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U UN NI I V V E E R R S S I I D DA AD DE E F F E E D DE E R R A AL L D D E E G GO OI I Á ÁS S F F A AC C U UL L D DA A D D E E D D E E C C I I Ê Ê N NC C I I A A S S H HU UM MA AN NA AS S & & F F I I L L O O S S O OF F I I A A P P R R O OG GR R A AM MA A D D E E M ME E S S T T R R A A D DO O E E M M H HI I S S T T Ó ÓR R I I A A D D A AS S S S O OC C I I E E D D A AD D E E S S A AG GR R Á ÁR R I I A AS S . . A A AF F FE E ES S ST T TA A AD D DO O O D D DI I IV V VI I IN N NO O O. . . Romanização, Patrimônio & Tradição em Pirenópolis (1890-1988) Mônica Martins da Silva Orientadora: Profª Dra Dulce Amarante O. Santos Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em História das Sociedades Agrárias como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de concentração: História das Relações entre Cidade e Campo. Goiânia 2000

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Romanização, Patrimônio & Tradição em Pirenópolis (1890-1988)

Mônica Martins da Silva

Orientadora: Profª Dra Dulce Amarante O. Santos

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em História das Sociedades Agrárias como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre.Área de concentração: História das Relações entre Cidade e Campo.

Goiânia

2000

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SILVA, Mônica Martins da.

A Festa do Divino. Romanização, Patrimônio & Tradição em

Pirenópolis (1890-1988). / Mônica Martins da Silva; Orientadora

Profª Dra Dulce Amarante O. Santos. – Goiânia, 2000. 259p.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiás, 2000.

1. A Festa do Divino: I. Título.

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A Festa do Divino. Romanização, Patrimônio & Tradição em

Pirenópolis. (1890-1988).

MÔNICA MARTINS DA SILVA

Dissertação defendida e aprovada em____ de junho de 2000, pela banca examinadora

constituída pelos professores:

__________________________________________

Profª Dra Dulce Amarante O. Santos (UFG)

(Orientadora)

________________________________________

Prof. Dr. Jaime de Almeida (UnB)

__________________________________________

Prof Dr. Noé Freire Sandes (UFG)

___________________________________________

Prof. Dr. Nasr Nagib Fayad Chaul (UFG)

(Suplente)

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À Mª Abadia & Edésio: pais e amor.

Ao Flávio, parceiro de sonhos, carinho e cumplicidade.

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A bandeira do Divino

(Ivan Lins & Vitor Martins)

Os devotos do Divino

Vão abrir sua morada

Pra bandeira do Divino

Ser bem- vinda, ser louvada.

Deus nos salve esse devoto

Pela esmola em vosso nome,

Dando água a quem tem sede,

Dando pão a quem tem fome.

A bandeira acredita

Que a semente seja tanta,

Que essa mesa seja farta,

Que essa casa seja santa.

Que o perdão seja sagrado,

Que a fé seja infinita,

Que o homem seja livre,

Que a justiça sobreviva,

Assim como os três reis magos

Que seguiram a estrela guia,

A bandeira segue em frente,

Através de melhores dias.

No estandarte vai escrito

Que Ele voltará de novo

E o Rei será bendito

Ele nascerá do povo.

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AGRADECIMENTOS

A caminhada até o final foi lenta, difícil, mas feliz porque eu não estava sozinha...

Agradeço à minha família: mãe, pai e irmão por acreditarem nos meus sonhos e por

apoiarem todos eles.

Ao Flávio, cuja história cruzou-se com a minha nos caminhos do mestrado e fez com que

isto tenha sido uma surpreendente descoberta de amor, respeito, confiança, dedicação

que fizeram deste trabalho uma parceria cotidiana e apaixonada...!!!

Às Clóris & Degmar, amigas de longa data...

Aos professores da Escola Municipal Profª Marília Carneiro, amigos que estiveram a meu

lado e muito me incentivaram.

À Dulce Amarante, professora & orientadora; pela calma, respeito & confiança

dedicados a mim e às minhas opiniões.

Ao Professor Nasr Chaul, orientador & incentivador, das primeiras pesquisas e idéias

que deram origem a este trabalho.

Ao Carlos Maia, amigo que como eu se encantou pelo estudo da festa de Pirenópolis, e

com quem pude compartilhar de uma forma alegre e divertida boa parte dessa descoberta.

Aos colegas do mestrado: Aroldo, Diane, Cristina, Renata, Ramir Curado e especialmente

à Clara e Adriana, amigas desde o início e até o final, espero que para sempre.

Aos professores Noé Freire, Leandro Rocha, Heliane Prudente & Maurinha pelos

comentários e sugestões que me ajudaram a traçar rumos mais seguros.

Ao Professor Jaime de Almeida da Universidade de Brasília, com quem tive a feliz

oportunidade de compartilhar o interesse pelo estudo da "festa", discutir idéias e refletir

sobre muitas outras.

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À Capes pela bolsa de pesquisa que custeou muitos gastos necessários.

À Fabiane, Antônio e José Mendonça Telles do Instituto de Pesquisas Históricas do Brasil

Central, da UCG, onde "bati ponto" por meses, e tive todo o apoio e prestatividade .

Á Carmem Lisita do Arquivo Histórico Estadual, pela amizade e incentivo à pesquisa.

Em Pirenópolis devo muito a muitos;

Ao Natureza e Adomício, primeiros contatos e a certeza de que valia a pena continuar a

pesquisa.

À Dona Maria Eunice de Pina, poetisa, guardiã minuciosa das memórias de Pirenópolis e

da Festa do Divino, a quem devo respeito, admiração e parte da documentação que usei

neste trabalho como fotos, programas e notícias em periódicos.

À Mercedes do Tissumê, artista, artesã e adorável anfitriã nas primeiras idas a

Pirenópolis.

À Valcilene da Secretaria da Igreja Matriz quem, pacientemente, colocou a minha

disposição a documentação eclesiástica da paróquia.

Ao Fernando de Pina, ao "Garça" do cartório do crime e a todos os funcionários do

fórum.

Ao Alcides, da secretaria do Meio Ambiente, pela simpatia, respeito e prestatividade de

sempre.

Ao Herculano da Piretur,

À Morgana da Câmara Municipal.

Ao Sr. Ico, Seu Nô, Márcio de Sá, Sr Antônio, Dr Tasso, Sr. Lalau, Pompeu de Pina, Seu

Joãozico Lopes, D. Ita, Sr. Roque, Jaiminho, Litão, Alexandre de Pina....Enfim a todos os

entrevistados; imperadores, foliões, mordomos, reis, embaixadores, cavaleiros,

mascarados; personagens da festa do Divino, que fazem dela um Império de cores,

utopias e sentidos compondo a história de Pirenópolis...

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Lista de Ilustrações

Chegada da Folia de Roça em um Pouso (Festa de 1999)......................................anexo p.40

Beijamento da Bandeira do Divino durante o pouso de Folia.................................anexo p.40

Cerimônia de agradecimento de mesa durante refeição coletiva em pouso de Folia (Festa

de 1999).........................................................................................................................anexo p.40

Apresentação de “As Pastorinhas” no Theatro de Pirenópolis. (Festa de 1999)...anexo p.45

Procissão da Bandeira pela Irmandade do Santíssimo Sacramento no Sábado do Divino (Festa de 1998)............................................................................................................ anexo p.48

Hasstteeaammeennttoo ddaa BBaannddeeiirraa ee QQuueeiimmaa ddee FFoogguueeiirraa nnoo SSáábbaaddoo ddoo DDiivviinnoo ((FFeessttaass ddee 11999988 ee11999999............................................................................................................................................................................................................................................................ aanneexxoo pp..4499

Cerimônia do Cortejo do Imperador pelas ruas de Pirenópolis (Festa de 1996)..............................................................................................................................anexo p.50

CCoorrtteejjoo ddoo RReeiinnaaddoo ee JJuuiizzaaddoo ddee NNoossssaa SSeennhhoorraa ddoo RRoossáárriioo ee SSããoo BBeenneeddiittoo ddooss ““PPrreettooss””..((FFeessttaa ddee 11999999))........................................................................................................................................................................................................................ aanneexxoo pp..5533

Luís Armando Pompeu de Pina,Cavaleiro Cristão no quintal de sua casa, em Pirenópolis. (ano de 1966)...............................................................................................................anexo p. 56

Luís Armando Pompeu de Pina,Cavaleiro Cristão na rua Direita em Pirenópolis. (ano de 1966)............................................................................................................................ anexo p. 56

Mascarados Diversos pelas ruas e campo da Cavalhada........................................anexo p. 57

Cavalhada no Largo da Matriz s/data...................................................................anexo p.177

Cerimônia de troca de flores durante a Cavalhada no Largo da matriz s/data...........................................................................................................................anexo p.177

Cavaleiro da Cavalhada no início dos anos 70 Cavaleiro à esquerda, Cristão (Serra-Fila) representado por João Luiz Pompeu de Pina........................................................ anexo p.185

Cerimônia do Jogo de Argolinhas no início dos anos 70. Cavaleiro João Luiz Pompeu de Pina.............................................................................................................................anexo p.185

Coroa e Cetro de Prata usados em Pirenópolis, pelo Imperador do Divino, desde o início do século XIX.............................................................................................................anexo p.218

Imperador do Divino o lado da coroa e cetro durante uma das novenas. ( Festa de 1998)...........................................................................................................................anexo p. 218

Apresentação de Congada na Porta da Matriz no Sábado do Divino (Festa de (1998)..........................................................................................................................anexo p.225

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Desfile da Banda de Couro (Zabumba) pelas ruas de Pirenópolis (Festa de 1998)............................................................................................................................anexo p.225

Apresentação da Banda Phoênix na porta da Igreja Matriz Pirenópolis (Festa de 1998)...........................................................................................................................anexo p. 225

Barraquinhas de Comércio Informal & Ranchões (Festa de 1999).....................anexo p. 226

Cavaleiro Cristão: João Luiz Pompeu de Pina. Nova indumentária em um novo espaço (ano de 1976).............................................................................................................anexo p.22 9

Embaixador Mouro: João Luiz Pompeu de Pina (ano de 1985).......................... anexo p.229

Cavalhada no campo de futebol sem gramamento (Início dos anos de 1970)......anexo p.230

Cerimônia do Jogo de Argolinhas (ano de 1985)....................................................anexo p.230

Apresentação de Contradança no campo da Cavalhada.(Festa de 1999)............anexo p.233

Apresentação de Terno de Congos no campo da Cavalhada (Festa de 1999)......anexo p.233

Rei Cristão (Azul) e Rei Mouro (Vermelho) & Cavaleiros da Cavalhada de 1999............................................................................................................................anexo p. 235

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Sumário

Introdução.......................................................................................................................14

Capítulo I- A Festa do Divino em Pirenópolis.......................................................21

1.1- O Império do Divino.....................................................................................................21

1.2 - As festas dentro da Festa.............................................................................................35

1.2.1- Os Giros das Folias....................................................................................................36

1.2.2- Autos, Danças e Contradanças...................................................................................41

1.2.3- A Festa na Rua. .........................................................................................................46

1.2.4- A Festa dos “Santos Pretos”. .....................................................................................51

1.2.5- Cavaleiros & Mascarados..........................................................................................56

1.2.6- Rezar é preciso...........................................................................................................62

Capítulo II – A Fronteiras da Romanização nos Domínios da

Festa....................................................................................................................................68

2.1- Os Bispos Romanizantes em Goiás, e a “Restauração” da Fé.....................................73

2.2- Os Olhares sobre as Festas..........................................................................................93

2.3- Rezar é Preciso. Festejar não é Preciso?.....................................................................104

2.4- Os “Excessos” das Folias na mira da Igreja................................................................125

Capítulo III- Patrimonialização e Folclorismo: caminhos cruzados de um

mesmo tempo.................................................................................................................140

3.1- O Patrimônio em questão............................................................................................141

3.2- Pirenópolis & seu Patrimônio.....................................................................................148

3.3- Os Folcloristas & as Festas.........................................................................................165

3.4- Cavalhada, uma Festa Recriada..................................................................................173

Capítulo IV- Tradições (Re) Inventadas................................................................193

4.1- O Divino nas Memórias..............................................................................................196

4.2- A Festa em Movimento.. ............................................................................................207

4.3- O Reinado da Cavalhada.............................................................................................227

Considerações Finais..................................................................................................238

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Fontes............................................................................................................244

Referências Bibliográficas .........................................................................251

Anexos:

Anexo I: Relação dos Imperadores da Festa do Divino

Anexo II: Programa da Festa de 1957

Anexo III: Programa da Festa de 1969

Anexo IV: Programa da Festa de 1970

Anexo V: Programa da Festa de 1972

Anexo VI: Programa da Festa de 1979

Anexo VII: Programa da Festa de 1980

Anexo VIII: Programa da Festa de 1981

Anexo IX: Programa da Festa de 1982

Anexo X: Programa da Festa de 1983

Anexo XI: Programa da Festa de 1984

Anexo XII: Programa da Festa de 1985

Anexo XIII: Programa da Festa de 1989

Anexo XIV: Programa de “As Pastorinhas” de 1999.

Anexo XV: Roteiro Turístico de Pirenópolis/ ano de 1979.

Anexo XVI: Mapas para localização de Pirenópolis.

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RESUMO

Este trabalho é o resultado de uma pesquisa histórica sobre a Festa

do Divino Espírito Santo na cidade de Pirenópolis (Go), entre os anos de 1890 a 1988.

Trata-se de uma manifestação cultural luso-brasileira que se dinamizou nesta cidade

durante o século XIX e XX integrando elementos sagrados e profanos que difundiram-se

nos espaços rurais e urbanos locais.

Esta difusão é analisada a partir de dois processos: O primeiro

denominou-se Romanização e representou as mudanças ocorridas internamente à Igreja

Católica decorrentes de maior aproximação dela a concepções ortodoxas provindas de

Roma. Esse contato resultou em regulamentos, normas e proibições em relação às

inúmeras manifestações do catolicismo popular, entre elas a festa do Divino Espírito Santo.

Este decurso terá um amplo desdobramento a partir de 1890 até os anos 30 do século XX e

em Pirenópolis provocou diversos conflitos entre a Igreja e as famílias locais. Outro

processo analisado, foi o da patrimonialização que correspondeu ao movimento em torno

das diversas manifestações culturais e nacionais, entre elas as festas, a partir do movimento

modernista dos anos 20 e que se desdobrou com a política varguista dos anos 30. Algumas

ações do período como a criação do SPHAN e de Institutos de Folclore imprimiram novas

marcas no relacionamento entre a sociedade brasileira e as festas. Em Pirenópolis esse

processo resultou na criação de uma política local a partir dos anos 70, na qual a

Cavalhada, que é uma das manifestações da festa do Divino, passou a representar

culturalmente a cidade ao mesmo tempo em que dinamizou o turismo na região.

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Destarte a festa do Divino adquiriu características próprias,

modificou práticas, reinventou símbolos e relacionou-se com a dinâmica da sociedade que

a organizou e a partir dela articulou uma memória coletiva local.

Introdução

"Da mesma maneira que os historiadores redescobriram a morte no momento em que a sensibilidade coletiva experimentava essa necessidade- ou exatamente às vésperas - o interesse pela festa ressurgiu quase simultaneamente entre os historiadores e o público. Fenômeno da moda? A explicação parece um tanto míope: a dialética entre a curiosidade científica e a demanda social nos exige uma meditação que me parece mais profunda sobre a forma como muda a sensibilidade coletiva e a consciência que dela tomamos..."

(Michel Vovelle. Ideologias & Mentalidades)

A festa do Divino Espírito Santo é uma manifestação luso-

brasileira que se difundiu por grande parte do Brasil, durante o seu respectivo processo de

colonização. Dentro do universo de tantas manifestações festivas e religiosas que o Brasil

"herdou" da conquista européia, o culto e a festa ao Divino se adaptaram a várias regiões,

à medida que dinamizavam o catolicismo popular.

Neste trabalho, propomo-nos a apresentar e discutir alguns aspectos

dessa festa em uma cidade goiana que surgiu no século XVIII, durante a ocupação local,

em função de descobertos auríferos. Ocupada inicialmente por uma maioria de lusitanos,

foi um dos principais núcleos urbanos da província até o século XIX. Ela se chamou,

inicialmente, Minas de Nossa Senhora do Rosário de Meia-Ponte; anos depois, apenas

Meia-Ponte e, em 1890, se tornou Pirenópolis.

Analisamos a festa do Divino em Pirenópolis a partir de um amplo

processo histórico, que se estendeu de 1890 até 1988. Neste período a festa do Divino foi

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palco de diversos acontecimentos que envolveram a Igreja Católica, as famílias locais e o

poder público. O primeiro deles foi o processo de romanização que representou um

momento de redefinições para a Igreja Católica no Brasil, por meio de uma consonância

maior com as diretrizes de Roma e com uma filosofia mais ortodoxa. Em Pirenópolis, a

relação da romanização com a festa do Divino terá um amplo desdobramento que

demonstrou que essa manifestação festiva, naquele período, era dinâmica e envolvia os

mais diversos grupos sociais locais. A partir dos anos 20 e 30, a política ortodoxa da Igreja

Católica no Brasil ligada a Roma, teve outros desdobramentos que deram continuidade ao

controle e às regulamentações das festas e demais manifestações populares até o final dos

anos 50. Concomitantemente a esse período, a sociedade brasileira viveu um dinâmico

processo histórico, cujo desenrolar redefiniu muitos aspectos relacionados à prática das

festas e da religiosidade popular. A Semana de Arte Moderna, nos anos 20, é o marco para

essas mudanças que se intensificaram nos anos 30, com a política varguista, e deram início

a um processo que denominamos, neste trabalho, de patrimonialização.

Estudar uma festa, há pelo menos duas décadas atrás, era tarefa

exclusiva para os antropólogos e cientistas sociais. Para a história, esse caminho é recente

e tem como marco o reconhecimento da história social como legítima, passando pela

estruturação do campo das mentalidades, na historiografia francesa, até a redefinição de

novas premissas para se estudar a cultura, através da “Nova História Cultural"1. O interesse

pela festa surge a partir de novos pressupostos, que buscam no homem comum, nas suas

crenças e rituais elementos para se entender o desencadeamento histórico. Lucien Febvre e

Marc Bloch são os pioneiros nessas abordagens iniciadas no começo do século XX e

retomadas a partir do final da década de 60 deste século. Nessa época, a historiografia

1 CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo, (org.). Os Domínios da História - Ensaios de teoria e

metodologia. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1997.

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francesa passou a trilhar os rumos das mentalidades, dando ênfase aos processos mentais, à

vida cotidiana e às suas representações. Destaques para esse campo são Jacques Le Goff,

Philipphe Ariés e Michel Vovelle2. O último vai olhar as festas mais de perto e, mesmo

egresso do marxismo, não deixará de considerá-las objeto legítimo da história. Outros

autores vão adotar as festas em suas análises e imprimir-lhes abordagens múltiplas:

Natalie Zemon Davis3, Yves Bérce, E. P. Thompson e Mona Ozouf.4

O desgaste do conceito de mentalidades vai contribuir para a

pulverização desse campo em vários subcampos de estudos como a micro-história, a

história do cotidiano, da vida privada e a história cultural, que irá conservar parte dos

pressupostos das mentalidades sob uma nova roupagem teórica5. Porém, o caminho para o

estudo das festas estava trilhado. Coube a outros historiadores o papel de discuti-las e

problematizá-las. Os debates travados sobre a cultura popular, também, marcaram esse

momento, e a partir daí teremos novas concepções para pensar as festas, como a de

circularidade cultural, defendida por Bakhtin e redimensionada por Ginzburg, Peter Burke

e Roger Chartier, entre outros.

Entendemos que essa conversão do olhar histórico, que já

considera a festa como objeto legítimo, é uma importante oportunidade para se analisar

uma sociedade, pois além de demonstrar a dinâmica da sociabilização, apresenta elementos

importantes para compreendermos a cultura, as relações de poder, de memória e de

identidades.

2 VOVELLE, Michel. Ideologias e Mentalidades. São Paulo, Brasiliense, 1987. Este autor aborda referências francesas sobre as festas: BERCÉ, Yves; Fête et révolte. Hachete, Paris, 1977; COX. Harvey. La Fête de fous, essai téologique,sur la notion da fête et de fantaisie, Le Seuil, paris, 1971 1977. LADURIE, Le Roy. Le Carnaval de Romans, Gallimard, Paris, 1978. 3 DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do Povo. Sociedade e cultura no início da França moderna. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990 4 OZOUF, Mona. "A Festa: Sob a Revolução Francesa" . In: Le Goff e Nora, História: Novos objetos. Rio de Janeiro, Francisco Alves5 VAINFAS, Ronaldo. História das Mentalidades e História Cultural In: Os Domínios da História - Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1997.

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No caso da Festa do Divino, em Pirenópolis, essas questões

puderam ser observadas, discutidas e problematizadas a partir de várias visitas à esta

cidade na ocasião dos festejos do Divino e também a partir de uma ampla documentação,

sobre a qual pesquisamos tanto em Pirenópolis como em Goiânia. Em Pirenópolis tivemos

acesso aos livros de tombo da Igreja Matriz de Pirenópolis, a partir de 1909 até 1980, e

neles encontramos a relação das principais festas que ocorreram, as proibições e críticas

por parte dos párocos ou dos bispos romanizantes, além de inúmeras outras noções da vida

religiosa e social da cidade estudada. Obtivemos outras informações sobre as festas,

através dos documentos específicos da Irmandade do Santíssimo Sacramento e das

Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e São Benedito (das primeiras

décadas do século XIX até a década de 70 do século atual). Neles verificamos formas de

organização, despesas, investimentos e personagens envolvidos com esses festejos, de um

modo geral. Um outro documento importante, que nos deu referência da existência da festa

do Divino, no século XIX, foi o diário de Inhazinha, moradora de Corumbá que foi várias

vezes a Pirenópolis (na época, Meia-Ponte) para assistir a várias festas e delas participar,

entre elas a do Divino Espírito Santo. Recolhemos outras informações nos códigos de

posturas do século XIX e XX, nos livros de leis, nas atas da Câmara Municipal e em

processos criminais, que nos deram referências sobre a vida urbana, sobre medidas de

controle e sobre a normatização dos espaços públicos.

Em Goiânia, pesquisamos em Jornais, como A Tribuna Livre6, O

Estado de Goyaz,7 O Nova Era8 e O Lidador9, que nos permitiram entender os diferentes

olhares, leigo e eclesiástico, lançados sobre essas festas e refletiram os conflitos entre os

6 Números de 1878 a 1884. 7 Números de 1893 a 1913.8 Números de 1914 a 1919.9 Números de 1909 a 1914 e 1916 a 1917.

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segmentos republicanos e a Igreja Católica romanizante, além de noticiarem as múltiplas

formas de apresentação dessas festas. Pesquisamos também alguns documentos

espiscopais como alguns códigos que regulamentaram várias festas, relatórios de visitais e

cartas pastorais, entre outros.

Utilizamos também depoimentos orais, coletados nos últimos três

anos de pesquisa. Esta documentação, bastante específica, nos deu condições de ouvirmos

algumas pessoas que se envolveram, ao longo de suas vidas, com essa festividade. A partir

daí, pudemos compor um quadro de versões e considerar opiniões, sentimentos

particulares e coletivos sobre a festa do Divino. Optamos metodologicamente pela

abordagem da tradição oral, embora outras modalidades de história oral, como a de vida e

temática, pudessem ser utilizadas. Tematizamos os questionamentos na perspectiva de

compreendermos a constituição de uma “tradição” de festejar o Divino Espírito Santo e as

respectivas formas de vivenciar esse evento. Assim, optamos pela tradição oral que,

segundo Meihy, trabalha com a permanência dos mitos e com a visão de mundo de

comunidades que têm valores filtrados por estruturas mentais asseguradas em referências

do passado remoto. Segundo ele, as explicações da origem de povos, crenças, calendário,

festividades, rituais de passagens e cerimônias cíclicas são objetos privilegiados dos

estudos das tradições orais.10

Objetivando discutir e problematizar estas questões dividimos

nosso trabalho em quatro capítulos, a saber:

No primeiro, cujo título é A Festa do Divino em Pirenópolis,

ressaltamos os aspectos referentes à instituição e à dinamização dessa festividade na

sociedade brasileira e em Pirenópolis. A partir daí, apresentamos as formas por meio das

10 MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História oral. São Paulo, Loyola, 1998, 2ª edição, p.53.

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quais esta festa tem sido organizada por esta sociedade local, associando seus respectivos

símbolos, personagens e rituais à dinâmica do espaço urbano e da sociedade pirenopolina.

No segundo capítulo, As fronteiras da Romanização nos Domínios

da Festa, iremos problematizar o tema, a partir da discussão da hibridização entre o

sagrado e o profano, como elemento constante nas festas populares que se estabeleceram

no Brasil, e dos conflitos entre a sociedade organizadora dessas festas e a política de

romanização da Igreja Católica, fortalecida a partir do final do século XIX. Enfocaremos a

romanização e seus desdobramentos em Goiás, especificamente a partir do episcopado de

D. Eduardo, no final do século XIX, a qual seguirá até finais dos anos 50 no episcopado de

D. Emanuel. Nesse período, os conflitos serão constantes, pelo fato de essas festas serem

organizadas, em grande parte dos casos, por leigos que nelas vão imprimir gostos

particulares, muitas vezes a contra gosto dos padres.

No terceiro capítulo, Patrimonialização e Folclorismo, caminhos

cruzados de um mesmo tempo, discutiremos os desdobramentos da política de

patrimonialização, instituída no Brasil a partir dos anos 30, e a relação desse processo com

a Festa do Divino, em Pirenópolis. Os maiores expoentes dessa política foram a criação do

SPHAN, a dos Institutos de folclore e da Goiastur. Eles, em grande medida, vão influenciar

diversas mudanças locais, tanto no espaço urbano como na relação da Festa do Divino com

a sociedade organizadora e participante.

No quarto e último capítulo, que intitulamos de Tradições (re)

Inventadas, buscamos retomar a festa, a partir de alguns aspectos levantados no primeiro

capítulo, procurando compreender como as suas formas simbólicas, seus eventos e seus

rituais, ao mesmo tempo que foram modificados e recriados, relacionaram-se com os

processos analisados. Ao final, apontamos como todo esse dinâmico processo analisado

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influenciou na construção de uma memória coletiva local, na qual a Festa do Divino

assume papel relevante.

Discutiremos essas questões ao longo deste trabalho e a festa como

objeto de pesquisa, assume o papel central em todos os capítulos, sendo que em cada um

ela será analisada sob diversos prismas, na perspectiva de que seja compreendida a sua

dinâmica histórica em Pirenópolis.

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Capítulo I- A Festa do Divino em Pirenópolis

... A festa começava pelo desfile de símbolos (as “máscaras”, os arautos, as bandeiras, o mastro, a decoração das ruas e os foguetes) que eram apropriados diferentemente pelas diversas camadas da população. Orastatus, ora poder, ora resistência, a cultura popular ou da elite dava funções diversas a esses vários símbolos. Jogos de espelhos da sociedade colonial refletiam -se distintamente, as festas iniciavam-se com um feixe de símbolos que anunciavam um tempo de identidades, encobertos, ou falsificadas, numa constelação de utopias...

(Mary Del. Priore. Festas e Utopias no Brasil Colonial)

Neste capítulo iremos apresentar a festa do Divino. Em um

primeiro momento, identificaremos as origens lusitanas desses festejos, as quais o Brasil

herdou em grande medida através do processo de colonização. Em seguida estendemos

essa manifestação até Pirenópolis e, após apontar alguns aspectos gerais dessa sociedade

partimos para um segundo ponto, central neste capítulo, que é a discussão das formas

através das quais a festa do Divino em Pirenópolis organizou seus eventos, elegeu

personagens e estabeleceu símbolos em torno dos quais anualmente se realizam esses

festejos. Faz parte também da preocupação central deste capítulo associar a movimentação

da festa do Divino em Pirenópolis à dinâmica do espaço urbano e da sociedade local

através das famílias mais influentes, das Irmandades, dos padres e das respectivas

relações que estes grupos estabeleceram entre si.

1.1- O Império do Divino

A Festa do Divino Espírito Santo é uma das várias manifestações

da religiosidade católica que se popularizaram em diversas regiões ocidentais, sobretudo

européias, a partir da Idade Média. Esta festividade é celebrada cinqüenta dias depois da

Páscoa, em comemoração à representação da descida do Espírito Santo sobre os apóstolos.

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A festa de Pentecostes, tal como é denominada liturgicamente, irá surgir a partir de

profecias milenaristas divulgadas principalmente por um monge cisterciense de nome

Joaquim de Fiore. Ele funda um mosteiro em San Giovanni e é acusado de heresia por

defender a teoria dos três tempos da humanidade baseada na Santíssima Trindade: A Era

do Pai (do Gênesis até Cristo), dominada pelos leigos, a Era do Filho ( de Cristo até 1280),

dominada pelos clérigos, e a Era do Espírito Santo (1280 em diante), que seria a idade dos

monges, em que haveria a compreensão espiritual das Escrituras e que viria superar a era

do Filho(Cristo). Suas profecias, retomadas mais tarde, em 1254, pelo monge Geraldo de

Borgo San Donnino, além de serem contestadas pela alta hierarquia da Igreja católica, irão

influenciar em grande medida, os espirituais da ordem franciscana.11

Uma grande parte dos estudos que envolveram as festas do Divino

Espírito Santo foi unânime em afirmar que esta prática foi instituída, em Portugal, pela

Rainha Santa Izabel de Aragão, esposa do rei D. Diniz, no século XIV.12 Assim, o contato

dessa Rainha com os franciscanos possivelmente influenciou a instituição da festa do

Divino por ela, embora já ocorresse em outros reinos13.

11 ALMEIDA, Jaime. Todas as Festas, a festa? SWAIN, Tânia Navarro (org) História no plural, Brasília:

EdUnB. 1994. p. 164-165.12 SANTO, Moisés Espírito. 1990. Origens da Religião Popular Portuguesa. Lisboa, Assírio & Alvim, p.p. 109-144 considerou ser um mito a afirmação de que esse culto teria sido organizado pela Rainha Izabel. Diz que o culto do Divino se origina na tradição hebraica da festa de Pentecostes . Considera que se trata de uma festa popular judaica, organizada pelos cristãos novos, com todos os elementos com os quais se difundiu, como: folia, Imperador, pomba, coroa, estandarte, jantares, benditos, tourada, promessa, realeza, entre outros. Diz que o culto do Divino corresponde à festa judaica da renovação da Aliança. Diz ainda que os mitos em torno de Santa Izabel de Aragão , a Rainha Santa, especialmente na Igreja de Santa Clara, em Coimbra, onde se encontrou seu mausoléu, originam-se em culto marrano ou cripto-judaico. Os promotores do culto e de sua canonização no século XVII foram cristãos novos de Coimbra, prestando homenagem à santa rainha Ester do Antigo Testamento. 13 CASCUDO, Luís da Câmara. Afirma in Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: INL-MEC, 1962. que as marcas do travestimento imposto pela igreja foram por muito tempo perceptíveis. Exemplifica com o “Mês de Maria” que procurava substituir as festas de Afrodite nas quais os portugueses perduravam “giestas” à porta para comemorar a fartura e o culto do reflorescimento da terra. As festas do “Divino” , para ele, foram propositadamente comemoradas em maio desde João I, em 1385, para evitar o paganismo das “Maias”, cantadas e dançadas pelas ruas. Instituíram-se então procissões obrigatórias por meio de um acórdão da Câmara de Lisboa, as quais não foram suficientes para evitar os “inveterados ritos gentílicos”. O mesmo aconteceu às “Janeiras”, festejadas para celebrar o advento do Ano Novo e prestáveis a rituais de feitiçaria por estar o ano se iniciando e ser apto, segundo a tradição popular a augúrios.

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Enes é uma das poucas autoras que questionam o pioneirismo da

Festa do Divino Espírito Santo em Portugal e afirma que isto é pouco provável uma vez que

a sua pesquisa lhe revelou a existência de inúmeras Irmandades do Espírito Santo na França

em período bem anterior à instituição desta festa em Portugal. Porém, esta autora acredita

que a Festa do Divino lusitana adquiriu características peculiares como o rito da coroação e

as expressões de solidariedade comunitária à volta da mesa da abundância do pão e do

Espírito. Essas características, segundo ela, estavam relacionadas com o caráter milenarista

que esta festa adquiriu em Portugal pela influência dos franciscanos.14

Cortesão, associa a instituição do Império do Espírito Santo nas

festas do Divino, em Portugal, à laicização dos costumes portugueses, a partir do século

XIV, para os quais a ordem dos Franciscanos muito contribuiu. Foi durante os século XIV

e XV e a primeira metade do século seguinte que o culto do Espírito Santo, ligado à festa

do Império, tomou maior desenvolvimento em Portugal e se espalhou pela África

Portuguesa, pela Índia, e pelos arquipélagos da Madeira e dos Açores, de onde passou mais

tarde, em grande parte por obra dos açorianos, ao Brasil e à América portuguesa. O auge do

culto do Espírito Santo coincide, no País, com o período mais intenso da expansão

portuguesa no planeta.15

Paulo Miceli, em um trabalho sobre viagens e viajantes na história

da expansão e conquista, afirmou que a prática das festas populares estava tão arraigada no

costume europeu que, mesmo nas naus que viajavam para o Novo Mundo, ela estava

presente. Se, na cidade, o teatro de romarias e da Semana Santa era representado para

assinalar as festas dos santos e de Nossa Senhora e as principais datas do calendário

litúrgico, como a Paixão e a Ressurreição, o mesmo acontecia nos navios. De todas as

14 ENES, Maria Fernanda. As Festas do Divino Espírito Santo nos Açores. In: Revista de História e Teoria das Idéias. Vol X, Universidade Nova de Lisboa. Cidade de Lisboa: 1998, p. 127-156.

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representações de bordo, a festa do Imperador do Divino Espírito Santo parece ter sido a

mais tradicional, assemelhando-se "bastante às [festas] que havia pela quadra do Natal,

presididas pelos Episcopus Puerorum. 16 Assim uma rica simbologia elaborada pelo

universo cultural português transportava-se para o Brasil, a partir de personagens e

situações imaginárias, cujos desdobramentos tinham as festas como palco.

As festas e tradições populares, de um modo geral, tiveram um

importante papel na mediação entre as diversas culturas que se confrontaram, a partir da

colonização do Brasil. Coube à Igreja o papel de difusão dessas manifestações, embora

muitas delas fizessem parte do gosto da população portuguesa que, mesmo em terras

distantes, procurava praticá-las.

No caso de Goiás, acreditamos, as festas foram se difundindo na

sociedade, que se formava à medida que a Igreja ia ocupando espaço nos arraiais que

surgiam em função dos descobertos auríferos, a partir do século XVIII. É notório verificar

em todas as descrições de relatos de viajantes, memorialistas e corografias históricas a

existência de igrejas em todos os arraiais, por menores que fossem, apontando, dessa forma,

a influência do Catolicismo na cultura colonizadora.

Por outro lado, é fundamental relativizarmos a atuação dessa Igreja

no Brasil colonial. Não podemos desconsiderar que a difusão católica neste país fazia parte

de acordo entre Estado e Igreja, denominado Padroado Régio. No entanto, a autoridade do

Papa foi relativamente pequena sobre o Brasil Colônia, em vista dos poderes conferidos ao

monarca português. Os pontífices limitaram-se a nomeações de cargos e funções

15 CORTESÃO, Jaime. O sentido da cultura em Portugal no século XIV. In: Os factores na formação de Portugal. Lisboa: Portugália. 1964, p. 161 a 202. 16 Micelli, Paulo. O Ponto onde estamos. Viagens e Viajantes na História da expansão e da conquista. Portugal, Séculos XV e XvI. 2ª edição, Campinas: Unicamp, 1997, p.119.

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eclesiásticas propostas pelo rei de Portugal e a criações de circunscrições eclesiásticas

solicitadas pelo monarca.17

Para Azzi, essa desvinculação quase total com relação à Santa Sé

permitiu que a Igreja brasileira assumisse, nesse período, características próprias e distintas

da Igreja européia, em que as práticas foram mais ortodoxas. No Brasil colonial, a presença

leiga foi bastante acentuada mediante a participação nas confrarias religiosas (irmandades e

ordens terceiras), predominando o aspecto devocional em romarias, promessas, votos e

festas dedicadas aos santos com caráter basicamente social e popular.18

Das ordens religiosas pioneiras, os jesuítas foram os que mais se

envolveram com as festas. Para eles, estas se reverteram em caráter pedagógico de

afirmação das idéias cristãs que propunham difundir e através das quais estabelecer

variadas formas de catequisação do índio e do negro, os quais eram vistos pelos jesuítas

como desprovidos de uma “fé verdadeira”.19 Não podemos sintetizar o sentido das festas e

demais tradições populares na colonização do Brasil apenas no fato de exercerem elas o

papel de facilitadores do processo de catequese. Podemos estendê-lo a um significado mais

amplo e compreender essas manifestações como parte da cultura portuguesa que se

transportava para o Novo Mundo, manifestações que, por sua vez, iam sendo instituídas

lentamente nos diversos lugares, sendo os próprios homens leigos muitas vezes

responsáveis pela instituição dos atos da fé, na falta de padres para desempenharem tais

funções.

Muitas dessas festas costumavam “confundir” as práticas sagradas

com as profanas, tanto nas comemorações externas como nas que eram realizadas dentro

das igrejas. Além das missas com músicas mundanas, sermões, Te-Déuns, novenas e

17 AZZI, Riolando. A instituição eclesiástica durante a primeira época colonial. In: História da Igreja no Brasil. Tomo II/1, Petrópolis: Vozes, p. 170-171. 18 Ibidem.

