pra dentro de casa. (...) eu fiquei dentro de casa,
[bate na mesa duas vezes] não saí! E dinheiro rolou dentro de Donana, [o candidato a vereador]
comprando a 50 conto, a 100 conto, botou dez mil conto na mão de um Romeu que ele comprou,
e de outro lá, eu entre Goitacases e Donana tive 732 votos. Por 400 votos, eu seria vereador na
Câmara sem depender de ninguém. Porque eu amo vocês! Essa reunião de hoje aqui, [bate na
mesa] vocês [bate na mesa] tão olhando aqui, cara a cara o vereador! Pelo destino, é o
vereador. Vocês orem por mim, peçam a Deus que eu fique na Câmara que vocês não têm lá um
vereador não, têm um amigo pra hora difícil, quando eu tenho médico pra vocês, pra operar um
filho, eu tenho um advogado, eu tenho o que vocês precisarem, fora do meu mandato não
tenho!”
O que Russo deseja ressaltar neste discurso é justamente o caráter diferenciado que ele
tem enquanto detentor de acessos os quais estão fora do alcance das pessoas comuns113, e de
113 Cf. Kuschnir: 2000.
88
intermediador privilegiado entre seus eleitores e os recursos de que eles precisarem (médico,
advogado, empregos, cadastramentos para recebimento do seguro-defeso, vagas nas chamadas
‘frentes de trabalho’ obtidas em período de proibição da pesca etc). A este respeito, Karina
Kuschnir escreve que “a posse de um mandato é condição fundamental para se ter acesso aos
recursos públicos, sejam eles cargos, bens, obras, benefícios legais, burocráticos ou simbólicos.
Sem um mandato, o político pode até ‘orientar’, mas ‘não tem acesso’”.114
Além disso, ele destaca a sua honestidade e hombridade perante os outros candidatos,
segundo ele, eleitos através da compra de sufrágio, enquanto ele, que ficou em casa no dia da
votação ao invés de distribuir dinheiro em troca de votos, mas que ama Ponta Grossa dos
Fidalgos, não foi reeleito. Ainda assim, naquela reunião ele comunicava aos pontagrossenses que
estava retornando à Câmara devido aos escândalos eleitorais e investigações relativas à compra
de sufrágio pelos candidatos à Prefeitura de Campos dos Goytacazes. Russo atribuiu a Deus o
fato de, mesmo não tendo sido reeleito, estar de volta à Câmara de Vereadores, ou ainda, atribui
à providência ou justiça divina, que é o reconhecimento supremo de sua honestidade e amor
pelas pessoas de Tocos e redondezas, em especial, Ponta Grossa dos Fidalgos.
Russo se coloca não somente como um político aborrecido por não ter recebido os votos
que esperava, mas como um amigo magoado que precisa do mandato parlamentar apenas para
servir e ajudar aqueles a quem ama tão profundamente. A todo o momento ele exemplificava sua
dedicação e amor ao povo do lugar, a quem só teria condições de ajudar se fosse vereador.
“Então é a reunião minha aqui é pra vocês escolherem o melhor de vocês. Vamos, supor,
vamos supor, meu Deus, vamos pedir a Deus que não aconteça isso! Na outra eleição, será que
vocês vão acompanhar um homem que não quer bem a Ponta Grossa? Será que vocês não vão
pensar (...), eu vou votar é no candidato de Russo. Nós todos. Mas vocês ficaram isolados, se
receberam 3 meses...
Uma mulher interrompe dizendo: __ A estrada está acabada, está tudo acabado.
Russo: __ E agora já to asfaltando tudinho, o doutor já ta [com] a ordem, o doutor
Alexandre [Mocaiber, vereador que assumiu a Prefeitura temporariamente], já tá [marcado
para] vir restaurar, lá no pedido, aqui tudo que tava parado porque eu não era vereador. Eu
quero deixar bem claro isso! Botar mais uns dez caminhões de arrecife ali no Porto, aonde a
água atravessou, que to pedindo uma luz baixa e autorização da Águas do Paraíba pra você
ligar da sua, do seu Pesque-Pague no poste, para o seu Pesque-Pague. Então eu quero, como
114 Kuschnir: 2000; p.88.
89
hoje, não vou esconder não, de vez em quando eu faço o que eu posso. Já ajudei o Colégio
Municipal, [bate na mesa] já ajudei [bate na mesa] Fernanda no Colégio Estadual, já ajudei
aquele rapaz daquele forró [bate na mesa] ali da esquina, e hoje estou aju-, pagando [bate na
mesa] um forró [bate na mesa] pra ajudar meu amigo Samuel ali. Compreendeu? Eu morro
aqui! Eu amo aqui! Agora, eu se eu passar por uma decepção mais uma vez aqui dentro de
Ponta Grossa, compreendeu? Sabe o que que vocês são? Eu vou falar a expressão da verdade,
doa a quem doer! Vocês são mais burros que eu pensava na minha vida!”
Novamente Russo ressalta sua dedicação e carinho por Ponta Grossa, bem como sua
decepção porque um político que nenhuma relação tem com o povoado superou o número de
votos recebidos por ele nas localidades de Donana, Goitacases e Tocos, onde costumam se
concentrar os votos que o elegem. Ao questionar se nas eleições seguintes aquelas pessoas
agiriam da mesma maneira que nas eleições de 2004, “acompanhando um homem que não quer
bem a Ponta Grossa”, o político ressalta o caráter distanciado do outro candidato com relação ao
povoado em contraposição à sua proximidade e afetividade com o local, onde mantém uma casa
com criação de caprinos e galináceos além de tanques de piscicultura. Assim, Russo se coloca
como alguém que conhece muito bem a realidade local por também ter uma propriedade ali,
enquanto o outro candidato só aparecera em Ponta Grossa por ocasião das campanhas eleitorais.
Kuschnir afirma que o poder público é encarado como uma instituição impessoal que não
resolve os problemas por não conhecer a realidade das pessoas, e que é somente através da
mediação do político que pertence à comunidade que esta terá acesso aos recursos públicos,115
exatamente o que Russo quer ressaltar quando se compara ao adversário.
Ele busca ainda, através de seu discurso, angariar votos para seu candidato no caso de um
possível “3º turno”, como os campistas em geral chamavam a possibilidade da realização de uma
nova votação para Prefeito. Do seu ponto de vista, os pontagrossenses perderam uma
oportunidade de retribuir todas as benfeitorias que ele fizera pelo povo de Ponta Grossa e que
procurava enumerar (“ajudei o Colégio Municipal, já ajudei Fernanda no Colégio Estadual, já
ajudei aquele rapaz daquele forró ali da esquina, e hoje estou pagando um forró pra ajudar meu
amigo Samuel ali”), retribuição que deveria ter vindo em forma de votos das pessoas e de seus
familiares e amigos, para que ele se mantivesse como vereador. As circunstâncias, contudo, se
desenrolavam de maneira que culminariam em um novo pleito para eleger um prefeito para o
Município, e a maneira como as pessoas poderiam demonstrar seu arrependimento por não terem
retribuído às dádivas do político local era “votar no candidato de Russo”.
115 Cf. Kuschnir: 2000.
90
Além disso, ele argumenta que, por não terem na Câmara um representante direcionado
aos problemas de Ponta Grossa, os moradores do povoado ficaram “isolados”, isto é, não
receberam investimento da Prefeitura e deixaram de receber o repasse de recursos municipais
destinados ao “seguro-defeso”, assunto sobre o qual provavelmente falaria mais detalhadamente
se não tivesse sido interrompido quando afirmou “se receberam 3 meses...”. É interessante
pensar que o caráter de “isolamento” do povoado é uma característica sempre ressaltada na visão
negativa do tempo dos antigos, em que, devido às dificuldades de acesso ao arraial, as pessoas,
incluindo as que detinham o poder público, não visitavam e, consequentemente, não injetavam
recursos em Ponta Grossa. Se no tempo dos antigos esse isolamento era, em grande medida,
físico, geográfico, nos tempos atuais o caráter de “lugar isolado” é dado pela falta de atenção que
os políticos, principalmente, dão ao local. Russo, portanto, evoca valores locais importantes, os
quais associam a ‘acessibilidade’ a um lugar ao ‘progresso’ ou à ‘modernidade’, em contraste
com o ‘isolamento’ entendido como ‘atraso’, para suscitar em sua audiência a ‘consciência’ ou
os sentimentos de que não reelegê-lo fora um erro que poderia deixar Ponta Grossa ‘em atraso’ e
que, portanto, não deveria se repetir.
Como Russo estava de volta à Câmara, agora o lugar receberia novamente a atenção do
Poder Municipal, pois Ponta Grossa tinha novamente um vereador que a representasse e,
somente por este motivo, o prefeito em exercício já “estava com a ordem” para restaurar a
estrada e os diques da Lagoa Feia e colocar iluminação pública em frente ao Pesque-Pague.