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procissões, eram partes importantes as danças, os coretos, os fogos de artifício, as barracas

de comidas e bebidas. Na maioria delas a população escrava e/ou negra não perdia a

oportunidade para realizar suas músicas, danças e batuques.20

O final do período colonial, no início do século XIX, foi um

momento particular para as festas populares, pois, com a vinda da família real para o Brasil,

intensificaram-se os festejos em forma de cerimônias públicas pelos motivos mais variados,

como Natal, feitos históricos, festas religiosas oficiais, “mas em todos montava-se a mesma

maquinaria do espetáculo, que transformava realidade em representação.”21 As festas eram

espaços privilegiados para a construção de uma representação da monarquia e se

transformavam em instrumentos estratégicos na afirmação quase diária da realeza. Essa

representação não era uma invenção local, pois tanto os portugueses como os africanos

tinham o costume de participar de cortejos reais e procissões em que coroavam seus reis

simbólicos.22

No Brasil do século XIX, a construção de um Estado nacional, com

suas práticas de controle e supervisão de pessoas e coisas na sociedade, fazia-se juntamente

com a criação de todo um imaginário político que perpassava e que era vivenciado nas

festas cívicas. Nesse Estado, no qual a população aparecia “como um problema a ser

resolvido e enigma a ser decifrado, “a criação de um imaginário político e a educação do

povo”, promovidas pelas festas, eram um processo integrante e indissociável desse Estado

que se fazia na medida em que implementava suas práticas governamentais.23

Em Minas Gerais, que assistiu a uma dinamização de sua economia

e sociedade, nas primeiras décadas do século XIX, com a vinda da família real para o

19 Ibidem, p. 21220 Abreu, Marta. ABREU, Marta C. O Império do Divino. Festas Religiosas e Cultura Popular no Rio de Janeiro 1830-1900. Tese de doutoramento em História Social. Campinas, Unicamp, 1996, mimeo.21 Schwarcz, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador. São Paulo: Cia das letras, 1998, p. 253. 22 Idem

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Brasil, celebrar o poder político, seja na figura do rei e de suas autoridades, seja através das

medidas que ele tomava para governar, colocava a pátria no altar. 24 Essas paradas públicas,

que misturavam a representação da realeza com os festejos profanos e simbólicos, nas quais

comemoravam-se as datas cívicas em torno do Império, multiplicaram-se pelo Brasil.25 No

período colonial, o povo era muito mais intimado do que propriamente convidado a

participar das festas.26 No entanto, nas festas do período imperial, essa imposição cessa, e os

moradores passam de fato a ser convidados pelo poder público a assistir e participar das

comemorações.27

As festas do Divino, através de sua simbologia baseada na figura do

Imperador, do cetro e da coroa, adaptaram-se bem a esse contexto. Mello Moraes Filho

afirmou que desde a fundação do Império os “reis de verdade” dialogavam com os “reis do

imaginário”, os quais, por sua vez, também ajudavam a sedimentar a imagem da realeza

brasileira.28 Em meio aos festejos do Divino, era o pequeno Imperador, vestido com seu

manto verde e usando sua coroa dourada -as cores de nossa bandeira e do manto imperial-

“quem“ dominava no meio de sua corte.29

23 CHAMON, Carla Simone. O Cenário da Festa. Festa cívica em Minas Gerais no século XIX. Varia História. Belo Horizonte, nº 19, Nov. 1998, p. 183-204. 24 Idem.25 Em Pirenópolis, esta simbologia do Império, nas festas do Divino, possivelmente existiu nesse período. No primeiro jornal que circulou na cidade, Matutina Meiapontense, encontramos algumas situações festivas que elucidam a relação das festas com a celebração do Império. Um exemplo foi uma festividade no dia onze de outubro de 1830, na qual celebrou-se festa em homenagem ao aniversário do Imperador. “Várias luminárias foram postas em todas as casas do arraial, lançaram-se muitos fogos no ar, fizeram-se alvoradas e músicas. A matriz estava ricamente ornada e lá, celebrou-se pontificalmente,[ e pregou com tanta atenção que tocou todos os corações]... entoando Te Deum que foi alternado pelo Clero e, os músicos, com benção do Santíssimo Sacramento, que esteve sempre exposto no Throno, ao povo, [que cheio de devoção assistiu pela primeira vez a hum pontifical.(...)]Mais tarde reunidos para o chá, apresentaram-se os Augustos retratos de S. M. o Imperador, e a Imperatriz, e pondo-se todos de pé deu o Sr. Comendador Joaquim Alves vivas a religião, a S. M. o Imperador constitucional, e perpétuo defensor do Brazil, A S. M. a imperatriz, a S. alteza o príncipe imperial e a imperial família... cantou-se imediatamente o Hymno meyapontense(...) “26 Ver DEL PRIORE, op. cit. p. 2627 CHAMON, Carla Simone op. cit.28 Na narrativa do viajante Jean- Baptiste Debret, temos uma rica diversidade de manifestações populares como procissões, folias e inúmeras festas relacionadas à realeza imperial. In: Viagem Pitoresca ao Brasil, Tomo II, vol III, SP: Edusp: 1972.29 MORAES FILHO, Mello. Festas & Tradições Populares no Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia: 1979.

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Procurando demonstrar a grande popularidade da festa do Divino,

no Rio de Janeiro e, conseqüentemente, do Imperador do Divino, na primeira metade do

século XIX, o folclorista Câmara Cascudo defendeu ter sido este o motivo que levou José

Bonifácio a decidir pelo título de Imperador para o chefe político do país. “O povo estava

mais habituado com o nome de ‘Imperador’ (do Divino) do que com o nome de ‘Rei’. ”30

O viajante austríaco Phol também associou os dois títulos,

declarando que devia ser notável no Brasil a festa do Espírito Santo, pois em parte de suas

comemorações antecipou muito o título de Imperador, antes que D. Pedro de fato o

aceitasse.31

Martha Abreu, no entanto, sugere aproveitar esta suspeita, que não

se comprovou, sobre uma possível confusão simbólica entre os Imperadores - especialmente

pelo hábito de se coroarem meninos nas festas - pois propunham uma íntima relação entre o

mundo da política e o da religião. Invertendo a sugestão, acredita que seria válido pensar na

utilização religiosa de um momento político. Ou seja, a maior popularidade do Divino

Espírito Santo diante de outras comemorações também não poderia ser atribuída a uma

identificação desta festa com o início de um novo Império nas Américas -jovem e

promissor- onde cada festa anualmente renovaria as esperanças de “todos” por um futuro

melhor, através da alegria, do riso e da coroação de um novo Imperador?32

Em Pirenópolis, a instituição e propagação da festa do Divino

Espírito Santo, adquiriu características bem peculiares à sociedade organizadora e

participante. Esta cidade, no início, chamava-se arraial das Minas de Nossa Senhora do

Rosário de Meia- Ponte33, anos depois apenas Meia-Ponte. Assim como os inúmeros

30 CASCUDO, Luis da. Dicionário do Folclore Brasileiro. Belo Horizonte/São Paulo. Editora Itatiaia/USP: 1988, P. 294. 31 PHOL, Emanuel. Viagem ao Interior do Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia: 1976, p. 47. 32 ABREU, Martha. Op. cit.33 Esse nome é bem característico da época, na qual costumava-se dar o nome de uma santo ao lugar descoberto. Quanto a Meia- Ponte, a tradição oral atribui ao fato de os primeiros desbravadores portugueses

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arraiais goianos que surgiram no século XVIII, na então capitania de São Paulo, viveu as

glórias, os conflitos e o esgotamento de suas minas de ouro, já no final deste século. Nesta

localidade, assim como em tantas outras, a escassez do ouro provocou mudanças que

alteraram o número de habitantes, a economia e a própria sociedade.

Até a 1ª metade do século XIX, Meia Ponte era o segundo maior

núcleo urbano da província de Goiás. Possuía diversos prédios públicos e eclesiásticos,

biblioteca, casa de câmara e cadeia, inúmeras casas e uma vida urbana com uma dinâmica

própria, que tinha as festas cívicas e religiosas como a maior expressão de sua

sociabilidade, nas quais reuniam-se as diversas famílias locais e a população em geral.34

Na economia, o comércio foi a principal atividade econômica local combinada com a

pecuária e a agricultura do algodão, da cana-de-açúcar e do fumo, que não chegaram a

constituir uma lavoura de exportação.35 Essa dinâmica urbana experimentada por Meia-

Ponte, nesse período, foi em grande medida influenciada, na primeira metade do século

XIX, por Joaquim Alves de Oliveira, comerciante, escravocrata e fazendeiro que muito

auxiliou a inserção local e regional no contexto nacional.36

No final do século do XIX, nosso ponto de partida para

compreender a relação dessa sociedade com os festejos do Divino, Pirenópolis37 passava

por outras experiências. Nesse período, já não era a segunda maior cidade, nem tampouco

tinha relevância na economia regional. Este momento é caracterizado pelo surgimento e

dinamização de outras cidades, e o espaço que lhe cabia era bem menor que antes.

terem atravessado apenas metade uma ponte de pau que ligava as duas partes do arraial, sendo que a outra havia sido levada pela chuva. 34 Muitas dessas características foram citadas pelos inúmeros viajantes que visitaram Meia Ponte, como é o caso de Saint-Hilaire, Emanuel Phol, e D’Alincourt. 35 COSTA, Kelerson Semerene. MEIA-PONTE. Impactos sócio ambientais da mineração do ouro na província de Goiás. 1881-1887.Dissertação de mestrado UNB, Brasília, 1995. 36 Algumas iniciativas de Joaquim Alves foram a compra de uma tipografia, que imprimiu o primeiro jornal goiano: Matutina-meiapontense, defensor das idéias do partido moderador, além da coordenação da guarda nacional local, da instituição de uma biblioteca pública, de uma banda de música, entre muitas outras iniciativas.

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Contudo, internamente, Pirenópolis continuava a se desenvolver com características bem

peculiares à sociedade que a compunha.

Um dos códigos de posturas da cidade,(1888) em vigor desde o

final do século XIX até as primeiras décadas do século XX, indicava uma sociedade em

que os espaços rural e o urbano não estavam muito bem definidos. Se, por um lado, havia

itens que determinavam até o tipo de casas que deveriam ser construídas, assim como

multas para quem não cuidasse do reparo e da reforma das fachadas e das calçadas, por

outro, havia a proibição da circulação de porcos, cães e cavalos pelas ruas, num sinal claro

de que esses fatos eram constantes. A condenação da atitude de jogar animais mortos pelas

ruas e praças, de colocar couros para secar na rua e de lavar roupas, animais e miudezas

em regos públicos38 revela que nesta cidade as atitudes higiênicas, urbanas e “civilizadas”,

fortemente defendidas na época, ainda não estavam definidas.

Um dado interessante é que, até o início do século XX, muitas

dessas características permaneceram. Em 1924, o conselho municipal proibia a

permanência de gado vaccum, muar e cavallar nas ruas da cidade à noite, e o proprietário

ficava sujeito à apreensão do animal, além da obrigação do pagamento de multas. Pela

mesma lei o intendente municipal ficava autorizado a fechar as entradas da cidade pondo

cancelas nas estradas a fim de evitar a introdução nas ruas dos referidos animais.39 Essas

questões possibilitavam um contraste bastante expressivo, uma vez que, nesse mesmo

período, outras leis indicavam mudanças significativas no cenário urbano, como impostos

sobre automóveis que circulassem pelas ruas, assim como por todo automóvel particular

mantido na cidade40. Um outro aspecto relevante foi o início do processo de instalação da

37 Um decreto provincial, assinado em 27-02-1890, alterou o nome da cidade para Pirenópolis. Coube aos grupos locais a iniciativa da discussão e defesa da mudança. 38 Código de Posturas municipal. Lei Nº 181 de 26 de setembro de 1888.39 Lei nº 20 de 7 de março de 1924.40 Lei nº 32 de 8 de março de 1924

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rede elétrica, que exigiu várias leis e discussões na Câmara Municipal local.41 Essas

questões nos revelam diversos aspectos dessa sociedade. Se, por um lado, as características

rurais estavam imbricadas e faziam parte das transformações urbanas, por outro, a cidade

se dinamizava e aos poucos mudava o seu cenário.

As festas foram as grandes expressões da sociabilidade desta

sociedade. Acreditamos que a festa do Divino ocupou um espaço privilegiado entre as

comemorações religiosas desta cidade e, calcada no sincretismo, na diversidade simbólica

e na circularidade, cultural organizou formas específicas que estiveram todavia relacionadas

com a sociedade participante. Um olhar feminino sobre essa dinâmica cultural de

Pirenópolis ligada às festas, foi o de Rosa das Dores, Inhazinha, que morava em Corumbá

e era da família Fleury Curado, da qual alguns membros moravam em Pirenópolis. A sua

narrativa é a única fonte localizada que refere-se diretamente à festa do Divino e a formas

de participação neste evento em Pirenópolis no século XIX e nela temos elementos

importantes que comprovam a existência da festa e parte de sua dinâmica.

Inhazinha se submetia a longas viagens para assistir a festas em

Pirenópolis (na época Meia Ponte) e Jaraguá, e não foram raras as vezes em que descreveu

em seu diário42 a participação em óperas, saraus, cavalhadas e procissões. Em abril de

1856, apenas como exemplo, foi a Meia Ponte para assistir à festa dos Passos, no dia 2. No

dia 3, dia de Nossa Senhora das Dores, foi à Via Sacra. No dia 5, Domingo de Ramos, teve

tarde de procissão e à noite foi beijar o Senhor dos Passos. No dia 10, sexta-feira, foi à

procissão do Senhor Morto e à noite foi beijá-lo. No dia 12, Domingo da Ressurreição, foi à

missa cantada. No dia 13, retornou juntamente com a sua família para Corumbá.

Em inúmeras outras vezes, Inhazinha voltou a Meia Ponte para

assistir a peças, óperas e também para participar dos festejos do Espírito Santo, que são

41 Lei nº 9 de 12 de janeiro de 1924.

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constantes em seus relatos. Não pudemos perceber se as suas inúmeras idas a Meia Ponte

tinham algum motivo especial. Jovem e solteira, era concisa em suas descrições e se

restringia a demonstrar os seus sentimentos em observações gerais da sua experiência

coletiva.

No ano de 1880, após a morte de sua mãe, em Corumbá, ela mudou-

se para Meia Ponte. De fato, essa personagem representava um universo feminino que não

era comum para a época. Embora tenha cursado apenas o primário, apreciava boas leituras,

conhecia os poetas e músicos de seu tempo. (Até mesmo a música de Carlos Gomes ela

mencionou em seu diário) Não se casou, é bem provável que por opção, uma vez que não

era difícil promover o casamento de uma jovem da “boa sociedade”, nessa época, mesmo

das menos “apessoadas.” Inhazinha transitava pelos salões da província, além de viajar

para outras com sua família, como relatou inúmeras vezes. Começou a escrever em seu

diário com quatorze anos e fez disso uma prática cotidiana até os quarenta e seis. A sua

postura possivelmente ilustra o papel de algumas mulheres na sociedade goiana do século

XIX, as quais se dedicavam a cuidar dos pais, irmãos e sobrinhos e da recepção de parentes

distantes e amigos.

Inhazinha visitava a todos, comentava o estado de saúde da

família, suas alegrias, seus problemas e notificava os principais acontecimentos, como

casamentos, batizados, nascimentos e mortes. Na sua vida, as festas tinham um lugar

especial, tanto é que ela relatava todas das quais participava, com exceção daqueles

momentos difíceis pelos quais passou, como a perda de vários familiares.

Inhazinha nos possibilita citar as diversas famílias locais que

desempenharam importantes papéis nas festas religiosas, especialmente na do Divino

Espírito Santo, uma vez que a maior parte das iniciativas ligadas às questões culturais

42 Diário (manuscrito) de Rosa das Dores Fleury Curado 1850-1886.

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provinha delas. Entre essas famílias, podemos citar os Sá, os Siqueira, os Pereira da Veiga,

os Pereira Valle, os Mendonça, os Fleury e os Pina. Eram eles que ocupavam os cargos

públicos, dominavam o comércio, a instrução, a propriedade de muitas terras e até cargos

eclesiásticos.

Esta festa do Divino, se caracterizou como um evento em cujos

preparativos, organização e participação havia um grande envolvimento da comunidade

local. Mas o que constituiu a sua identidade, em relação às outras festas, foi a escolha (ou

sorteio) de uma pessoa da comunidade, do sexo masculino, para ser o Imperador do Divino

e o festeiro, que se encarregaria da maior parte dos gastos e da sua organização geral. O

Imperador não se restringe apenas ao papel de festeiro: a ele é dado um poder simbólico

que o faz o personagem central dessa festa; ele comparece a todas as cerimônias, possui

lugar privilegiado nos assentos da Igreja, e o seu nome é constantemente divulgado em

programas da festa ou nas conversas entre as pessoas, na rua ou nas portas das casas. Em

Pirenópolis, esses aspectos podem ser observados através da verificação da relação dos

Imperadores do Divino, contidos em uma listagem que abrange desde 1819 até os dias

atuais.43 Por esta listagem, os festejos do Divino só teriam começado neste local no início

do século XIX, o que é bem pouco provável, pois em todo o Brasil, desde o início da

colonização, essas festas aconteciam das mais diferentes formas e em uma diversidade de

lugares. No que se refere aos Imperadores do Divino relacionados nela, uma grande parte

deles pertencia aos principais grupos familiares locais, e até o início do século XX muitos

deles possuíam títulos da guarda nacional, como capitães, majores, coronéis, tenentes,

comendadores, alferes, sendo que a maior parte eram comerciantes, fazendeiros,

magistrados, políticos; outros eram professores, artistas e até padres.

43 Ver Anexo I

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É possível imaginar que grupos familiares locais disputaram com

muito afinco o cargo de Imperador do Divino. O envolvimento nestas questões festivas

determinava o nível do poder econômico destes grupos e colocava-nos em destaque,

favorecendo os negócios e a política e aumentando o prestígio diante dos demais

habitantes.

A família Pina, espalhada, nos dias atuais, por várias regiões do

Brasil, é uma das mais importantes em Pirenópolis, (e concorreu muitas vezes ao cargo de

Imperador do Divino) nesse processo analisado. Ela se caracterizou pelo grande número

de membros e pela relevância política e cultural conquistada na região desde o início da

sua organização social local.44 Pela sua extensão, já no final do século XIX, possuía

membros das mais diversas classes sociais: um grupo significativo dedicou-se à

agropecuária, ao comércio e sobretudo às atividades liberais e intelectuais, como a

política, o magistério, a magistratura e a música.45 Tiveram bastante destaque em

Pirenópolis, no século XIX, em vários aspectos desta sociedade, assim como nas festas do

Divino Espírito Santo. Embora não tenha sido o único grupo familiar a participar

ativamente desta festa, em função de ter sido ela bastante concorrida (e ainda, de certa

forma, o é) foi um dos principais que contribuíram para a realização dela direta ou

indiretamente.

É relevante considerar o papel dos grupos familiares, sobretudo o

da família Pina, nessa festa, uma vez que foram os conflitos existentes, os acordos entre

44 JAYME, Jarbas. Famílias Pirenopolinas. {Ensaios Genealógicos}, Goiânia, UFG, 1973. Vols1, p. 247.45 Jarbas Jayme, historiador local, em estudo histórico sobre Pirenópolis, apontou numa seleção dos homens que mais se destacaram no cenário meiapontense, no século XIX, os nomes dos principais moradores do local, os quais denominou de “Meiapontenses Ilustres”, entre eles o Capitão Antônio Luiz de Pina, nascido a 24 de junho de 1827, o capitão Braz Luiz de Pina nascido em 1804, filho do pioneiro Fidêncio Graciano de Pina e de Maria da Conceição da Rocha, o Capitão Bráz Luís de Pina Júnior, nascido a 8 de março de 1825,”latinista, grande professor e advogado”, Braz Aristófanes de Pina nascido a 23 de agosto ,”Farmacêutico e professor dos mais competentes”, o Major Fidêncio Graciano de Pina, natural do Rio de Janeiro, “genearca de ilustre projênie” e Teodoro Graciano de Pina, nascido a 28 de fevereiro de 1828.

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eles e a Igreja e as suas atuações dentro do ritual que imprimiram nela uma marca

bastante peculiar. A organização e o controle desta festa foram as formas de esses grupos

estabelecerem suas relações e alianças e demonstrarem poder, tornando-se a expressão

legítima dessa sociedade que a organizou. É importante compreender, também, que a

festa tornou-se um espaço múltiplo, onde os diversos tipos de culturas existentes na

sociedade puderam ser enfrentados, multiplicados e fundidos através das representações

simbólicas de cores, eventos e personagens que constituíram estes festejos. Sobre essas

questões falaremos a seguir.

1.2- As Festas dentro da Festa

A festa do Divino, em Pirenópolis, estruturou-se a partir de uma

diversidade de personagens, símbolos e eventos que, dinamizados pela sociedade local,

adquiriram inúmeros significados. Acreditamos que estes festejos foram grandes

polarizadores de outras “festas”, em todo o Brasil, cuja herança ibérica e sincrética reuniu

no palco das festas os mais diferentes elementos da cultura popular e erudita, construindo

uma cultura heterogênea e multifacetada. Neste capítulo vamos apresentar várias dessas

manifestações, pois, são elas que compõem e identificam a festa estudada. Esses vários

ícones em torno dos festejos do Divino acompanharam, no Brasil, diversas outras festas do

tipo, que em um mesmo evento reuniam procissões, fogos, novenas, teatros, reinados,

cavalhadas, folias... Em Pirenópolis, percebemos que os festejos do Divino reuniram várias

dessas manifestações, uma parte delas comuns a outras festas, como é o caso das procissões,

do levantamento de mastros, dos fogos, das novenas, dos teatros e outros, que adquiriram

significados específicos e singulares, por exemplo, as folias, os reinados e juizados e as

cavalhadas. Entendemos que tanta multiplicidade dinamizou-se nesta festa e ao longo do

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tempo foi sendo recriada a partir de momentos de mudanças, conflitos e também de

acordos e concessões por parte dos grupos políticos, familiares e eclesiásticos do local.

Para apresentar e discutir essas várias festas dentro da Festa do

Divino, em Pirenópolis, utilizamos uma documentação diversa. Porém, como não foi

possível localizar documentos sobre os modos de organização específicos de cada um

desses eventos, optamos por abordagens diferenciadas na análise deles. Em alguns casos,

iremos nos apropriar da tradição oral construída em torno desses eventos para podermos

explicá-los, pois acreditamos que muitos desses costumes simbólicos são parte de uma

tradição local que procurou, na repetição desses modos de representação, oportunidades

para a “preservação” de uma identidade cultural ligada aos festejos do Divino. Reservamos

o último capítulo deste trabalho para discutirmos essas questões especificamente. Em

anexo, estão diversos programas da festa do Divino, que recolhemos a partir de 1957 até os

anos 90. Eles nos demonstram um pouco dessa riqueza ritual e simbólica que se estruturou

em torno dos festejos do Divino Espírito Santo.

1.2.1 - Os Giros das Folias.

As folias do Divino são rituais de peditório de esmolas com que se

percorrem regiões rurais em busca de donativos para os festejos urbanos, donativos que

podem ser em forma de dinheiro, alimentos ou objetos para leilões.46 No Brasil, outra folia

46 De acordo com a definição de Câmara Cascudo, folia era em Portugal uma dança rápida, ao som do pandeiro ou adufe, acompanhada de cantos, podendo ser também sinônimo de bailes. Posteriormente, foi adquirindo outros significados, como o de um grupo de homens, usando símbolos devocionais, acompanhando com cantos o ciclo do Divino Espírito Santo, festejando-lhe a véspera e participando do dia votivo. In: CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo; Melhoramentos; INL, 1979 p. 335-336. Algumas das primeiras referências sobre as folias no Brasil foram dadas pela pesquisa de Mello Moraes Filho, segundo o qual “guarridos” foliões dispersavam-se em bandos no interior da Província do Rio de Janeiro, no século XIX, por vales e serras, estradas e povoados, meses antes da festa do Espírito Santo,

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bastante conhecida é a de Reis, no mês de janeiro, que representa a peregrinação dos três

reis magos até o lugar de nascimento do Menino Jesus. Ambas se diferenciam em vários

aspectos; o principal deles é que, ao contrário da folia de Reis, que gira à noite, as folias

do Divino giram durante o dia, sendo que a cada noite o grupo de foliões realiza um pouso

em determinados lugares previamente estabelecidos.

Existem várias versões sobre a origem das folias do Divino. A mais

consistente entre todas é a de que partiu da própria Igreja a iniciativa de instituí-las como

uma forma de estender as cerimônias religiosas até os moradores de fazendas, sítios e

chácaras. Acreditamos que em Pirenópolis47, elas sejam tão antigas quanto a própria festa

do Divino. Atualmente, a festa tem duas folias: uma, que percorre as ruas da cidade em

busca de donativos para os festejos, e outra, que faz o giro por chácaras e fazendas.

Niomar Pereira, que visitou essa festa nos anos 80, afirmou que a folia de rua, naquele

tempo, saía no Sábado de Aleluia e no Domingo da Ressurreição e era dividida em duas

partes. Uma saía com a banda de música, e a outra com a bandeira. A folia da “roça” saía

mais próximo da Festa do Divino, embora não tivesse data fixa. Eram vários foliões

acompanhados de violas, sanfonas, pandeiros e caixas; eram recebidos na cidade, ao fim

angariando esmolas para as festas das capitais dos municípios de acordo com os festeiros e segundo donativos das populações.MORAES, Mello Filho. Festas e Tradições populares no Brasil. Belo Horizonte; Ed Itatiaia; São Paulo; Edusp, 1979 p. 39 Outra referência à folia, desta vez literária, também do Rio de Janeiro, está no romance de Manuel Antônio de Almeida que se refere a ela descrevendo trajes, instrumentos, e peditório de esmolas, definindo-a como prenúncio da festa do Divino: ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um Sargento de Milícias. (Texto Original: 1ª ed. 1854; 2ª ed. 1855) São Paulo, Ática, 31ª edição, 1998 p. 67. Em Goiás a primeira referência à folia do Divino que encontramos foi em Saint-Hilaire, que em julho de 1819, ao voltar de Goiás para São Paulo, por Meia-Ponte, atravessou a floresta chamada “Mato Grosso de Goiás e, encontrou homens a cavalo, um deles com uma bandeira, outro com um violão e outro com um tambor os quais levavam burros carregados de provisões. Era a folia do Divino que saía de Curralinho a angariar donativos para a festa a se realizar em agosto. Segundo Saint- Hilaire, já naquele tempo, para atrair bastante gente, se celebrava a Festa do Divino em datas diferentes; observou, ainda, que a cada ano, no fim da festa, tirava-se a sorte para escolher o Imperador do ano seguinte. Para cobrir os gastos ia-se ou mandava-se um grupo de homens a colher ofertas em toda a região, levando músicos e cantores que, em cada habitação ou fazenda, com louvores do Espírito Santo, pediam ajuda; às tropas encarregadas de fazê-lo se dava o nome de Folia; SAINT-HILAIRE, August, op. cit, 1975 p. 24.

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de mais uma folia, com um foguetório, e ao chegar à casa do Imperador cantavam,

entregavam a bandeira e as esmolas para ele.48

Alguns depoimentos que recolhemos ao longo da pesquisa nos

demonstram que a folia de rua (urbana) existe em Pirenópolis, pelo menos nos últimos 40

anos e, sem dúvida, teve desdobramentos bastante peculiares. No caso da folia rural, a sua

existência remonta ao século XIX e possivelmente já acontecesse em períodos bem

anteriores. Em outras cidades, nem sempre existiram duas folias, como em Pirenópolis; na

cidade de Goiás, por exemplo, atualmente só existe uma folia, que percorre o perímetro

urbano e as regiões mais longínquas. É possível imaginar que em Pirenópolis aconteceu

um processo diferenciado, que indica tanto a dinamização de grupos em torno das folias,

como a existência de conflitos que possivelmente resultaram na criação de dois grupos

distintos, cada um ligado a interesses diferentes. O código de posturas desta cidade,

aprovado no final do século XIX e que vigorou até as primeiras décadas do século seguinte

(1888), nos dá algumas pistas da existência das Folias do Divino, embora não especifique

se elas eram urbanas ou rurais. O artigo nº 86 desse código previa multas de 5$000 réis

para todos aqueles que tirassem esmolas para as festas durante as folias, com exceção para

as folias do Espírito Santo.49 Possivelmente, esta folia neste período representasse uma das

principais entre as demais por fazer parte dos festejos do Divino ou por ser organizada

diretamente pela Igreja.

As folias do Divino, como todo ritual de religiosidade popular,

estabeleceram determinadas relações simbólicas, que estiveram associadas aos grupos que

com elas se envolveram. Muitos desses símbolos, no entanto, pertenceram a uma atávica

herança cultural, como é o caso da bandeira do Divino, de cor vermelha com a pomba

48 PEREIRA, Niomar & JARDIM, Mára Públio de Sousa Veiga. Uma Festa Religiosa Brasileira: Festa do Divino em Goiás e Pirenópolis. São Paulo, Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1978, p. 7349 Código de posturas de 1888 (manuscrito).

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branca, que representa essa divindade, bordada ou pintada ao centro. Outras bandeiras

parecidas são usadas também nas festas urbanas, mas nas folias elas assumem a centralidade

do ritual.

O início de uma folia obedece sempre a etapas previamente

estabelecidas pelos grupos envolvidos. A primeira delas é a escolha das fazendas que darão

os pousos para os foliões; esses pousos são negociados por representantes da folia, que em

Pirenópolis receberam o nome de alferes. Dias depois, esses grupos iniciam o giro, na

cidade ou nas fazendas. Geralmente são oito pousos que compõem os giros das folias rurais.

A distância entre uma propriedade e outra é também previamente analisada, de modo que os

giros percorram progressivamente da propriedade mais distante para a mais próxima da

cidade.

Durante o giro, são carregadas duas bandeiras do Divino por dois

alferes à frente do grupo. Segundo a tradição oral local, essas bandeiras nunca se cruzam:

se a propriedade fica do lado esquerdo, a bandeira que entra na casa é a que está do lado

esquerdo; se está do lado direito, é a bandeira da direita que toma a frente. Ainda na

chegada, os foliões realizam uma cavalgada em forma de S, obviamente sem deixar cruzar

as duas bandeiras. Em seguida, os músicos da folia, em versos musicados, pedem ao dono

da casa que os deixe entrar e levar até ele e seus familiares a bandeira do Divino. O dono da

casa, que já está preparado para receber os foliões, aceita o pedido, e aí começa a festa.

Algumas variações desses eventos acontecem, quando o dono da casa guarda um segredo

para os foliões logo na entrada. A existência desse segredo está identificada com um

símbolo qualquer em arco de flores na entrada da casa. O segredo, que é uma garrafa de

cachaça, fica enterrado numa cova e deve ser procurado pelos foliões. A bandeira que

conduziu o ritual é colocada em um altar, e ali várias pessoas vão beijá-la, rezar e doar

esmolas.

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Embora o objetivo firmado por esses grupos precatórios seja a coleta

de esmolas, a cerimônia não se resume só a isso, pois, para os foliões, ela representa tanto a

oportunidade de prestar homenagem a esta divindade como de festejar a oportunidade de

encontro de amigos. Algumas danças também compõem o ritual, como é caso da catira,

dança muita difundida por todo o interior de Goiás; a outra é o xá. Outras danças também

incorporaram-se a essas folias, como o forró. No entanto, o catira e o xá são danças de

apresentação dos foliões, das quais o público assistente normalmente não participa. Um

pouco mais tarde, depois de os foliões terem tomado banho e descansado um pouco da

longa cavalgada durante todo o dia, o dono da casa oferece a eles um farto jantar, o qual é

precedido e finalizado com o agradecimento da mesa por todos os presentes. Desse jantar

normalmente participam o dono do pouso e os foliões (as mulheres, com poucas exceções,

não participam desse momento; a elas são reservadas as tarefas de organização da casa,

dos enfeites e do jantar). Nos dias atuais, essa cerimônia se restringe a essas pessoas, pelo

fato de, na maior parte dos pousos, estar presente um grande número de moradores da

cidade, o que abriu “mercado” para as barraquinhas e quiosques. Porém, pelos depoimentos

que coletamos, esse fenômeno é uma característica dos últimos vinte anos, o que

possivelmente fazia dos pousos anteriores uma oportunidade de congregação de diversas

pessoas em torno de lautos jantares promovidos por fazendeiros locais para a comunidade.

Após o jantar e o agradecimento da mesa, uma última cerimônia ritual acontece na noite:

durante ela, interrompe-se qualquer tipo de som, reservando-se espaço apenas para o toque

das violas e violões dos músicos, que vão pedir esmolas para o Divino. O pedido de esmolas

estende-se de acordo com a participação das pessoas. Cada um que pegar ou beijar a

bandeira ganha um verso improvisado pelos músicos que a ele pedem a esmola. Ao fim dos

versos cantados, a pessoa entrega qualquer quantia em dinheiro ou objeto aos foliões e

novamente é agradecida pelos músicos. O fim dessa cerimônia indica o começo de uma

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grande festa que não tem hora para acabar; dela participam todas as pessoas presentes,

dançando, cantando e bebendo. Esses desdobramentos da folia que, ao que nos pareceu,

tiveram sempre o mesmo desfecho, serão profundamente criticados por padres da Igreja

Católica, os quais, a partir do final do século XIX, irão ser orientados por posições mais

ortodoxas em relação a essas questões que eles chamaram de “excessos” e “abusos” da fé.

Sobre isso discutiremos nos próximos capítulos.

A Folia do Divino, tornou-se um dos eventos de maior popularidade

em Pirenópolis. Nela, os limites da religiosidade popular expressa nas rezas, nos cânticos e

na fé na bandeira do Divino estiveram imbricadas com a prática de danças e do consumo

excessivo de bebidas alcóolicas. Para as pessoas que estiveram envolvidas ao longo de suas

vidas com essas folias todas essas questões compuseram a sincrética fé no Divino Espírito

Santo, evidenciando-se aí que os limites entre o sagrado e o profano não podem ser

definidos.

1.2.2-Autos, Danças & Contradanças

Em Pirenópolis, desde o século XIX existiu um movimento local

em torno de espetáculos de teatro que aconteciam na cidade, principalmente na ocasião das

festas. Um indício desse movimento foram os artigos específicos dos códigos de posturas

da cidade os quais, além de estabelecer normatizações para esses eventos, previam o

pagamento de licença prévia à Câmara.50 Durante as primeiras décadas do século XX, a

Câmara Municipal previa essas licenças em torno de 15$000 por noite de espetáculo de

cinema ou de teatro, sendo que, se esses espetáculos fossem com fins religiosos, sem fins

lucrativos ou em benefício de obras públicas, estariam isentos de taxas. Não verificamos

altas arrecadações de espetáculos nos balancetes da Prefeitura de Pirenópolis: em alguns

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anos não ultrapassaram os 30$000 anuais. Contudo, entendemos que esse movimento em

torno do teatro e demais apresentações existia, embora não fosse com fins lucrativos. Essa

dinâmica de questões esteve ligada à iniciativa de párocos e principalmente de famílias

locais. Um exemplo disso é o primeiro teatro da cidade, que foi fundado em 1860 pelo

comendador Manuel Barbo de Siqueira e que já no final do século XIX estava em ruínas.

O segundo teatro, fundado em 1899, era propriedade de Sebastião Pompeu de Pina;51

como era localizado no largo da matriz, transformou-se em importante espaço de

sociabilização local52. No início do século seguinte, em 1919, foi fundado por um pároco

local, Pe Santhiago Uchôa, o terceiro teatro local, que depois recebeu o nome de Cine-

Teatro Pireneus53, adquirido anos mais tarde por um particular. Foi palco de muitas peças

locais, especialmente na ocasião de festejos religiosos.

Essas iniciativas particulares revelam que esses eventos eram

importantes oportunidades de sociabilização, principalmente da seleta sociedade com a

qual esses grupos familiares estiveram relacionados. O diário de Inhazinha mais uma vez

nos oferece pistas dessas questões levantadas. Em vários relatos, afirmou gostar de ir a

Meia Ponte para assistir a peças de teatro. Uma das vezes em que visitou a cidade, disse

que voltou, depois de ter estado lá a menos de um mês atrás, para assistir a umas óperas.

Na oportunidade, foi visitar o major Teodoro Baptista e à noite assistir um drama chamado

de Ignez de Castro o qual considerou bem representado. No dia seguinte, 7 de junho, foi à

ópera assistir a um drama de um monge, o qual julgou muito engraçado. No dia 8 assistiu

novamente ao drama de Ignez de Castro.

50 Art. Nº 75 do código de posturas de 1888.51 JAYME, Jarbas. Esboço Histórico de Pirenópolis. Pirenópolis, 1971 p. 152-153 52 Este teatro tornou-se propriedade do patrimônio do Município, nos anos 70, e anos depois do tombamento da cidade como monumento nacional foi completamente restaurado; hoje é palco de um importante auto que acontece durante os festejos do Divino: As Pastorinhas. 53 JAYME, Jarbas. op. cit, 1971 p. 152-153.

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Outros aspectos que nos revelam essa dinâmica em torno do teatro

são as várias apresentações durante os festejos do Divino. Entre tantas peças e autos

podemos citar o drama “Demofonte”, representado em maio de 1837, em junho de 1878 e

em 24 de maio de 1896. Outros dramas também foram representados, como “Aspásia”,

em 3 de junho 1837, o “Fantasma Branco”, em 9 de junho de 1867 e em 24 de maio de

1885, juntamente com a “Estátua de Carne,” “O poder de Ouro” e “Graças a Deus”, em

24 de maio de 1874, para citar apenas alguns.54

Quase um século depois, o jornal o “Mensageiro”, que circulou

em 1976, com matérias especiais sobre a festa do Divino, trouxe informações que

demonstraram a importância dessas peças de teatro para a seleta memória histórica local,

a partir de uma específica, julgada a mais famosa do lugar e que, por sua vez, era

representada “nos tempos antigos”, por ocasião dos festejos do Divino, e inclusive o seria

naquele ano.:

“ ARTAXERXES VOLTA AO PALCO

A ópera de Artaxerxes foi encenada em Pirenópolis, então

Meia Ponte, no ano de 1846, com partituras e diálogos escritos por José Ignácio

Nascimento. Em 1850 voltou a ser apresentada, tendo sido acrescentadas outras 3 árias

ao conjunto, escritas pelo pe. João Gomes, durante a festa do Imperador capitão José

Gomes de Siqueira.

Depois de longo tempo a peça voltou a ser apresentada ao

público pirenopolino em 1891 e depois em 1916, no início deste século. Quando foi

Imperador da festa, no ano de 1936, o Dr. Braz Wilson Pompeo de Pina voltou a

apresentar a Ópera de Artaxerxes repetindo em 1952, quando a festa foi comandada

por seu filho Pompeo Christovam de Pina.”55

54 JAIME, Jarbas. Esboço Histórico de Pirenópolis p.p. 610-61755 Jornal o MENSAGEIRO, 1976; P.P. 2

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O costume de representar peças e autos e de exibir filmes por

ocasião dos festejos do Divino, difundiu-se por todo o século XX. No Programa de 195756

anunciavam-se sessões corridas e gratuitas com filmes especiais no Cine Pireneus, que

tinha sido arrendado pelo Imperador. Nos dias 9 e 11 de junho, apresentação da revista as

“Pastorinhas” e nos dias 10 e 12 apresentação da comédia “A família Linhares”, sob

direção técnica de Benedito Pompeo de Pina.

Em 1969, além das “Pastorinhas” anunciava-se a apresentação do

drama “O mundo não me quis” para os dias 26 e 28 de maio, sob a direção do Dr. Edgar

Jayme57. Em 197258 as “Pastorinhas” eram anunciadas sob a direção da professora Neves

Bárbara Brandão. Em 197959 foi a vez da peça “Ópera Joco-Seria” em dois atos:

“Guerras do Alecrim” e “Mangerona”, de Antônio José da Silva (judeu) além de tardes

esportivas, inúmeras serenatas pela cidade e desfiles de danças típicas na porta da Matriz.

Essas danças, tal como o programa apresentava, compreendiam Contradança, Catira,

Lundu, Vilão, Súcia, Congada, Congos & Tapuias.

A apresentação de danças compôs a programação de muitas dessas

festas. Nos anos 70 e 80, vários Imperadores promoveram verdadeiros festivais de danças

“folclóricas”. Em 1979, todos os dias de festa tiveram danças “típicas” na casa do

Imperador. Em 198060, além das inúmeras danças anunciadas nos anos anteriores, o

Imperador prometia também catira na casa dos juízes da novena. Porém, já a partir dos

anos 80, retiraram-se do programa as danças de Vilão e Súcia, conservando-se apenas as

outras citadas.