Antes de reassumir a Cadeira, contudo, ele não tinha os acessos necessários para que estas obras
fossem empreendidas, e procura “deixar isso bem claro”, afirmando: “aqui tudo que tava parado
porque eu não era vereador”.
Esta conversa com os pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos ocorrera dia 04 de junho
de 2005, um sábado, seis meses, portanto, depois da posse do novo Prefeito Carlos Alberto
Campista, apoiado por Russo nas eleições e naquele momento afastado do cargo e cassado sob
acusação de compra de votos. Também os candidatos da oposição, apoiados pelo ex-governador
e por sua esposa, então governadora do Estado, estavam sendo investigados sob a mesma
acusação. Russo também fala a este respeito, convocando os moradores de Ponta Grossa para
comparecerem na terça-feira seguinte, dia 07 de junho a uma reunião na Câmara Municipal:
“Eu quero ver a união de vocês é terça-feira. Mas vocês não estão trabalhando pra mim
não! Vocês que eu empreguei, vocês que foram empregados do outro político, se [o prefeito
eleito] Carlos Alberto Campista não voltar, que nós vamos ganhar no Supremo Tribunal,
porque, esse ex-governador, gastou milhões (...), ele que manda no Rio de Janeiro, tá
91
entendendo, olha! Quem... Se eu tiver mentindo, eu quero que vocês levantem a voz aqui e
digam. Quem votou aqui, em Pudim [candidato a prefeito da oposição], foi a paga [pelo
pagamento] de cinquenta reais, cem reais. Eu estou mentindo? [bate na mesa] Fala em voz alta!
Pessoas com voz desanimada: __ Não...
Uma mulher: __ É uma vergonha.
Russo: __ Eu num to mentindo, porque ele iludiu, ao povo. E vocês, coitados, sem
conhecimento, tinham que pegar o dinheiro desse bandido?! Desse, desse, desse, que nunca
fizeram nada por Ponta Grossa? [Vocês deveriam dizer] eu vou entrar e vou votar é no
candidato de Russo Peixeiro.”
Assim, Russo vai tentando esclarecer a situação de seu candidato a prefeito, defendendo-
o das acusações das quais seria julgado no Supremo Tribunal Eleitoral e pelas quais estava
afastado da Prefeitura. Ao mesmo tempo, procura mostrar que seus desafetos políticos, estes sim,
são culpados das acusações que também lhes foram feitas, e trazer para seus aliados políticos os
votos daqueles que estavam presentes na reunião. Ele chama sempre atenção para o fato de um
político que nunca ajudou ninguém em Ponta Grossa ter obtido mais votos do que ele, que
sempre estivera ali e sempre ajudou a tantas pessoas, tomando aquilo mais do que como uma
derrota política, mas como uma ingratidão a sua dedicação a Ponta Grossa e como uma injustiça
ao esforço que ele sempre fez para ajudar a todos ali.
Virgimar, ex-presidente da Associação de Pescadores Artesanais de Ponta Grossa dos
Fidalgos, é também naquele momento classificada como um desafeto político, no sentido de que
possui interesses divergentes dos interesses de Russo. Já o novo presidente, Nelson, é aliado
político do vereador, uma figura estrategicamente importante pelo cargo que ocupa para a
distribuição das benfeitorias que Russo consegue para a comunidade, por exemplo, o seguro-
defeso ou as ‘frentes de trabalho’ disponibilizadas durante o período de defeso para auxiliar no
orçamento doméstico. Assim como Virgimar, Russo também fora acusado de credenciar de
pessoas que não viviam da pesca para o recebimento do seguro-defeso, e aproveita a ocasião
também para se defender destas acusações:
“Num vô negar a vocês não, [bate na mesa] na frente do defeso [bate na mesa duas
vezes] da pesca, eu botei Deo [bate na mesa] pra receber [bate na mesa] da pesca [bate na
mesa]. Foi pescador aqui [bate na mesa], vendedor de peixe [bate na mesa], por que [bate na
mesa] só que tinha ali uma birosca, eu num ia botá Deo? E quem estava no comando, que então,
bota e tem que botá! Mas não botei ninguém de Dores de Macabú, nem de Tócos, e vim aqui
92
com mentira, vieram aqui roubava as eleições. Hoje nós temos um homem honesto aqui que é
Nelson. Pra mim, é um homem honesto! Pra mim, até que prove o contrário! Eu tive a honra de
empregar você, minha filha, tive a honra de empregar seu irmão, [bate na mesa] e seu pai é um
homem honesto! [bate na mesa] Ele tem de convocar a classe de pescador, [bate na mesa] ele
hoje é o presidente, [bate na mesa] essa mulher só tá pegando mentira [bate na mesa] que vem
hoje, vem amanhã, [bate na mesa] porque nós vamos permanecer [bate na mesa] ele como
presidente da colônia [bate na mesa]. Eu tenho condições [bate na mesa] de botar [bate na mesa]
dinheiro na colônia! [diz “na colônia” acompanhado de quatro batidinhas na mesa] Mas só boto
[bate na mesa] recurso ali [bate na mesa] com seu marido de frente [bate na mesa]!”