56 Ver anexo II57 Ver anexo III58 Ver anexo V59 Ver anexo VI.60 Ver anexo VII

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45

Em 198561, a programação anunciava, além das “Pastorinhas”, um

torneio de catira e a peça “O Santo e a Porca” em vários dias. Neste ano, os grupos

chamados de “folclóricos” se apresentariam no campo das cavalhadas, fazendo abertura

daquele evento. Inúmeros fogos, mascarados e barraquinhas de leilões também eram

esperados. Muitos outros eventos fizeram parte dos festejos do Divino de Pirenópolis e,

como a maior parte deles foi e ainda é de iniciativa de grupos particulares, variaram muito

de ano para ano62. Até uma revoada de pombos fez parte da programação de uma dessas

festas63. A música e o teatro foram elementos chaves desses festejos; sem eles

possivelmente, aos olhos de muitos, a festa não teria o brilho e o prestígio necessários.

Entre todos esses autos e danças, o que conseguiu definir o seu

espaço na festa como legítimo foi o drama “As Pastorinhas”.

A obra de Jarbas Jaime, publicada nos anos 70, apresenta a versão

de que, no início dos anos 20, um telegrafista nordestino que visitava Pirenópolis encenou

a peça “As Pastorinhas”64: auto próprio do Natal e muito difundido no Nordeste. Porém,

como não quis emprestar o texto para os artistas locais, que muito se interessaram pela

novidade, Joaquim Propício de Pina irá copiar o auto (às escondidas) que até os dias

atuais é encenado durante os festejos do Divino.65

61 Ver Anexo XII62 Nos anos de 1983 e 1984, a programação divulgada da festa foi apenas a religiosa, e quem assinou o respectivo programa foi o pároco local da época: Frei Primo Carrara. Isto só confirma a hipótese de que a promoção das peças teatrais e das danças típicas estava sob o controle dos grupos familiares e artísticos locais. 63 Ver Anexo XVI 64 De acordo com a definição de Frade, as Pastorinhas, ou Pastoril; são um auto natalino que fora comum em todo o Brasil, sendo que nos dias atuais tem existência precária e difícil, principalmente no Norte e Nordeste. Distinguem-se dos bailes pastoris por ser um auto completo, com danças e loas, partes denominadas “jornadas”. As pastorinhas exibem-se em tablados ou teatrinhos próprios, e frequentemente em seu enredo cantam-se jornadas alheias ao espírito votivo. No Nordeste, Alagoas e Pernambuco rivalizavam os cordões azul e encarnado. Por vezes, eram interpretados por adultos ( e até meretrizes no Recife), ao contrário dos bailes pastoris, que preservaram a tradição do elenco infanto-juvenil. In: FRADE, Cáscia et alli. BRASIL; Festa Popular. Rio de janeiro; Livroarte, 1980 p.p. 19 65 JAYME, Jarbas. Op. cit. p. 616.

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As pastorinhas de Pirenópolis, que parecem ser as únicas que em

Goiás acontecem durante os festejos do Divino, acabaram por se tornarem “tradição”

desses festejos. Nas festas a cujos programas tivemos acesso esse auto esteve presente em

todas elas, e em torno de sua organização muitas pessoas se envolveram e se envolvem

intensamente. A família Pina se envolveu na organização dela pelo menos até os anos 70,

e nesses eventos também congregaram-se muitas outras pessoas que tinham as suas filhas

adolescentes participando do ritual e que faziam desses eventos uma grande festa de

exibicionismo e afirmação social.

1.2.3- A Festa na rua

As procissões, os fogos, as cores e o brilho parece que, ao longo da

história, compuseram o quadro de muitas festas populares. Na festa do Divino, em

Pirenópolis, não foi diferente. A rua era e ainda é um espaço de convivência muito intensa

durante estes festejos e representou bem o que Brandão sugeriu: um ilusório espetáculo de

combinação de corpos, de gestos, de vestimentas e seria um local aonde se vai e onde se

transita entre os seus lugares simbolicamente definidos por personagens, cerimônias e

símbolos.66 Neste item vamos falar sobre alguns desses eventos, como os giros das

bandas de música e de zabumbas em alvoradas, tocatas, retretas, procissões diversas e

também sobre os fogos como eventos de promoção de Imperadores, cujo palco de poder é

também ornamentado nestas festas.

Durante o período de romanização da Igreja Católica e das festas,

processo que discutiremos no capítulo a seguir, muitos desses eventos chegavam a espantar

os párocos, pela grande concorrência e pelo “exagero” em muitos deles. Nos dias atuais,

existe a preocupação em dar continuidade a essas “tradições do passado” que,

possivelmente, no universo de tantas festas, foram aquelas promovidas pela “boa

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sociedade” que no afã de ser prestigiada e bem vista investiu nelas como se investisse na

própria imagem. Fizeram e ainda fazem parte dessa festa: procissões, levantamento de

mastros, alvoradas, tocatas, retretas, zabumbas, queima de fogueira e de muitos fogos.

É importante observar que os espaços ocupados pelas festas foram

alvo de muitas normatizações. Isso demonstra que elas eram relevantes momentos de

sociabilização, para as quais a tolerância também era necessária. As posturas municipais

indicaram, até as primeiras décadas do século XX, a existência de inúmeras tavernas,

principal lugar de venda de bebidas espirituosas, espalhadas pela cidade e para as quais

muitas medidas de controle e fiscalização foram articuladas. Os tiros também eram

proibidos depois do pôr-do-sol, dentro da cidade ou de qualquer arraial do município. A

exceção, como indicativo de tolerância, era para os períodos de festividades religiosas ou

públicas nacionais, com a previsão de multas e detenção para quem descumprisse a lei.67

Outra expressão dessa dinâmica urbana, em pleno final do século

XIX, que veio dar mais vida às festas, foi a criação de duas importantes bandas locais68.

Uma delas foi a banda Euterpe69, dirigida por Tonico do Padre, importante personagem da

cultura musical local; funcionou de 1868 a 1903. A banda Phoênix70 também pertence a

esse contexto e foi fundada em 1893, por iniciativa do maestro Joaquim Propício de Pina,

outro importante personagem da música pirenopolina. Ela existe até os dias atuais,

compondo uma memória cultural do lugar. Essas bandas foram responsáveis pela

realização de diversos concertos e peças, além de acompanharem procissões e festividades

religiosas e cívicas.

66 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Cultura na Rua. Campinas, SP, Papirus, 1989 p.p. 13. 67 Art. Nº 68.68 Na primeira metade do século XIX, Meia Ponte possuiu várias bandas, a maioria organizada por padres que se destacaram na música, na poesia e na cultura em geral do local.69 JAYME, Jarbas. op. cit p. 25170 Idem p. 253.

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O programa da festa do Divino de 1957 divulgava uma grande

manifestação festiva sob a responsabilidade do Imperador Elói de Oliveira. Anunciava

Alvorada71para o dia 31 de maio e também para os dias 7, 8 e 9 de junho, às 4 horas da

madrugada com a banda de música e com a zabumba (banda de couro). Para o meio-dia

anunciava arrojados dobrados da Banda “Phoênix”, na porta da Matriz, quando se iniciaria

o queima, com descargas de 150 tocos de roqueiras e foguetaria. Para a quinta –feira, dia

6, previa distribuição de alimentos e agasalhos para os pobres da cidade. Para a noite do

dia 8 de junho, no sábado, também chamado na cidade de sábado do Divino, por ser o dia

que encerra as novenas e antecede ao dia de Pentecostes. Neste ano, após a procissão da

Irmandade do Santíssimo Sacramento que conduzia a bandeira do Divino, de dentro para

fora da igreja ao lado da qual acontecia hasteamento dessa mesma bandeira em um mastro

e depois a queima de uma fogueira, o Imperador anunciava a principal queima da festa:

“150 bombas de foguetes de bombas e de vistas.” 72

Em 1969, ano imperial de Geraldo D’ Abadia de Pina, ele

anunciava os festejos com alvoradas, com zabumba e a banda de música “Phoenix”, a

qual estaria abrilhantando todos os momentos da festa, desde as alvoradas até a execução

de diversos dobrados na porta da igreja. Para aquele ano muitas autoridades eram

esperadas, além de párocos da igreja e a primeira dama do país na época, D. Iolanda Costa

e Silva. Sendo assim, o Imperador anunciava uma pequena amostra dos fogos que iria

haver nesta festa, ao meio dia de 16 de maio, data do início das novenas. Enfim, para o

dia 24 de maio, no sábado do Divino, anunciava uma queima de foguetes nunca vista na

cidade. Seriam queimados uma girândola de 10.000 tiros, fogos de vistas variadas,

morteiros na praça da cadeia, às margens do rio das Almas (lugar onde em quase em todos

71 Durante os festejos do Divino a alvorada representa o despertar da cidade para mais um dia que se aproxima das comemorações de Pentecostes.72 Ver anexo II- Programa da Festa de 1957.

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os anos, nos dias atuais, acontece essa queima de fogos)73. Para a cerimônia de cortejo do

Imperador no Domingo, anunciavam-se centenas de meninas vestidas de branco, pães e

verônicas para as meninas na sua casa74, depois das cerimônias, além de uma procissão à

tarde conduzindo o Imperador, que era levado até a igreja, cercado por um quadro,

segurado nas extremidades por virgens de branco. Após a procissão, dava-se a posse do

novo Imperador. 75 76

No ano seguinte, Duílio Pompêo de Pina, Imperador do Divino,

não fugiu do estilo dos anos anteriores. Anunciava alvoradas, zabumbas, tocatas, procissão

da bandeira, levantamento de mastro, queima de fogueira e um grande foguetório com

girândolas, fogos de artifício e ronqueiras77 na praça do Rosário, além de procissão, que

sairia de sua residência, com grande número de virgens (meninas e moças vestidas de

branco).

A festa de 1976, foi uma das que deram muito o que falar. O jornal

o Mensageiro deu cobertura completa ao Imperador, que era Sonil Jacinto da Silva.78 Esse

homem, que insistiu por 36 anos no sorteio, dedicou muitos dos seus esforços para a

promoção da festa deste ano. Salitre, enxofre, carvão especial, materiais de ornamentação,

73 Em 1999, o então eleito governador do Estado de Goiás, Marconi Perillo compareceu às cerimônias do dia no qual ocorre a queima de fogos.Curiosamente, a “queima” aconteceu nas margens do rio das Almas, só que sob uma ponte, que foi inaugurada naquele dia por este mesmo governador, com direito inclusive a ter a música de campanha tocada pela banda tradicional da cidade, a banda Phoênix.74 Em Pirenópolis, o Imperador até poucos anos atrás abrigava em sua casa, durante todo o seu ano imperial, a coroa e o cetro do Divino Espírito Santo. Em outras festas do Divino que pesquisamos as características parecem ser um pouco diferentes. Mello Moraes Filho, op. cit p.p. 117, afirma que em todas as freguesias armavam-se Impérios, que era o palanque, o tablado, no qual ficava o trono do “Imperador”, com a música, a Corte e as principais figuras da freguesia local. Para Ferreira, pesquisador das festas do Divino, em Santa Catarina, Teatros do Império ou Impérios do Espírito Santo são pequenas capelas construídas próximo à Igreja e que abrigam a bandeira e a coroa do Divino Espírito Santo. In: Ferreira, Sérgio Luiz. Histórias quase todas verdadeiras. 300 anos de Santo Antônio e Sambaqui. Florinópolis, Ed. das Águas, 1998 p.p. 37. 75 Nos dias atuais a cerimônia que conduz o Imperador dentro de um quadro acontece apenas pela manhã; à tarde, uma procissão bem menor do que a da manhã conduz o Imperador do ano para a missa e no final dela conduz o novo Imperador até a sua casa, sem nenhuma das cerimônias ocorridas na manhã. 76 Ver anexo III.77 Chamado localmente também de roqueira (canhão Roca). Trata-se de um fogo de artificio artesanal feito com pólvora, salitre e tocos e que produz barulho semelhante a canhão. 78 Até um jornal que circulava na cidade, na época, dedicou número especial para falar dos festejos do Divino daquele ano.

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bebidas, ingredientes para os confeitos tradicionais etc. desde cedo começaram a ser

estocados. Todas as suas atenções passaram a girar em torno e em função do prestígio do

Império do Divino. Desde meados do mês de abril, as “Princesas do Divino,” suas filhas,

confeccionavam bandeirolas, nas cores branca e vermelha, para a ornamentação das ruas

de passagem da procissão do Divino, no domingo, quando um cortejo de virgens de

branco, seguido por grande multidão, abre a caminhada do Imperador, de sua residência,

também pintada de vermelho e branco, para a Igreja Matriz. Ali celebra-se a Missa do

Divino, cantada por um coral, e, logo após, ocorre o sorteio para a escolha do novo

Imperador. E assim terminava a “tradição” que assim se fazia, na sucessão dos

anos...findada a missa, as virgens seguiam para a residência o Imperador, onde recebiam

verônicas, docinhos de açucar e água, e os “pãezinhos do Divino”, distribuídos com

dádivas numa mostra da fartura prenunciada para a Era do Espírito Santo.79

Os gastos desse Imperador, assim como os de inúmeros outros,

foram bastante elevados, com materiais e pessoal empenhado em diversas funções: Banda

de música, fogueteiros, quitandeiras, fabricantes de pólvora, etc. O jornal declarava:

“ O Imperador já dispendeu cerca de 50 mil cruzeiros, e

outros gastos poderão surgir, no decorrer da festa como para o fornecimento de café e

quitanda para todos os ensaios – Pastorinhas, Artaxerxes, Tapuio, Banda de Música,

Banda de couro e cavalhadas. Mas, completou a notícia, a família imperial estava em

constantes atividades, desde meados de abril. Parte dessas despesas, de acordo com o

jornal, seriam ressarcidas pelas arrecadações da Folia do Divino, que sai pelas ruas da

cidade e pela zona rural, recolhendo “esmolas” – donativos para auxiliar no custeio

dos festejos...”80

79 Jornal o MENSAGEIRO, idem .p 180 Idem

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A rua parece ter sido um dos espaços mais sociabilizadores dessas

festas, se era palco da exibição de poder dos Imperadores, em fogos e procissões, também

era o espaço onde a festa era, se não para todos, pelo menos para a maioria.

1.2.4-A Festa dos Santos Pretos

Os Reinados e Juizados são atualmente considerados como a festa

dos “pretos”, ou uma outra festa dentro da festa do Divino. Possivelmente acontecessem

separados dos festejos do Divino, dividindo-se entre uma comemoração a São Benedito,

talvez em abril, e uma comemoração a Nossa Senhora do Rosário dos pretos, junto aos

festejos da padroeira da cidade, a dos brancos,81 em outubro.

Brandão nos sugere duas versões. A primeira é a de que o Reinado

já foi uma grande festa, segundo muitos e a maior festa de santo no passado da cidade, e o

seu período de apogeu ter-se-ia estendido possivelmente até os anos finais do século XIX.

A segunda é a de que à medida que as festas de Nossa Senhora do Rosário e de São

Benedito foram “decaindo”, tenderam a passar para o controle dos mesmos promotores, na

cidade, dos festejos do Espírito Santo e passaram também para a participação de pessoas

sem recursos, terminando, por serem, o cortejo do Reinado e Juizado na Festa do Divino.82

A hipótese de que as festas do Rosário e de São Benedito foram, no

passado, muito mais esperadas, pomposas e capazes de envolver toda a cidade do que os

festejos do Divino não nos pareceu muito consistente. Em todo caso, algumas festas de

Nossa Senhora do Rosário, em Goiás, são muito concorridas, como nas cidades de Goiás e

de Catalão. No caso de Catalão, mais conhecida como Congadas de Catalão, é uma das

festas que mais envolvem pessoas. Em Minas Gerais, região de onde muitas festas e

81 Nossa Senhora do Rosário tornou-se padroeira da cidade, em função de ter sido “descoberta” em 13 de outubro, dia de Nossa Senhora do Rosário. 82 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O Divino, O Santo e a Senhora. Rio de Janeiro, Funarte, 1978 p.p. 78

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costumes foram trazidos para Goiás, Nossa Senhora do Rosário foi e é ainda bastante

cultuada, e o número de irmandades que lhe prestaram culto no século XVIII era de 62, em

um total de 322 associações.83

As festas de Nossa Senhora do Rosário nasceram sob a influência

da Igreja. No entanto, na medida em que a devoção do Rosário circulou entre os negros,

seja de maneira imposta seja por simples contato com outros devotos, eles a reelaboraram,

nela acrescentando elementos de sua cultura original. E sendo assim, ao se organizarem em

irmandades religiosas, produziram um catolicismo alternativo, em relação às

determinações eclesiásticas, do qual a própria elite local participou.

Na passagem do domingo para a segunda-feira, a festa do Espírito

Santo, em Pirenópolis, é feita de festejos, como cavalhadas, pastorinhas, mascarados,

tapuios, contradanças, entre outros. Na manhã de segunda- feira começam os “festejos dos

negros” aos seus santos: o Reinado de Nossa Senhora do Rosário e, na Terça, o Juizado de

São Benedito. Para muitos, esses momentos para os quais são reservadas as manhãs de

segunda e de terça são considerados como uma “outra festa”, ou uma “festa dentro da

festa”.

De acordo com Brandão, as festas de Reinado e Juizado, no seu

início tinham uma organização distinta da que apresentam nos dias de hoje na festa do

Divino. Afirma-nos que na década de 1970, quando visitou esta festa, ela já apresentava

características muito parecidas com os cortejos da Festa do Divino, embora possuíssem

com distinção suas próprias funções, personagens e símbolos. 84

O cortejo do Reinado, diferente da procissão do Divino, forma-se

aos poucos: Da casa do juiz de menor insígnia, o 3º Juiz ou Juíza de flores, ele inicia-se,

83 ALISSOM, Eugênio. Lazer e devoção: As festas do Rosário nas comarcas de Mariana e Ouro preto no período escravista. In: Revista Estudos de História, Franca, v. 13, 1996, p. 115. 84BRANDÃO, 1978, op. cit p. 81.

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acompanhado inicialmente da pequena banda de couro e do andador da irmandade. O

cortejo recolhe, em ordem crescente de importância de insígnia, todos os juízes

participantes até chegar à casa da rainha e, depois, do rei de Nossa Senhora do Rosário.

Eles também são seus representantes transitórios assim como o Imperador o é do Divino.

Pelo que pudemos observar, nunca se usa vestimenta própria

durante os cortejos, e os reis de Nossa Senhora do Rosário são coroados com pequenas

coroas de prata. O rei carrega o cetro em suas mãos e o andador, a bandeja. Os juízes de

cordão trazem sobre suas cabeças pequenas coroas de latão. Quando a missa se conclui,

formam-se em frente à igreja os grupos de cortejo de volta, quando é obedecida a ordem de

“entrega” das insígnias.

Para Brandão, até o século XIX, dentro das irmandades e nos

momentos do Reinado, os negros eram a totalidade dos personagens de cortejo e eram os

agentes subordinados às “mesas diretoras”. Dentro das irmandades, de um modo

específico, só se aceitavam negros. Os brancos eram apenas o vigário da igreja ou das

próprias irmandades e o tesoureiro. Estes exerciam o controle dentro dessas irmandades.

Considerando-se dados de Brandão, em todas as antigas

irmandades de “santo de preto”, no Brasil, era recomendação estatutária que o tesoureiro

fosse um homem branco e de posição. Estes senhores civis deviam ter, no passado, maior

poder de controle do que os próprios padres.85

É apontado que o início das atividades das Irmandades de Nossa

Senhora do Rosário dos Pretos e de São Benedito foi no século XVIII. Em nossa pesquisa,

os primeiros registros que localizamos são do século XIX. Nesse período, as duas

irmandades citadas realizavam suas reuniões juntas, geralmente no consistório da igreja de

Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, assessoradas pelo pároco local e tendo como

85 BRANDÃO, 1978 p. 108

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tesoureiro quase sempre o mesmo que ocupava esse cargo na Irmandade do Santíssimo

Sacramento. As reuniões dessas irmandades, na maior parte, eram anuais, para discutirem

o seu processo de eleição. Ao contrário do que Brandão afirma a maior parte dos

membros não era de negros, em Pirenópolis. Porém em grande parte eram analfabetos e os

principais cargos eram ocupados por brancos. Aos negros também era reservado espaço, já

que nem todos eram escravos. Muitos dos seus membros durante o século XIX, eram

brancos pobres, mestiços e forros.86 As principais receitas dessas irmandades eram, além

das esmolas, provenientes do pagamento anual das jóias dos empregados das irmandades.

Os valores eram os seguintes: no caso da de São Benedito, o Juiz de Cordão pagava

24.000$00, o juiz de flores 12.000$00, o juiz de promessa 15.000$00, a juíza de flores

pagava 15.000$00, a juíza de promessa 2.000$00. As anuidades dos irmãos também eram

outra arrecadação, que, porém, não ultrapassava os 1000$00. A taxa de entrada na

irmandade era de 2.000$00.87 Para a época, esses valores não representavam muito, porém

provavelmente nem todos podiam pagá-los.

Quanto às despesas dessas irmandades, a maior parte se

concentrava na promoção de missas nas festas de São Benedito e de Nossa Senhora do

Rosário dos Pretos. Outros gastos também eram feitos com a manutenção e os reparos da

igreja deles ( demolida anos depois) . No ano de 1908, como em vários outros, o tesoureiro

da irmandade pagou 30.000$00 ao Revmo Vigário Pe Carlos José, pela missa de Nossa

Senhora do Rosário e de São Benedito. Pagou ainda 23.000$00 a Joaquim Propício de

Pina pela gratificação de sua banda de música, a banda Phoênix, nas missas de Nossa

Senhora do Rosário e de São Benedito, nos dias 5 e 6 de outubro. No mesmo ano,

desembolsou mais 13.000$00 pelo pagamento do zelador da igreja, 14.500$00 pela cera

86 Livro de termos da Irmandade de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário dos homens pretos. 1836-1891.

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em vela para a missa e procissão de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito e

12.500$00 pelas sepulturas dos irmãos,88visto que desde o século anterior os irmãos de São

Benedito e de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos não podiam ser enterrados no

cemitério da paróquia, administrado pela Irmandade do Santíssimo Sacramento.89

A documentação da irmandade não nos dá muitas pistas sobre a

relação entre festejos dos negros e festa do Divino, o que nos faz imaginar que só apenas

nas primeiras décadas do século XX é que esta festa negra veio a “encostar” ou ser

absorvida pelos festejos do Divino. Em todo caso, é possível imaginar que durante esses

festejos, os irmãos dos “santos pretos” tivessem algum envolvimento. Essa hipótese é

levantada a partir de um trecho do livro de termos dessas irmandades, no final do século

XIX:

“Aos vinte e três dias do mês de abril de 1899, reuniu-se

mesários da Irmandade de São Benedito sob a presidência do thesoureiro José Basílio

de Oliveira...o sr. Thesoureiro declarou que tendo a irmandade de Nossa Senhora do

Rosário se comprometido a dar um ajutório de cincoenta mil réis, para despeza da

vinda de um padre para fazer a festa do Divino Espírito Santo e que esta irmandade

tão bem disso aproveita, por isso achava de razão que tão bem esta irmandade se

associasse à Nossa Senhora do Rosário para esse fim...” 90

Diante desse novo dado, é possível levantar duas hipóteses: a

primeira é a de que as irmandades dos “santos pretos” já participavam dos festejos do

Divino desde finais do século XIX embora continuassem realizando as festas de Nossa

Senhora do Rosário dos Pretos e de são Benedito em outubro. A outra hipótese é a de que

só a partir dos anos 20, período em que estas irmandades deixam de atuar

87 Livro de Conta Corrente da Receita e Despesa da Irmandade de São Benedito desta cidade de Pirenópolis. 1908-1925. 88 Idem.89 Livro de Termos da Irmandade de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário dos homens pretos. 1836-1891.

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significativamente e intensifica-se a política de romanização da Igreja Católica em

Pirenópolis, essas festas dos “santos pretos” passaram a integrar os festejos do Divino,

talvez até mesmo como estratégia dos párocos romanizantes para conter os excessos de

ambas e não perder o controle da situação, embora durante muito tempo fossem

consideradas como festas separadas: a festa dos “pretos”.

1.2.5-Cavaleiros & Mascarados

Dois grupos de personagens tornaram-se identificadores da Festa

do Divino de Pirenópolis. O primeiro é o dos cavaleiros que realizam a cavalhada local,

uma batalha campal entre cristãos e mouros. Cada grupo possui doze cavaleiros, sendo

que em cada um há um embaixador e um rei, que estabelecem entre si uma luta eqüestre e

teatralizada com diversas corridas e embaixadas, que culminam com a vitória dos cristãos

sobre os mouros, os quais, são batizados no penúltimo dia da cavalhada. No último dia,

mouros e cristãos realizam um torneio no qual o grupo que tirar mais argolinhas é

vencedor seja ele mouro seja cristão, embora simbolicamente sejam todos cristãos. As

argolinhas retiradas representam pontos para o grupo ao qual o cavaleiro pertence e são

doadas para pessoas de destaque na festa e na cidade como o Imperador, padre, prefeito e

também amigos e parentes. Em troca da argolinha recebida deve-se retribuir com um

presente para o cavaleiro.

Os mascarados também são personagens importantes da festa do

Divino de Pirenópolis. Nos depoimentos que recolhemos a existência de mascarados esteve

90 Livro de Termos da Irmandade de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário dos homens pretos1836-1891.

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quase sempre associada à apresentação da cavalhada. No entanto, a presença desses

personagens é bastante característica das festas populares, desde a antiguidade clássica e o

período medieval. No Brasil adquiriram significados específicos de acordo com cada

região. 91 Nos programas da festa que localizamos, e estão em anexo a este trabalho, os

mascarados já são anunciados como parte desses festejos desde 1957. Nos parece que a

presença deles reporta-se ao início da festa. A tradição oral local atribui a presença dos

mascarados à apresentação da Cavalhada e afirma que esses não saíam às ruas naqueles

anos em que o ritual eqüestre não acontecia. Isso não nos parece consistente, contudo não

conseguimos demonstrar o contrário, e se isso se confirma temos aí uma outra

característica específica da festa do Divino de Pirenópolis.

Os mascarados vivem atualmente um momento de grande

expressão na Festa do Divino em Pirenópolis, pois apresentam-se nas ruas e nos campo da

cavalhada, nos intervalos entre uma corrida e outra, durante os três dias de ritual eqüestre.

No sábado do Divino saem os primeiros grupos pelas ruas, os quais aumentam

progressivamente até o último dia de cavalhada. Os mascarados podem estar a pé ou a

cavalo, sozinhos ou em grupos, mas todos devem estar camuflados a ponto de disfarçar a

própria voz para não serem identificados. As fantasias desses personagens são bastante

livres; cada um se veste como quer e como pode. Porém, o que é comum a todos é o uso

das máscaras, as quais são de vários tipos. A máscara “tradicional” é a de papel machê, em

formato de cara de boi ou de onça, mas muitos preferem usar as de pano ou de borracha.

Quanto às cavalhadas, elas chegaram ao Brasil e difundiram-se

muito rápido nas festas, apresentações e demais reuniões sociais, como espetáculo de

destreza e habilidade e com um teor religioso. Encontramos registros, em vários autores, de

91 Alguns autores discutiram a forte manifestação das máscaras nas festas populares, na antigüidade e no

período medieval; entre eles podemos citar: BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média e no

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que as festas de mouros e cristãos apenas principiaram a se popularizar no Brasil no século

XVIII. Inicialmente, eram eles exibidos principalmente em ocasiões solenes em que se

comemoravam algum festejo real, casamentos de princesas, bodas de prata de

autoridades.92

As cavalhadas popularizaram-se, sobretudo nas festas populares,

em que se fundiam com a religiosidade popular católica, e a partir dessa relação trocaram

símbolos que se tornaram elementos culturais locais. Entre todas as festas populares, nas

quais houve apresentação de Cavalhada por vários anos como parte do incremento da

programação, podemos dar destaque para as Festas do Divino Espírito Santo, em várias

regiões do Brasil, inclusive Goiás.

As Cavalhadas eram praticadas, a princípio, por gente nobre e

depois por gente rica, que a elas atribuiu o luxo e a riqueza. Constavam de desafios,

embaixadas, construção de fortalezas posteriormente destruídas por incêndios, paliçadas,

uso de armas de fogo. Por todo o Brasil, a Cavalhada geralmente aconteceu com muita

pompa. A data mais comum de realização era na festa do Divino Espírito Santo.93

Embora essa manifestação tenha sido uma prática cultural dos

núcleos urbanos brasileiros, já a partir do século XVII, assim como outras festas

populares foi uma manifestação expressiva da cultura camponesa, dada a sua profunda

ligação com os elementos rurais que sobretudo compuseram as características mais

evidentes desse ritual eqüestre. Foi nos arraiais brasileiros longínquos, onde os momentos

de sociabilidade eram tão raros e onde existia uma linha muito tênue entre o urbano e o

rural, que as Cavalhadas revelaram as suas caraterísticas e constituíram, juntamente com as

Renascimento: O contexto de Rabelais. São Paulo, Edunb, 1996 & HEERS, Jacques. Festas de Loucos e Carnavais. Lisboa, D. Quixote, 1987.

92 Pereira, Niomar op. cit p. 36

93 Idem, p. 53

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festas de padroeiros, momentos de reafirmação da fé católica, de quebra da rotina diária e

de sociabilidade entre as pessoas que nos momentos de festas se deslocavam de outras

cidades ou de núcleos rurais para efetivarem encontros, estabelecerem relações afetivas,

comerciais e solidárias entre si.

Estudos desenvolvidos sobre as cavalhadas no Rio Grande do Sul

afirmaram que até o começo do século XX as cavalhadas tinham grande significado social

e religioso, principalmente nos municípios em que a pecuária imperava. Por volta de 1910

foram deixando de aparecer e terminaram em exibições esporádicas, após a revolução de

1923.Atribui-se, também, o declínio delas às guerras mundiais, à gripe espanhola e às

revoluções dos anos 20 e 30, sendo que nos últimos anos elas ressurgem em homenagem a

santos padroeiros nas festas cívicas e tradicionais.94

As Cavalhadas, em todo o Brasil, viveram momentos de apogeu e

de declínio e obtiveram inúmeras modificações e adequações às diversas culturas locais e

às diferentes realidades regionais, permanecendo em algumas regiões, extinguindo-se em

outras. Contudo, no contexto das manifestações populares brasileiras, sempre estiveram no

rol das mais expressivas festividades, entre nobres e populares, e como poucas,

conseguiram em algumas regiões permanecer até os dias atuais. Neste aspecto podemos

citar Pirenópolis.

Assim como todos os outros momentos da Festa do Divino, as

Cavalhadas de Pirenópolis possuem os seus personagens e símbolos. Algumas pessoas

caracterizam-nas um ritual profano, mas outras consideram-nas um ritual sagrado, pois

possuem no seu desdobramento um “grande fundo religioso”: a batalha dos cristãos para

converter os mouros, que termina com o batismo destes últimos, aspecto considerado

religioso e que para muitos é uma das formas de louvar o Espírito Santo.

94 Pereira, Niomar, op. cit p. 39

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As cavalhadas em Pirenópolis não aconteceram com a mesma

freqüência dos festejos ao Espírito Santo. Os registros oficiais informam que a sua prática

se iniciou em 1826, embora seja possível considerar que comemorações menos

formalizadas já acontecessem no século XVIII, em outras festividades, e não

necessariamente nos festejos do Divino, que também, segundo relatos de memorialistas, já

existiam no século XVIII, embora os dados oficiais apontem o ano de 1819 como o início

da festa do Espírito Santo.

É possível supor que a prática da cavalhada foi sistematizada a

partir de 1826, quando aconteceu por iniciativa dos grupos hegemônicos locais, que

utilizavam as festas como espaço de reafirmação de poder e de legitimação de posições

sociais. Podemos afirmar isso graças à observação da relação de Imperadores do Divino,

no século XIX(Anexo I). Verificamos que as pessoas de destaque social e de prestígio

econômico prevaleceram como Imperadores do Divino.

A tradição oral local destaca que, antes de 1826, ano imperial do

Pe Manuel Amâncio da Luz (figura de destaque do cenário político e cultural de Meia

Ponte), os festejos do Espírito Santo eram tão simples, que a coroa e o cetro utilizados

pelo Imperador eram de papelão. Quando do “Império” de Manuel Amâncio da Luz, (esta

informação, por sua vez, relatada por Jarbas Jayme), ele mandou fazer coroa e cetro de

pura prata, os mesmos utilizados até os dias atuais no cortejo imperial. Foi também nesse

ano que introduziram, ou deram continuidade a uma prática já existente.95

A segunda cavalhada do século XIX, segundo Jayme, será

realizada somente em 1833, por iniciativa do Imperador, também padre, José Joaquim

Pereira da Veiga. A terceira cavalhada foi promovida em 1850. no ano imperial do

Capitão José Gomes de Siqueira. No ano seguinte, o Imperador Justino Cândido Batista

95 JAYME, Jarbas, op. cit

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irá promover a quarta cavalhada, e com intervalos bem longos essa representação foi

acontecendo durante todo o período em questão, mas não ultrapassando a quinze

apresentações, durante todo o século XIX.96

Outra representação vai acontecer, alternando-se com as

apresentações teatrais e as cavalhadas: o Batalhão de Carlos Magno97. Esse evento, que

aconteceu pouquíssimas vezes em Pirenópolis, ficou conhecido do público, pela primeira

vez, em 22 de maio de 1836, ano imperial do Tenente-coronel Francisco Lopes de

Guimarães, que faleceu às vésperas da festa. Pedro Gonçalves Fagundes se encarregou de

apresentar o espetáculo e para isso requereu permissão à Câmara Municipal, pagando a

licença, que lhe custou 2$400.98 O segundo Batalhão de Carlos Magno foi representado em

junho de 1862, por iniciativa do Tenente João Gonzaga Jaime de Sá. Pela terceira vez foi

representado em 3 de junho de 1900, quando foi Imperador Homero Batista e pela última

vez em junho de 1905, por iniciativa de Aristides Hildebrando de Siqueira.99

Todos esses dados apresentados por Jarbas Jayme nos levam a

indagar qual era o sentido de se atribuir esses feitos culturais a esses personagens

“históricos” do século XIX. Nenhum desses dados apresentados se confirma, por não

termos outros registros deles, além dos apresentados pelo autor citado. Os próprios

discursos locais incorporaram os dados dessa “tradição” a ponto de ela se tornar uma

verdade “forjada”. De fato, a publicação da obra desse memorialista, nos anos 70, irá

mudar a memória local, a qual irá construir diversas referências da festa em datas,

símbolos e nomes. Discutiremos melhor esses aspectos no último capítulo dessa

dissertação.

96 Idem. Este evento só vai se tornar regular no século seguinte por questões que trataremos no último capítulo. 97 O Batalhão de Carlos Magno foi definido localmente como um combate medieval a pé, com características parecidas as da cavalhada. 98 JAYME, Jarbas. op. cit. p. 612.99 Idem p. 615.

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A prática da cavalhada será esporádica durante o século XIX e a

primeira metade do século XX. Ainda apoiando-nos na memória local sobre a festa, é certo

que no século XX passará a ser um evento regular somente a partir dos anos 60. Este fato

coincide com novos posicionamentos tomados pela Igreja Católica e com o momento em

que a cidade redefinia algumas características urbanas e políticas. Por outro lado,

imaginamos que o sentido de correr cavalhada também era muito diferente. Inicialmente,

ela acontecia no largo da igreja matriz, assim como em inúmeras outras cidades coloniais,

nas quais simbolizava espaços e delimitava fronteiras.100 Ao longo do século XIX,

alternou-se com diversos eventos como peças de teatro, óperas, Batalhão de Carlos

Magno, leilões, danças dramáticas entre outros.

1.2.6- Rezar é preciso.

Deixamos para falar dos aspectos litúrgicos das comemorações do

Divino, em Pirenópolis, propositadamente por último, pelo fato de esses eventos não

ocuparem o papel central da festa, cujos múltiplos desdobramentos estabeleceram diversas

festas paralelas e concomitantes.

As novenas representam o aspecto mais “sagrado” das festas do

Divino. Como o próprio nome sugere são missas realizadas ao longo dos nove dias que

antecedem ao dia de Pentecostes com função a específica de “louvar” a essa Divindade.

Para a Igreja, as novenas foram (e ainda são) consideradas a parte central dos cultos ao

Divino, mas o povo, embora as considerasse importantes nem sempre dedicou a elas mais

atenção.

100 SOUZA, José Moreira de- Cidade: Momentos e processos. Serro & Diamantina na formação do norte mineiro no século XIX, São Paulo, ANPOCS/Marco Zero, 1993. P.175

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As irmandades foram importantes personagens na realização das

festas e na relação desses festejos com a Igreja. Das inúmeras irmandades religiosas que

existiram em Meia Ponte, uma grande parte foi instituída ainda no século XVIII, sendo que

as mais antigas são a Irmandade do Santíssimo Sacramento e a Irmandade de Nossa

Senhora do Rosário, criadas em 1732, além das Irmandades negras como Nossa Senhora

do Rosário dos homens pretos e de São Benedito. Em 1733 foi criada a Irmandade das

Almas de São Francisco, em 1742 foi concedida a licença para se criar a Irmandade de

Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e de São Benedito, e a última irmandade a ser criada

é a do Sagrado Coração de Jesus, em 1901101

De todas, a Irmandade do “Santíssimo” destacou-se, por ser a

principal confraria local que se ocupou em aglutinar homens católicos e brancos. com o

objetivo de criar entre eles uma sociedade de compromisso religioso, que os incumbia de

participar das atividades da Igreja e das reuniões da irmandade, cumprindo as obrigações

previstas no termo de compromisso assinado no ato da entrada. Essa irmandade, que

existe ainda nos dias atuais, tinha uma organização bem forte até finais do século XIX.

Embora estivesse subordinada ao pároco, através de termos de compromissos que davam a

ela um caráter autônomo nas questões específicas de que tratava, era um espaço de intensa

sociabilização entre os seus membros que na grande maioria eram os senhores mais

abastados do local, embora não se excluíssem os homens pobres e analfabetos, desde que

fossem brancos. Em vários termos de compromisso verificamos irmãos arrogando102

assinaturas para outros.103

101 SIQUEIRA, Vera Lopes de. Datas Pirenopolinas-1727-1997. (Mimeo) p.p. 22 e 23.102 Este termo é característico da época e refere-se ao fato de uma pessoa assinar pela outra. Nos livros da irmandade muitos desses casos foram verificados. Em muitas vezes uma só pessoa “arrogava”a assinatura de várias outras. O arrogamento consistia em documentar o registro de pessoas analfabetas. Pelo que pareceu, só tinha validade nos termos das Irmandades. 103 Termo de Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento1869-1886 e 1874.

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Para participar da Irmandade do Santíssimo Sacramento, a pessoa

tinha de ser do sexo masculino, de cor branca, católica praticante e casada na Igreja. As

mulheres apenas prestavam serviços à irmandade como costura em opas e alfaias, lavagens

e alvejamento de toalhas e limpeza do consistório da irmandade.104

Outro critério, o econômico, ficava implícito nos termos de

compromisso: era a obrigatoriedade de irmãos contribuírem anualmente com um valor

específico em forma de anuidade para a irmandade, bem como arcarem com despesas de

jóias de cargos, como provedor, escrivão, e irmão “annuo”. Alguns homens notáveis

fizeram parte dela, como foi o caso de Joaquim Alves de Oliveira, membro por 39 anos,

e de outros que, como ele, faziam parte por muitos anos, excetuando-se os casos de

morte, mudança ou impossibilidade de freqüentá-la, devido às condições impostas.105

Desde a Colônia, as irmandades e confrarias destacavam o papel

das comunidades na participação e organização das festas religiosas e de suas procissões.

Normalmente essas festividades ocorriam com o concurso das economias particulares, e,

como o Catolicismo era a religião do Estado, era difícil alguém recusar sua participação.

Todas as instâncias sociais eram envolvidas na espiral das festas e, muitos as financiavam

sozinhos, reafirmando o seu poder econômico. Em Pirenópolis não foi diferente.106

A relação de membros da Irmandade do Santíssimo Sacramento,

feita por Jarbas Jayme, que envolve o período de 1757 a 1900107, nos dá uma noção dos

grupos sociais presentes nessa irmandade, sendo que quase todos os homens de algum

destaque naquela sociedade eram membros dela. Já a partir de 1810, os Pina aparecem

como integrantes desta agremiação e, ao longo do século XIX, serão figuras de destaque

104 Termo de Compromisso da Irmandade do S. S. Sacramento da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário da cidade de Meia Ponte revisto em mesa em 23 de maio de 1874. ( Manuscrito) 105 Livro 1º de Contas dos Irmãos de Compromisso de 1810 a 1862. 106 Ver DEL PRIORE, op. cit. cap.1. 107 Jayme, Jarbas, op. cit , 1971, pp.554 a597.

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desta irmandade, principalmente ocupando o cargo mais importante: o de tesoureiro, como

foi o caso do Major Sebastião Pompeu de Pina, que esteve nesse posto por vários anos. 108

A Irmandade do Santíssimo, em Pirenópolis; cuidava de angariar

fundos para a reforma e reparos no prédio da Igreja Matriz, para o conserto de telhados e

alfaias, para a compra de azeite, velas e vinho para as celebrações da Semana Santa, para

a capina em volta do largo da matriz, para as despesas com mão de obra (mesmo se

realizada por escravos), para com o sacristão, na celebração, além daquelas despesas

relacionadas com o cemitério. 109

Essa irmandade não se envolveu diretamente com os festejos do

Espírito Santo, mas indiretamente esteve intimamente relacionada a eles. Um exemplo disso

era que quase todos os Imperadores do Divino eram membros dessa Irmandade. Um outro

aspecto que demonstra o seu envolvimento com esta festividade é cobrança do aluguel das

alfaias110 da Igreja Matriz para serem usadas na ocasião das festas. O aluguel das alfaias

para as festas do Divino Espírito Santo era sempre mais caro. No ano de 1874, o Imperador

pagou 14$000 por elas. No mesmo ano, o festeiro de São Sebastião pagou apenas 2$000.

No ano de 1876, tornou-se a repetir o mesmo; desta vez o Imperador do Divino pagou

12$000 pelas alfaias, e o de São Sebastião pagou os mesmos 2$000 do ano anterior. Além

das alfaias mais ricas, que em média custavam esses 12$000, alguns Imperadores preferiam

ornamentar a igreja com outras insígnias. No ano de 1883, além das alfaias mais ricas, o

Imperador alugou um tapete de veludo para a mesma cerimônia e por ele pagou mais 2$000.

No ano seguinte, o Imperador pagou 12$000 pelas alfaias e mais 2$000 pelo aluguel de

uma cortina para a igreja. Alguns Imperadores, no entanto, não pareceram muito

preocupados com essas questões: no ano de 1881, o Imperador, Sr. Major João Gonzaga

108 Jayme, Jarbas, op. cit, 1973, pp.257 a 259.109 Livro de Recibos da Irmandade do S.S Sacramento 1872-1912.110 Jóias, enfeites e paramentos que pertencem ao acervo da Igreja.

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Jaime de Sá, alugou as alfaias menos ricas para a festa e pagou a metade dos outros:

6$000.111 Alguns Imperadores nem sequer alugaram algum desses ornamentos. Mesmo

assim, uma grande parte dos Imperadores costumava pagar por estas alfaias, possivelmente

numa iniciativa de incrementar os festejos de seu ano imperial.

Os padres também ocuparam um espaço notório nas festas do

Divino. Inúmeros deles não se limitaram apenas a realizar as cerimônias religiosas da festa:

concorreram ao cargo de Imperador.112 Entre eles destaca-se o Pe Manuel Amâncio da

Luz113 que além de ter outros cargos e funções públicas, era o pároco de Meia Ponte, no

início do século XIX.114 Diversos outros párocos atuaram intensamente em várias esferas

sociais, políticas e culturais de Pirenópolis, revelando o tipo de relação que havia entre a

Igreja e sociedade, relação que vai ser bastante alterada algumas décadas depois. Os vários

viajantes que passaram por lá não deixaram de mencionar que existiam na cidade padres

cultos e responsáveis por grandes questões sociais.115

A atuação dos padres na festa do Divino, em Pirenópolis,

modificou-se bastante, ao longo da história desta festa. Durante o século XIX, pelo menos

entre os anos de 1820 e 1878, oito Imperadores do Divino foram padres.116 Depois desse

período, quando se inicia o processo de romanização da Igreja Católica em Goiás, os

padres assumiram uma outra postura em relação a esses festejos. Por um lado, tornaram-se

guardiões dos aspectos sagrados da festa que, pela concepção da Igreja, estavam sendo

deixados de lado. Por outro, perderam espaço para os festeiros, que pela própria “tradição”

organizam todos os eventos, uma vez que as concepções entre estas partes nem sempre

convergissem.

111 Lançamento de Receita e Despeza do patrimônio da Igreja matriz da cidade de Meia-Ponte. 1872-1903. 112 Jaime, Jarbas. Esboço Histórico de Pirenópolis. Vol. 2 p. 601113 Foi um dos redatores do Matutina Meiapontense, exerceu funções públicas, eletivas e de nomeação, de entre as quais, deputado provincial. 114 Jaime, Jarbas. Esboço Histórico de Pirenópolis. Vol. 2 p. 521.115 Saint –Hilaire é um dos viajantes que mencionou os padres de Meia Ponte como cultos e perspicazes.

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As irmandades, especialmente do Santíssimo Sacramento, também

sofrerão as mudanças ocorridas com o processo de romanização. Embora não tenham

deixado de existir, acabaram por representar para a Igreja uma instituição calcada nos

valores tradicionais, logo, distantes das novas posições que ela assumia. Nesse período

inúmeras outras associações religiosas, como o Apostolado da Oração e Filhas de Maria,

serão criadas de modo que representassem os interesses dessa Igreja romanizadora e

reformista, uma vez que a Irmandade do Santíssimo Sacramento continuava a ser composta

pelos homens de destaque de Pirenópolis, nem sempre preocupados com as novas regras e

os valores religiosos.

No próximo capítulo discutiremos como esse processo, denominado

romanização, interferiu nas práticas da Festa do Divino em Pirenópolis e estudaremos os

respectivos desdobramentos que vão ocorrer a partir dessa intervenção.

116 Ver anexo I.

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Capítulo II- As Fronteiras da Romanização nos

Domínios da Festa.

As festas e demais manifestações populares, embora cerceadas pelo

poder público e religioso durante todo o período colonial e imperial, respeitando as

particularidades e proporções de cada momento específico, sofrerão mudanças,

especialmente a partir da segunda metade do século XIX, em função da nova relação da

Igreja Católica com a sociedade brasileira. Essa nova relação terá como maiores expoentes

o fortalecimento de uma Igreja ultramontana e conservadora e a separação entre ela e o

Estado, no final do século XIX, o que resultou em novos posicionamentos e práticas por

parte da Igreja Católica. Em Pirenópolis, esse processo foi dinamicamente vivenciado pela

sociedade local.

Se o século XIX é o ponto alto para essas festas, esse processo vai

ser amplamente modificado no final deste período. A questão é que já na segunda metade

do século XIX a Igreja Católica irá modificar as suas prática, o que vai também alterar sua

relação de tolerância com as diversas manifestações festivas existentes no Brasil, calcadas

na religiosidade popular. Algumas orientações vindas do alto clero católico determinaram

essas mudanças.

Depois de um início liberalizante, o pontificado de Pio XI (1846-

1878) a partir de 1848, tomou novos rumos, reatando o fio de uma tradição por um

momento interrompida e que se ligava à orientação de seu antecessor Gregório XVI (1831-

1846), conservador por excelência, que condenava a participação de eclesiásticos na vida

pública, assim como a interferência de monarcas nas questões religiosas.117 A expressão

doutrinária fundamental deste estado de espírito é a encíclica Quanta Cura (1864), tendo

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como anexo o famoso “Syllabus”, logo seguido pelo Concílio Vaticano I (1869), que

definiu a infalibilidade pontifícia. As duas reações julgavam combater males extremos,

como o liberalismo e o padroado. Dado o caráter extremista dessas iniciativas foram elas

consideradas “ultramontanas” pelos seus adversários.118 Entre diversos aspectos, defendia a

retomada da preponderância da autoridade espiritual da Igreja sobre a sociedade civil, e esta

será a orientação do Vaticano, a partir deste período.

Durante as épocas colonial e imperial, a união entre Igreja e

Estado, mediante o padroado119, garantiu à Igreja uma significativa parcela de poder, ainda

que estivesse numa posição submissa. Em troca de manter a unidade e coesão social do

Império luso, a Igreja recebia do Estado português não só o direito de monopolizar a

prática religiosa, como também o suporte material e financeiro para sua sustentação e

propagação no Brasil. Na segunda metade do século XIX, essa relação vai mudar em

função de uma maior vinculação da Igreja com Roma.

Para Fragoso, o pensamento da Igreja se dividia: de um lado, os

ultramontanos120, que seguiam fielmente a orientação do magistério da Igreja, e de outro,

os liberais, segundo os quais a Igreja devia desvincular-se da intolerância da sede romana,

sem ser, tampouco, tutora do Estado. A partir do que se chamou de consolidação do

segundo reinado (1840-1848), a posição ultramontana irá experimentar mais comodidade

por causa da harmonia dos objetivos da Igreja com os interesses imperiais, uma vez que é

117 BARROS, Roque Spencer. Vida Religiosa In O Brasil Monárquico tomo II. (Org) HOLANDA, Sérgio Buarque de. Rio de janeiro, Bertrand do Brasil/. 1997 p. 326 118 SANTOS, Miguel Archângelo Nogueira dos. Missionários Redentoristas Alemães em Goiás, uma participação nos movimentos de reforma e restauração católicas (1984-1944) . Vol I, São Paulo , USP, Tese de doutoramento, 1984 p. 190-191119 O padroado régio era um acordo entre a Igreja Católica e O Império Português, no qual o monarca possuía direitos de conferir benefícios eclesiásticos. Durou, no Brasil, todo o período colonial e imperial só desaparecendo com a separação Estado-Igreja ,no final do século XIX com a República (1889) 120 Defensores de uma Doutrina ou sistema dos que são favoráveis ao poder absoluto do papa, quer espiritual, quer temporal.

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nesse momento que o imperador assume, enfim, as rédeas do governo, e o centralismo será

completado com a subida do partido conservador favorável à monarquia centralizadora.121

Durante o apogeu do Império, assinalado por Fragoso entre os anos

de 1848 e 1868, irá ocorrer uma maior hibridização entre as correntes de pensamento

clerical. Se, de um lado, esse período é marcado pela consolidação de uma “unidade

nacional”, de outro, a segunda metade do século XIX será um campo fértil para as idéias

liberais. Revoluções liberais da França e Itália, princípio efetivo da industrialização

brasileira, ferrovias, telégrafos, proibição do tráfico, política do café e corrente imigratória

serão os principais fatores que vão proporcionar as mudanças desse período.

Esse momento, apontado acima, será de profunda fermentação para

a Igreja, em que se desenvolvia, progressivamente, sobretudo no episcopado, a consciência

da missão específica da Igreja, bem como de sua autonomia face ao governo temporal. O

momento, marcado pelo apogeu do Império, bem como da idéia de um governo forte e

centralizado, irá provocar alterações no campo espiritual. A Igreja irá reagir contra a idéia

antagônica que assumia grande expressão: o liberalismo. Embora estivesse a favor de um

governo forte e centralizante e também estivesse convencida das comodidades da união

sagrada entre o “altar e o trono”, recusava-se a continuar numa posição de subserviência

diante do poder temporal.122

A explosão do conflito entre a Igreja e o Estado, que culminou

com a separação entre ambos no final do século XIX, mais conhecido pela historiografia

como “questão religiosa”,123 na verdade foi a gota d’água para uma situação de tensão e

conflitos que vinham se desenrolado por várias décadas. Para Fragoso, a interferência do

121 FRAGOSO, Hugo. A Igreja na Formação do Estado Liberal. (1840-1875) In: História da Igreja no Brasil Tomo II/2 Segunda Época – Século XIX. Petrópolis, Vozes, 1985, p. 149.122 FRAGOSO, Hugo, op. cit., p. 151.123 Ver BARROS, Roque Spencer M. de Barros. Vida Religiosa e Questão Religiosa In: História Geral da civilização Brasileira. Org. HOLANDA, Sérgio Buarque. O Brasil Monárquico. Tomo II 4 º volume p. 317 à 365.

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Império nas divergências entre Igreja Católica e maçonaria foi uma transplantação para o

Brasil da controvérsia liberal e ultramontana que agitava os partidos católicos da Europa,

além de ser uma união híbrida entre uma Igreja ultramontana e um Estado liberal.

Essa maior vinculação do episcopado brasileiro com Roma, na

segunda metade do século XIX, refletia os anseios de reforma que nasciam de uma

situação crítica que atingia a vida sacerdotal, como, por exemplo, a deficiência de

formação sacerdotal e a “falta” de evangelização do povo.124 A situação, de fato, não era

favorável, pois, de um modo geral, o clero brasileiro sofria as conseqüências dessa crise

estrutural. Diminuía o número de padres, ao passo que as diferenças intelectuais desses

párocos, de uma região para outra, eram muito grandes. Eram constantes a violação do

celibato e as queixas pela falta de zelo de tantos sacerdotes em suas paróquias.

As reformas, na contrapartida, também eram almejadas pelos

segmentos liberais da Igreja Católica. Um dos maiores expoentes desta tendência foi o

Padre Diogo Feijó125. Defensor da criação de uma Igreja nacional, inteiramente livre de

Roma, liderava o projeto de uma reforma religiosa que desse melhores condições ao clero

de exercer suas atividades. Propunha o moralismo e a austeridade através de várias

medidas: a preparação dos sacerdotes para serem educadores, formadores e moralizadores

do povo, dentro de uma perspectiva de educação iluminista, tanto no aspecto das letras

como no da inovação técnica; a expulsão dos frades estrangeiros, vistos como “inimigos

das luzes do século” e o fim do celibato, visando adaptar o clero à realidade do país. Era

uma concepção de Catolicismo que procurava se integrar às “modernas” concepções

iluministas.

A medida que se aproximava o final do século XIX, as posições

ultramontanas dentro da elite eclesiástica tornaram-se dominantes e cada vez mais se

124 FRAGOSO, Hugo, op. cit., p.185.

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radicalizaram, acompanhando o movimento católico romano antiliberal. Isso seria apenas

aparentemente contraditório, pois os princípios conservadores do Catolicismo

ultramontano serviriam de melhor fundamentação e justificativa para a ordem vigente do

que os princípios liberais e as idéias do Catolicismo à altura do século das luzes.

Fragoso interpretou que a alta hierarquia da Igreja também

simpatizava muito mais com a “centralização pretendida pela monarquia do que com o

“autonomismo” da regência, embora se recusasse a uma total subordinação ao poder

temporal.

Num período de ambigüidades, as festas vão ser vistas também

ambigüamente: de um lado, serão expressão da unidade e identidade nacional, de outro, as

festas e as procissões católicas serão consideradas pelos defensores das “novas” idéias

como registros do “atraso” do país e do grau de superstição de sua população. Por isso

recebiam muitos ataques por parte das autoridades municipais e eclesiásticas.126

Esse movimento reformador da prática católica no século XIX,

principalmente na segunda metade, liderado pelos segmentos ultramontanos, pode ser

chamado de romanização. Entre outras questões, buscava retomar as determinações

tridentinas,127 sacralizar os locais de culto, moralizar o clero, reforçar a estrutura

hierárquica da Igreja e diminuir o poder dos leigos organizados. As principais ações foram

junto aos seminários, com o objetivo de implementar uma teologia a serviço da formação

pastoral, a partir da melhora e ampliação da formação do clero brasileiro, do incentivo à

vinda de ordens estrangeiras para suprir as carências nacionais bem como de iniciativas

para conseguir mais fundos, uma vez que, com a separação do Estado, muitas doações

públicas deixaram de ser feitas.

125 Regente do Brasil no anos de 1835 a 1837.126 ABREU, Marta. Op. cit 127 Relacionado com o concílio de Trento realizado em 1545-1553.

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As festas e os festeiros iriam sentir bastante os efeitos dessas

mudanças. E, em Goiás, esse processo vai instituir inúmeras normas e regulamentos para

estes festejos.

2.1- Os Bispos Romanizantes em Goiás e a Restauração da Fé.

Em Goiás, o movimento de reforma da Igreja Católica é iniciado, já

na segunda metade do século XIX, por D. Domingos Quirino de Souza (1860-1863), a

quem coube o papel do início da organização da diocese, que há seis anos estava sem

bispo. Em 1865, assume D. Joaquim Gonçalves de Azevedo ( 1865-1876), que fundou um

seminário de formação sacerdotal e também introduziu na província o sistema de visitas

pastorais, exigidas pela legislação tridentina e pelo movimento da reforma católica no

Brasil, além do uso de cartas pastorais para transmitir sua orientação à vasta diocese, que

na época abrangia toda a província de Goiás e mais o Triângulo Mineiro. Após a sua

retirada, a diocese permaneceu durante cinco anos em sedivacância, só voltando a ter

bispo em 1881, quando assume D. Claúdio José Gonçalves Ponce de Leão, da

Congregação dos Lazaristas. No seu episcopado, reabriu o seminário Santa Cruz, ordenou

vários sacerdotes, adquiriu uma residência episcopal, fundou conventos dominicanos, bem

como tomou diversas iniciativas que visavam a reforma católica. 128

No entanto, o processo de romanização da Igreja Católica em Goiás

só atinge o seu auge com a escolha de Dom Eduardo Duarte Silva para bispo da Diocese

de Goiás em 22 de janeiro de 1891. Sua formação intelectual europeizada, ultramontana e

tridentina espelhava a filosofia da Igreja Católica nesse momento. Este bispo esbarrou nas

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lutas políticas que se travaram em Goiás, no final do século XIX, cujos condutores eram

os Bulhões, família dominante na cena política goiana do período.

Os Bulhões foram grandes adversários da Igreja em Goiás. Esse

grupo familiar representava o inverso daquilo que os párocos romanizantes concebiam.

Foram, na grande maioria, maçons, sendo que Antônio Félix Bulhões destacou-se na

condição de líder de tal organização. Foram eles também responsáveis pela condução de

quase todos os movimentos de modernização que ocorreram em Goiás, além das

campanhas abolicionista e republicana. Defenderam também, ao contrário da Igreja, a

reforma do ensino nos moldes positivistas, o fim do ensino religioso, o casamento civil, a

secularização dos cemitérios e a separação entre a Igreja e o Estado.129

D. Eduardo, mesmo não gozando de bom relacionamento com os

Bulhões, deu continuidade à reforma Católica da Igreja e do Catolicismo popular que

havia sido implementada por seus antecessores, e iniciou um processo denominado de

estadualização da Igreja através da romanização.130 As principais medidas reformadoras de

D. Eduardo foram a continuidade das cartas pastorais como instrumento de comunicação e

divulgação das suas posições, a ênfase para a formação feminina, através do culto

mariano, e maior participação dos padres nas decisões e medidas de angariamento de

fundos para os cofres da Igreja, que se encontravam vazios, devido à falta de apoio político

dos grupos dominantes da época.

O período em que D. Eduardo esteve no comando da diocese

goiana foi de muitos conflitos entre Igreja e sociedade, uma vez que propunha mudanças

que envolviam diversos segmentos dela. Entre as irmandades e párocos, a luta de idéias

128 SANTOS, Miguel Archângelo Nogueira dos. Missionários Redentoristas Alemães em Goiás, uma participação nos movimentos de reforma e restauração católicas (1984-1944) . Vol I, São Paulo , USP, Tese de doutoramento, 1984 p. 208-215129 MORAES, Maria Augusta Sant’anna. História de uma oliguarquia: Os Bulhões. Oriente, 1974.130 VAZ, Ronaldo Ferreira. Da Separação Igreja-Estado em Goiás à Nova Cristandade (1891-1955),dissertação de mestrado, Goiânia, UFG, 1997.

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ultramontanas e liberais se expressou em diversos momentos, principalmente entre as

irmandades leigas que controlavam as romarias de Barro Preto (atual Trindade) e Muquém

(atual Niquelândia) visto que um dos aspectos da mudança envolvia a cristianização dessas

romarias, mundanas aos olhos da Igreja ultramontana, e a administração dos cofres e do

patrimônio, que poderia minimizar a falta de verba da Igreja nesse período. Este bispo

implementou várias medidas de cerceamento das festas populares e folias bem como

formas de controle do dinheiro arrecadado antes empregado em festas “profanas”, como

bailes, banquetes e cavalhadas.

Dom Prudêncio é o bispo sucessor de D. Eduardo. Assume a

Diocese em 1908 um pouco depois de D. Eduardo ter transferido a residência episcopal

para Uberaba, após o desencadeamento de conflitos e desacordos entre a Igreja e os

Bulhões. Esse religioso, que esteve à frente da diocese goiana até 1922, viveu em um

período no qual a situação da Igreja em relação à vida política nacional ainda era de

isolamento e os bispos, através de atitudes singulares, tentavam reconduzir a Igreja à sua

antiga posição, adequando-se ao jogo político de cada província, mediante a sua

estadualização e medidas que pudessem mostrar a importância da religião católica no país.

Através de cartas pastorais, livros e pregações, faziam intenso proselitismo em favor do

Estado e da ordem vigente, orientando o clero quanto às idéias e ao comportamento a

serem difundidos entre os católicos. 131

D. Prudêncio irá executar em Goiás um processo de estadualização

da Igreja, com alguns indicativos de restauração que só seriam completados pelo seu

sucessor, D. Emanuel. O autor, com quem dialogamos, define estadualização e restauração

como fenômenos de aparências semelhantes, mas com objetivos e resultados diferentes,

embora em algumas dioceses possam ter ocorrido simultaneamente. A estadualização foi

131 VAZ, Ronaldo Ferreira. Op. Cit., p. 143.

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uma reação imediata à separação (Estado/Igreja) e uma adaptação às novas condições,

tendo a Igreja de caminhar por si, gerar sua própria receita, manter seminários, fundar

colégios, ampliar o número de dioceses e de padres seculares e religiosos, além de

concorrer com o Estado pela simpatia e influência entre a população. A Neo-cristandade ou

Restauração representou uma ação ofensiva da Igreja, visando retomar uma união legal ou

uma aliança informal com o Estado para, através das suas estruturas e meios, impor o

Catolicismo como fé e força política na sociedade e nele mesmo.132

As principais ações de D. Prudêncio, nesse processo de

estadualização apontado por Vaz, concentraram-se na reabertura do seminário de Santa

Cruz com dinheiro da mitra diocesana e o empréstimo dos padres do Verbo Divino e com

algum auxílio do governo, após derrota definitiva dos Bulhões em 1912, com a ascensão de

Hermes da Fonseca à política central. Articulou também a compra de uma tipografia que

imprimiu entre 1896 e 1900 o jornal a República e depois o semanário o Lidador que

circulou até 1917 e foi grande responsável pela difusão das idéias e encaminhamentos da

Igreja Católica.

Outras medidas visaram ampliar o patrimônio da Igreja através da

compra de várias casas e prédios em Goiás, Ouro Fino, Bela Vista, Catalão e Pirenópolis.

As ações de D. Prudêncio revelavam o espírito romanizante a partir de práticas rotineiras

de retiro espiritual, visitas pastorais, cartas pastorais e incentivo à novas práticas

devocionais como o Apostolado da Oração, a Conferência São Vicente de Paula, a

Associação São Vicente de Paula, as Filhas de Maria, entre outras. Quanto às festas,

reformou e catolicizou inúmeras delas, cerceando suas ações e modificando grande parte

de suas características, atribuindo aos párocos toda a responsabilidade quanto à sua

organização e à gestão dos recursos gerados por elas.

132 VAZ, Ronaldo Ferreira. Op. cit p.p. 166

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Em Pirenópolis, este bispo realizou várias visitas especialmente

durante os festejos do Divino Espírito Santo, e sobre eles teceu contundentes críticas, além

de baixar normas cerceadoras que, pelo menos no papel, modificaram muito as formas de

festejar do povo. Sobre essas questões discutiremos melhor no item seguinte.

Dom Emanuel, sucessor de D. Prudêncio que irá falecer em 1921,

vivenciará um momento bem particular em relação aos seus antecessores. A partir dos

anos 20 irá ocorrer uma reaproximação entre o Estado e a Igreja por ocasião da sucessão

do Presidente Epitácio Pessoa, a partir do apoio indireto da Igreja ao regime republicano e

do endosso à posse de Arthur Bernardes. Essa aproximação não significou concessões para

a Igreja, que, por sua vez, deu pouco apoio ao movimento de 30. Porém, foi com a

revolução de 1930 e durante o longo governo ditatorial de Getúlio Vargas (1930-1945) que

ocorreu a “restauração” do poder e o prestígio da Igreja Católica no país. A constituição de

1891, liberal e laicizante, foi suprimida e deu lugar a um pacto entre o Estado e a Igreja,

mediante o restabelecimento de antigos privilégios e vantagens.

D. Emanuel, que estudou em colégio salesiano, permaneceu em

Mato Grosso, entre 1903 e 1911, desenvolvendo trabalho missionário junto à missão

salesiana da tribo dos bororos. Em 1917, retorna a Cuiabá para ocupar cargo de diretor

geral das secretarias deste Estado, quando D. Aquino Corrêa é feito presidente do Mato

Grosso. Em Goiás, à frente da diocese, irá se envolver diretamente nas questões relativas à

Romaria de Trindade, sob o comando dos redentoristas desde D. Eduardo, cujo contrato

não oferecia vantagens para a Igreja, que precisava de rendas para custear inúmeros gastos.

Por outro lado, envolveu- se no processo político que culminou com a transferência

definitiva da capital do Estado da cidade de Goiás para Goiânia, disputando espaço entre

os novos segmentos dominantes no cenário político. Assim como os seus antecessores,

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participou ativamente da vida religiosa das cidades goianas, apoiando as santas missões,

reconstruindo capelas e matrizes e investindo em seminários.

O episcopado de D. Emanuel adquiriu especificidade em relação

aos outros, também pelo fato de que a partir dos anos 30 a política reformista da Igreja

Católica obteve outro desdobramento. Esse denominou-se Ação Católica e foi um

movimento criado na Itália no período que buscava dinamizar setores da Igreja através da

implementação dos sacramentos. O resultado foi a criação e dinamização de diversos

grupos de trabalho bem como seminários e congressos. Esse período se caracterizou-se

também pela retomada do controle do ensino por parte da Igreja e pela vinda de outras

ordens estrangeiras para o Brasil.

Vaz interpretou a gestão de D. Emanuel dentro dos princípios

restauradores, o que promoveu ampla cristianização da sociedade goiana, mantendo o

Catolicismo na posição de religião majoritária, ganhando para as causas da Igreja grande

parte da elite econômica e intelectual.133

Esse bispo esteve várias vezes em Pirenópolis, durante o seu

episcopado, e lá institucionalizou a Romaria dos Pireneus para ser mais um centro de

receita para a diocese. Possivelmente, essa medida visava também o incentivo de

manifestações populares mais voltadas para a liturgia, ao passo que as festas religiosas, em

especial as do Divino, eram vistas como atitudes nefastas perante a fé católica.

Pudemos acompanhar a trajetória do episcopado romanizante, em

Pirenópolis, a partir da gestão de D. Prudêncio, que inúmeras vezes visitou esta cidade134,

embora a documentação não esteja completa e organizada, o que só vai ocorrer a partir de

1928, durante a gestão de D. Emanuel. Acreditamos que esta ausência elucida a situação

133 VAZ, Ronaldo Ferreira. Op. Cit., p. 232.

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do clero goiano em relação às dioceses e paróquias, visto que possivelmente não fazia

parte das preocupações centrais dos padres e bispos, nessa época, organizar documentos,

fazer balancetes, registrar atos em livros de tombo. Essa preocupação, todavia, estará

presente a partir dos anos 1930, demonstrando que é nesse momento que se completa a

reforma eclesiástica em Goiás. Em todo o caso, mesmo que houvesse esses documentos

organizados e guardados, anteriormente, contrariando nossas hipóteses, o seu

desaparecimento revela conflitos envolvendo patrimônio da Igreja, poder público e

famílias locais. Sobre isso discutiremos no terceiro capítulo desta dissertação.

Os livros de tombo da matriz de Pirenópolis foram importantes

divulgadores dessa política na localidade e apresentou as atividades dessa Igreja,

romanizante e disposta a cristianizar a sociedade, os cultos, as festas, os olhares, os

sorrisos... Se na prática esses objetivos foram frustados em função da desobediência do

povo, que interpretava a fé e a religião de outra forma, esse período será de conflitos e

mudanças para todos. Os livros de tombo serviam para o registro cotidiano das principais

atividades da paróquia, além dos principais acontecimentos envolvendo o Brasil e o

mundo, como as guerras mundiais e a revolução russa. As festas, sem dúvida, foram as

principais notícias desses documentos, pois havia uma preocupação muito evidente no

controle dessas manifestações bem como no fortalecimento do culto litúrgico, que

dispensava os festejos profanos em sua programação.

Em Pirenópolis a romanização foi muito incentivada pelos bispos

locais. O primeiro fator disso deveu-se à circunstância de ser uma cidade de número

expressivo de habitantes, além de concentrarem ali diversos patrimônios da Igreja. A outra

134 Os livros de tombo da Igreja Matriz de Pirenópolis anteriores aos anos de 1909 não foram encontrados. As argumentações para a ausência deles foram que roubaram esses livros, uma vez que neles estavam registrados todo o patrimônio fundiário dessa Igreja.

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causa possivelmente tenha sido o fato de ali as inúmeras festas, que sempre fugiam ao

controle clerical, estarem de certa forma ameaçando as medidas reformadoras pretendidas.

Em 1948, um padre desabafava no livro de registro da pároquia de

Pirenópolis sobre a situação religiosa do lugar. Por ocasião de um Congresso Eucarístico

em Goiânia, esteve ausente por alguns dias e reclamou a ausência dos grupos religiosos do

lugar, dizendo que só as Filhas de Maria compareceram no congresso, sendo que tanto o

Apostolado da Oração como a Irmandade do Santíssimo Sacramento achavam-se

impregnados de maçons e de propaganda do Protestantismo.135 O relato do padre

demonstra bem a situação da Igreja na época. E um dos seus grandes problemas era a falta

de padres. Quase anualmente, eles eram substituídos pelos mais diversos motivos, e isso

se tornou um grande problema para a Igreja, que tinha a evangelização como a principal

meta.

Em 1934, o Pe Santiago Uchoa, que esteve à frente da paróquia por

17 anos, precisou ausentar-se por problemas de saúde. A partir daí vários sacerdotes

atenderam às “necessidades espirituais do povo de Pirenópolis”.

“Em 1935 Pe. João Piau fez festa do Anno Bom, Reis e S.

Sebastião... Rev . Francisco Xavier da Silva em dois domingos proporcionou aos fiéis

a graça da Santa Missa... Pe. Samuel Galbusera fez autos solennes da Semana Santa,

esteve várias vezes como delegado parochial...Pe. Luiz Mª Zepherino, vigário de

Sant’ana de Anápolis, as festividades do Divino Espírito Santo e coração de Jesus..

Em julho para a festa de S. S. Trindade dos Pyreneus veio o Exmo sr. Secretário geral

da archidiocese o sr. Cônego Abel Camello e fez piedosa festa de N. Sr ª da Boa

Morte... Por fim o Pe. Domingo Pinto de Figueiredo foi nomeado delegado paroquial

em 23 de março de 1936.”136

135 Livro de tombo da Igreja matriz de Pirenópolis.1928-1956. Termo de abertura em 10 de maio de 1928 pelo vigário Pe. Santhiago Uchôa. 200 fls. , p.118. 136 Livro de Tombo 1929-1955.

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Pelo que pudemos verificar, no trecho documental citado, esses

padres de fora compareciam quase sempre aos festejos religiosos. Isto demonstra como a

Igreja vai encarar o envolvimento dos párocos com as festas, a partir desse período. O

documento demonstra que eles foram para a cidade, especialmente nos festejos ligados à

Semana Santa, nos quais a Igreja gozava de maior prestígio e poder de atuação. E deixar

de participar deles poderia provocar afastamento dos fiel, e a Igreja queria o inverso. A

proximidade entre os festejos do Divino e aqueles ligados à Semana Santa possibilitou que

muitos padres ficassem para celebrar os eventos religiosos desta festividade. Porém,

acreditamos que é muito provável que esses padres estivessem mais preocupados com os

festejos do Divino, que para a Igreja eram um grande alvo de santificação.

Uma outra preocupação dos bispos romanizantes, além das festas,

era com o ensino religioso das escolas. Em 1911, durante o episcopado de D. Prudêncio,

foi fundado em Pirenópolis o colégio Imaculada Conceição, dirigido pelas irmãs Filhas de

Jesus. Dezessete anos depois, o Pe. Santhiago Uchôa comunicava o fechamento do colégio

dirigido pelas irmãs, dizendo que alegavam dificuldade de comunicação. O padre no

entanto retruca a afirmação dizendo que “a cidade estava submetida a isolamento a uns 16

anos atrás e que a vários anos a cidade de Pirenópolis está em comunicação fácil por linhas

de auto que lhe dera até bons proventos.”137

No início de 1944, já no episcopado de D. Emanuel, noticiava-se a

chegada das irmãs carmelitas para começar uma Escola Normal. Como nem o convento,

nem a escola haviam ficado prontos para elas morarem e ensinarem, ficaram por um tempo

em uma casa particular em frente da Igreja matriz. Anos depois foi construído para elas o

ginásio Nossa Senhora do Carmo.

137Livro de tombo da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário de Meia Ponte - Registro dos documentos que emanaram da Câmara Eclesiástica- elaborado pelo Pe. Bruno Alberdi Zugardi. 1910-1928.Termo de abertura em 04-04-1910, 50 fls.

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Para Vaz, um dos pontos que diferenciaram as gestões de D.

Prudêncio e de D. Emanuel foi exatamente a questão do ensino religioso. Durante o

período em que D. Emanuel esteve à frente da diocese, inúmeras foram as iniciativas em

torno do assunto, como a fundação de vários ginásios e escolas, a construção e reforma de

várias capelas e matrizes , e o apelo a ordens estrangeiras para auxiliarem os párocos

locais. No entanto, é importante lembrar que a conjuntura política do momento favoreceu

a D. Emanuel. De um lado a Ação Católica que tinha como meta importante a

implementação do ensino religioso. Por outro,a partir de 1925, iniciava-se no Brasil a

revisão constitucional, e os segmentos religiosos clamavam pela oficialização do

Catolicismo como religião do país, uma vez que a constituição de 1891 proibia o ensino

religiosos nas escolas públicas. Em 1931, o Presidente Vargas decreta a legalidade do

ensino religioso nas escolas, abrindo-se aí caminho para que os próprios Estados

subvencionassem escolas católicas no país. Em Goiás, várias delas receberam essa

subvenção. 138

Em março de 1953, começa a funcionar o ginásio de Nosso Senhor

do Bonfim, em Pirenópolis, outra iniciativa de ensino ligada à Igreja Católica,

provisoriamente no Grupo Escolar, no período de 18:30 às 21:30 h. Como presidente, tinha

o vigário Frei João Antônio, como vice, o Dr. Wilson Pompeu de Pina, e Secretário o Sr.

Augustino Pereira. No início, o presidente reclamou que não podia tomar conta sozinho,

mas logo foi tranquilizado pelos outros, por acharem que isso não seria difícil. O vigário

ensinava religião duas vezes por semana e francês três vezes por semana. Só na primeira

série havia mais de trinta alunos e uns quinze na admissão. Um mês depois da abertura do

ginásio, há reclamação da falta de disciplina da parte dos alunos, sendo que muitos

138 VAZ, Ronaldo Ferreira. Op. Cit.,

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assistiam às aulas apenas para dormir. Muitos falavam que tinham de trabalhar de dia, não

tendo tempo de estudar!!139

No ano seguinte o ginásio continuava a funcionar. O frei João

Antônio havia conseguido dispensa de D. Emanuel, em função do trabalho nas missões

pelo interior do município. No entanto, continuava a dar aulas de Catecismo e História

Sagrada no ginásio. Já no colégio Nossa Senhora do Carmo, quem ensinava religião para

os alunos do curso ginasial e normal era o frei Bernardo, substituindo também o frei João

Antônio, por ocasião de suas viagens. No grupo escolar comendador “Joaquim Alves de

Oliveira”, as aulas de religião eram nas segundas e sextas- feiras, ministradas por senhoras

locais e, com certeza, exímias católicas, sob supervisão do vigário da paróquia. 140

Completando as iniciativas “restauradoras” de D. Emanuel,

diversas ordens estrangeiras estiveram em Goiás, principalmente a partir do seu

episcopado. Em 1937, os salesianos visitaram Pirenópolis por algum tempo,

acompanhando os trabalhos da paróquia, participando de eventos e conhecendo a

sociedade local141. Em 1944, foi a vez dos dominicanos e logo em seguida dos

franciscanos. Alguns desses chegaram inclusive a assumir a paróquia por algum tempo. Foi

o caso do Frei Filipe Antonio Kennedy, nomeado pelo arcebispo D. Emanuel. Flaviano

Tobin, franciscano, dos Estados Unidos, assumiu a paróquia de Pirenópolis, durante todo o

ano de 1948. Em 1955, foi a vez de o Frei Wirifredo Wiseman assumir a paróquia como

padre cooperador do vigário João Antônio. Depois assume Frei Bernardo G. Traimar, que

cede lugar a Miguel Breman... entre muitos outros.

Essas ordens desenvolveram inúmeros trabalhos em Goiás, mas o

principal deles foi as santas missões. Aliás, esse era o principal objetivo dessas ordens no

139 Livro de Tombo da Igreja Matriz de Pirenópolis 1928-1956 ano de 1953, p. 151. 140 Ibidem ano de 1954 p.p. 176-177. 141 Livro de tombo da Igreja Matriz de Pirenópolis 1928-1956.

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Brasil. Elas consistiam em visitas e pregações dos padres estrangeiros pelos sertões e pelo

interior do país. Possibilitavam o contato com populações inteiras, aonde o pároco não ia

com regularidade ou não podia chegar pelas dificuldades de acesso... Faziam pregações,

batizados, legalização de uniões através da celebração do matrimônio, confissões,

estimulavam o fervor religioso e a volta aos sacramentos.