Neste momento Russo apresenta a distinção entre ele e Virgimar. Em sua argumentação,
ele credenciou Deo, dono de um armazém (“birosca”) no povoado, porque este fora pescador e
vendedor de peixes. Além disso, é alguém do povoado, o que difere sua ação das que ele afirma
que Virgimar tenha praticado: credenciar pessoas de Dores de Macabú e de Tocos, desviando,
portanto, recursos destinados aos moradores de Ponta Grossa dos Fidalgos em benefícios de
habitantes de outros lugares. Russo alega que Virgimar, esta sim, tinha interesses puramente
políticos, ao contrário dele, que “tem amor ao povo de Ponta Grossa”, como afirmou em
diversos momentos de seu discurso.
Ele também exalta as qualidades de “homem honesto” de Nelson, novo Presidente da
Associação de Pescadores, em oposição às “mentiras” de Virgimar. Na reunião estavam
presentes a esposa e a filha de Nelson, e é para elas que Russo discursa neste momento, quando
afirma: “Eu tive a honra de empregar você, minha filha, tive a honra de empregar seu irmão, e
seu pai é um homem honesto!” Este é um momento importante em que Russo mostra a
‘desonestidade’ de sua desafeta política e a ‘honestidade’ de seu aliado. E como vereador, ele
sabe que tem acesso a recursos dos quais a Associação precisa, e, embora fale direcionado à
Dionéia, esposa de Nelson, comunica a todos que pode ajudar à Associação. Sua declaração é
feita com um misto de paixão e revolta, sentimentos esses que permeiam todo o seu discurso
nesta reunião. A paixão dos que acreditam na justiça, dos que amam o lugar e as pessoas que
defendem; e a revolta pela decepção de ter sido “traído” por aqueles a quem tanto ama. Esses
sentimentos eram comunicados não somente pelas palavras que o vereador enunciava, mas
também pela maneira como ele o fazia: a entonação de sua voz e as batidas na mesa: “Eu tenho
condições [bate na mesa] de botar [bate na mesa] dinheiro na colônia! [diz “na colônia”
acompanhado de quatro batidinhas na mesa] Mas só boto [bate na mesa] recurso ali [bate na
mesa] com seu marido de frente [bate na mesa]!”
93
Em dado momento de seu discurso, Russo fala do assunto sobre o qual muitos esperavam
ouvir: a festa de São Pedro. Grande era a expectativa dos moradores do povoado na realização da
festa, já que Russo voltara à Câmara de Vereadores. Faltando poucas semanas para a data
comemorativa do Santo Pescador, os moradores ainda se questionavam se haveria festa naquele
ano, e em discussões por vezes acaloradas defendiam ou acusavam Russo Peixeiro, explicitando
mais uma vez o caráter político da festa católica. Política e religião se mesclam na festa de São
Pedro de tal forma que as conversas sobre a celebração religiosa terminavam em discussões
políticas; e na mesma direção, mas em sentido inverso, foi falando de política que Russo falou
sobre a festa de São Pedro. Disse ele:
“[Não digam] que eu vou dar isso e vou dar aquilo a vocês não. Não tem nada de dizer
que eu vou dar emprego, que eu vou fazer isso, que eu não tenho condições no momento. O que
eu vou fazer, é entrar com um requerimento para recontratação de todos os funcionários sem
ex-ce-ção, [pausa] e eu vou defender todos aqui de Ponta Grossa. [pausa] Como eu pedi que
não deixasse fazer concurso público nenhum para atrapalhar os seguranças aqui que todos eles
iam perder e iam ficar na estrada. Aí depois viraram aí as costas. Certo? Então se na terça-
feira, eu quero que cada um de vocês, por exemplo, é possível que cada um de vocês que eu
empreguei, já fiz a comparação, se no dia [bate na mesa] da eleição, bom, [bate na mesa] Russo
me empregou eu vou lutar até cinco horas [bate na mesa] da tarde, pra mim, eu pessoalmente
dar dez votos a ele. Eu saía daqui eleito. Eu saía daqui eleito. [pausa] E hoje vocês estão
falando com vereador! (...) Eu hoje sou vereador, se tem a consciência disso. Por exemplo, eu
não ia ter condições de fazer a festa [de São Pedro], mas tá pintando eu com condições de fazer
a festa porque eu sou vereador. Prefeito... [pessoas interrompem aplaudindo] O Prefeito aí vai
vir atender, [uma mulher fala ao mesmo tempo: “se fosse outro na cadeira não fazia não”] eu
vou pedir os shows, eu vou pedir as coisas, não será tão grande a festa, mas tudo indica, que eu
vou levar uns três a quatro meses na Câmara. (...) só eu não posso empregar, eu posso manter
só que agora começa a recontratação agora essa semana, vocês sabem disso? Que já venceram
os contratos de vocês, e eu tenho que agora [que interceder].”