O município de Pirenópolis, desde o início do século XIX, possuía

diversos povoados e muitas fazendas, além do núcleo urbano principal. Todo esse território

esteve sob a responsabilidade de apenas um pároco, e as preocupações com essa população

era latente, por parte da Igreja. Demonstrações disso foram as inúmeras ações de padres

junto a essa população que ficava isolada e distante dos olhos da Igreja. Geralmente, as

santas missões em Pirenópolis eram realizadas através de giros142 divididos por regiões: sul

e norte do município. Esses giros contavam com os mais diferentes obstáculos, sendo que o

principal deles era a distância e a falta de estradas entre uma região e outra. No entanto,

para a Igreja, certamente isso valia para conseguir levar o “evangelho” até esse povo. O

próprio bispo D. Prudêncio participava de várias dessas missões e chegou a ser apelidado

de bispo sertanejo. Por outro lado, nas descrições dessas visitas, esses párocos não

deixavam de se chocar e criticar as atitudes dessas pessoas.

“No giro do sul visitamos as fazendas e capelas Furnas,

Vargem Santa Ana, Degredo, Fundão, Serra Missael, Matutina, Indio, Chapada e

Fortuna. Encontramos as mesmas coisas: Mais ou menos uma boa vontade entre o

povo, especialmente em Vargem Santa Ana e Serra Missael, mas a mesma falta de

educação etc. Não vale nada para, por exemplo, distribuir catecismos, etc...Uma vez

nosso exm Arcebispo falou da necessidade das capelas etc, e depois muitas

experiências, etc tem razão. Tentamos falar, nestas viagens desta necessidade...Por

muitos anos os diferentes vigários e padres desta paróquia estão fazendo estas e outras

viagens iguais pelo cavalo, com muitas dificuldades; por exemplo a impossibilidade

142 Refere-se à forma como eram feitas as visitas pastorais girando de uma região à outra.

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de levar muitas coisas, de visitar especialmente as fazendas mais distantes

frequentemente ... 143

Pelo documento, vimos que os giros pelas fazendas completavam

toda uma rede de ações evangelizadoras por parte da Igreja, que objetivava atingir a todos

os povoados e fazendas, rezando, batizando, distribuindo a comunhão ou até mesmo

catecismos, tal como está expresso acima. É interessante perceber que os conceitos que os

párocos tinham do povo eram os piores possíveis. Evangelizar apenas não parecia o

suficiente; era preciso mudar os hábitos, os costumes e as atitudes.

No ano de 1945, após longa viagem-giro por Corumbá144 e

inúmeras fazendas e povoados de Pirenópolis, declaravam:

“Todos reconhecem as grandes dificuldades; distâncias

enormes; impossibilidade de viagens de cavalo, especialmente nas chuvas; falta de

disciplina e educação até ler e escrever na parte dos roceiros; etc. Aparece que muitos

tem interesse somente no batismo e casamento, nas capelas na roça, na parte religiosa,

mais nas partes profanas” 145

Haviam problemas nos “giros” pois as distâncias eram enormes e

algumas dessas dificuldades foram minimizadas quando em 1947, adquiriram um Jipe

para percorrer essas regiões longínquas.

“... Neste ano adquirimos um “jeep”, - o automóvel

americano da guerra e com este eu e Frei João Antônio fomos no giro do norte às

fazendas Campo Alegre, Pouzo Alto, Taquaral, Pouzo Alegre, Veredão, Porto

Sant”Ana, Entuma, Baixão, Vargem Querida, Descanso e Porto Marião. Durante a

143 Ano de 1947. Livro de Tombo da Igreja Matriz de Pirenópolis 1928-1956 p.p. 113-114. 144 Município vizinho de Pirenópolis.145 Ano de 1944, Livro de Tombo da Igreja matriz , p.p. 103.

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guerra as estradas a norte tiveram muito movimento, especialmente d’aquela à São

José; mas agora estão quasi abandonadas...”146

As estradas foram um grande problema para Pirenópolis, nas

primeiras décadas do século XX. Na câmara municipal houve inúmeras discussões no

sentido de se apresentar uma solução para o problema, que, no entanto, persistiu por muito

tempo. O Município não possuía estradas que o interligasse às várias regiões. No ano de

1925147, fora aprovado projeto de abertura de estrada de rodagem desta cidade a Anápolis.

O projeto ficou parado por muito tempo, por falta de verba. Anos mais tarde, em 1949148,

novamente um pedido de construção de estrada de Pirenópolis a Corumbá, que também

demorou a sair do papel. Esses dados nos fazem imaginar as dificuldades de deslocamento

entre uma região e outra. O jipe que a Igreja adquirira na época possivelmente teve muita

dificuldade de transporte entre tantos obstáculos.

A distância e a dificuldade de acesso provocavam situações

complicadas que talvez até inviabilizassem o trabalho dos padres. Um outro fator

agravante era o tamanho do município, com mais de 5 povoados e dezenas de fazendas, a

maioria delas sem capela. Possivelmente essas fazendas citadas, onde se faziam giros mais

freqüentes, fossem as maiores e mais movimentadas. Somente uma boa quantidade de fiéis

justificava tanto sacrifício. Como na maioria das fazendas não havia capela, as cerimônias

das santas missões eram realizadas na casa do dono da fazenda, onde geralmente moravam,

além dos proprietários, familiares, empregados, agregados. Moradores vizinhos sempre

compareciam a esses eventos também.

146Ano de 1947 - Ibidem. p. p.113-114.147 Livros de Ata da Câmara Municipal de Pirenópolis 1924-1926.148 Atas da Câmara Municipal de Pirenópolis de 1949 a 1951.

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“Missa e Crisma nos seguintes lugares: Fazenda São João do

Snr. César Curado no dia 16, no dia 17 em Cachoeira, casa do Snr. José Policeno, com

celebração da festa do Sagrado coração, Procissão e benção de duas imagens de 80

cm. Do Sagrado coração, e Sagrado coração de Maria. Diversas pessoas entraram no

Apostolado em ambos lugares. Dia 18, em Campo Alegre e dia 19 em Barro Alto...

Dessa vez teve umas trinta comunhões no Barro alto, muito melhor! No dia 27 teve

missa em Furnas e dia 30 em Vargem Santanna, casa José Amâncio da Luz”149

“Giro do Norte; Missas em Lagolândia no dia 16 de agosto.

Dia 17, Caiçara, família Borges, Comunhão 19

Dia 18, Morro Branco –Salviano 33

Dia 19, Pouzo Alegre- Dona Faustina 24

Dia 20, Catingueiro- Luizinho Borges 26

Dia 21, Barro Alto- João Silveira Leão 31

Dia 22 Barreira- Antônio Bernadino 16

Dia 23 Porto Maranhão José Ferreira 14

Dia 24 Campo Alegre Raimundo Vieira 13

Dia 25 Cachoeirinha Geraldo 43

Dia 26 Baiyão dona Arcêna Dias 34

Dia 27 Cachoeira José Policeno 48

Dia 28 Vargem Querida família Curado 29

Dia 29, 30, 31 Festa da capela de S. Bentinho 92

Dia 1 de setembro Retiro Curado Fleury 25150”

Possivelmente, muitas dessas famílias encomendassem a visita dos

padres, fato que sem dúvida, representava prestígio. Embora o povo não exercesse a fé tal

como almejava a Igreja, a grande maioria era católica, e a figura do padre representava

uma maior aproximação do sagrado. No documento acima, vale ressaltar a ênfase que se

estava dando aos cultos litúrgicos ligados ao Sagrado Coração de Jesus e ao Apostolado da

Oração. A preocupação em difundi-los reforça os novos posicionamentos que a Igreja

assumia, cuja orientação ultramontana e tridentina visava canalizar os cultos para rituais

149 Ibidem, 1953 p. 154.

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mais ortodoxos. Outro aspecto importante é a anotação do padre, que, ao que pareceu,

acompanhava esses registros de comunhões numa postura investigadora e comparativa.

Os diversos povoados também recebiam as visitas desses padres.

Em 1953, no mês de fevereiro, o vigário rezou a Santa Missa na capela de Índio com

vinte e oito comunhões; no dia 14, na capela de Caxambú realizou 23 comunhões.

Reclamou que neste último povoado houve muita descarga de armas e que teve de entrar

no meio de alguns cachaceiros para parar com os tiros. No dia 24 de fevereiro, o frei

Wirifredo rezou a Santa Missa em Cachoeira, em casa do Sr. Pedro; dia 25, em Campo

Alegre, dia 26, na capela de São Bentinho, pedindo que a restauração, da capela,

porquanto a construção e conservação desses templos eram muito importantes para esses

padres.

Pareceu-nos que esses “giros”, quando possíveis, eram feitos por

ocasião de algum festejo religioso. Coincidência, não existia nenhuma. Os próprios bispos,

quando faziam as visitas pastorais, preferiam essas ocasiões. O primeiro fator era a grande

concentração de pessoas, uma vez que essas missões objetivavam em primeiro lugar

crismar, casar, batizar e santificar. O outro era a oportunidade de coibir os “excessos”

praticados durante esses festejos

Um dos povoados de Pirenópolis lançou um desafio à Igreja no

início do século: Lagolândia. A questão é que surgiu uma líder religiosa no lugar,

chamada “Santa Dica”, que deveria ser motivo de preocupação para a Igreja.151 Santa Dica

desenvolveu sua liderança religiosa já na adolescência, por volta de 1923, quando

moradores do povoado atribuíram a ela a concessão de alguns milagres. A partir daí

participou de todo um movimento local, que culminou com o seu julgamento e prisão. Nos

150 Ibidem, p. 154. 151 VASCONCELLOS, Lauro de. Santa Dica: Encantamento do mundo ou coisa do povo. Goiânia, Cegraf, /UFG, 1991.

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livros de tombo da Igreja de Pirenópolis não localizamos nenhum comentário sobre os

feitos de Santa Dica à época de seu maior envolvimento com milagres e a defesa de uma

seita. Lauro Vasconcellos apresenta a versão de que em Pirenópolis Dica se envolveu com

os grupos políticos locais, que por meio dela conseguiam estabelecer acordos entre a

população, grande parte trabalhadores de fazendas. Por outro lado, é possível imaginar que

para a Igreja esse acontecimento tenha sido bastante desafiador e até mesmo humilhante,

tendo em vista que Dica exercia pleno controle sobre a religiosidade daquele povoado. Em

todo o caso, se esse evento não provocou a ira da Igreja, a ponto de ela nem sequer

mencionar em seus livros de tombo, podemos imaginar que a hipótese de Vasconcellos é

válida, e a Igreja, numa atitude estratégica, conformou-se com a situação.

O padre Isócrates de Oliveira em visita a esses povoado, em 1954,

disse que, no ano anterior, fora interrogado se ia continuar as visitas à capela deste

povoado, e ironicamente respondeu que antes era necessário tratar com a “Santa Dita” para

garantir paz. Foi respondido por um fazendeiro de nome Sebastião Pedro de Oliveira que

ele tinha a chave da capela, e que a “Dita” não queria mais mexer.152

Em 1956, ao visitar Lagolândia por ocasião de festas o padre não

hesitou em registrar:

“Lagolândia é um enigma. Com a mesma devoção com que

vão a Igreja, vão também tomar a benção de “Santa Dica”. Esta minha ida a

Lagolândia foi mais uma observação e pude constatar o espírito supersticioso daquele

povo. Muita exterioridade e pouco movimento religioso.” 153

152 Ibidem, 1949, p. 130.153 Livro de tombo, assentamento dos acontecimentos paroquiais da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário- Pirenópolis 1956-1980. 100fls, ano de 1956, p. 5.

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Mais tarde, já no episcopado de D. Fernando154, em uma extensa

descrição e comentário das capelas do município, o pároco não deixa de mencionar

Lagolândia, embora ela não fosse mais parte do Município por ter- se tornado autônoma

em 1964, voltando a ser subordinada pouco tempo depois. Além de mencionar que a festa

principal da cidade realizava-se com um “Emperador” do Divino, Rei, Rainha, comentou :

“Faz anos que uma senhora chamada a “Santa Dica” domina

a cidade e toda a zona com seu prestígio de “Santa” usa e abusa da política; todos os

vigários anteriores consideravam perniciosa a adoração desta senhora , para mim é um

mistério, acho que é uma espertalhona, que sem instrução porém com muita

experiência, saúde, vive a custa dos outros. Agora está perdendo sensivelmente seu

prestígio. Os anos não passam inutilmente 155.”

A partir desses comentários, é possível perceber que Santa Dica

ainda gozava de algum prestígio no povoado onde morava. No entanto, por que a Igreja só

se manifestava contrária anos depois de estourar o conflito? Em todo o caso, a existência

dela incomodava. E talvez a influência dela atingisse apenas o povoado onde morava.

As críticas à religiosidade do povo nesses povoados eram muitas.

Porém, os párocos procuraram também registrar as suas vitórias Em visita à capela do Rio

do Peixe afirmaram que esta era precedida de má fama, mas que graças ao movimento

religioso naquele ano, 1956, houve perto de 100 comunhões, e os botequins e os “ranchos”

respeitaram as horas de funções religiosas. Quanto à capela de Fazenda Cachoeira,

afirmaram ser a melhor de todas. Houve lá 125 comunhões no primeiro dia e 80 no

segundo dia, sendo que ela mereceria ser visitada, mesmo sendo uma das mais custosas

154 D. Fernando é o sucessor de D. Emanuel de 1956 a 155 Livro de Tombo 1956-1980 ano de 1967, p. 32.

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para o vigário. Já na capela de São Bentinho, na opinião do pároco, o povo era dos mais

atrasados, e ali não havia nenhum movimento religioso e sim muita cachaçada. 156

Em visita a Lagolândia, o padre Isócrates Oliveira aproveitou para

falar sobre;

“ as diferenças do tempo passado, o interesse do padres só

para salvar almas; e a necessidade para união dos verdadeiros católicos, dando

exemplo dos Marianos da cidade de Pirenópolis, e convidando primeiramente os

homens lá, para dar também para dar os seus nomes para esta

congregação...continuando as visitas cada derradeiro Domingo fui lá no jeep, com

marianos desta cidade; o presidente Benedito Pereira da Silva, Murillo Fleury, e Nilo

Pompeu de Pina: Estes falaram em toda parte com os homens, comecei os

congregados marianos lá, com exceção de 14 homens, agora no fim do ano tem 35. O

povo quer, agora a formação do apostolado da Oração e dos Filhos de Maria.”157

No documento acima temos dados importantes que explicam a

atuação da Igreja nas festas, no período analisado. O pároco tentava delimitar fronteiras

entre o passado e o presente da Igreja e os seus modos de atuação, sobretudo no que se

referia ao Culto Mariano, que parecia envolver diversos grupos locais.

A Igreja Católica parecia ter muito o que comemorar. Em troca de

tanto trabalho, os resultados pareciam chegar. Se, por um lado, a Irmandade do Santíssimo

Sacramento parecia não acompanhar as “mudanças” da Igreja, já a Irmandade de São

Vicente crescia muito, graças aos marianos, sendo que estava a comparecer assiduamente

às reuniões semanais. Eram elogiadas de um modo geral as vocações religiosas do

município.

É Importante ressaltar que a Irmandade do Santíssimo Sacramento

parecia não estar agradando à Igreja e isso nos leva a crer que o envolvimento dessa

Irmandade com os festejos, de um modo geral, talvez tivesse alguma relação com isso. A

156 Ibidem 1956, p. 5.

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Irmandade do Santíssimo Sacramento embora não se envolvesse diretamente com os

festejos do Divino, congregava diversos Imperadores do Divino.

As preocupações em relação ao patrimônio da Igreja também

estavam presentes. Incentivava-se o pedido de mais coletas, especialmente nas festas,

sendo que com este dinheiro podia-se comprar muitos objetos para a Igreja:

“ parâmetro de toda cor excepto verde, um tapete para o

santuário, etc. mas especialmente dois confessionários fechados. Antes era pouco

desculpável, na minha opinião, nos confessionários abertos a infrequência ao

sacramento de penitência: porque este sacramento, especialmente, deve ser segredo. É

um problema, ainda, visitando os doentes e mais ainda, na roça com casas abertas, etc,

guardar o segredo da confissão. Mas graças a Deus ao menos na Igreja matriz agora

não tem perigo e aparece que por causa desta nós temos muito mais confissões, mais

frequentes, de todos; homens, mulheres e meninos !!!” 158

O documento acima explica algumas atitudes Igreja que se firmou

nesse período. O confessionário era um importante instrumento de aproximação entre o fiel

e a Igreja; a preocupação em tê-los era marcante, pois que a partir do contato direto, como

acontece nas confissões possivelmente ela conseguiria ampliar o seu poder e influência,

inclusive sobre as crianças, com base na expectativa de que a partir da infância se poderia

moldar o fiel.

No final dos anos 50, os números apresentados pareciam vitoriosos:

657 batizados, 5.495 comunhões na Matriz e 11.292 fora, 10.741 confissões, 104

casamentos, 86 óbitos, 127 marianos, 140 membros do apostolado da oração, 54 filhas de

Maria, 270 irmãos do Santíssimo Sacramento, e 140 Vicentinos. Porém, nem tudo estava

157 Livro de Tombo 1929-1955, ano de 1949 p.p. 130-131. 158 Ibidem p. 133.

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dentro do controle da Igreja: as festas ainda persistiam em “profanidades e excessos”, era

preciso também romanizá-las.

2.2- Os Olhares sobre as Festas

Durante boa parte do processo de romanização, os poderes leigo e

eclesiástico enfrentaram-se através da imprensa da época. O grupo dos Bulhões contribuiu

para a criação de vários jornais, e os dirigiu, entre eles o Monitor Goyano (1867), Província

de Goyaz (1869-1873), A Tribuna Livre (1878-1884), através dos quais divulgava idéias

anti-escravocratas e o jornal O Goyaz, (1884-1910) defensor de suas idéias, e um dos que

mais atacaram a Igreja Católica.159

A Igreja Católica não ficou atrás. Havia uma grande preocupação,

por parte das autoridades religiosas, em Goiás, quanto às correntes de pensamento

“liberais” que contrariavam a filosofia católica e afastava os fiéis da fé “verdadeira”. Entre

elas percebemos que o Protestantismo, a Maçonaria e o Espiritismo foram os principais

alvos de críticas por parte dos segmentos católicos. A revista A cruz160 foi um importante

instrumento de divulgação das idéias dessa Igreja em momentos de mudança e de tantos

impasses. Inúmeras páginas foram dedicadas à discussão da separação entre a Igreja e o

Estado. As argumentações eram plausíveis, coerentes com o pensamento religioso e

fundamentadas no discurso que defendia a necessidade da religião para os povos.

Outro vilão era o positivismo, associado ao ateísmo e responsável

pelas mazelas decorrentes do “afastamento” do povo em relação a Deus. Criticou o

casamento civil, atacou furiosamente o Protestantismo em notícias, crônicas e debates e

159 VAZ, Ronaldo. Op. cit p.p. 60.

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reprovou veementemente a Maçonaria. Além disso, essa revista demonstrava bem a

filosofia dessa Igreja que estava se renovando. Inúmeras páginas foram dedicadas a

episódios miraculosos de Nossa Senhora de Lourdes, na França, bem como aos relatórios

completos das conferências episcopais, dos discursos do papa, das festas ortodoxas ligadas

especialmente ao culto mariano e ao Sagrado Coração de Jesus. Por outro lado, não se

preocupou muito com a divulgação das notícias regionais e com a maneira como essas

discussões eram travadas em Goiás.

Já o Lidador,(1909-1914/1916-1917) que começou a circular já no

início do episcopado de D. Prudêncio, fez melhor essa ponte entre o mundo, o Brasil e

Goiás. Nesse jornal foram divulgadas, além dos assuntos relacionados ao pensamento e

encaminhamentos da Igreja Católica, todas as ações dessa Igreja em Goiás. Especialmente

em relação às festas, ele, foi o interlocutor responsável pela divulgação de anúncios,

regulamentos e normas referentes aos festejos populares. Já no episcopado de D. Emanuel,

foi fundado o jornal Brazil Central (1937-1964), que possuía características parecidas com

o Lidador e que procurou divulgar as atividades e pensamento da Igreja Católica.

Esses jornais foram importantes divulgadores das festas populares,

em especial das Festas do Divino. Mesmo que representassem olhares diferenciados para

esses festejos, demonstraram os acordos e alianças políticos e o embate entre o clero

romanizante e a sociedade leiga local. As descrições, na maior parte dos casos

acompanhavam as festas desde os momentos iniciais até o acontecimento propriamente

dito. Outras impressões sobre elas, particularmente sobre a do Divino Espírito Santo,

foram os anúncios em jornais, convidando toda a população para participarem delas, além

dos anúncios de lojas de roupas e chapéus exclusivamente para esses eventos.161

160 A revista A Cruz circulou nos anos 1890 e 1891 na cidade de Goiás.161 Além das festas do Divino as principais festas descritas foram : Novenas e festas de Sant’anna, Stª Efigênia, Nossa Srª da Boa Morte, N. Srª da Abbadia, festa do Rosário, Festa da Conceição, Festa de São

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Apesar das ricas descrições dessas manifestações, é importante

lembrar que os olhares lançados sobre elas foram os mais variados possíveis. Na maior

parte dos casos foram relatadas por um representante da comunidade ou por um aliado do

grupo que emitia o jornal, que por sua vez dava as suas próprias interpretações para a

festa. Em outras ocasiões, os festejos eram relatados por um pároco local que não deixava

de criticar os momentos profanos, os bailes e o consumo de bebidas alcóolicas, sendo que

em muitas vezes chegavam a proibir determinados festejos, e o principal alvo era, quase

sempre, a Festa do Divino Espírito Santo.

A partir dos jornais, tivemos a impressão de um cotidiano repleto de

festas. Elas eram dedicadas a todos os santos e realizadas das mais diferentes formas. No

entanto, possuíam inúmeras características em comum, que as acompanhavam por toda a

província. Havia uma fusão constante de elementos profanos ao sagrados, o que fazia dessas

festas um interessante espetáculo de cores, sons e símbolos que divertiam a população,

possibilitando-lhe exercer sua religiosidade e a sociabilização geral. No jornal o Estado de

Goyaz de setembro de 1893, uma carta de um observador faz a descrição completa da festa

do Espírito Santo, em Curralinho, naquele ano, o que nos deu a impressão de uma grande

evento.

“No dia 24 começaram os tríduos do Divino Espírito Santo.

Ãs 9 e ¼ da noite d’esse dia aqui chegaram o revmo padre ribeiro e os músicos que

deviam funcionar na festa, sendo recebidos com muitos fogos.

No dia 26, depois do Tríduo teve lugar o levantamento do

mastro do Espírito Santo, de que estava encarregado o sr. Antônio de Moraes.

Ãs 11 ¼ horas da manhã, depois da folia percorrer todo o

arraial dirigiu-se à Igreja o Imperador acompanhado do povo e da banda de música e

logo entrou a missa solemne cantada pelo revm. Padre Pedro... A festa esteve muito

boa, pois o imperador sr. João José Buedo não poupou para isso. Acabada a missa foi

José, Semana Santa, Procissão dos Passos, festa de Nossa Senhora dasDores, do Coração de Jesus, Mês de Maria, Festa do Carmo, Festa de São Domingos, Romarias, Corpus Christi.

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pelo imperador offerecida aos devotos do Divino uma lauta meza de doces finos e

bons vinhos....”162

Os tipos de festas realizadas eram muito parecidos de um lugar para

outro, porém, alguns festejos eram preferidos pela população do local, que a eles

concorriam bastante. Nem sempre esses festejos obedeciam ao calendário da Igreja, não

sendo raro as vezes em que os festejos do Divino, comemorados entre os meses de maio ou

junho, aconteciam em setembro e outubro. Em alguns casos, realizavam-se em um único

mês várias festas dedicadas a mais de um santo. É importante considerar que muitas festas

eram promovidas ao mesmo tempo, obedecendo a estratégias dos próprios festeiros para

economizar nos gastos. Em muitos casos, os eventos que normalmente acontecem entre os

meses de maio e junho, por exemplo, os festejos do Divino, transferiram-se para outros

meses, possivelmente acompanhando o calendário da política, que utilizava muitas dessas

festas para entrar em contato direto com o povo que se deslocava das mais distantes regiões.

Assim o trecho abaixo nos demonstra:

“ Realizarão se conforme havíamos noticiado, os festejos do

Espírito Santo, de N. Srª do Rosário, e S. Benedicto, correndo tudo satisfatoriamente e

a contento geral principalmente os do Espírito Santo, que nada deixarão a desejar,

tanto no sabbado como no domingo. A música do coro, na missa de domingo, sahio-se

bem, não obstante ser a primeira vez que tivemos o prazer de ouvir as Ex. mas Snrªs

que d’ella fizerão parte.”

Nossos parabéns aos dignos festeiros, os Srs Miguel José

Vieira e Domingos Gomes d’Almeida163”

Os festejos do Divino eram os principais polarizadores de outras

festas. Isto demonstra o caráter socializador desses festejos e a sua importância no rol das

162 Jornal O Estado de Goyaz de 7 de Setembro de 1893. 163 Jornal A Tribuna Livre de 22 maio de 1880.

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festividades populares. Um aspecto importante, é necessário ressaltar, é o caso do festeiro

do Divino, também chamado Imperador. Esses personagens foram representados pelos

principais nomes de Goiás, e no relato acima é possível verificar o agradecimento ao

festeiros como estratégia de reafirmação social. O espaço da imprensa era uma importante

oportunidade para a promoção de grupos e indivíduos com pretensões políticas. Muitas

vezes, o mesmo imperador noticiava a mesma festa em vários jornais. Acreditamos que

nem sempre era preciso convidar a população para eventos que tinham a rua como o

principal palco de acontecimentos. Noticiar a festa e dizer como ela seria dava prestígio

social para quem a promovia.

As preferências, por uma festa ou outra, variavam de acordo com a

sociedade, mas durante os festejos do Divino, que eram dos mais citados, assim como os da

Semana Santa, havia diversos acontecimentos que davam a essa manifestação a

característica de uma das mais expressivas ao olhos da população:

Arraial de Bonfim “Fomos testemunha da bonita festa aqui

celebrada a 21 do mez pretérito. A festa do divino Espírito Santo, a mais concorrida

do anno, e para a qual mostra sempre este bom povo muito enthusiasmo, foi este anno

esplendida...

Com grande acompanhamento e dentro daquelle quadro, que

tem sua significação simbólica, dirigiu-se o imperador à sua residência¸ destribuindo

aos convivas uma lauta mesa onde se saborearam delicados doces e gostosos

manjares... Ofereceram tres dramas e uma comedia durante os três dias de festa.

Brilharam os cavaleiros nos três dias de cavalhadas. ..

Assim terminou esta festa que deixou saudades...

O correspondente.”164

164 O Estado de Goyaz de 8 de junho de 1893

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Outra estratégia era contar como a festa tinha sido. Muitas cidades

menores tinham seus correspondentes que se encarregavam de noticiar as festas desses

lugares. Na descrição acima, observamos que o narrador fez questão de mencionar que o

festeiro distribuiu doces, numa representação simbólica de fartura e poder, além de

promover peças e cavalhadas, o que era uma outra forma de ostentação permitida para

poucos.

Entre rios: “A princípio pequena concurrência, avultada no

fim. Calcula-se que 5000 pessoas que concorreram nos últimos dias apesar das chuvas

extemporâneas. Houve 1026 chrismas, 1250 confissões, e muitas uniões ilícitas foram

legalizadas. ..No dia 21 , festa do Divino Espírito Santo, encerrou-se com uma

brilhante procissão e com benção Apostólica”165

Outra questão que fazia das festas um intenso momento de

sociabilização era o fato de muitas vilas e lugarejos não terem padres permanentes. Assim,

era durante as festas que as pessoas se casavam, batizavam-se, comungavam, assistiam a

missas e exerciam sua fé. Nos trechos acima e abaixo podemos ter uma demonstração

disso.

“No dia 2 de setembro o illustre padre Brom, virtuoso e

incansável vigário desta freguezia, seguiu com alguns amigos para o arraial de

Mineiro que dista d’esta villa vinte e duas léguas. O distinto parocho foi ali para fazer

a festa do Divino Espírito santo , orago dessa nova povoação.

No dia 8 do supra citado mez teve início a festa que constou

de tríduos, missa e procissão. Durante os poucos dias que o vigário permaneceu entre

aquelle bom povo, baptisou sessenta crianças, celebrou alguns casamentos e legitimou

muitas uniões ilícitas.

No dia da festa os cidadãos alferes José Francisco Ribeiro e

Joaquim Carrijo de Resende promoveram uma collecta para a reconstrução da capella

165 idem 31 de Maio de 1893

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cuja quantia attingiu a quatro contos, prometendo o povo contribuir com o

restante..."166

Durante as festas, as casas de comércio aumentavam as suas

vendas, de artigos para a alimentação, muito usados nos festejos, e também de roupas,

sapatos e acessórios que possivelmente eram adquiridos por aqueles que tivessem

condições para melhor se apresentarem durante as cerimônias. Na cidade de Goiás, a casa

Confúcio, na época das festas, costumava direcionar os seus anúncios especificamente

àquela que estivesse mais próxima. Para os festejos do Divino foram muitos os que

ofereceram um grande sortimento de fazendas finas para vestidos, roupas feitas, calçados

para homens e senhoras, chapéus, perfumarias, luvas leques de cetim, gravatas, meias

brancas e de cores, camisas entre outros produtos.167

No ano de 1882, as casas Confúcio anunciaram diversas novidades

para as festas do Espírito Santo: chapéus dos mais “chics”( sortidos para os homens),

leques finos de cores variadas com e sem plumas, luvas de seda de cores variadas de meio

braço, essências victória, moskary, mysteriosa, federação etc., meias de escossia branca e

em cores para senhoras, botinas de “pellica” e “bezerro”, “setim” para homens e mulheres.

Rendas creme e branca, roupa enfeitada para meninos de 8 a 10 anos, chales ... e termina o

anúncio dizendo:

“Os Senhores e Senhoras que não forem à casa do Confúcio

também não irão na ponta assistir aos tríduos e a cavalhadas”. 168

Embora as festas reunissem e envolvessem os diversos segmentos

sociais locais, existiam os lugares de participação geral e aqueles de queparticipavam ou

participavam preferencialmente as pessoas mais “ilustres da sociedade.”

166 O Estado de Goyaz de 12/11/1892.

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No ano de 1894, um observador que escreveu ao jornal o Estado de

Goyaz, narrando a festa do Divino em São José de Mossâmedes, observou que o Imperador

do Divino, Sr. Joaquim Caetano, distribuiu carne verde, verônicas e pãezinhos ao povo e

uma variada mesa de doces na rua de sua casa de residência. A tarde ofereceu um lauto

jantar e à noite uma animada soirée. O narrador observou que no jantar estava a nata

daquela sociedade de ambos os sexos e que o primeiro brinde foi levantado pelo vigário,

que, em poucas e eloqüentes palavras felicitou o festeiro pelo modo satisfatório como

acabava de cumprir seu dever.169

Durante as festas do Rosário e São Benedicto em Jaraguá, um

observador narrou toda a riqueza do festejo, que se diversificou entre atos religiosos,

teatros, lautas mesas de doces e os reinados. Contudo, não deixou de observar que à parte,

no palacete do Coronel Tubertino, encontrava-se a sociedade mais seleta de Jaraguá diante

de uma esplêndida mesa em que se ostentaram os pares dos mais delicados doces, as mais

finas bebidas e onde oraram os Drs Carvalho Ramos e Napoleão.170

Mesmo assim, embora houvesse em quase todas as festas a

segregação social do ambiente festivo, nos pareceu que os lugares de convivência comum

foram muito maiores e ocuparam um lugar privilegiado na narração dos observadores das

festas. Essa convivência comum não ocorria, contudo, apenas nos eventos religiosos, mas

também na diversidade de outros, como bailes, soirées, teatros, cavalhadas, entre outros.

O grande consumo de alimentos é um elemento bastante

característico dessas festas: em quase todos os relatos era comum a descrição de uma

variada mesa de doces, jantares, além da distribuição de alimentos para pobres e presos.

Como parte do programa da festa do Divino, na capital, em maio de 1909, havia uma

167 O Estado de Goyaz 26 de Março de 1894.168 Jornal O Estado de Goyaz de junho de 1882. 169 Idem. 26 de março de 1894.

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atividade extra, que incluía no dia 23, às 4 horas da tarde, jantar aos pobres e presos e no dia

29, às 6 horas da manhã, distribuição de carne fresca de gado, principalmente aos pobres.171

O programa dessa festa, no ano de 1896, incluía também em sua

programação, além da exposição de insígnias do Espírito Santo, novenas, alvorada, entrega

da coroa, mesas de doces, também as cavalhadas (se houver cavalheiros em número

suficiente), distribuição de carne aos pobres e um jantar e esmola a eles se não houver

cavalhada. Foi em seguida parodiado:

“Será servida uma mesa de doces, si houver assucar, haverá

assucar se houver cana, (...) Distribuição de carne se houver boi (...) Um jantar se

houver o que comer, aos pobres se os houver.”172

A prática de distribuição de esmolas, comida e agasalho aos pobres

não foi constante nos festejos do Divino. Muitos Imperadores preferiam promover bailes,

teatros e cavalhadas, pelo fato de isso dar mais prestígio social. Por outro lado, o final do

século XIX trazia mudanças nos modos de festejar, e a Igreja reivindicava espaço entre os

festejos, incentivando apenas os tipos de atitudes que coincidiam com os seus novos

posicionamentos condizentes com os dogmas litúrgicos, pois via esses eventos profanos

como “excessos” que não deveriam existir.

Nos jornais, a maioria dos relatos foi feita por homens que eram

encarregados da correspondência para os jornais da capital ou da redação de matérias neles.

A maior parte dos jornais que utilizamos pertenceu a um dos principais grupos políticos de

Goiás no período, os Bulhões, que por sua vez irão conduzir todo o processo de implantação

da República neste Estado. Este grupo familiar possivelmente tenha divulgado apenas as

notícias que melhor lhe conviessem, assim como as festas promovidas por seus aliados

170 Idem 03 de Julho de 1903.

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políticos. Nesse momento, finais do século XIX, importantes alterações na Igreja estavam

se desencadeando, e as festas, como parte da religiosidade popular, iriam também sofrer

todo um processo de alterações. Nesses jornais que pesquisamos não foi possível perceber

este processo, uma vez que a Igreja não gozava de bom relacionamento com este grupo

político.

É só a partir da imprensa católica que vamos observar as

características que o novo relacionamento entre Igreja e Estado iria imprimir na sociedade e

nas suas festas. O Lidador divulgou, à sua maneira, diversas festas do Divino Espírito

Santo, em várias localidades. Nessas descrições, enfocava preferencialmente os aspectos

religiosos da festa, como as procissões, as novenas, a ornamentação das igrejas, a música e

a liturgia de um modo geral. Não poupou elogios a alguns imperadores, possivelmente

membros das novas associações religiosas e defensores da sacralização do culto ao Divino

Espírito Santo.

Os principais lugares de onde recolhemos relatos da festa do Divino

foram a Cidade de Goiás e a de Curralinho. Inúmeras outras cidades e freguesias goianas

apontaram também informações esparsas sobre esses festejos, entre elas Corumbá, Jatay,

Mossâmedes, Jaraguá, Bonfim, Campo Formoso e freguesia do Alemão, entre outras.

A partir dessas descrições de festas, pudemos, todavia, entender

parte dessa dinâmica festiva que acompanhou todo o século XIX até as primeiras décadas

do século atual. O que mais nos instigou foi o fato de não encontrarmos nenhum relato

sequer da festa do Divino em Pirenópolis. Atualmente os seus festejos são acompanhados

pela mídia local e regional, dando-nos a impressão de ser a única festa do tipo em Goiás. No

171 Jornal O Lidador de Maio de 1909 N º 20. A distribuição de alimentos aos pobres, durante os festejos do Divino, é um costume instituído pela Rainha Izabel de Portugal, no século XIV; essa caracterísitica pode ser observada em algumas festas do Divino no Brasil. 172 Jornal O Estado de Goyaz, 26 de Maio de 1896.

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entanto, nos parece que essa dimensão regional e nacional, é mais recente e tentaremos

entender isso melhor ao longo do trabalho.

A ausência de Pirenópolis nesses jornais nos levou a outras

indagações pois, como todos esses períodicos que pesquisamos foram impressos em Vila

Boa, atual cidade de Goiás, talvez continuasse ainda acesa a rivalidade entre as duas

cidades, que se gestou ainda no XVIII173. Por outro lado, essa ausência pode ser explicada

pelo fato de em Pirenópolis os grupos políticos locais não estarem favoráveis nem ao

partido liberal, inicialmente defendido pelos Bulhões, que na maioria moravam em Vila Boa

de Goiás, nem ao movimento republicano, no qual esse grupo político citado irá se envolver

amplamente. Um exemplo concreto é o caso de Luiz Gonzaga Jaime, pirenopolino do

Partido Conservador que participou ativamente do processo político goiano e durante essa

trajetória travou embates e alianças com os Bulhões.174

Algumas exceções podem ser ressaltadas, como é o caso do ano de

1893. Neste caso, um correspondente escreve uma carta ao presidente do Estado, narrando

um crime em Pirenópolis que teve a festa do Divino Espírito Santo como palco. Em nenhum

momento a festa é descrita, sendo que o texto resume ao fato acontecido e pede

providências quanto à impunidade existente em Goiás, principalmente em relação àqueles

protegidos pela lei ou pela política.175 Em 1895, esse mesmo jornal voltou a noticiar

Pirenópolis e dessa vez abordou a questão das minas do Abade, conflito que envolveu

grupos locais e uma companhia de mineração no período, além de noticiar a morte de Braz

de Pina, importante personagem local. Outras notícias esparsas uma vez ou outra apareciam

nesse jornal e nesse caso sempre dando ênfase à falta de estradas, às doenças e a outras

questões que em nada se relacionavam com as festas. Na imprensa católica, Pirenópolis

173 Um dos pontos que justificou o surgimento desta rivalidade, ampliada ao longo do tempo, foi o fato de Vila Boa ter sido colonizada por uma maioria de paulistas e Meia- Ponte por portugueses. 174 MORAES, Maria Augusta Sant’ana. op. cit

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também aparece poucas vezes, e nesse caso acreditamos que a festa do Divino desta

localidade estava longe de ser um modelo para as demais festas de Goiás. Sendo assim,

esta imprensa limitou-se a normatizá-la de modo que contemplasse os seus objetivos

reformadores.

2.3- Rezar é Preciso, Festejar não é preciso?

Em Goiás, as festas de santos foram um grande obstáculo para a

proposta romanizadora da Igreja Católica. De um lado, contavam com um número escasso

de padres para acompanhar esses festejos e impedir os seus “excessos”. De outro,

precisavam lutar contra uma tradição remota, de acordo com a qual as festas religiosas

eram oportunidade de encontros, danças, bebidas, fogos, alegria... A distância entre uma

região e outra, o grande número de festas e o ecletismo popular também dificultavam a

proposta da Igreja.

Durante o episcopado de D. Eduardo, uma das medidas

implementadas para agilizar o processo de romanização da Igreja foi a elaboração de um

regulamento para as festividades e funções religiosas de Goiás. Esse regulamento foi

publicado em uma tipografia romana, provavelmente por ocasião de alguma das viagens

que esse bispo fez até a “cidade santa”. Faziam parte do procedimento romanizante

viagens periódicas do bispo a Roma, para, entre outras coisas, prestar conta e discutir

novos procedimentos.176 Antecedendo o regulamento, o bispo faz uma longa digressão, em

uma carta pastoral sobre o sentido da fé católica e as festas religiosas. Em vários trechos

faz referências ao povo romano como religioso, ordeiro, o qual deveria ser exemplo para os

brasileiros;

175 Jornal o Estado de Goyaz. Agosto de 1893.

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“...Faziam também meu pensamento transportar-se ao meio

de vós,, dilectissimos Irmãos e filhos, desejando que aqui estivésseis todos comigo

para verdes a felicidade de um povo que sabe, visitar o templo de Deus vivo com

aquelle espírito de reverência e respeito devido à santidade do logar, e que sabe

celebrar suas festas religiosas com alegria tão santa, tão sincera, e tão serena, que

mostra externamente o candor da fé, que lhe váe na lama; em summa, que sabe prestar

culto a Deus Digno de sua Infinita Majestade....Porque os nossos diocesanos, que no

entanto brilham por tão bellas virtudes, não hão de praticar seos deveres religiosos

com este mesmo espírito de fé; de celebrar as festividades da Egreja, de tomar parte

nas romarias, nas procissões, nos actos da semana santa, com egual piedade e

recolhimento? Porque a tantas exterioridades, quasi sempre inuteis e dispendiosas não

hão de alliar estas bellas disposições internas? Porque ao apparatoso e às vezes

reprehensivel , porque abusivo, culto externo não hão de unir o culto interno? 177

Em todo o documento, o bispo questiona os excessos das

cerimônias religiosas, chamadas por ele de exterioridades, e sugere que elas sejam

acompanhadas de boas obras, da prática dos sacramentos, que, segundo ele, visavam o

melhor proveito da alma e a reforma da vida. Segundo ele, o fim do homem é adorar,

amar e servir a Deus neste mundo, e depois “gosar delle no céo”.178 É evidente a

orientação no sentido de canalizar as manifestações populares para as práticas litúrgicas

em detrimento dos bailes, dos fogos, das penitências, das promessas, do comércio... Para

ele, não seria digno de Deus:

“Um culto pura e meramente exterior, desacompanhado

daquelles sentimentos d’alma, de respeito e submissão a Deus, consistindo em

176 VAZ, Ronaldo Ferreira. Op. Cit., p. 50.177 Pastoral de D. Eduardo Duarte Silva. Bispo de S. Anna de Goyaz. Sobre o culto Interno e Externo. Regulamento para as Festividades e Funções Religiosas. Roma, Scuola Tipografica Salesiana, 1899. 63 p., p. 8.

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materiaes formulas de rezas, cujo sentido é muitas vezes ignorado; em canticos, ou em

latim ou em portuguez, cuja lettra é tão estropiada, que frequentemente dá um sentido

ridículo; em assistências a actos religiosos na mais completa desattenção, ou por

simples recreio, como se faria assistindo a qualquer espectaculo profano; em romarias

tradicionaes sem espirito algum de penitencia, e não poucas vezes por intuitos

mercantis; em votos e promessas provocadas por interesses e fins temporaes

exclusivamente; em estampidos de foguetes e rumor de instrumentos musicaes; em

luminarias e espectaculos pirotechnicos; em exibições carnavalescas pelas ruas

acompanhadas de burlescas e indecentes pantomimas; em divertimentos hippicos e

grotescas representações thetres, cousas talvez uteis a principio para chamar à fé o

embrutecido gentio? 179

Na descrição acima, encontramos vários elementos da festa do

Divino. Nela o autor ressalta os foguetes, as luminárias, os espetáculos musicais, o

comércio, as representações teatrais, a exibição de máscaras, entre outras coisas, o que nos

faz pensar: estaria esse regulamento referindo-se a algumas festas em particular, entre elas

a do Divino? Mesmo que não seja possível descobrir isso, temos nesse texto os principais

elementos da religiosidade popular da época, o que demonstra que a Igreja não santificaria

tantos elementos. As festas pareciam imperar no reino do exibicionismo, das cores e do

brilho.

Por outro lado, D. Eduardo não deixou de reconhecer que as

festividades faziam parte do culto católico, a ponto de diferenciá-lo dos protestantes,

chamados por ele de “irmãos dissidentes”. Apoiando – se nas “Escrituras Sagradas”

afirmou que Deus em vez de reprovar, prescreveu ritos e cerimônias exteriores para ser

adorado.

178 Regulamento Ibidem p. 9.

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“Bem sabem que, abolido o culto externo, aos poucos a fé

esfria-se, certas verdades da religião obliteram-se, a pratica das virtudes fica no

olvido, começa o reinado do indifferentismo, e em vez do christianismo surgirá o

racionalismo, que é a única doutrina seguida nos paizes, onde o protestantismo

asssentou seo acampamento”180

No entanto aconselhou:

“Deus quer que, concorrendo às suas festas vos abstenhaes

de todos os actos peccaminosos, e que estas, em vez de servirem de pretexto, motivo,

occasião ou incentivo ao peccado, sirvam principalmente para vosso maior proveito

espiritual e santificação de vossas almas...

Indo em romarias aos mis devotos santuarios, que a fé e a

generosidade de vossos pais ergueram na diocese, todos, todos tendes sempre em vista

directamente a gloria de Deus, a honra de Maria S. S. e a vossa santificação; ou antes

lá ides para mercadejear, para assistir à um simples espectáculo de reunião de povo,

para passar alguns dias em regosijos, em divertimentos, em jogos e muitas vezes em

peccados, prestando talvez mais honra e gloria a Deus, si em vossas casa santamente

fizessesis vossas devoções?” 181

Se esse último questionamento fosse feito diretamente ao povo,

possivelmente D. Eduardo se decepcionasse um pouco com a resposta. Pelo menos, nos

documentos que a própria Igreja produziu, as atitudes de desobediência por parte do povo

demonstraram que o sentido popular de festejar, definitivamente, não convergia com a

opinião dos padres católicos. Se considerarmos como hipótese o exagero por parte das

autoridades religiosas em atribuir muito mais excessos do que na verdade existiam,

179 ibidem p.p. 11-12.180 Regulamento, ibidem p. 29.

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podemos, da mesma forma, entender que as festas católicas, na opinião da Igreja, não

poderiam ultrapassar os cânticos, as procissões e os sacramentos. Mas como cristianizar

tantas atitudes, gestos, olhares, práticas costumeiras, se para quem os praticava isso parecia

tão normal, a ponto de repeti-los a cada festa, mesmo após tantos sermões, orientações e

ameaças por parte dos párocos?

Na verdade, isso não foi tarefa fácil. Por um lado, os padres não

podiam coibir as festas a ponto de fazer com que desaparecessem, pois ainda eram a

grande expressão da fé católica no Brasil. Por outro lado, precisavam combater as atitudes

“pecaminosas” que não tinham nenhum vínculo com a fé, tal como ela passa a ser

concebida a partir do processo de romanização. O final do século XIX e o início do século

XX foram desafiadores para a Igreja Católica, que mais do que nunca disputava espaço

com outras religiões. Assim, as festas e manifestações populares tinham um sentido

importante: revelavam a própria identidade do catolicismo, mas precisavam também se

adaptar aos novos tempos...

O regulamento para as festividades religiosas revelava bem essa

disposição por parte da Igreja em romanizá-las, a todo custo. Ele possuía 23 artigos, que de

certa foram envolviam os principais aspectos da prática dos festejos populares. O primeiro

artigo atribuía plena autoridade aos vigários para fazer as festas ou exercer as funções

religiosas e designar dia, hora e modo de celebrá-las182. Exceção havia apenas para as

irmandades que tivessem compromissos aprovados pela autoridade eclesiástica e as

Conferências de S. Vicente de Paula, que nessa política de romanização ganharam muito

espaço de atuação. Um outro aspecto que envolveu vários artigos desse regulamento foi o

da renda das festas e das esmolas recolhidas. Não podemos esquecer que a Igreja precisava

de muito dinheiro para implementar suas reformas e que, embora dona de um vasto

181 Ibidem p.p. 31-32.

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patrimônio, não possuía muitas fontes de renda que garantissem os custeios das suas

despesas. O regulamento determinava que cabia ao padre o controle sobre as rendas da

festa e que escolhesse a dedo o coletor de esmolas e donativos. Quanto ao fim desses

donativos e rendas, determinava que se fizesse a maior economia possível, retirando-se

apenas o que se gastou e que se aplicasse na paróquia consertando-se telhados,

eliminando-se goteiras, na aquisição de novas alfaias, livros paroquiais, cera, vinho,

hóstias, velas etc.183 E não se gastasse o dinheiro com “exterioridades”.

“Artigo 9. Prohibimos severamente aos Revd. Vigários,

Capellães ou aos seos substitutos, que empreguem dinheiros dados para as festas,

imagens ou Egrejas, ou por occasião das mesmas, em outra cousa que não o culto

Divino, ou cousa que com elle se relacione: pelo que desses dinheiros não distrahirão,

nem permitirão que se distraia quantia alguma para divertimentos profanos, como

bailes, theatros, banquetes, cavalhadas, bandos, musicas em coretos etc.”184

Acreditamos que este regulamento nos dá pistas para compreender

o outro tipo de envolvimento que a maioria dos padres tinha com as festas, antes do

fortalecimento dessa corrente romanizante. É bem provável que os padres investissem os

donativos das festas na realização de diversos eventos além dos mencionados acima. A

relação dos padres com a sociedade era, também, bastante diferente. Em Pirenópolis, como

pudemos verificar no capítulo anterior, vários padres foram Imperadores do Divino, atores

de teatro, compositores e possivelmente incentivadores dessas práticas populares.

As determinações deste regulamento envolviam os mais diversos

aspectos dos festejos seguindo orientações que obedeciam aos preceitos tridentinos, como

182 Ibidem p.p. 55-56.183 Ibidem p.p. 59-60.

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a proibição de missas cantadas ou rezadas e funções da Semana Santa em igrejas e capelas

que não estivessem fornecidas de alfaias e objetos necessários. As novenas185, os

tríduos186, as solenidades do mês de Maria, além de obrigatoriamente terem de ser feitos

com práticas análogas, instruções religiosas sobre virtudes e sacramentos, ou pelo menos

com alguma piedosa meditação, deveriam terminar ao pôr- do- sol, com exceção na época

de missões e da Semana Santa. E ainda, nos domingos e dias santificados devia-se rezar o

terço com o povo, após uma breve exhortação religiosa, e em seguida, depois do cântico do

Tuntum Ergo, proceder-se à dar a benção com o Santíssimo Sacramento.187

No artigo 18 fora bem específico:

“Procurem instruir os povo explicando-lhes o fim e

significado das festividades catholicas, para o que muito útil lhes será o catecismo de

Guillois, e envidem todos os esforços para acabar com tantas supertições que existem

na diocese”188

Mas, afinal, quais eram essas superstições, das quais a Igreja tanto

falava? Possivelmente fosse todo ato que contrariasse a determinação litúrgica. E aí

estariam inclusas as festas, que demonstraram apresentar todos os elementos negativos de

uma cerimônia .

É interessante observar a reserva de dois artigos do regulamento,

especificamente para os festejos do Divino Espírito Santo. No artigo 7 afirma-se o

seguinte:

184 Ibidem p.p. 58.185 conjunto de missas solenes realizadas ao longo de nove dias. 186 Cerimônias religiosas que duram três dias. 187 Regulamento...Ibidem p.p 59-60.

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“A festa do Divino Espírito Santo só nas cidades poderá

fazer-se como até hoje, por meio de um Imperador por eleição, comtanto que os

nomes dos que tenham de ser sorteados, sejam dados pelo vigário, e a eleição seja

feita não na Igreja e sim na sacristia, no consistório, ou qualquer dependência.”189

No outro artigo complementa-se:

“Artigo 8. O Imperador apresentará ao vigário ou a quem

suas vezes fizer, o producto das esmolas das folias e outras procedencias, com que elle

combinará sobre a festa, não podendo appplicar a fins profanos, e muito menos

illicitos, as esmolas e sim somente a fins religiosos, caritativos e pios.”190

Mas, enfim, porque a festa do Divino mereceu artigos tão

específicos e direcionados? Sem dúvida essa festa tinha práticas específicas em relação às

demais. Mas, afinal, quais eram? Por este regulamento é possível perceber que existiam

orientações bastante incisivas em relação à renda da festa, mesmo já tendo sido feitas em

outros artigos desses regulamentos. Isso se explica pelo fato de serem as festas do Divino

polarizadoras de diversas manifestações tão excessivas aos olhos da Igreja, como os

banquetes, as danças, folias e cavalhadas (no caso específico de algumas regiões do

Brasil). Logo, a renda da festa quase nunca ia para os cofres paroquiais e sim para o auxílio

à realização dessas outras manifestações. Uma outra questão possível de observar é que

existia um certo receio quanto ao prestígio da figura do Imperador, principal personagem

da festa do Divino. Isso se explica pelo fato de que, de acordo com as determinações

romanas, a figura do padre deveria ser a central em todos os eventos religiosos, o que não

parecia acontecer nos festejos do Divino: a figura do Imperador quase sempre assumia

188 Ibidem p. 60.189 Regulamento p. 57.190 Ibidem.

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uma posição sagrada e de autoridade. O artigo abaixo nos instiga, levando-nos a formular

esta hipótese.

“Prohibimos que o Imperador seja recebido à porta da

Egreja pelo vigário paramentado; que se lhe dê o crucifico a beijar, e seja incensado ao

entrar. Poderá porem o vigário aspergil-o com agua benta antes da missa em primeiro

logar.” 191

Em 1921, demonstrando que a política romanizadora das festas e

demais manifestações populares teria continuidade, mesmo anos depois de D. Eduardo ter

deixado a diocese de Goiás, D. Prudêncio irá publicar um regulamento reformado para as

festividades e funções religiosas192 em uma carta pastoral. Em síntese, o regulamento

conservava praticamente os mesmos artigos com as respectivas determinações, revelando

que as festas, em especial as do Divino, precisavam ainda ser “reformadas e controladas”.

Em Pirenópolis as festas eram para todos os santos: São Pedro, São

Braz, Santa Clara, São Sebastião, São Bento, São José, Imaculada Conceição, Sagrado

Coração de Jesus, Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, São

Benedito, Nosso Senhor do Bonfim, Nosso Senhor dos Passos, Nossa Senhora da Boa

Morte, Nossa Senhora da Abadia, Semana Santa, Divino Espírito Santo, entre outros.

Entretanto, a festa do Divino, entre todas, parece ser a que mais preocupou as autoridades

locais.

Durante visita pastoral a Pirenópolis em maio de 1917, D.

Prudêncio acompanhou os festejos locais do Divino Espírito Santo. Segundo o Pe. Vicente,

que narrou os acontecimentos e os registrou no livro de tombo, o bispo estranhou que a sua

visita tenha sido concorrida, embora muitos esforços tivessem havido no sentido de fazer

191 Ibidem 192 REGULAMENTO Reformado para as Festividades e Funções Religiosas. In: Carta Pastoral (nona) de D. Prudencio Gomes Da Silva. Bispo de Goyaz- 1921-Goyaz Officina de C Alves Pinto, Goyaz, v. 3007.

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concorrido aquele momento. Logo em seguida, o pároco afirmou que a cidade estava

abarrotada de fiéis, tanto de Pirenópolis como de outros lugares. O motivo para o

desagrado do padre, porém, não era a visita do bispo, mas as festividades do Divino

Espírito Santo. Segundo ele, os fiéis a tal ponto estavam com a atenção voltada para as

atividades profanas, que nem se deram conta do que estava acontecendo. O Bispo irá

lamentar muito o acontecido, afirmando, porém que não considerava incompatíveis as

visitas pastorais com essas festas; seria necessário, apenas, orientar os fiéis para o

aproveitamento de ambos. Por fim, recomendou a pregação sobre o modo como o povo

tem participado desses eventos, procurando-se extirpar os abusos inconvenientes e primar

pelo respeito.193

Alguns anos depois, as festas do Divino continuavam com as

mesmas características: uma simbiose perfeita do sagrado e do profano, com intensa

participação popular nos mais diversos eventos.

“Precedida da tradicional e movimentada novena realizaram-

se a festa litúrgica de pentecostes. Houve bastante afluência de fiéis nas rezas

infelizmente pela falta de respeito de alguns indivíduos não houve benção do S. S. em

um dos dias da novena... Apesar do cunho muitíssimo profano dessa festa nessa

parochia de Pyrenópolis o festeiro Sr. Braz Wilson Pompêo de Pina dotou a Nossa

Matriz com dezesseis novos e bons bancos. A missa solene e procissão fecharam com

a chave de ouro as festividades”194

No ano seguinte, a festa foi visitada por um grande amigo e aliado

do bispo, que na época era D. Emanuel: o salesiano Revd. Sr. Quintiliano Leopoldo e

193 Livro de Tombo da Igreja Matriz de Pirenópolis 1910-1928 fólios 8 e 9. 194Livro de Tombo 1929-1955, p. 36-37.

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Silva, o que demonstrava que a Igreja procurava ter o máximo controle e cristianizar essa

festa o quanto possível:

“A missa de Pentecostes foi magnífica: a convite do

Imperador Cel. Francisco José de Sá aqui esteve a “Sehola Cantorum “ do Gymnasio

Anchieta dirigida pelo Revm. Pe, Pinto com um número variado de hymnos

espirituaes cantaram a missa na procissão e a benção no Santíssimo. Fica aqui

constatado o meu humilde agradecimento ao Revm Pe. Quintiliano e aos esforços dos

salesianos em atender ao convite e preparar os meninos.”195

Em 1940, as festas do Divino, segundo o pároco, pareceram correr

tudo bem: novenário, missa, 210 comunhões, comunhão geral do Apostolado da Oração.

Numa atitude de tolerância, já que o restante estava tudo bem, afirmou que “tudo ocorreu

muito em paz quer as festas religiosas quer as festas profanas, como seja a cavalhada.” 196

Em maio de 1952, a Festa do Divino chegou a ser presidida pelo

Bispo D. Emanuel que antecipara sua ida a Pirenópolis para onde fora convocado a fim de

lançar a pedra fundamental do ginásio Nosso Senhor do Bonfim, em junho. 197

A Igreja, em vários momentos, adotava medidas de tolerância,

pois, em um universo em que as “exterioridades” pareciam imperar, nem sempre restava

outra alternativa.

“A festa do Divino Espírito Santo celebrou-se segundo o

costume muito assistida e bem barulhosa. Mesmo o telhado da venerável matriz teve

de sofrer os chognes de morteiros etc. O festeiro Dr. Wilson soube dar a esta festa uma

fisionomia impressionante, arranjou a tradicional cavalhada no largo da matriz e a

representação duma antiga peça antiga no “cinepireneus” Depois do imperador do

divino apareceram em seguida os reis e rainhas das festas do Rosário dos pretos e São

Benedito Preto. Imperador, Rei, Rainha etc, oxalá sempre conhecessem o sentido

195 Livro de Tombo 1929-1955, p. 60.196 Livro de Tombo 1929-1955. 197 Livro de Tombo 1929-1955, ano de 1952, p. 142.

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verdadeiro destas formalidades! O brilho tradicional das festas de Pirenópolis parece

acarretar todas as seduções e enganos de tal brilho...”198

O descontentamento com as festas do Divino está presente em

quase todas as descrições sobre elas. A Igreja, de um lado, criticava suas formas e

personagens, de outro, procurava fortalecer outros cultos mais litúrgicos em que era

possível coibir as atitudes que não correspondessem aos seus anseios. Nos relatos de 1943,

eram discrepantes as referências às festas da paróquia. De uma lado estavam a Semana

Santa e a Páscoa, que, segundo o pároco, ocorreram dignamente e com boa assistência

naquela ano, com cerca de 300 comunhões. De outro,quanto ao Divino não havia muito o

que comemorar:

“ A festa do Divino foi bem barulhosa como sempre, poucas

comunhões, o festeiro apareceu parece pela primeira vez desde muito tempo na

Igreja... Havia numerosa assistência...Alguns do tipo daqueles que visitam todas as

romarias, fazem os votos mais esquisitos, estragam a saúde por causa de uma

promessa e ficam longe do centro da religião. Bela foi a festa de Sagrado coração de

Jesus, com novena 95 comunhões na Sexta-feira e recepção de 15 novos membros do

apostolado da oração.” 199

A festa do Divino apresentava-se com todos os elementos

negativos de acordo com a concepção da Igreja, na época. Paralelamente, a partir desse

trecho, conseguimos ressaltar algumas características presentes nestes festejos; votos para

o divino, intensa participação popular, pouco envolvimento com a liturgia da Igreja e

muitos fogos. Se participaram dela tantas pessoas, certamente esse tipo de festa agradava à

maioria.

Algumas solenidades religiosas pareciam ocupar lugar de

preferência dos párocos. A Semana Santa e as cerimônias que precedem essa festividade,

198 Livro de Tombo 1929-1955, ano de 1942, p. 82.199 Livro de Tombo 1929-1955, p.p. 85-87.

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como a festa de Nosso Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Dores, eram as

principais. Essas solenidades, totalmente organizadas pela Irmandade do Santíssimo

Sacramento, além dos eventos baseados nos dogmas litúrgicos, possuíam as características

louváveis para a concepção dos párocos.

“Com toda a pompa e majestade do ritual e Liturgia Católica

realizaram-se com grande brilhantismo os piedosos exercícios da Semana Santa”200

“As cerimônias da Semana Santa como de costume, as

comunhões sempre aumentam de ano em ano. Espiritualmente a paróquia tem

melhorado sempre...”201

“Houve bastante dificuldade para o povo se acomodar ao

novo horário das funções litúrgicas determinado pela Santa fé. Mas, no final agradou

plenamente. Principalmente duas alterações colocam profundamente no coração fiel: a

cerimônia do lavapés, durante a missa de 5ª feira Santa, logo após o Santo Evangelho,

e a Renovação das promessas do Batismo, em Português..”202

Outras solenidades litúrgicas encantavam os párocos, como as de Corpus

Christi, do Sagrado Coração de Jesus e aquelas relacionadas ao culto mariano.203204Este

culto também representava as solenidades bem comportadas, e como será amplamente

fortalecido a partir do período de romanização da Igreja, foi um dos mais noticiados, tanto

nos livros de tombo como nos periódicos católicos a Cruz e o Lidador. Essas cerimônias

recebiam o nome de “mês de Maria” e normalmente eram feitas com recitação de terço,

com canto ou recitação de ladainhas e com a bênção do Santíssimo Sacramento.205 As

solenidades do mês de Maria sempre eram organizadas por mulheres. E um destaque

200 Livro de Tombo 1929-1955.201 Ibidem ano de 1955, p. 193.202 Livro de tombo 1956-1980, fólio 2 v. 203 Livro de tombo 1956-1980 ano de 1956, fólio 4 v. 204 Livro de Tombo 1929-1955. 205 Ibidem fólios 3 v.

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especial era dado a trabalhos artísticos, que eram vendidos ou leiloados com destino certo

para a renda: as obras paroquiais.

Em 1944, quando os franciscanos assumiram o controle da

paróquia de Pirenópolis, puderam relatar o diagnóstico das festas, pelo menos aos olhos da

Igreja:

“Neste primeiro anos, ao menos continuamos todos os

costumes desta velha cidade dos costumes, nas festas, etc. Celebramos, então as

novens de Festas de Nossa Senhora das Dores, Nosso Senhor dos Passos, de Semana

Santa, De São Bento, do Divino Espírito Santo, de corpo de Deus, de Sagrado

Coração, de Nossa Senhora do Carmo, de Boa Morte de Nosso Senhor do Bonfim, de

Nossa Senhora do Rosário, e finalmente de Nossa Senhora Imaculada da Conceição;

todas com procissões. As mais religiosos são de Semana Santa e do Sagrado Coração;

a mais profana, do “Divino”. Em todas tem banda de música dentro e fora da Igreja,

muitos foguetes e barulho, especialmente na Festa “Divino” e geralmente muito,

entusiasmo nestas coisas e pouco na missa e nos sacramentos.”206

Embora as autoridades religiosas fossem unânimes em afirmar que

os festejos do Divino eram os mais profanos, barulhosos, carregados de exterioridades e de

excessos, pudemos verificar que, em quase todas as outras festas, as críticas também

estavam presentes, o que por sua vez demonstrava que dificilmente conseguiriam

romanizar esses festejos populares, dado que as práticas populares estavam muito

arraigadas. Por outro lado, observando-se o texto citado, é possível considerar, a partir da

atribuição ao “Divino” de tantas profanidades, esses festejos como os mais populares.

Algumas atitudes eram inconcebíveis por parte dos padres. Durante

novenas de Nosso senhor do Bonfim o padre lamentava:

206 Livro de Tombo 1929-1955, p. 99.

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“Com grande mágoa e dor temos que constatar e lamento

muitíssimas faltas de respeito por parte de certos jovens e senhoritas desta cidade que

esquecem facilmente do respeito de devotamento que se deve à casa de Deus”207

Possivelmente, esses jovens conversavam e riam; mas isso era

“pecado” ? “Pecado” também poderia ser a roupa. Em 1930, talvez por exibirem seus

novos vestidos durante a missa, algumas moças viraram alvo de críticas, pois, segundo o

padre, parecia que elas se dedicavam menos ao culto e mais à exibição.208

Críticas foram feitas aos cânticos populares e aos fiéis que

participaram da novena de Santos Reis. Nessa ocasião, inauguravam o novo harmônio,

comprado pelas esmolas do Apostolado da Oração. No entanto, para o padre, havia coro de

moços, banda de música, mas não havia participação ativa nos cânticos populares nem na

santa liturgia.209

As Festas da Padroeira da cidade, Nossa Senhora do Rosário,

comemorada em outubro, não ficaram livres das crítica, por parte dos párocos. A festa de

1943 parecia estar perfeita. Muito empenho, longo programa impresso, dinheiro para

pagar o vigário, sacristão de velas, fogo e luz, procissão, concorrência de gente da roça e

da cidade, se não fosse...

“uma barraquinha na rua Direita com certos divertimentos,

que foi bem cercado somente pela juventude, gente de idade avançada não houve

compreensão para tais novidades e abusos de festa..”210

O interessante é que só a barraquinha rendeu para a Igreja Cr$

682,00, enquanto todos os outros, divertimentos, como as jóias dos juízes, os jogos, etc

renderam juntos Cr$ 1.000,00.

207 Livro de Tombo 1929-1955. 208 Ibidem 1928-1956.209 Ibidem ano de 1942.210 Livro de Tombo 1929-1955.

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No ano de 1953, as barraquinhas da festa de Nossa Senhora do

Rosário ficaram a cargo dos marianos, e a renda revertida para o ginásio Nosso Senhor do

Bonfim. No entanto, durante a festa, o vigário teve de mandar embora da barraquinha

alguns alunos do ginásio que causaram desordem e não quiseram obedecer à polícia. O

episódio teve desdobramento. Na noite seguinte, os mesmos alunos atacaram o delegado,

homem muito bom, segundo o padre, e tiraram navalha e o feriram bastante. O delegado

custou a prender o culpado e levá-lo à cadeia.211

Anos depois, a festa da Padroeira parecia mais concorrida do que

nunca: muitas autoridades políticas e religiosas presentes, lindos sermões, procissão

magnífica, ótima freqüência à Santa Comunhão, parte profana sob os cuidados de pessoas

escolhidas a dedo, leilões sob a responsabilidade de Joaquim Solón Fleury e show por Braz

Wilson Pompeu de Pina, renda de mais de Cr$ 60.000,00 para a Igreja, competições

esportivas, inúmeras caravanas. Segundo o padre; “finalmente uma belíssima festa que

agradou a todos”. No entanto logo abaixo ressalta:

“É de se notar que o vigário mandou mais de 300 convites a

pessoas do município pedindo auxílio. Ganhou l bezerro e uns 5 leitões. Oh! Povo

generoso!...”212 [ Até hoje existe o costume de se doar animais para a igreja]

A festa de São Sebastião, do ano de 1943, despertou o

descontentamento por parte do vigário, que dizia ser um sonho de lua ver toda aquela

gente que enchia a matriz, naquela novena de música, também nos domingos para assistir à

Santa Missa. De fato, as festas, se, por um lado, proporcionavam os tais excessos tão

temidos pela Igreja, por outro, levavam muitas pessoas a comparecer à Igreja. Na

seqüência do depoimento, o padre elogiava o costume antigo de iluminar as casas na

211 Ibidem p.p. 161-162.

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véspera da festa de purificação (2 de fevereiro), dando-nos inclusive alguma noção de

aspectos urbanos daquela cidade:

“ Conservou-se até hoje, graças a Deus em algumas ruas que

não tem o brilho exterior da luz elétrica moderna, mas conhecem a luz para alumiar as

nações, na rua do carmo (ali tem infelizmente também protestantes = Ignorantes) Rua

Pireneus, antigamente Rua fuzil) Rua da prata. Rua do Campo. São as ruas

periféricas, excêntricas de gente humilde e crédula!”213

Por este trecho pode-se perceber que a cidade se diferenciava de

um ponto para outro. Umas ruas tinham energia elétrica e outras não, e isso mostrava que

os espaços eram definidos de acordo com a situação financeira do morador. Ainda, a

cidade parecia muito pequena, ou o padre era muito observador pois demonstrou saber

perfeitamente quais eram os habitantes das casas, a ponto de identificar alguns protestantes

moradores de uma daquelas ruas citadas.

No mesmo ano, o vigário faz um comentário interessante e que

expressa muito bem a visão da Igreja sobre as festas e costumes locais:

“Fé tem bastante nesta paróquia, mas a fé é muitas vezes

vaga e abre portas clandestinas para crenças falsa. A terra pirenopolina dá para gordas

supertições! (grifo do Padre) Cartomantes, e mais de uma noiva experimenta a sorte.

Apareceu um professor de quiromantia, e entre os clientes viu-se gente de destaque.

“As ridiculosas cartas com a “corrente de santo Antônio” parecem nas portas e janelas

(o portador, naturalmente, sempre fica invisível) e muitos não ousam rasgar ou

queimar para não incorrerem os castigos ameaçados pela carta. Ante a corôa do

“imperador do divino “há gente a dobrar joelhos. E o Divino é para muitos um

mágico. Quasi milagre que ainda não fixou residência aqui o espiritismo agremiado

...”214

212 Livro de tombo 1956-1980 fólios 5 v. e 6. 213 Livro de Tombo 1929-1955, p. 87.214 Livro de Tombo1928-1955, p. 161.

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Tudo nos leva a crer que, nessa campanha cristianizadora, os

párocos tinham alguns grandes aliados entre as famílias locais. A família Pina era a

principal delas. Vários de seus membros eram pessoas ilustres; políticos, artistas,

fazendeiros e principais membros do Apostolado de Oração, das Filhas de Maria, da

Irmandade do Santíssimo Sacramento. Aliar-se à Igreja poderia representar estratégia de

poder, em um momento em que a Igreja se fortalecia tanto.

Essa questão nos possibilita ressaltar que o processo de

romanização, em Pirenópolis, não pode ser entendido apenas como um momento de

embates políticos entre a Igreja e as famílias locais. Acreditamos que na prática os acordos,

concessões e tolerância estivessem presentes talvez até mais que os embates. Por um lado a

Igreja sabia que se endurecesse muito poderia acabar inviabilizando as práticas católicas

que ainda dava identidade para a Igreja, ou ter a sua autoridade desmoralizada por causa da

resistência de muitas práticas existentes em tais festas. Por outro as famílias locais, entre

elas os Pina, adotavam posturas ambíguas pois se promoviam muitas dessas festas com

tantas “exterioridades” eram eles também quem ajudavam o padre na Igreja a organizar o

coral, a orquestra, o teatro religioso e as procissões. Enfim, as relações entre as partes nem

sempre eram tão conflituosas como muitas vezes a documentação faz perceber.

As festas do Divino, mesmo que toleradas pela Igreja, foram

simplesmente as campeãs de críticas, que eram quase anuais, e referiam-se a vários

aspectos dela. Em 1949 enfim, o imperador parecia querer melhorar essa imagem da festa:

“A festa de Pentecostes foi bem. O festeiro concordou com

nós para evitar os abusos dos anos passados. Principalmente ele fez o dever pascal na

Semana Santa (com um bom número dos outros infrequentes); não gastou muito

dinheiro para foguetes, mas, no contrário providenciou comidas para os pobres;

mostrou uma lista com nomes somentes de católicos para fazer a sorte do novo

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“imperador”; e finalmente mostrou-se um bom católico na hora da missa da festa! A

pé durante o evangelho, ajoelhado ao Canon da missa, etc...”215 (grifo da autora)

A leitura do trecho acima nos convida a pensar o inverso. Nas

festas do Divino, em Pirenópolis, o que prevaleceu não foram os banquetes para pobres, e

sim o foguetório, certamente pelo fato desse último agradar à maioria da cidade.

Em 1953, as mudanças pareciam não persistir, pelo menos no que

dizia respeito aos foguetórios presentes nestes festejos e à pouca concorrência nos

sacramentos:

“Dia quinze de maio começou a Festa do divino Espírito

Santo com muitos tiros de foguetes e morteiros. A família Pina não poupou despesas.

Havia tiros dia todo, e mesmo as quatro horas da madrugada. A festa no dia 24 correu

toda em paz. Missa solene e procissão de tarde. Na véspera havia fogos de artifício na

praça, então poucas confissões mesmo que a cidade estava com dobro de

população”216

Na festa de 1956, o vigário chegou a proibir a repetição do

drama: Deus e a natureza:

“A nota dissonante da festa foi o drama encenado. “Deus e a

Natureza”. Não tivemos ocasião de fazer uma censura prévia. Mas assim que vimos

ser a peça anticlerical, maçonica, céptica, etc.., proibimos a repetição do Drama..” 217

A festa de 1957 parece ter sido muito esperada, pois o Imperador,

Elói Basílio, gozava de prestígio junto ao pároco. E no ano anterior havia prometido fazer

tudo conforme manda a “tradição”. O interessante é que a festa começava a adquirir

dimensão regional. Já há alguns anos, caravanas de vários lugares estavam presentes,

demostrando que, mesmo sendo, ou talvez por ser tão cheia de “exterioridades”, atraía

215 Livro de Tombo 1929-1955, p. 126.216 Ibidem p.p. 153.

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pessoas dos mais diferentes lugares. O padre, numa postura de tolerância não deixava de

admitir:

“Aguardada com grande entusiasmo por toda a população

chegou a maior festa da paróquia, que é a festa do Divino Espírito Santo...A missa

cantada foi gravada pela caravana da Escola de Belas Artes de Goiânia...Tivemos a

honrosa visita do Exmo Snr. Governador e do Exmo Snr. Presidente do Tribunal.

Caravanas de Goiânia, de Anápolis, Corumbá, Jaraguá e outras cidades vieram vêr os

tradicionais festejos de Pirenópolis.”218

Um dos principais motivos de tantas críticas e reprovações quanto

ao modo de se festejar o Divino possivelmente fosse a falta de investimento do dinheiro,

arrecadado nesta festa, nas obras paroquiais. Em 1958, o padre escreveu um carta ao

festeiro, Oliveira da Veiga, pedindo que não se esquecesse da obrigação de apresentar o

balancete da festa e que neste ressalvasse no mínimo Cr$ 12.000,00; caso contrário, não

devia fazer nova sorte, como é tradição. A resposta foi negativa. O padre não se

conformou;

“Coisa Estranha; todas as esmolas, de bandeiras de rua,

folias de roça, contribuições de juízes, teatros canalizam-se para o Sr. Festeiro. E para

a pobre matriz nada! Aliás, a festa do Divino é mais de folguedos, inclusive de bailes!

Em 1959, valente Deus, mudarei a mentalidade desse povo. Menos pagode e mais

oração!”219

Essa promessa era antiga, mas afinal seria possível controlar estas

festas?

Atitudes não faltaram. Ainda no ano de 1958, o pároco local

reproduziu no livro de tombo da pároquia uma circular baixada por D. Fernando,Arcebispo

217 Livro de tombo 1956-1980, fólio 4.218 Idem, fólio 5219 Livro de tombo 1956-1980, fólio 13.

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de Goiânia, em 1957, sobre as Diretrizes sobre a organização das Festas Religiosas. Nessa

circular o arcebispo justificava:

“Verificamos que, em alguns lugares, o Vigário está

completamente ausente e considerado como um simples “contratado” para celebrar os

atos religiosos, deixando a impressão de que ali não está o responsável pela festa e

pelo bem espiritual das almas. Esse estado de avisos tem dificultado grandemente a

ação da Igreja e prejudicado os frutos espirituais que se poderiam esperar nessas

ocasiões. ..”220

A circular possuía três capítulos: O primeiro, atribuindo

responsabilidades ao vigário, o qual deveria continuar a ser autoridade nos eventos, o

segundo, determinando as formas de colaboração dos leigos e, por fim, o último, reservado

à instituição dos festeiros. Sutilmente, embora em nenhum momento tenha-se referido

especificamente aos festejos do Divino Espírito Santo, a presente determinação encaixava-

se de acordo com a situação que a Igreja estava vivendo, com os festeiros do Divino.

“Em alguns lugares se estabelecem a prática de sorte-á-los,

recaindo a sorte, por vezes em pessoas afastadas da Igreja, ou sem espírito cristão.

Outras vezes, são pessoas boas e honestas que, no entanto desobedecem as diretrizes

da Santa Igreja. Mais frequentemente, o “festeiro”, tornou-se dono da festa: organiza o

programa, contrata o padre, organiza a parte profana arrecada as epóstulas e nem

sempre dá o dinheiro a melhor aplicação. Alguns negam-se a prestar contas,

comprometendo o bom nome do vigário que perante o povo é o responsável pela

festa....nada fica com a Igreja necessitada de reparos e de alfaias; o dinheiro

desaparece...

Por estes motivos determinamos aos vigários que assumam

a responsabilidade das festas religiosas de acordo com estas instruções...

De tudo resulta que a festa religiosa não é divertimento, nem

exposição folclórica, nem oportunidade para favorecer o comércio. Poderá servir e de

fato tem servido , também para essas coisas e nisso não há mal nenhum. Mas seu

220 Livro de tombo 1956-1980, fólios 19 à 21.

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objetivo é outro, sua finalidade mais alta e sua orientação deve obedecer às normas da

santa Igreja ” 221

A partir desse documento percebemos que as festa, de um modo

geral, e as do Divino, em particular, possuíam uma definição negativa, por parte da Igreja.

Se, de um lado, eram vistas como momentos de divertimentos, esses eram enxergados

como excessos, tendo em vista que a maioria das pessoas preferia “festejar” a participar

dos eventos religiosos.

Não foi possível acompanhar a recepção dessas normas, na maior

parte das festas, após a sua publicação no livro de tombo, porque nos anos seguintes, talvez

já refletindo o enfraquecimento da política romanizadora, as festas foram minimamente

comentadas, e referências ao Divino, só no ano 1969, mais de dez anos depois da circular.