Esse caso é muito interessante para se pensar. Russo afirma que não tinha condições de
empregar ninguém e que as pessoas não deviam esperar isso dele. Apesar de ter retornado à
Câmara Municipal, declara não ter possibilidades de dar empregos novos a ninguém, mas ao
mesmo tempo ele declara que, por ser vereador, pode interceder junto ao Prefeito para
94
recontratar os funcionários de Ponta Grossa que foram demitidos meses antes, quando muitos
empregados do município através de contratos foram mandados embora devido à realização de
um concurso público Concurso este, inclusive, que ele conseguiu adiar por alguns meses no ano
interior, pois sabia que os contratados de Ponta Grossa dos Fidalgos, que trabalhavam como
seguranças do Posto de Saúde e nas duas escolas locais, não conseguiriam aprovação e ficariam
“na estrada”, isto é, sem meios de sustentar suas famílias.
Quando declara que fará a festa de São Pedro, que não poderia realizar antes, por estar
fora da Cadeira, é aclamado pelos presentes. As pessoas esperavam que Russo, e não outro
político, realizasse a festa do santo pescador. Cerca de três semanas antes, o vereador que Russo
acusou de ter angariado os votos que deveriam ser para ele em Donana e Goitacases116 se
ofereceu para patrocinar a festa de São Pedro no povoado. O outro vereador fez a oferta a
Durval, que antes de responder se aceitava ou não questionou Russo a respeito da realização da
festa: “E aí, tem outro político querendo fazer, você vai ou não vai fazer a festa?”. Os boatos
sobre a realização ou não da festa de São Pedro com o patrocínio de Russo Peixeiro continuaram
até o dia desta reunião, em que Russo declarou publicamente que organizaria o desejado festejo.
No momento deste pronunciamento em sua casa no arraial pesqueiro, Russo coloca em
evidência as “regras do jogo”, explicando e “deixando muito claro” como funcionam as coisas
dentro da Câmara e em que momentos ele pode interceder pelas pessoas que o procuram. Assim
é que ele explica que as obras públicas em Ponta Grossa dos Fidalgos só se realizam se existir
um representante do povoado para chamar a atenção para ele, as ‘frentes de trabalho’, ou seja, os
trabalhos temporários para os períodos de proibição da pesca só chegam através de um vereador
que represente a população local e a própria liberação do seguro-defeso municipal exige a
mediação de um político interessado naquela região. Em seu discurso, o vereador explicita as
cobranças de parte a parte presentes na relação que tem com seus eleitores: se por um lado, a
população espera que ele consiga todas essas benfeitorias e realize a festa de São Pedro e ele
cumpre, a contrapartida deveriam ser os votos, para que ele permanecesse na Câmara para
continuar a defender os interesses das pessoas de Goitacases, Donana e Tocos, e assim o ciclo se
renovasse.
116 Permito-me relembrar ao leitor a afirmação de Russo, já citada algumas páginas atrás: “E dinheiro rolou dentro de Donana, [o candidato a vereador] comprando a 50 conto, a 100 conto, botou dez mil conto na mão de um Romeu que ele comprou, e de outro lá, eu entre Goitacases e Donana tive 732 votos”. Nesta fala ele se refere ao mesmo vereador que se ofereceu para realizar a festa. Quando perguntados a respeito do interesse deste vereador em patrocinar o festejo, eles respondem “ele tem família em Goitacases”, o que para eles é um distintivo do interesse deste vereador em relação aos outros vereadores do município.