Não acreditamos que ela tenha conseguido coibir os atos dos festejos do Divino. Ao que

pareceu, pouco havia mudado:

“Festeiro, o senhor Geraldo Pina. Foi uma festa como nos

anos anteriores de diminuto proveito religioso; porque o Snr. Festeiro e o povo, como

sempre fizeram questão de exterioridades. Consegui a importância de NCr$ 6.000

para a compra de novos paramantos. Mas, para o foguetório foram mais de 10

Milhões!”222

O povo e a festa pareciam ter vencido...

2.4. Os “Excessos” das Folias na Mira da Igreja.

221 Ibidem fólio 20. 222 Livro de tombo 1956-1980, ano de 1969.

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As folias do Divino foram o grande alvo da Igreja Católica no

período em que se desencadeou o seu processo de romanização. Se ela adotou medidas de

controle calcadas de tolerância sobre as festas populares de um modo geral, no que diz

respeito às folias essas medidas foram duras e as críticas mais contundentes. Todas essas

regulamentações possivelmente explicassem o fato de as folias envolverem dois aspectos

básicos para a Igreja, na época: O primeiro era o controle sobre os festejos rurais, os quais

quase sempre ficavam isentos da tutela dos padres pela dificuldade de acesso a esses

lugares. A folia do Divino é um desdobramento da festa urbana que percorre, em forma de

giro, regiões longínquas, como povoados, propriedades rurais, bairros distantes, em busca

de esmolas para ajudar os festejos do Divino. Assim, a maior parte dos eventos não era

acompanhada, na maioria das vezes, nem pelas autoridades policiais, nem tampouco pelas

eclesiásticas. O outro aspecto, que talvez instigasse até mais a Igreja, era a coleta de

esmolas. Grande parte dessas coletas não chegava aos cofres paroquiais: quase sempre

elas eram investidas em bebidas, banquetes e nas próprias folias. Caso chegassem às mãos

do festeiro, eram investidas em cavalhadas, teatros, bailes... e em outros eventos tão

criticados pela Igreja.

Durante todo o processo de romanização, as folias foram ponto

para vários debates sobre a religiosidade e as festas. No início do século XX, noticiavam-

se no “Goyaz” críticas às folias:

“Conforme estava annunciado, tiveram lugar nos dias 27, 28

e 29 as costumadas folias do Espírito Santo, como sempre muito animadas e

concorridas.

Infelizmente, porém, a polícia teve de registrar alguns

incidentes verdadeiramente desagradáveis que se deram por occasião das mesmas,

devido exclusivamente ao excessivo calor dos alegres foliões. Aconselhamos aos

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rapazes que sejam mais comedidos e mais respeitadores da ordem e da auctoricdade

pública, como devem ser todos aquelles que prezam de ter tido boa educação.”223

Na mesma época, o opositor do Goyaz, o Lidador, publicou,

embora com uma tônica bem diferente, a visão da Igreja sobre essas mesmas folias:

“Como preparação à festa do Divino Espírito Santo que se

deve realizar em nossa cathedral a 15 de maio próximo, effectuaram-se as tradicionaes

folias nos dias 27, 28 e 29do mêz findo e 3 do Atuante.

Infelizmente, porém, não presidio a essas solemnidades que

devem ter cunho exclusivamente religioso, o respectivo espírito da ordem, tão próprio

do povo goyano... Uma parte dos foliões se excedeu de tal sorte, a termos agora que

registrar e lamentar alguns conflictos e outras scenas desagradáveis, que se

originaram, sem dúvida, de outros excessos, alias condemnáveis, maxime em se

tratando de semelhante função.

Si com grande mágoa registramos esses factos deprimentes

para uma capital civilizada e cathólica, donde deve partir o exemplo...Abusos taes não

estão de accordo com as leis da Egreja, e merecem, por isto, plena censura da

auctoridade competente, que terá certamente de pelo menos, regularizar para o futuro

esse modo de pedir esmolas.

Esperamos da educação e do espírito religioos do nosso

povo, que não se repitão scenas tão desagradáveis e que igualmente cessem de vez

outros abusos na verdade incipientes notados na última procissão das dores...”224

É importante frisar, a partir do textos acima, as diferenças das

abordagens sobre as folias. Para o Goyaz, os “excessos” das folias eram um problema

de falta de educação, entendido apenas como um “excessivo calor dos alegres

foliões” que caberia às autoridades públicas resolver. Já para o Lidador, tais abusos

estavam em desacordo com as leis da Igreja, e, mesmo que considerasse que as

223 O Goyaz 02/04/1910.224 O Lidador de 7 de Abril de 1910, Nº 14, p. 2.

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autoridades competentes tivessem de intervir nesses assuntos, julgava que a Igreja

também possuía o dever de regularizá-las, não de proibi-las.

Em 1909, um correspondente de São José do Tocantins

escreveu ao Lidador, relatando o seu ponto de vista sobre as folias durante as festas

do Divino de sua cidade. Dizia que os foliões chamavam a atenção pelo fato de

andarem a cavalo conduzindo violas, tambores e outros instrumentos semelhantes

esmolando pela roça ou pela cidade em benefício da festa. Para ele, havia muitos

fatores inconvenientes como o fato de transporem os limites de sua paróquia,

abusando da hospitalidade dos lavradores por mais de um mês pelas roças, ocupando

pessoas e favorecendo atitudes devassas:

“Commetem algumas dessas folias, que bem podião

desapparecer na sua totalidade, o abuso de permanecerem mais de mez pelas roças,

occupando dezenas de pessoas, em grande parte pais de famílias, que abandonam

completamente o lar e o trabalho, dando enormes despesas e incommodo a pobre

lavradores em cuja casa se hospedão , comem, bebem e cantão noite inteira sem

prestarem boas contas de seu trabalho exhaustivo e que não raro acarreta

enfermidades.”225

.

Nos primeiros anos de seu episcopado, D. Prudêncio, em carta

pastoral publicada no jornal da diocese, O Lidador, comentava as instruções e

determinações sobre as festas definidas por D. Eduardo, dizendo que a maior parte dos

regulamentos seria mantida, atentando para os abusos contra a disciplina eclesiástica

cometidos nessas festividades. Alertava que, em algumas paróquias, quando o vigário não

podia celebrar a festa na época em que queriam os festeiros, estes realizavam-nas sem

sacerdote.

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“Continua o abuso de se elegerem ou sortearem festeiros

quando isto é apenas permitido apenas pela Festa do Divino Espírito Santo. Em outras

gasta-se demais e em cousas que não se relacionam com o Divino; em outras

finalmente fazem festas pelas roças sem que o lugar tenha capella ou apenas um

simulacro de capella! Esperamos que doravante seja pontualmente observado esse

regulamento para a boa ordem e esplendor do culto...”226

Essa atitude revela que a política de romanização sobre as festas do

Divino não surtira muito efeito. Os Imperadores, que por sua vez gozavam de amplos

poderes simbólicos e políticos, certamente continuariam a dominar e controlar os festejos.

Em 1916, novas regulamentações sobre festas, instituídas por D.

Prudêncio, foram literalmente transcritas no livro de tombo da Igreja Matriz de

Pirenópolis. Nessas havia uma ênfase muito expressiva em relação às folias.

Reivindicavam a restituição da fé e da piedade às festas populares e o impedimento dos

abusos e do desvio das esmolas para emprego alheio ao destino. Referindo-se

especificamente aos festejos do Divino argumentavam que eles iam perdendo o brilho em

grande número de paróquias da Diocese, principalmente pelo modo como se faziam folias

respectivas:” de simples bandos precatórios, fonte de abusos e até de pecados, iam- se

transformando em orgias e em alimento da ociosidade.” Além disso, obrigavam a

exageradas despesas não só a Igreja, como também as pessoas em cuja casa pernoitavam,

“empregando-se estas e outras “dádivas” em fins alheios à festa do Divino e ao

“guisamento” da mesma quando há sobra, em banquetes, cavalhadas e outras profanidades,

além dos festeiros não dispensarem a devida atenção aos párocos a quem não se prestavam

contas das solenidades.”227

225 O Lidador ano de 1909.226 Carta Pastoral de D. Prudêncio Gomes da Silva publicada no jornal O Lidador de 2 de Setembro de 1909 nº 34. 227 Livro de tombo 1910-1928, fólios 4 à 6.

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Sendo assim, foram feitas algumas regulamentações específicas

para os festejos do Divino, as quais referiam-se em grande parte às folias. Vejamos:

“Art. 1º: Antes de começar as providências para as

solemnidades deverá o festeiro se entender com o Rev. vigário encarregado da

paróchia com ele acertado o programa da festa desde a sahida da folia até o

encerramento da festa... as solemnidades profanas (as toleradas), que porventura que

tiverem de fazer as quais inclusive banquetes etc.. deverão ser realizados à custa do

festeiro e em hyphotese algumas à custa das esmolas da festa e nunca se confundirem

com esta...”

Um pouco mais adiante, em todo o artigo 2º, o cerceamento sobre

as folias aparece explicitamente:

“Art. 2º: Depois dessas combinações, o festeiro e o vigário

se entenderão sobre as folias que vão percorrer a roça (onde houver o costume, porque

onde não são de costume, prohibimos que sejão introduzidas) as quaes hão de

obedecer as seguintes: a) as pessoas occupadas nessas folias nunca poderão exceder a

dez (l0); b) as únicas despesas que se podem fazer, à custa das esmolas da festa com as

folias são a acquisição de bandeiras e algumas imprescindíveis que como esta se

relacione a juízo do vigário e jamais roupas e outros objectos para os foliões; c) não

serão marcados com antecedência os pousos onde hão de pernoitar os foliões para

evitar ahi a reunião de vizinhos e os abusos que se costumão dar, como sejão: danças,

bebedeiras, cantigas inconvenientes, etc pois além destes actos desagradarem a Deus

ficarião sobrecarregados os donos dos pousos com despesas supérfluas e às mais das

vezes superiores às suas forças “ 228

Neste regulamento, as folias recebiam normatizações sobre

diversos aspectos de sua organização. Percebemos aí que a Igreja tentava, mais uma vez,

228 Livro de tombo 1910-1928 fl 4 à 6. Este regulamento para as Festas do Divino Espírito Santo foi publicado no jornal O Lidador em 13 de Março de 1916.

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em delimitar espaços, proibir as festas nos pousos e aglomeração de pessoas em torno

deles.

O regulamento sobre as festas do Divino, além de prever amplo

controle sobre os modos de se realizar os pousos de folia, incluía inclusive regras para os

giros a serem feitos. Ainda no artigo 2º, determinava-se que os foliões deveriam sair em

ordem, sem se demorarem muito no giro, porque quase sempre suas famílias ficavam

sofrendo pelas suas faltas. Quanto ao chefe da folia, deveria levar uma licença do Rev.

Vigário para poder tirar as esmolas em nome do “Divino”. A distância a ser percorrida

deveria ser suficiente para o dia, jamais saltando os limites da paróquia, e a noite era

reservada para o descanso em alguma casa pois poucos seriam os que poderiam dar pouso.

Nesses lugares poderiam rezar o terço e cantar, apenas até certa hora, cânticos espirituais

aprovados. Nas povoações e principalmente na capital, a folia deveria ser sempre

acompanhada pelo vigário ou por um sacerdote e pelo festeiro, com muito respeito, sem

correrias e levando sempre uma pessoa responsável para recolher esmolas. Outra proibição

seria o uso de bebidas alcóolicas229. O regulamento, que em grande parte se baseou no

texto aprovado primeiramente por D. Eduardo, reforçava a autoridade dos padres sobre

esses festejos, a obrigatoriedade da prestação de contas por parte dos festeiros e todo o

controle possível sobre os eventos, especialmente da folia. Na prática, parecia acontecer o

contrário!

No Jornal Nova Era, um mês depois da publicação do regulamento

para os festejos do Divino no, “O Lidador”, uma coluna muito irreverente de nome

Loucuras assinada por “doidinha” criticava essa regulamentação:

229 Regulamento para as Festas do Divino Espírito Santo In: Livro de tombo da Igreja matriz de Pirenópolis 1910-1928.

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“ Alleluia, alleluia, carne no prato e farinha na cuia! Ora,

graças às cabaças mudaram-se os ventos e foram-se os momentos. Já o sino dos passos

não ressoa o seu lugar lutuoso, cessaram os estalidos da matraca, sumiram-se as opas,

foram-se os dias fúnebres, silenciosos, dias de chuvas torrenciaes e aproximam-se as

tradicionais festas do Divino Espírito Santo. Há um certo reboliço pela cidade , um

certo zum-zum de descontentamento, um sussurro de queixa, um commmentário

sobre as festividades deste ano. É que o festeiro do Divino Espírito Santo mandou

distribuir propulu um boletim modificando aos habitantes da capital que em audiência

à autoridade da Egreja não fará festas além das missas, resas e sermões, e que o

produto das esmolas paga as despesas dessas festas, será recolhido à caixa pia.230

Especialmente quanto às esmolas das folias acrescentou:

“...Quem der esmola fique certo dessa regulamentação

episcopal, termina o festeiro. Sabemos que o virtuoso chefe da Igreja assim

procedendo deve ter em vista melhor aplicar a esmola dada pelo povo, no entanto o

zum-zum, o sussuro, o reboliço tem sua rasão de ser. A regulamentação era da folia e

esta correu como danes, à hora e nos dias de costume, com músicas, cânticos,

foguetes, a meninada a gritar o pêo-pêo-pêo à passagem da bandeira e não houve

innovações. Só quanto ao producto arrecadado é que a regulamentação tocou in

totum.”231

Essas normas, sem dúvida mexeram com a opinião das pessoas,

que, na época se envolviam com os festejos e, que, em relação a eles, possuíam hábitos e

opiniões. É importante lembrar que a normatização dessas festas envolvia diversos

segmentos da sociedade local, pois era nesses festejos que muitas pessoas de influência

econômica e política reafirmavam o seu poder, prestígio e influência.

Na coluna Loucuras, que circulava periodicamente no jornal citado

algumas opiniões foram lançadas a respeito. Numa incursão histórica, o (a) narrador (a)

230 Jornal Nova Era, 27de Abril de 1916. 231 Ibidem

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procurava defender a tradição da prática dos festejos, os quais se viam ameaçados por

tantas normas e regulamentações da Igreja Católica.

“As festas do Divino são tradicionaes. Gregos e Troyanos

offerecem o seu óbulo em auxílio ao Imperador do Divino para commemorar as festas

do Senhor. Estas, de primeiro constavam de novenas e missas, sermão, procissão,

levantamento de mastro, foguetório, allegorias, pau de sebo, encamizado, bando.

Batalhão, representações dramáticas, cavalhadas e tantas outras sortes de diversões

para o povo.

Hoje, além de suprimida, a maior parte desses folguedos

ainda apparece o boletim, noticiando a “regulamentação das folias” com uma parte

final onde faz fugir a humildade do pedido de esmola, para mais parecer tratar-se de

um negócio de cujo fim o povo deve ficar sciente....

E assim o zum-zum, o sussuro e o reboliço tem sua razão de

ser. Um povo que adora as tradições que soffre à força do hábito, não se acommoda

assim, de um momento para o outro, com essas bruscas mutações de costume. E

vamos adeante, procurar um pau de sebo por ahi onde possamos dependurar as nossas

mágoas, as saudades dos tempos idos...”232

Embora a crônica de Doidinha nos remeta para uma utópica

imagem das tradições populares que se modificavam nos “novos” tempos, considaremos

que isto também simbolizava a perca de espaço de atuação nos eventos sociais em

detrimento de um poder eclesiástico que se afirmava a cada dia e necessitava garantir tanto

os recursos espirituais como os financeiros para implementar a reforma que se pretendia.

A Igreja Católica se burocratizava e iria com todas as suas forças defender o seu espaço de

atuação, sobretudo no que dizia respeito ao dinheiro, tão necessário para suas obras...

Nas vésperas dos festejos do Divino, a coluna Loucuras voltou a

tecer comentários sobre os festejos populares:

232 Jornal Nova Era 27de Abril de 1916.

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Atchin! Atchin!

Que é isso, doidinha?

Sei lá homem, se não for uma brusca mudança no tempo ou

regulamentação de folia de ventos pelas narinas pode ser o rapé do mestre

“Lidador”que nos trouxe uma forte pitada. Atchin! Atchin! Eu bem disse àquela

pessoa da ponte do carmo e do mercado que com arma de fogo não se brinca e que há

verdades que irritam mesmo em gracejo mestre “Lidador”, sectário da

regulamentação não gostou da história , e achou um filho de David que subisse no pau

de cebo para accudir às nossas queixas. Tem razão, cada um conta da festa como vae

nella.”233

Essa era, na verdade, uma crítica do republicano “Nova Era” ao

jornal católico oficial “O Lidador” . Crítica que não chegava a ser tão pesada mas que

demonstrava as características distintas desses jornais. De fato, quem acompanhasse na

época, as festas populares, por intermédio desse jornal eclesiástico ( O Lidador), pouco

saberia dos acontecimentos de desagradado à Igreja. A crônica de Doidinha oferecia o

contraponto;

“É verdade! Nestes tempos de guerra os canhões estão

regulamentados e basta fallar em metasonante para os bichos se inflamarem. Atchin!

Atchin! Estamos em épocas de mutações, das reorganizações, das regulamentações, da

convenções, das installações etc. O tempo é dos ões. Foram se as chuvas e o calor e já

secca se não apresenta com um frio implicante, exigente, um vento zombeteiro, foi a

es a quaresma, depois a folia com um sceptro sem pomba, queimaram-se o judas sem

testamentos, e temos agora as convenções políticas, as reorganizações partidárias, a

abertura do congresso e a chegada dos augustos senhores de camarilha”234

O jornal Nova Era saía na defesa do Partido Republicano e das

idéias condizentes com o tipo de sociedade que concebiam. Divergia do Lidador e,

233 Jornal Nova Era, 11 de maio de 1916.234 Ibidem.

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conseqüentemente, das posturas da Igreja Católica na época em que, sob a direção de D.

Prudêncio, possuía uma relação de contentamento com os grupos políticos de Goiás,

embora em nenhum momento tenha deixado de ter interesses e lutar por eles.

Em Pirenópolis, durante todo o processo de romanização, as folias

foram duramente criticadas e rotuladas pelos párocos como responsáveis por grande parte

dos desvios católicos da paróquia durante a festa do Divino Espírito Santo. Alguns

acontecimentos, no entanto, nos chamaram a atenção. Em 1945, o frei Felipe, franciscano,

vigário de Pirenópolis na época, relatou que naquele ano, tanto na cidade como na roça,

havia tido notícias de casos sérios e tristes para os quais viu necessidade da cooperação da

Igreja e do Estado. No dia sete de janeiro, relatou que houve um fratricídio, na cidade,

quase sem causa, além de sempre haverem diversos ensaios de suicídio de moças até de

boas famílias. E, o pior, é que numa capela durante a festa (referia-se à Festa do Divino),

sem polícia, homens “bébidos” estavam usando facas contra outros e um moço tinha

chegado da roça com uma bala na cabeça. Disse ter visto e ouvido isso sobre diversos

homens que andavam pela roça tirando esmolas em nome do Espírito Santo, mas na

verdade os considerava nada mais do que terroristas sem ordem, bebendo, furtando,

matando etc.235 No ano seguinte, entre outras determinações sobre a Festa do Divino,

proibiam-se as folias por usar-se o dinheiro nas diversões profanas, e justificava a atitude

para que se pudesse tirar bom proveito das festividades e maior fruto para as almas. 236

No ano de 1947, o vigário lamentava que as determinações de

proibição às folias não estavam sendo cumpridas. Dizia que no passado era uma coisa

muito boa a saída de um grupo para tirar esmolas para a Igreja, mas que este costume

estava em decadência. Dizia que diferentes fazendeiros reclamavam a eles, os párocos,

que as folias aconteciam mais ou menos no tempo da colheita do arroz, e os trabalhadores

235 Livro de Tombo 1929-1955 p.p. 104

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saíam nestas folias, dando prejuízo a eles, além de andarem como bandidos, tontos,

armados, mandando dinheiro e bebidas, muitas vezes por causa das festas limpando as

fazendas e sítios menores, aterrorizando os pais de família, mulheres e moças, fazendo

orgias e homicídios e voltando para casa mais pobres do que quando saíam. Na verdade,

essas palavras pareciam do próprio pároco, que não deixou de ressaltar um aspecto

importante a envolver a Igreja: das esmolas, segundo ele, nenhuma chegava para a

Igreja.237

Neste mesmo ano, mesmo permanecendo a proibição das folias,

muitos foliões insistiram em promovê-las. O pároco narrou parte desses acontecimentos.

Disse ter orientado as Filhas de Maria para que não tivessem parte nessas folias e aos

foliões pediu que pelo menos pedissem a licença do pároco, o que foi duramente rebatido

com xingamentos e ameaças de tiros. Um homem da cidade, defensor das folias e de

outros costumes semelhantes, explicou que aquele não era o melhor momento para falar

com aqueles homens, porque estavam tontos. Na noite seguinte, o pároco marcou uma

reunião com membros das principais famílias e de outros setores da sociedade e explicou a

necessidade de mudanças de muitas coisas na Festa do Divino, incluindo-se as folias,

dizendo que esta era pior de todas as festas religiosas, pois nela ninguém recebia a Santa

Eucaristia, e até as crianças saíam da Missa na hora dos foguetes. Como resposta, um dos

presentes, bem provável que das famílias locais, disse que seria um choque ao povo tirar

este velho costume, o qual ajudava a chamar o povo à Igreja. Neste último ponto o padre

não concordava, mas mesmo assim chegou-se a um acordo:

“finalmente resolvemos que civilmente o vigário não tem

autoridade na rua e então o “Imperador” (grifo do padre), pode fazer qualquer coisa lá,

mas tem autoridade na igreja e nela neste ano especialmente... vamos fazer a festa

236 Idem p. 108.

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com a novena, orações, benção e missa sem mais. Poucos concordam, outros

promettem obediência e assistência com o povo em geral”238

Nesse impasse ressaltado, fica claro que durante toda a

romanização a Igreja não conseguiu atingir plenamente seus objetivos em Pirenópolis,

pois, especificamente em relação aos festejos do Divino, entrava em embates com os

tradicionais grupos familiares, que na maior parte compunham a festa e com ela tinham

uma relação muito profunda, principalmente porque, sendo o Imperador do Divino o

personagem central dos festejos, muitos desses familiares anualmente concorriam a esse

cargo. Em relação a esses festejos essas famílias também organizavam grande parte de sua

identidade cultural; assim, tudo dificultava a atuação da Igreja Católica.

O conflito acima detalhado teve um amplo desdobramento nos

anos seguintes, e, no ano de 1948, o padre fez questão de registrar no livro de tombo a

notícia veiculada em um jornal de Goiânia, não especificado, de uma portaria da chefia da

polícia goiana que proibia as folias:

“o chefe da polícia de Goiaz, usando das atribuições que a

lei lhe confere e tendo conhecimento que bandos precatórios percorrem vários

municípios do Estado pedindo esmolas sob o rótulo das chamadas “Folias do Divino”

e outros semelhantes com graves prejuízos para o trabalho e sossego público (grifo

da autora), promovendo diversões e bailes semeadores de imoralidades e bebedeiras e

brigas, resolve determinar às autoridades policiais que proíbam terminantemente a

prática desses atos, condenados pela Igreja e por esta chefia no interesse da

moralidade dos costumes, amparo ao trabalho e defesa da ordem pública....”239

Esta portaria pode ser interpretada como uma vitória da Igreja em

relação às folias. Possivelmente o bispo tenha interferido junto às autoridades públicas,

uma vez que os problemas não eram específicos de Pirenópolis mas de todo o Estado.

237 Idem p. 110238 Livro de Tombo 1929-1955 p. 111

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Porém em Pirenópolis, essas folias não deixaram de acontecer e a comprovação disso são

cinco processos criminais que descobrimos no cartório do crime de Pirenópolis e quatro

deles aconteceram em folias do Divino depois da data da publicação desta portaria.240 O

interessante é que nenhum desses crimes teve réu preso e o contexto deles era muito

parecido; muita bebida, rixas familiares, intensa participação de pessoas e emoções a flor

da pele que na maior parte dos casos resultou em morte.

Em 1953 o pároco fez referências às folias. Nesse caso disse que havia

saído sem licença e sobre elas tece um comentário interessante:

“Estas folias não rendem para a capela. A renda da capela é

por meio de outras esmolas e votos. Há muito abuso nas folias – bailes, falta de

respeito, etc. Mas como é por culpa de ignorância, acho que pouco a pouco vai acabar

com o desenvolvimento destes lugares atrazados- com estradas, escolas etc.

Frei João”241

Este último trecho nos deixa um pouco da visão que a Igreja

possuía destas festas e da maior parte do povo que participava dela como os mais pobres e

iletrados. De fato a folia não vai deixar de existir, será apenas modificada lentamente mas

representou um dos aspectos mais resistentes das festas do Divino, durante o processo de

romanização.

A partir do final dos anos 50 o processo de romanização da Igreja,

começa a se desarticular em função de seu desgaste e pelas novas características assumidas

pela sociedade. Concomitante a parte desse desdobramento, as festas populares e em

239 Livro de Tombo 1928-1956 p. 124 240 Ação criminal por homicídio contra Cornélio Neres Ribeiro. Ano de 1946. Maço nº 28; Ação criminal por homicídio contra João Cesário dos Santos maço nº 41 1953; Processo criminal por homicídio contra Paulo Luiz da Mota maço nº 39 ano de 1948; ação criminal por homicídio contra Benedito José dos Santos. Maço nº 40 1952; Sumário de culpa Maço nº 42 1954. 241 Livro de Tombo 1929-1955 p. 159

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especial a Festa do Divino de Pirenópolis, irão passar por um novo momento de mudanças

e recriações. É sobre essas questões discutiremos no próximo capítulo.

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Capítulo III- Patrimonialização &

Folclorismo: caminhos cruzados de um mesmo tempo.

As primeiras décadas deste século são um importante momento

para as manifestações populares de um modo geral pois vários acontecimentos vão

influenciar nisso. A Semana de Arte Moderna nos anos 20 e os novos olhares para a

cultura nacional dos modernistas, deu início a esse processo que foi dinamizado a partir

da conjuntura dos anos 30 com governo Vargas. Este governo foi palco para a

estruturação de uma política patrimonialista na qual as festas e várias outras

manifestações culturais vão adquirir outros significados. São essas questões que vamos

discutir neste capítulo, procurando demonstrar que uma política governamental

específica, que terá outros desdobramentos nos anos seguintes, vai modificar as

práticas de muitas manifestações populares, especialmente a festa do Divino Espírito

Santo.

A análise das festas religiosas e “populares”, no período que

propusemos, torna necessária a verificação de outros aspectos que compuseram esse

dinâmico contexto. Se, por um lado, essas festas foram alvo de críticas e normas por

parte da Igreja, em outro prisma, estiveram associadas a uma identidade nacional e

católica com essa mesma Igreja. No entanto, a partir das primeiras décadas do século

XX, as festas e todo um conjunto de manifestações populares serão vistas como

elementos integrantes da identidade brasileira, por neles estarem presentes elementos

da cultura portuguesa, indígena e sobretudo negra. Se durante o século XIX as festas,

como parte da cultura brasileira, foram vistas pelos intelectuais242 imbuídos de idéias

cientificistas e deterministas sob o prisma de uma miscigenação negativa, o início do

242 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das raças. SP, Cia da Letras, 1995.

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século XX trará novidades, principalmente a partir do movimento modernista, nos anos

20, em decorrência do qual as manifestações populares serão vistas como elementos

próprios do Brasil, nas quais estariam representantes de todos os elementos formadores

de nossa nacionalidade. O governo Vargas será um elo importante, pois tinha como

meta o estudo do passado, principalmente no que se referia às questões da cultura

popular, vendo o passado não como um modelo a ser seguido, mas como uma

referência necessária para os encaminhamentos futuros. É a partir desse contexto, que é

concomitante a parte do que analisamos no capítulo anterior, que essas manifestações

terão novos rumos. O primeiro é a questão da patrimonialização, que, com a criação do

Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (IPHAN), irá dar uma nova dinâmica à

questão cultural no Brasil. A outra questão é o folclorismo, movimento que se inicia na

Europa já na segunda metade do século XIX, mas que terá desdobramentos práticos no

Brasil só a partir dos anos 40. Ambos os processos estiveram diretamente ligados e seus

respectivos desdobramentos estarão não em caminhos opostos, mas cruzados e

paralelos, a um mesmo tempo. Analisaremos neste capítulo de que forma a festa do

Divino em Pirenópolis estará inserida neste contexto.

3.1- O Patrimônio em questão.

A política de patrimonialização no Brasil é um longo processo,

que tem início no século XX, a partir de uma série de iniciativas isoladas, que vão

sendo amadurecidas e anos mais tarde integrarão uma proposta política nacional. Essa

política insere-se em um complexo quadro político- social que vem ao encontro de

novas idéias e concepções sobre políticas públicas e culturais. A própria concepção de

patrimônio, que foi sendo modificada com o tempo, surgia em um momento no qual os

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valores e identidades nacionais estavam em voga. As primeiras leis que visaram a

proteção do patrimônio cultural do país partiram de Estados como Minas Gerais, Bahia

e Pernambuco, nos quais havia algum interesse em preservar monumentos e cidades

ameaçados pelas transformações urbanas do período. No entanto, essas leis estaduais

não foram suficientes para assegurar proteção aos monumentos históricos e artísticos

nem mesmo em seus respectivos territórios uma vez que na legislação brasileira o

direito de propriedade estava definido pela Constituição Federal e Ccódigo Civil, sem

que a matéria pudesse ser modificada por iniciativa estadual.243 Isso gerava

inconstitucionalidade, pois os projetos de leis estaduais atentavam contra a integridade

do patrimônio, entendido ainda, na maioria dos casos, como propriedade privada.

A primeira lei federal sobre o patrimônio só foi promulgada três

anos após a revolução de 1930 e, mesmo restrita, representou o ponto de partida de uma

série de outras medidas que viriam a seguir, além de erigir Ouro Preto a monumento

nacional.

“Considerando que é dever do poder público defender o patrimônio

artístico da Nação e que fazem parte das tradições de um povo os lugares em que se

realizaram os grandes feitos de sua história.”244

Um ano depois, um novo decreto autorizava o início da

organização de um serviço de proteção aos monumentos históricos e às obras de arte

tradicionais do país, aprovando um novo regulamento para o Museu Histórico

Nacional. Após a retomada de seus trabalhos, a Assembléia Constituinte, em 1934,

incluirá no texto da nova constituição artigo referente ao patrimônio. Gustavo

243 SPHAN/PRO-MEMÓRIA. Proteção e Revitalização do Patrimônio Cultural no Brasil: Uma trajetória. MEC, Brasília: 1980 p.p. 14-15.

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Capanema, Ministro da Educação de 1934 a 1945, será responsável em grande medida

por novos projetos na área, visto que a questão do patrimônio estava vinculada ao seu

ministério. Mário de Andrade, legítimo representante do movimento modernista nos

anos 20 amplamente envolvido com as questões culturais em seu tempo, era diretor do

Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, nos anos 30, quando foi solicitado

a organizar projeto referente ao patrimônio nacional. O projeto elaborado por ele

revelava a sua concepção de cultura e sociedade ao definir como patrimônio artístico

nacional todas as obras de arte pura ou arte aplicada, popular ou erudita, nacional ou

estrangeira, pertencentes a organismos públicos e particulares. Apresentava-se aí a

forma como a cultura nacional será percebida no período, um mosaico que representava

o Brasil. O espaço reservado aos aspectos da cultura entendida como popular era

bastante amplo. O folclore, como expressão desta cultura, também compunha o projeto,

sendo que deste eram considerados como parte a música popular, os contos, as

histórias, lendas, superstições, a medicina, a culinária, os ditos e as danças dramáticas,

entre outras manifestações. O projeto elaborado por Mário de Andrade245, que fixava

definições preliminares sobre patrimônio e até um plano qüinqüenal de montagem e

funcionamento do serviço, envolvendo os mais diversos aspectos burocráticos e

organizacionais do patrimônio nacional constituiu grande parte das emendas

constitucionais do Ministério da Educação que criava o SPHAN (Serviço do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), aprovado pelo presidente Getúlio Vargas,

em 1936. Finalmente, em 1937 é promulgado Decreto-Lei organizando a proteção do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

244 Decreto nº 22.928, de 12 de julho de 1933 In: SPHAN/PRO-MEMÓRIA op. cit p. 89 245 Anteprojeto elaborado por Mário de Andrade a pedido do ministro da educação e saúde, Gustavo Capanema In: SPHAN/PRÓ-MEMÓRIA, op. cit p.p 90-106.

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Outros textos legislativos relacionaram-se com o Decreto nº 25,

de 1937, que organizava o serviço do patrimônio nacional e de certa forma ampliava

seus limites. Para citar alguns exemplos, nos anos 40 fora promulgado o novo Código

Penal que estabelecia sanções para as infrações de normas da legislação de proteção ao

patrimônio histórico e artístico. Também em 1940, um outro decreto-lei dispunha sobre

a aceitação e aplicação de donativos particulares pelo serviço. Em 21 de junho de 1941,

mais um decreto atualizava disposições legais sobre desapropriações, em casos de

utilidade pública, contemplando entre esses casos “a preservação e conservação de

monumentos isolados ou integrados em conjuntos urbanos ou rurais.246 Terminado o

regime do Estado Novo, a nova Constituição, promulgada em 1946, estabelecia em seu

capítulo II a continuidade da responsabilidade da proteção do poder público sobre as

obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico. E já no início deste ano

citado outro decreto-lei transforma o SPHAN em diretoria ( DPHAN), criando quatro

distritos com sedes em Recife, Salvador Belo Horizonte e São Paulo além de

subordinar à diretoria o Museu da Inconfidência, o Museu das missões e o Museu do

Ouro.247

É relevante o papel que os intelectuais modernistas tiveram na

elaboração de textos legislativos e na administração inicial deste órgão, porquanto esse

movimento buscava apreender e revalorizar os elementos constitutivos da identidade

cultural do país. Porém é importante compreender o quadro no qual se inseria a criação

e instituição do SPHAN, a partir de e para além do movimento modernista dos anos

20/30, pois existiam no contexto desse período muitos aspectos que influenciaram o seu

surgimento. Assim, torna-se fundamental nos atermos a alguns aspectos da política

varguista

246 SPHAN/PRÓ-MEMÓRIA. op. cit.

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É justamente durante o governo de Getúlio Vargas, quem

conduziu politicamente o Brasil na maior parte dos anos 30 e 40, que ocorre a

implementação de políticas públicas e culturais que tinham a valorização do passado

como meta. Ângela de Castro Gomes acredita que, especificamente no caso do Estado

Novo, havia um esforço evidente para articular iniciativas estatais de política cultural

com a conformação de uma cultura política nacional, na qual a leitura do passado

ganharia espaços privilegiados. No entanto, o passado aparecia mais como um

fantasma a ser enfrentado, como condição para deixar de assombrar e poluir o “espírito

nacional”, constructo ao mesmo tempo buscado e criado por nossa intelectualidade,

encontrado e criado nos costumes da tradição, da religião, da raça, da língua e da

memória do passado do povo.

O Estado Novo assume uma perspectiva historicista, impondo

uma valorização do passado, numa perspectiva de interpretar uma realidade social.

Nesta postulação de “passado “, afirma Gomes, concepções estavam sendo

propostas e convivendo no discurso da época. A primeira seria a de um passado

ligado à cultura popular e que, manifestando-se em um conjunto de tradições,

convivia com o presente, sendo a-histórico, reafirmando-se uma idéia de tempo

não-datado. A segunda seria a de um passado histórico, ligado a uma idéia de tempo

linear, cronológico, datado e referido à memória de fatos e personagens únicos,

existentes numa sucessão, à qual é vedado conviver com o presente. Assim, se o

presente permanecia ancorado no passado como tradição, durante os anos do Estado

Novo fazia-se um esforço consciente para redescobrir o passado histórico enquanto

realidade antecedente e passível de compreensão. Um passado histórico que não

podia, como tradição, coexistir com o presente, mas que era uma fonte de explicação

247 SPHAN/PRÓ-MEMÓRIA. op. cit p.25-26.

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para o novo.248 Para Cunha, poder-se-ia entender que a separação entre história

(eventos) e folclore (tradição), efetuada neste período, acompanhou ou adequou-se a

um modelo “técnico” de gestão ou concepção dos conflitos e problemas, que

caracterizou a intervenção do Estado Novo no âmbito das relações de trabalho e de

outras instâncias da vida social.249

Nesse sentido podemos entender a criação e institucionalização

do SPHAN como parte de uma política que tinha no passado, na memória, e no

patrimônio elementos importantes para a construção de novas diretrizes

governamentais.

A política patrimonialista vai experimentar outras fases,

principalmente a partir dos anos 60, e, em termos legislativos, o Decreto nº 66.967, de

27 de julho de 1970, que transforma a DPHAN em Instituto (IPHAN), é representativo

dessa política patrimonialista.250 Inicia-se também uma nova política de tombamentos,

dirigida mais para a preservação de conjuntos, seriamente comprometidos pelo

desenvolvimento urbanístico e viário do país, com a industrialização e sobretudo com a

valorização imobiliária. A construção de estradas para melhor acesso a lugares antes

desconhecidos irá impulsionar o turismo em várias dessas regiões. Exemplos podem ser

dados como é o caso de núcleos litorâneas do Nordeste, de Outro Preto (MG), de Paraty

(RJ), de Porto Seguro (BA) e também de Pirenópolis (GO) tal como analisaremos

neste capítulo.

Por todas essas questões, técnicos do patrimônio solicitarão

auxílio e orientação de técnicos internacionais dado que, em relação ao turismo, o

248 GOMES, Angela de Castro. A “Cultura Histórica” do Estado Novo. Mesa Redonda: Cidadania e projetos culturais: historiadores e folcloristas no Brasil (XIX simpósio nacional da ANPUH, Belo Horizonte, 1997. In: Projeto História, São Paulo: nº 16, Fev/98, p.121-141. 249 CUNHA, Maria Clementina Pereira. Folcloristas e Historiadores no Brasil: Pontos para um debate. Mesa Redonda : Cidadania e projetos culturais; Historiadores e folcloristas no Brasil. In: Projeto História, São Paulo: nº16, Fev 1998 p. 167-176.

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Brasil ainda não possuía experiências consolidadas. A partir daí, vários grupos estarão

articulados com a questão do patrimônio como a SUDENE251 e a EMBRATUR252, com

a finalidade de ampliar a concepção de preservação para possibilitar também a geração

de renda como fruto de benefícios a partir do incremento de atividades

sócioeconômicas dinamizadas com o tombamento e restauração de monumentos e

conjuntos. Em 1973, foi criado o programa integrado de reconstrução das cidades

históricas do Nordeste, com sua utilização para fins turísticos. Em 1975, a proposta de

expansão do programa estende-se para o Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

Com a finalidade de obter melhor integração entre o ato de preservar e o de utilizar o

bem cultural passou-se a exigir a apresentação prévia do programa de restauração e

preservação, o rol dos monumentos a serem restaurados, o cronograma de execução, os

roteiros turísticos e as fontes de recursos. Caminhava-se no sentido da formação

humana, da geração de renda a partir do uso dos monumentos históricos encarado

como elementos dinâmicos de uma ativa e presente trajetória histórica.