95
Ao fim da reunião, Russo pede para que quem não votou nele nessa eleição, que vote na
seguinte, porque ele é amigo de todos ali. Os presentes o aplaudem enlouquecidamente e gritam,
aclamando-o.
96
CONSIDERAÇÕES FINAIS
97
Considerações Finais
A festa de São Pedro em Ponta Grossa dos Fidalgos, enquanto um dos eventos rituais
mais importantes do povoado, revelou diversos aspectos culturais daquela população. Um evento
de tal magnitude, que atrai pessoas dos povoados vizinhos e movimenta todo o arraial de
pescadores, mostra, por exemplo, a expressão que tem o catolicismo no local. Apesar de possuir
quatro igrejas protestantes, a prática católica no vilarejo pesqueiro é muito mais simbólica entre
os moradores do lugar em termos de prestígio e identidade social, principalmente na correlação
entre as expectativas de conduta das pessoas e os santos padroeiros locais. O rito de São Pedro
expressa, portanto, entre outras coisas, o prestígio das mulheres que cuidam da Capela de Nossa
Senhora da Conceição no local, enquanto mulheres religiosas, abnegadas, que cuidam de suas
casas e da ‘casa da Santa’, i.e., a Capela. Assim, a festa mostrou-se um momento importante para
os interesses políticos destas mulheres.
O que se pode observar analisando os dados empíricos é o resultado da disputa de
poderes sobre e durante a festa, e a instabilidade em torno de sua organização, i.e., há uma
constante disputa sobre o controle e viabilização da festa. Esta disputa em torno da festa é
política em termos amplos, que ultrapassa a política partidária e a luta pelos votos, ainda que
perpasse por esta questão. Numa perspectiva aberta, a disputa política em Ponta Grossa dos
Fidalgos é, também, a busca de um poder que poderia ser identificado como social, que envolve
prestígio e a valorização de atributos considerados positivos segundo o ethos da cultura local.
Ter influências decisórias sobre a organização da festa de São Pedro ou parte dela coloca o
detentor deste ‘poder’ em destaque diante de seus vizinhos e parentes em Ponta Grossa dos
Fidalgos, numa posição de “superioridade moral”, em certo sentido. Quando uma pessoa ganha
esse tipo de destaque social no povoado, ela passa a ser solicitada pelas outras para que dê
conselhos e auxilie na resolução de conflitos.
Em seus trabalhos, Márcio Goldman mostra que algumas vezes a palavra “política”
carrega consigo uma valoração de coisa negativa, conspurcadora. Os pontagrossenses encaram o
mundo de uma maneira dualista, onde de um lado estão as coisas puras, como as amizades, a
família e a religião; e de outro as coisas impuras, como a política.117 Márcio Goldman afirma que
não basta dizer que “política” é um termo polissêmico, pois “os ‘eleitores’ em geral tendem a
conceber a política como uma atividade (...) poluente – no sentido de que contamina as relações
117 Moacir Palmeira e Beatriz Heredia afirmam que em nossa sociedade a família é identificada à união, enquanto a política, por outro lado, é associada à divisão. Daí esta visão dualista da família, dos grupos sociais e das atividades que lhes são extensivas de um lado, e a política do lado oposto. Cf. Palmeira & Heredia: 1997.
98
sociais”. 118 Assim, o que aqui quero ressaltar é que, embora eu tente mostrar essa visão
maniqueísta dos pescadores de Ponta Grossa, a minha perspectiva é a da política enquanto fio
condutor da realização da festa. “Como a festa se dá? Que eventos ela terá? Que lugares
relativos cada evento terá na festa?” Estas questões são reveladoras dos mecanismos de controle
da realização e caracterização da festa, a partir dos quais se desenvolvem estratégias e
negociações, conscientes ou não, para sua realização.
Como antropóloga, quis entender como as coisas se dão, com relação à festa, na esfera
política. Não pretendi defender nenhum ponto de vista nativo acerca do tema, mas mostrar que o
ritual a cada ano é uma incógnita, diferente de ritos analisados por outros autores em que os
elementos aparecem no mesmo lugar relativo e, embora sofram alguns ajustes, mantém-se no
essencial. A festa de São Pedro em Ponta Grossa dos Fidalgos e os eventos que ela envolve são
sempre alvo de especulação, visto que ninguém sabe de antemão como será sua disposição, e por
isso ressalta o caráter dinâmico da vida social, vida esta sempre colorida de incertezas, apostas e
disputas.
A Igreja não capitaneia a festa e o máximo de apoio em sua organização que a Paróquia
dá é a ida do Pároco até o povoado para celebrar a Missa. O grupo religioso reclama, mas não
toma a dianteira da festa em momento algum. Apenas na narração que me foi feita sobre a
primeira festa de São Pedro o grupo de oração da Capela local organizou a festa. A partir do ano
seguinte, contudo, após o vereador assumir o patrocínio da festa, este grupo ficou responsável
apenas pela dita “parte religiosa” do festejo.
De outro lado, os líderes locais procuram auxiliar o vereador na organização do festejo,
buscando assumir algumas tarefas e exercer um poder relativo dentro da festa. Digo relativo
porque, embora estas pessoas almejem ter voz decisória no “passo a passo” da realização do
evento, nenhuma delas pretende se equiparar ao vereador, muito menos tomar seu lugar. O
presidente da Associação (enquanto posição estrutural naquela sociedade), os proprietários de
terras marginais à Lagoa que organizam a cavalgada, as mulheres que se reúnem para decidir a
parte litúrgica do rito, enfim, os festeiros só têm a importância e poder que exercem na festa
porque ela é realizada, e isso acontece, em grande parte, devido ao patrocínio oferecido pelo
vereador.
Essa disputa de poder entre os diferentes grupos e atores sociais nos bastidores da festa de
São Pedro tem um caráter de negociação da seqüência ritual. Para o grupo católico, o problema
não é haver shows de forró ou cavalgada. Até mesmo a questão da bebida durante a
118 Goldman: 2000; p. 319.
99
comemoração do Santo é vista pelas freqüentadoras da Igreja como algo que faz parte da festa. O
problema está na sobreposição de eventos lúdicos e religiosos. Para as mulheres do Conselho
Capelar, os espaços e tempo das diferentes “categorias” de eventos festivos devem estar bem
delimitados e separados. Há, contudo, os que, embora também sejam católicos, dispõem os
eventos festivos de maneira a privilegiar o turismo e a economia local. Assim, percebe-se que
esta negociação às vezes se dá de forma bem sucedida do ponto de vista dos atores envolvidos, e
noutras se explicita como momento de tensão.
Em suma, a contribuição desses atores tem pesos diferenciados para a realização das
festas que variaram através do tempo. Ao que tudo indica, os papéis que estes atores cumprem
são indispensáveis ao resultado final da festa de São Pedro, o que é explicitado em diversos
momentos ao longo dos anos. Alguns exemplos são o ‘boicote’ das fiéis à procissão por terra em
2004, gerando uma procissão “fraca” e pouco prestigiada e a insatisfação da esposa do vereador
porque as mulheres não estavam rezando na procissão que ela organizara; a demora da zeladora
em abrir a Capela para que trouxessem o quadro de São Pedro, atrasando a procissão de barcos
em 2005; e também o “cansaço” e “desânimo” das pessoas, na falta de uma banda que puxasse
os hinos, a respeito da realização de uma procissão por terra para São Pedro em 2006.
Embora haja divergências entre os atores sociais que compõem o rito de São Pedro, cada
grupo de atores é importante tanto para conferir legitimidade à festa enquanto acontecimento do
calendário litúrgico local, que pode ser traduzida pela frase de um rapaz que sempre afirma não
gostar muito “dessas coisas de igreja”, mas que destacou a importância das procissões quando
disse que “festa de São Pedro sem o santo não é a tradicional festa de São Pedro, aí vira uma
festinha qualquer”; quanto para viabilizar efetivamente a festa como tal, criando as condições
para que ela se realize com seus componentes lúdicos, atraindo pessoas de fora e sendo um
momento importante para a reprodução social do povoado. A festa de São Pedro, portanto, não
pode ser apenas os shows animados e a vinda de pessoas de fora, pois, embora estes sejam
atributos importantes para que a festa seja considerada “boa” ou “forte”, sem o santo ela deixa de
ser a “festa de São Pedro” para se tornar somente alguns shows animados. Ela também não pode
se resumir às “coisas da Igreja”, pois o canto de ladainhas e uma procissão por terra eram
práticas rituais que perduraram durante o hiato temporal entre a ‘festa antiga’ e a ‘festa nova’.
Estes dois âmbitos que juntos compõem a festa, separados perdem seu caráter de ‘festa’ e se
tornam práticas quase triviais perante os olhos da população. Estas duas esferas festivas e os
atores envolvidos com a organização de cada uma delas estão no centro das negociações
políticas em torno do arranjo festivo.
100
Pode-se, por exemplo, considerar que esta negociação foi tranqüila em 2002, quando pela
primeira vez Russo Peixeiro assumiu o patrocínio da festa junto com seu filho Pedro, então chefe
do gabinete do Prefeito Arnaldo França Vianna. O vereador discursou na abertura dos shows,
contou sobre sua promessa ao Santo e prometeu ao povo construir uma Gruta para São Pedro no
Porto da Beirada, onde é realizada a festa do Santo. No ano anterior, Russo doara duas imagens
de São Pedro e uma de Nossa Senhora da Conceição à Igreja local.
Em 2003, o que chamava a atenção era a sobreposição das imagens de político e homem
de Deus disseminada pelas palavras do locutor ao microfone, que em dado momento chegou a
declarar que a festa de São Pedro era “em louvor a Russo Peixeiro”. Foi no ano seguinte,
contudo, que a influência do vereador na organização da festa incomodou às mulheres
freqüentadoras da Igreja a ponto de explicitar esses conflitos. O boicote do grupo de oração da
Igreja local em 2004 era a maneira que elas tinham de dizer que não estavam satisfeitas com a
forma que a festa havia tomado, e de mostrar que elas eram necessárias para a realização do
festejo.
Em 2005, principalmente, há uma certa cobrança da população para que Russo realizasse
a festa. Assim foi que se ouviam, nas conversas em frente às casas ao final da tarde, as pessoas
dizerem frases como “se não era só política, ele tem que fazer a festa mesmo não tendo sido
eleito” ou “que festa tradicional é essa que a tradição só dura quatro anos?”; ao que Russo
rebateu na reunião feita em sua casa ponderando que só tinha condições de fazer a festa se
estivesse na Câmara, onde era um representante dos interesses do povoado junto ao Poder
Público. A negociação continuava conflituosa, mas num caráter diferente do ano anterior. Em
2005 havia a insegurança acerca da realização ou não da festa.
Em 2004, principalmente, e com menos projeção nos anos posteriores de 2005 e 2006, o
passado e a “festa dos antigos” surge como um verdadeiro argumento retórico. Trata-se de um
recurso díctico manipulado pelos diferentes atores de acordo com os contextos em que se
encontram inseridos, ou seja, um recurso que se refere à situação em que o enunciado é
produzido, ao momento da enunciação e aos atores do discurso, compondo assim os elementos
indiciais da linguagem, que figuram lado a lado com as designações simbólicas ou conceituais.
O índice desse “tempo” é conhecido por todos, não apenas parcialmente, mas em sua
integridade. O uso que se faz das narrativas que compõem os discursos disponíveis, no entanto,
varia segundo as intenções do ator e sua situação. Por isso, é possível ver a mesma pessoa, num
dado momento, ressaltar os aspectos positivos do “tempo das canoas” para, pouco tempo depois,
deslocar o acento para o caráter negativo que marcava o “tempo do atraso”.
101
Assim sendo, a situação em que um ator social se encontra no presente dá os contornos
do modo pelo qual ele evocará o passado. O presente, neste sentido, cria as versões sobre o
passado, mas não seria menos verdadeiro dizer que este tempo que já passou emerge sempre
como um argumento questionando ou confirmando aquilo que acontece no agora. As memórias
do tempo antigo são um argumento na negociação constante acerca das seqüências e eventos do
rito, ou ainda, no manejar da disputa política pelo poder sobre o ritual de São Pedro.
Passado e presente fundem-se então, impulsionando a vida, gerando novas narrativas que
serão diferentemente apropriadas e usadas num futuro próximo e garantirão assim o dinamismo e
a continuidade da vida social desses homens e mulheres que povoam as margens setentrionais da
Lagoa Feia.
102
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108
Apêndice I
Fonte: Google Earth.
Imagens geradas por satélite capturadas em fevereiro de 2008: Lago Tiberíades; ponto de visão 70 quilômetros de
altura.
109
Fonte: Google Earth.
Imagens geradas por satélite capturadas em fevereiro de 2008: Lagoa Feia; ponto de visão 70 quilômetros de
altura.
110
Tabela de Sequências Rituais
Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas
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