Em 1975, será criado o CNRC ( Centro Nacional de Referência

Cultural), um sistema referencial básico a ser empregado na descrição e análise da

dinâmica cultural brasileira. Esse órgão projetou vários trabalhos que visavam valorizar

comunidades e pequenos grupos, envolvendo-os no processo de pesquisa. Os

programas de estudo basicamente se dividiram entre o artesanato, levantamentos sócio-

culturais, a história da ciência e da tecnologia do Brasil e levantamentos de

documentação sobre o Brasil. 253 Em 1978, o CNRC será incorporado ao IPHAN, e a

partir daí as atividades serão somadas, sendo que o instituto do patrimônio, além das

questões básicas com as quais já se ocupava, passou a desenvolver uma série de

250 SPHAN/PRO-MEMÓRIA op. cit p.p. 31251 Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste.252 Empresa Brasileira de Turismo.

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projetos de valorização do artesanato e de preservação de tecnologias patrimoniais e

endógenas, entre outros, além do PCH ( Programa de Cidades Históricas ) que

objetivava a revitalização de núcleos históricos urbanos.

Contudo, a política de patrimonialização esbarrou em vários

limites, como a falta de verbas e as dificuldades próprias do sistema burocrático, com o

qual muito se envolveu.

Discutiremos a seguir como esse processo aconteceu em

Pirenópolis.

3.2-Pirenópolis e seu Patrimônio.

O processo de patrimonialização em Pirenópolis terá um

desdobramento que se estenderá dos anos 40 até finais dos anos 80 e irá envolver

direta e indiretamente a festa do Divino Espírito Santo, nosso objeto de estudo,

principalmente a partir dos anos 70 do século XX. Na década de 40, aconteceu o

primeiro tombamento local, o que representava a inclusão de Pirenópolis como parte

do patrimônio histórico e artístico nacional. Neste período, diversos diplomas legais

instituíram museus e elevaram algumas cidades à categoria de monumentos nacionais,

como o decreto que criou o museu da Inconfidência, na cidade de Ouro Preto-MG, em

1938, outro que criou o museu das missões, em Santo Angêlo-RS, em 1940, a

instituição do museu do ouro, em Sabará- MG, em 1945, assim como o decreto que

erigiu Mariana-MG em monumento nacional, em 1948, além de muitos outros casos de

tombamento e criação de museus.254

253 Idem. p. 45-46254 SPHAN/PRÓ-MEMÓRIA,. Proteção e Revitalização do Patrimônio Cultural no Brasil; Uma trajetória. MEC/Brasília: 1980 p. 27

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Em Pirenópolis, foi a Igreja Matriz que recebeu o título de

monumento nacional, em 1947. Esta igreja fora tombada certamente por ser o mais

antigo templo católico do Estado, construído no período aurífero e ainda em

funcionamento. Durante todo o século XIX, foram constantes as iniciativas tanto dos

padres, como da Irmandade do Santíssimo Sacramento, para manter essa igreja

funcionando. Goteiras no telhado, paredes trincadas, cupim no assoalho foram alguns

dos problemas que enfrentaram e com que, de certa forma, aprenderam a conviver. No

início do século XX, dado o processo de romanização vivido pela Igreja, o patrimônio

tornava-se uma questão importante, visto que a reforma pretendida por esta instituição

envolvia diversos aspectos ligados tanto à liturgia como a uma série de outros aspectos

organizacionais, entre os quais o patrimônio e a renda da Igreja ocupavam um papel

importante, por serem a base para muitas das reformas. Assim, interpretamos que o

processo de romanização influenciou no tombamento da Igreja Matriz de Pirenópolis,

mesmo não sendo o único fator.

Nos primeiros livros de tombo da igreja de Pirenópolis do início

do século XX, já é possível notar as reclamações dos padres no que dizia respeito ao

patrimônio da Igreja. Falavam dos seus problemas estruturais, da precaridade das

alfaias, das cortinas velhas, do batistério em ruínas e dos problemas do confessionário.

Em 1947, a igreja passou por uma pequena reforma que, segundo o padre, durou de 8

de abril a 26 de setembro, o que não impediu a celebração de missas e novenas tanto

da Semana Santa como da festa do Divino, sendo que algumas cerimônias foram

realizadas na Igreja do Bonfim. No entanto o padre reclamava das medidas paliativas.255

Já neste ano, a igreja havia- se tornado monumento nacional, e a

reforma feita já era iniciativa do SPHAN(Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico

255 Livro de tombo da Igreja Matriz de Pirenópolis, 1929-1955 p.p. 112-113

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Nacional). Contudo, as críticas do padre revelam que a política de tombamento possuía

as suas contradições: as medidas paliativas demonstraram que não havia investimento

suficiente para “recuperar” os monumentos, ou que o tombamento talvez significasse

apenas oferecer alguns reparos que permitissem que o monumento continuasse a

existir. É possível interpretar as críticas do padre sob um outro prisma. A presença de

técnicos do SPHAN representava o envolvimento do Estado com as questões da Igreja.

Talvez muitos padres interpretassem o rompimento dessas fronteiras como uma ameaça

ao seu poder, uma vez que o tombamento da igreja a transformava não em patrimônio

da instituição católica, mas em patrimônio público.

Ainda no ano da reforma, os padres franciscanos, que estavam à

frente da matriz no período, ressaltam:

“Nós não gostamos muito a “reconstrução da matriz”. Esta igreja antiga

foi declarada um “monumento” pelo governo federal e passou nas mãos dela. A

História não é para nós estrangeiros narrar, e ficamos mais ou menos escandalosos que

o governo pode gastar tanto dinheiro para um outro estrangeiro que parece, não sabe

nada das tradições, nem muito desta trabalho, nem nada dos materiais; por exemplo

ele passa cal na madeira do teto e todo mundo sabe que não pode que o cal vai sair e

cair toda a vida e está caindo e sujando a igreja todos os dias. Em geral ele fez nada de

que limpar a igreja e por mais lâmpadas aqui e lá. Pediu nossas desejos, mas em tudo

destas ele não quis mexer, até uma lâmpada no batistério. Pouco mais tarde recebi uma

carta do departamento do governo nestas coisas, protestando nossas mudanças das

imagens, títulos deles etc. mas nós não tivemos culpa. Em verdade a igreja sempre, em

nosso tempo teve coisas antigas e modernas mistas, e outra vez, era um escândalo o

que o governo não mandou nunca, antes durante ou depois, um inspetor official para

declarar e definir que é que pertence ao “monumento”. 256

Este relato, que assume até o caráter de desabafo do padre,

elucida bem os conflitos que o “patrimônio” começava a gerar com a Igreja, ainda

ultramontana. Se, de um lado, a patrimonialização significava mais recursos para a

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manutenção da igreja, por outro, os poderes claramente estavam se enfrentando, tal

como podemos perceber no trecho acima, até mesmo nas questões mais simples, como

a organização das imagens e o uso do espaço da igreja. Se as iniciativas

governamentais procuraram incluir os padres no processo de recuperação da obra, tal

como o padre relata isso não significava que havia respeito e sintonia entre ambas as

partes, já que a concepção de patrimônio gestada no Brasil pertencia a um contexto

bem diferente daquele no qual as idéias e práticas romanizadoras foram articuladas.

Quase dez anos mais tarde, em 1956, o pároco de Pirenópolis,

na época vigário Abel, transcreve telegrama que enviou para o Deputado Fonseca e

Silva, no Rio de Janeiro.

“Telegrama dia 14 “Deputado Fonseca e Silva

Palácio Tiradentes

Rio de janeiro of.

Visitando esta cidade lastimo vir sua presença traduzir profundo

desagrado povo pirenopolino contra lamentável estado conservação matriz local vg

ameaçando danificar-se irremediavelmente nesta última estação chuvosa pt Queira

relevar-me veemente pedido afim Patrimônio histórico nacional determine imediatas

providências favor manutenção vetusto templo vg onde se abrigam religiosas tradições

gente goiana pt

Atenciosamente

Abel vigário capitular

14-2-56 ” 257

Este telegrama demonstra que as iniciativas de reforma e

preservação em relação à igreja não estavam sendo qualitativas, dado que menos de dez

anos depois de uma reforma, a igreja já se encontrava em estado deplorável. As críticas

em relação ao estado da igreja eram constantes. Como exemplo, podemos citar o caso

256 Livro de tombo da Igreja matriz 1929-1955, p.p. 114-115.257 Idem 1956-1980 fls 1 e2 .

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do Pe. Nélson Fleury, pirenopolino que tomou posse na paróquia, em março de 1956.

Este padre, em vários momentos, explicitava a sua insatisfação com a situação vivida,

estendendo as críticas à casa paroquial, à mobília e a falta de conforto existente. Por

ocasião da festa de São Bento, deixou a organização por conta da Congregação

Mariana, que promoveu leilões e prendas, sendo tudo revertido em obras para a “pobre

matriz” conforme enfatizou o padre.258

No mês de novembro deste mesmo ano, o padre notificava a

presença do engenheiro do patrimônio histórico para fiscalização do serviço da “velha

matriz”259. É bem provável que o telegrama enviado no início do ano tenha surtido

efeito junto às autoridades políticas ligadas ao patrimônio nacional. Já no início de

1957, quando o Pe Ferdinando de Luca chegava a Pirenópolis para substituir o vigário

Nelson Fleury, que fora a Goiânia fazer curso para obter registro de professor e diretor,

encontrou a equipe do patrimônio histórico fazendo os trabalhos na Igreja Matriz.

Durante as obras, o vigário só ocupava a matriz aos domingos para as missas. Parecia

otimista quanto aos trabalhos mantinha contato com o engenheiro, Dr. Edgard Jacinto

da Silva, e parecia até disposto a abrir mão de certas solenidades da Semana Santa para

adiantar as obras:

“Não podemos absolutamente deixar passar esta feliz ocasião de vêr bem

conservada a nossa querida igreja matriz, orgulho de nossa cidade e, em bôa hora

tombada no Patrimônio Artístico e Histórico nacional.”260

Por ocasião da festa do Divino, as obras estavam concluídas.

Naquele ano, tal como noticiou o pároco, a festa fora concorridíssima por pessoas

tanto de Pirenópolis como de fora, com caravanas de Goiânia, Anápolis, Corumbá,

258 Livro de tombo 1956-1980 fl 3 259 Idem fl 6

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Jaraguá e de outras cidades vizinhas, além de contar com a presença do governador e

do presidente do tribunal.261 Naquele ano, as comemorações foram tão movimentadas,

que até mesmo programa impresso tiveram. E já no início anunciavam:

“31 de maio às 19:30 hs- Início das novenas, com exposição do

Santíssimo sacramento, na Igreja matriz, completamente reformada pelo Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional, do ministério da educação.”262

No mês de setembro, o padre noticiava a presença do Sr.

Edgard Jacinto, engenheiro do SPHAN, na cidade, para receber pelos serviços feitos.

Na ocasião, não deixou de reforçar que a reforma havia sido muito boa, principalmente

na parte do telhado, embora alguma coisa ainda ficara por fazer, como a reforma no

batistério.263 Alguns anos depois, em 1966, o padre reclamava que nos últimos anos

fora dado apenas um conserto nos bancos e que toda a igreja estava precisando de uma

reforma. Porém, seria necessário esperar decisões do Movimento Histórico Nacional,

que havia prometido começar o serviço. Na época, o pároco se ocupava da construção

de uma nova casa paroquial no largo da Matriz, tendo em vista que a antiga estava

quase em ruínas.

Dez anos mais tarde, o pároco declarava muita insatisfação com

a situação da igreja. Segundo ele, naquele ano a Suplan, de Goiânia, havia ganhado a

concorrência para a reforma. Ele, por sua vez, mandou um grupo de rapazes, que, para

o padre, não entendiam nada, além de não respeitarem o lugar transformando a matriz

260 Idem fl 7.261 Idem fl 9262 Ver anexo I263 Livro de tombo da Igreja Matriz 1956-1980 fl 10

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em dormitório e local para suas necessidades fisiológicas “além de terem deixado um

saldo de bancos quebrados e sujeira inaudita.” 264

A política patrimonialista neste período assumia novos papéis e

possuía outras características. No ano de 1967, outro monumento fora tombado em

Pirenópolis. Desta vez tratava-se de um patrimônio particular, ou seja, a fazenda

Babilônia, antigo engenho São Joaquim, que pertenceu a Joaquim Alves. Em relação a

esse processo, não tivemos documentos que nos propiciassem discuti-lo melhor.

Outras questões também se somaram a essa, demonstrando que a política

patrimonialista, anos mais tarde, se consolidaria também na iniciativa municipal.

No ano de 1976, a câmara aprovou a lei de preservação do

patrimônio histórico e artístico nacional da cidade, com dois artigos, sendo o primeiro

com os seguintes termos:

“Art. 1º Fica o poder executivo autorizado a embargar

qualquer obra de edificação, restauração, demolição ou qualquer outra, cujo projeto

não respeite as características históricas coloniais da arquitetura da cidade ; impedir o

início de qualquer obra, cujo projeto não obedeça as características descritas no item

anterior, no roteiro histórico da cidade de Pirenópolis. Determinar que qualquer

projeto a partir da publicação desta lei que vise construir reformar ou modificar

qualquer edifício no perímetro do roteiro histórico, deverá ser submetido a aprovação

da prefeitura municipal.”265

Nesta lei definiu-se o roteiro histórico, citado a partir do nome

de ruas e praças. Contudo, a regulamentação e normatização desses espaços só foram

modificadas aos poucos, visto que só em 1982 aprovou –se lei sobre o zoneamento do

solo urbano, que estabeleceu os usos permissíveis ou proibíveis em áreas definidas

como zonas de usos específicos. A definição final disso tudo só viria anos mais tarde,

264 Livro de tombo 1956-1980 fl 58265 Livro de leis da Prefeitura Municipal de Pirenópolis , 1976 lei n º 11/76

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em 1988, com o tombamento da cidade como monumento nacional, quando se criaram

outros códigos específicos.

Ainda no ano de 1976, a Lei nº 07/76266 autorizava o poder

executivo municipal a adquirir o prédio do Cine Teatro Pireneus e todo o seu

patrimônio, na época pertencente a um particular. A Lei estabelecia inclusive o valor

máximo a ser empregado na compra do imóvel bem como a abertura de crédito para se

efetuar a compra. Isso, contudo, não significou o tombamento do cine-teatro, o que só

veio a acontecer em 1985, quando se torna parte do acervo do patrimônio histórico

municipal.267

É importante ressaltar que, concomitantemente a esse processo

de patrimonialização, Pirenópolis vivia uma série de transformações urbanas, que

refletiam de certa forma as mudanças sociais e influenciaram diretamente os festejos do

Divino, tal como explicaremos neste capítulo.

Alguns discursos na Câmara Municipal, no início do século,

revelavam que a grande preocupação era em relação às estradas, tendo-se em vista que

naquele período o Município ficava isolado dos demais pelas dificuldades de acesso.

Em 1913, após dissertar amplamente sobre as características e potencialidades de

Pirenópolis, um vereador ressaltava que a falta de estradas prejudicava os negócios, tal

como já havia acontecido várias vezes com empresas que se mudavam para lá e logo

desistiam. Neste ano, redigiram um documento para o deputado Olegário Herculano da

Silveira Pinto, pedindo providências para o problema, entre os quais a alteração do

traçado da linha férrea, para que passasse por Pirenópolis.268 Nos anos seguintes, não

acompanhamos nenhuma movimentação em relação a esta questão levantada.

266 Livro de Leis 1976267 Livro de Leis ano de 1985 Lei nº 028268 Atas da Câmara Municipal 1911-1914

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Certamente não surtiu efeito a articulação dos vereadores de Pirenópolis, e o problema

das estradas ainda persistia.

No ano de 1948, a prefeitura irá publicar a Lei nº 11 de 4 de

fevereiro de 1948, que decretava a criação do serviço rodoviário municipal, com uma

seção para se incumbir os serviços técnico administrativos concernentes a estudos,

construção, reconstrução e conservação de estradas e caminhos municipais. 269

No que diz respeito a estradas, poucas iniciativas vão acontecer

na primeira metade do século XX. A primeira estrada de rodagem foi a que ligava

Pirenópolis a Goianésia, inaugurada em 1951. Anos mais tarde, em 1959, é que

inauguraram a rodovia entre este município e Jaraguá, em 1978, a que o ligaria a

Anápolis; e só nos anos 80 é que se pavimentaria a estrada de rodagem até Corumbá,

além da estrada que dá acesso da entrada do município até a cidade de Pirenópolis.

Os anos 40/50 foram um momento bastante elucidativo das

transformações urbanas de Pirenópolis, em muitos aspectos: instalação de nova rede

elétrica, construção de pontes, ampliação do perímetro urbano, com o surgimento de

vilas, entre outros. Nos balancetes da Prefeitura é possível verificar isto, a partir dos

inúmeros gastos referentes a questões que indicavam uma nova configuração do espaço

urbano, como a conservação de água e esgoto, de ruas e praças bem como seu

alargamento, reforma de mercados e matadouros. A título de exemplo, no ano de 1966

a Prefeitura gastou no total Cr$ 116.000,00 sendo que, deste valor, R$ 35.702,00 foram

com serviços urbanos e habitação e mais Cr$ 31.580,00 com transportes e

comunicação. Não podemos, contudo, interpretar essas medidas como progressistas,

uma vez que pouco mais de Cr$ 20.000,00 deste montante foram aplicados em saúde,

269 Livro de leis da Prefeitura Municipal de Pirenópolis ano de 1948 fl 4.

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educação e cultura. Porém, é relevante considerar que esses dados nos revelam aspectos

importantes sobre essa sociedade.

O caso mais elucidativo -no que diz respeito à relação de

transformações urbanas aliadas a transformações sociais envolvendo poder público,

igreja e festas- foi o do largo da Matriz, palco de várias mudanças, nesse período.

Desde o início da cidade, este largo foi a gênese do espaço urbano, o que era comum a

todas as cidades construídas no período colonial, fora o espaço de atuação e de poder da

Igreja Católica, visto que ali estava a Matriz. Era neste largo que aconteciam

quermesses e leilões, e montavam-se barraquinhas de festas religiosas. Ele era palco

também de peças de teatro e das cavalhadas, por ocasião dos festejos do Divino. Ali

marcava-se o espaço para a corrida dos cavalos e para a construção de camarotes para

as principais famílias. O uso deste espaço permaneceu quase inalterado até os anos 60

do século XX, quando se inicia uma disputa entre a Prefeitura e a Igreja pelo seu

controle.

No ano de 1960, por ocasião de uma visita pastoral do arcebispo

da época D. Fernando Gomes dos Santos, iniciaram o estudo da possibilidade de

construir a casa paroquial e um edifício para conjunto paroquial em terreno anexo à

Matriz270 Nos anos seguintes, o padre da época, Frei Primo Carrara, relatava as

dificuldades enfrentadas para iniciar as obras da casa paroquial. Como justificativa para

a construção da obra, argumentava que aquele espaço era muito pouco aproveitado

para a utilidade pública, a não ser para as apresentações da cavalhada que uma vez ou

outra aconteciam naquele largo, por ocasião dos festejos do Divino. No entanto os

maiores problemas ainda estavam por vir.

270 Livro de tombo 1956-1980 fl 24

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“Um belo dia no começo do ano de 1962, vimos o início de uma

construção no largo da matriz. Era o correio da cidade. Bela iniciativa sem dúvida,

porém em um lugar que foi sempre considerado de propriedade da Igreja.” 271

O padre lamentava o acontecimento, pois, segundo ele, não

houve nenhuma preocupação com os direitos da Igreja, e achava que deveriam ao

menos ter procurado o Arcebispo para uma aprovação. O pior de tudo, enfatizou, é que

projetavam aproveitar toda a praça da Matriz para construir a Prefeitura e o Fórum

sendo que havia visto o projeto, cuja autoria pertencia a Geraldo de Pina. Assim

reclamava:

“Projeto louvável naturalmente porém com o inconveniente de não ter em

conta os direitos da Igreja o que os teria sem dúvida se pensarmos que a Igreja matriz

já funcionava no ano de 1732 e a prefeitura viria somente 150 anos depois” 272

A prefeitura não pensava assim e considerava o largo da Matriz

como um bem público e sobre ele deliberou algumas leis. Em 1953, o prefeito

Sizenando Jaime, através da Lei nº 105, autorizou abertura de crédito especial no valor

de CR$ 50.000,00 para o início da construção do prédio do Fórum, que funcionava em

prédio cujo aluguel era pago pela Prefeitura. No mesmo ano, a Lei nº 112 autorizou

mais Cr$ 100.000,00 para a construção do prédio. Para o ano de 1954 era previsto ao

poder público gastar mais Cr$ 120.000,00 para a construção do prédio do Fórum; Para

1956 mais Cr$ 100.000,00. No entanto, só em 1959 se aprovou lei autorizando a

doação de terreno no largo para a construção do prédio.273 No ano de 1960, a Lei nº

271 Livro de tombo da Igreja matriz de Pirenópolis 1956-1980 fl 25.272 Idem 273 Livro de leis da prefeitura municipal de Pirenópolis ano de 1959 fl 67.

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180 autorizava o executivo a doar terreno para a união para a construção do prédio dos

Correios, no largo.274

Segundo o padre Primo Carrara, a construção do prédio dos

Correios deu lugar a muitas queixas, e por isso as obras ficaram paralisadas uns seis

meses. Nesse período, foi procurado pelo Sr. Lindomar de Almeida, construtor do

edifício, o qual perguntou se segundo a sua opinião, as obras deveriam seguir ou ser

desmanchadas. O padre, numa atitude provocativa, respondeu:

“Disse para ele francamente que se a construção do correio não ia para a

frente, não iniciaria as obras paroquiais programadas, quem sou eu para estragar a

tradição da praça! Porém se as obras do correio iam para a frente, imediatamente daria

início as obras paroquiais programadas e aprovadas pelo arcebispo.”275

Apesar dos protestos, o correio foi construído. Toda essa

polêmica demonstrava que neste momento três poderes se enfrentavam no cenário

urbano de Pirenópolis: de um lado. a Prefeitura, que considerava a praça como bem

público municipal; de outro, a Igreja, que considerava aquele espaço como de sua

propriedade; e de outro, o Movimento do Patrimônio Histórico Nacional, que defendia

não se dever mudar o traçado original do largo.

No ano de 1962, a prefeitura representada pelo prefeito da

época, Luiz Abbadia de Pina, numa atitude que demonstrava ser o largo pertencente à

municipalidade, doa terreno à Igreja para a construção do conjunto paroquial.276 Anos

274 Idem ano de 1960 fl 72275 Livro de tombo da Igreja matriz 1956-1980 fl 25276 Livro de Leis da Prefeitura Municipal de Pirenópolis. Ano de 1962 lei nº 239

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depois, doa mais um terreno, dessa vez para a construção de prédio para puericultura277,

cujo funcionamento estava sob sua responsabilidade.278

Em setembro de 1962, a Igreja inicia as obras paroquiais.

Segundo o padre Carrara, como era de se esperar houve muitos protestos e

reclamações. Porém, como era tempo de eleições, aproveitou a ocasião pelo fato de

acreditar que tais protestos e reclamações iriam cessar, já que os políticos temiam

antipatia com a maioria do eleitorado, que era católica.279

O Sr. Cílio de Aquino foi um dos que, na opinião do padre,

mais se insurgiram contra a construção do conjunto paroquial, pois, segundo ele, tirava

a vista da frente de sua casa. Uma noite, com uma machadinha, cortou em quinze

lugares diferentes o arame farpado que protegia os materiais de construção. O padre

afirmou não ter tomado nenhuma medida contra essa atitude e outras, segundo ele,

frutos da incompreensão e ignorância. Com as obras bem adiantadas, recebeu, ainda,

inúmeros telegramas das autoridades do SPHAN, mandando paralisar as obras, sob

pena de processo. O padre, não deu importância, mas como os telegramas não

deixavam de chegar afirma ter respondido que dirigissem as reclamações ao Arcebispo

de Goiânia, que tinha concedido licença para a construção.280

Nos anos seguintes, parece que finalmente entraram em um

acordo, sendo que o Prefeito Luiz Abadia de Pina, acordou com a Igreja que metade da

praça ficava com a Prefeitura e metade com a Igreja. O padre, parecendo não confiar

muito no acordo, afirmou que tivera vontade de cercar o lugar que pertencia a Igreja,

para que ficasse protegido, e não houvesse dúvidas. Como isso não foi possível,

277 Conjunto de ensinamentos e práticas médico-sociais que visam assegurar o perfeito desenvolvimento físico, mental e moral da criança. 278 Livro de Leis ano 1965 lei nº 8279 Livro de tombo da Igreja matriz de Pirenópolis 1956-1980 fl 25280 Idem

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levantou as paredes do salão paroquial. Mesmo assim, o sr. Ladário Siqueira, chofer do

sr. Prefeito, planejava construir sua casa no terreno ocupado pelo salão paroquial, por

ter conseguido uma licença com o presidente da câmara municipal. O padre

argumentou:

“Esse lote porém era mais conveniente para a futura casa paroquial e

ninguém concebia que quasi encostada na matriz se fizesse uma casa particular.

Assim pois apesar de não ter dinheiro e sim algumas dívidas começamos abrir as

cavas da atual casa paroquial.”281

Ainda no ano de 1962, o padre convocou a comparecerem na

casa paroquial antiga os principais homens da sociedade: vereadores, comerciantes e

fazendeiros, numa atitude que demonstrava o esforço para recuperar apoio e prestígio

junto à boa sociedade. Nesta reunião compareceram pessoas como o Comendador

Cristóvão de Oliveira, Josué Pereira da Veiga, Dr Sebastião Pompeu de Pina, Sebastião

Pompeu de Pina Sobrinho, Cristóvão Pireneus de Oliveira, João Basílio de Oliveira,

entre muitos outros, num total de 32 homens. Na sua fala, explica que o objetivo da

reunião era pedir opinião sobre seus planos de melhoramentos para a paróquia, tais

como a compra de algumas imagens e a construção de uma conjunto paroquial no

largo, constituído de escola, salão e casa paroquiais, para a realização de aulas de

catecismo e também para funcionar como administração para o asilo e hospital São

Vicente de Paulo. Assim, afirmou o seu desejo em iniciar as obras imediatamente

porém só contava, no momento, com CR$ 300.000,00, produto das festas de Nossa

Senhora do Rosário e de São Sebastião. Segundo o padre, todos manifestaram apoio à

sua iniciativa, afirmando nunca terem sido contrários, em vista do sucesso do colégio

281 Livro de tombo da igreja matriz 1956-1980, fl 26

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N. Sra do Carmo, construído e dirigido por esta Igreja. No final, contou que recebeu

como doação Cr$ 10.950,00, depositados na mesa pelos presentes.282

Contudo, apenas no ano 1967 é que finalmente ocorreu a

mudança para a casa paroquial nova, sendo que na época o padre recém-chegado,

Francisco de Assis é que efetuou a venda da casa paroquial antiga para quitar gastos

com a nova.283

Os conflitos envolvendo o patrimônio da Igreja não se

resumiram ao largo da Matriz. Outro patrimônio, alvo de controvérsias, era a Igreja de

Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, erguida, ainda no século XVIII pelos escravos,

em outra praça denominada largo do Rosário. Essa igreja, que por sua vez começara a

ruir já nos anos 40, em função da quase ausência de reparos -só efetuados

anteriormente pelas Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito, nessa

época já desarticuladas- permanecerá em ruínas até o início dos anos 60, quando vai ao

chão de vez. Segundo o padre Primo Carrara, houve intenções mal sucedidas de

consertar a igreja: uma delas foi a do Arcebispo de Goiânia, Dom Emanuel, que tentou

dar um reparo na frente do templo mas as paredes aos poucos foram cedendo,

arrastando também as paredes laterais. Outras pessoas também interessadas começaram

a reconstruir o templo, porém foram impedidas pelo Prefeito Luiz Abbadia de Pina, que

mandou entupir de novo os alicerces com patrolas. 284

O mais problemático, narra o padre, foi a atitude de pessoas

que moravam próximo ao largo: aproveitando-se da situação, tentavam ampliar o

tamanho de seus lotes. Outro problema, também, que envolvia interesses particulares

282 Idem anexo à fl 26. 283 Livro de tombo da Igreja Matriz 1956-1980 fl 38284 Idem fl 27

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foi a iniciativa de construir no lugar da igreja um clube dançante. Na época do

acontecido, 1964, o padre lança protesto em relação a essa iniciativa.

“com a presente comunicação, faço saber aos interessados, que o terreno

onde pensam edificar o dito clube, é de propriedade da Igreja Matriz que, como pessoa

jurídica, reconhecida pelo direito brasileiro, pode possuir propriedades... Choca ao

espírito cristão dos pirenopolinos, especialmente da classe mais humilde, esta

iniciativa, privada de toda sensibilidade afetiva e moral. Um lugar santificado durante

séculos, pelo culto tributado a Deus e a Nossa Senhora, por nossos antepassados,

converter-se em clube de baile, final melancólico mesmo...”285

Com este protesto, o padre procurava reafirmar a posse do

patrimônio religioso urbano de Pirenópolis e intimidar as pessoas interessadas no

negócio, argumentando também, neste caso, às afirmativas de que na Prefeitura não

constava documento de doação da área para a Igreja, que a Prefeitura só veio funcionar

na cidade quase 100 anos depois de estar construída a Igreja de Nossa Senhora do

Rosário dos Pretos, atacando furiosamente:

“todos os que participam dêsse roubo sacrílego contra os direitos da

Igreja serão sempre indicados no futuro pelo povo, como “Ladrão do terreno do

Rosário” (grifo da autora). É pena que pessoas batizadas, membros da Igreja Católica,

não respeitem o patrimônio de sua mãe. Os interessados, esquecendo êsses deveres,

falaram que vão construir a sede do clube no terreno de N. Sra do Rosário de

“Qualquer Jeito” (grifo do padre).

Com essas palavras, o pároco concluiu o protesto escrito,

argumentando que procuraria valer seus diretos. Curiosamente, no final deste texto

havia uma observação que demonstrava que o assunto havia dado muita polêmica e

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conflitos. Nesse post-scriptum, o padre respondia a críticas ouvidas de que havia

permitido funcionar no terreno do Rosário um circo tão escandaloso como o último que

estivera na cidade. O padre defendia-se dizendo que o circo se apoderou do lugar sem

o menor conhecimento do padre vigário e que esse problema era da polícia e das

autoridades competentes. O vigário jamais permitiria tal espetáculo. A título de

informação, argumentou que em relação aos comentários de que o circo havia

arrecadado Cr$ 10.000,00, achava que aquilo era um abuso e um atentado contra o

direito da propriedade privada.286

As obras relativas ao clube dançante foram paralisadas após o

início da construção, com várias pedras amontoadas no largo e devido a inúmeros

protestos. Porém, nos anos 70, a Câmara Municipal realizava discussão sobre a

construção de uma praça pública no largo do Rosário, o que veio a acontecer alguns

anos depois e é um exemplo da reafirmação do patrimônio público municipal em

detrimento do patrimônio religioso.

A partir desses exemplos, percebe-se a perda gradativa de poder

que a Igreja Católica vinha sofrendo na sociedade pirenopolina. A perda da autonomia

e propriedade das praças, antes ocupadas por essa instituição religiosa, era um sinal de

que o seu poder reforçado principalmente pelo processo de romanização, não possuía a

mesma força já na década de 1960. Contudo, o poder da Igreja, sua força de atuação e

influência na sociedade, não era algo que desapareceria completamente. As iniciativas

de aliança e protestos perante as situações conflituosas, nas quais este poder estava

inserido, eram um sinal claro de que continuava a existir e, mesmo com outras

características, o que era determinado por uma conjuntura mundial, continuaria a lutar

285 Protesto assinado pelo pe Primo Carrara em 22 de agosto de 1964, anexado à fl 27 do livro de tombo; 1956-1980. 286 Idem.

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pelo seu espaço. Todas essas questões evidenciam o embate entre a elite local e a

Igreja pela apropriação do espaço urbano.

No que diz respeito à festa do Divino, essas questões estiveram

diretamente relacionadas, e é sobre isso que discutiremos nos próximos itens.

3.3-Os Folcloristas & As Festas

O processo que conceituamos de patrimonialização, iniciado

nos anos 30, com a criação das primeiras leis que legitimavam o Serviço Nacional do

Patrimônio Histórico, e que continua até os dias atuais, teve outros desdobramentos,

que julgamos necessário discutir para compreendermos a complexa relação entre as

desse período e o seu contexto. O primeiro foi o movimento folclórico, que valorizava

diversas manifestações populares, articulado na Europa no século XIX287 e que, no

Brasil, terá a conjuntura dos anos 20 como ponto inicial para seu desenvolvimento,

embora já no século XIX alguns autores já tivessem abordado o assunto. O outro

desdobramento já nos anos 70, que esteve ligado com os demais, foi a política do

turismo cultural, que se articulava com as propostas do IPHAN e legitimava o

movimento folclórico como aspecto importante do patrimônio histórico e cultural. É

sobre estes aspectos que discutiremos nesta seção.

No Brasil, o movimento folclórico só será articulado a partir das

primeiras décadas do século XX, quando as festas e todo um conjunto de manifestações

populares estarão envolvidos em debates que buscavam discutir elementos para a

nacionalidade brasileira. O Movimento Modernista, que buscou nas tradições, costumes

287 Alguns autores discutem com bastante propriedade esse assunto; entre eles podemos citar, Natalie Zemon Davis op. cit & BURKE, Peter, op. cit No Brasil, quem articulou esse debate com as questões propriamente brasileiras foi ORTIZ, Renato. Cultura Popular, Românticos & Folcloristas. São Paulo. Olho D’água, 1990.

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e crenças populares o elemento mediador para se entender o Brasil, será o ponto

inicial para a criação de órgãos e grupos que vão se ocupar da pesquisa e do

levantamento das manifestações populares. Esse movimento, cujo mentor e

articulador-mor será Mário de Andrade, terá desdobramentos diversos, sendo que um

deles foi a estruturação do folclorismo no Brasil, que só a partir daí terá rumos

definidos.

Desde o século XIX, alguns autores já abordavam os temas do

folclore em suas obras. Martha Abreu, em um estudo sobre a obra de Melo Moraes

Filho, enquadra-o como um autor que trilhou um caminho próprio e expressou uma

especial visão das festas, das manifestações populares e da relação disto com a

construção positiva da nacionalidade, no final do século XIX. Uma nacionalidade, no

entanto, bem diferente da dos tradicionais autores românticos, enfatiza a autora,

nacionalidade que se situava num momento em que precisavam ser enfrentados os

desafios das grandes transformações sociais brasileiras, especialmente a abolição da

escravidão, com o objetivo de criação de uma nova nação. Então a “ideologia da

mestiçagem ”e a “união das três raças” passaram a ser as marcas de nossa identidade

nacional, tal como pregavam as idéias cientificistas, naturalistas, positivas e

evolucionistas na época. 288

Outros estudos, na época, de certa forma relatavam as

manifestações populares, entre eles, os estudos literários de Sílvio Romero e os

trabalhos etnológicos de Nina Rodrigues e, um pouco depois os de Amadeu Amaral.

No entanto, nenhum destes estudos pode ser caracterizado como folclórico visto que o

288 ABREU, Marta. Mello Moraes Filho: Festas, Tradições Populares e Identidade Nacional. In: História Contada.Org: CHALBOUB, Sidney & PEREIRA, Leonardo Affonso de M. Rio de Janeiro: Nova Fronteira 1998. P. 171-193

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seu estabelecimento no Brasil era muito recente e se confundia freqüentemente com a

própria literatura, tal como também acontecia na Europa.

Se, durante o século XIX, as manifestações populares foram

abordadas por alguns autores, é no início do século XX que esta proposta será

problematizada. Bosi289 acredita que no Brasil o tema do cruzamento entre as culturas

é proposto especificamente por alguns escritores modernistas, como Mário de Andrade,

Oswald de Andrade, Raul Bopp e Cassiano Ricardo, os quais acreditavam na fusão de

culturas a partir da diversidade nacional. Mário de Andrade irá tentar criar sociedades

de folclore e se dedicará à pesquisa de vários aspectos do tema principalmente no que

dizia respeito às danças dramáticas, seu campo preferido de abordagem, envolvendo o

mundo negro e mestiço.

É importante ressaltar que o momento era bastante frutífero

para as discussões em torno da nacionalidade, com expressões legítimas, como a

publicação de títulos como Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, Evolução

política do Brasil, de Caio Prado Júnior, e também Casa Grande e Senzala, de Gilberto

Freire, além do surgimento de vários museus e institutos que tentavam envolver o

Brasil e o seu mosaico cultural entendido como parte da nacionalidade.

Se os anos 20 são o ponto de partida dos estudos folclóricos,

seu auge só será na década de 50, com a criação da Comissão Nacional do Folclore, em

1947, e da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, em 1958. No entanto, esse

movimento estará bem próximo da sociologia e da antropologia e com essas áreas irá

travar imensos debates pela definição das fronteiras de seu estudo bem como da

incorporação ou não do folclore às ciências sociais. No contexto do pós-guerra, a

preocupação com o folclore enquadrava-se na atuação da Unesco em prol da paz

289 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Cia das Letras. 1992

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mundial porque o folclore era compreendido como instrumento de união entre os

povos. De fato, as iniciativas em torno do folclore no Brasil eram parte de um processo

anterior, tal como já abordamos, mas somente nesse período é que o debate tornou-se

aceso. Exemplo disso foram os inúmeros eventos em torno do folclore, como diversos

congressos e semanas dedicados ao tema.290 No entanto, embora folcloristas e cientistas

sociais compartilhassem de um momento profícuo para o debate em torno das

manifestações populares, os seus caminhos eram bastante diversos. De um lado, a

antropologia enquadrava o folclore como uma divisão da antropologia cultural: de

outro, os folcloristas, representados na época por Alceu Maynard, Rossini Lima,

Renato Almeida, entre outros, defendiam a autonomia do folclore, tal como acontecia

na Europa, a preservação das manifestações populares e a aprovação de uma carta do

folclore brasileiro que considerasse folclórico toda manifestação espiritual ou

material.

Florestan Fernandes tornou-se participante ativo deste debate

entre folcloristas e cientistas sociais, ao incluir as temáticas do folclore em seus

estudos. Ele problematizou a atuação e o método folclorista por tratarem a cultura com

apego ao passado, desconsiderando os seus aspectos múltiplos e dinâmicos, além de se

basearem em métodos estrangeiros, distanciando-se da realidade nacional. Associando

pesquisa e ação política, os folcloristas aproximaram-se gradativamente do Estado, até

a criação da CDFB (Comissão de Defesa do Folclore Nacional), ligada diretamente ao

MEC, atendendo aos apelos da carta do Folclore Brasileiro e aos interesses da

290 As iniciativas também foram frutíferas em torno das ciências sociais. Em 1953, é realizada a I reunião Brasileira de Antropologia no Rio de Janeiro e no ano seguinte o I congresso brasileiro de Sociologia, em São Paulo, além do surgimento de centro de formação de pesquisadores fora do ensino oficial.

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Unesco.291 Assim, os folcloristas se distanciaram do ambiente acadêmico, envolvendo-

se gradativamente com a política nacional e regional.

Atendendo a projetos de criação de subcomissões estaduais de

folclore, em 1964, a partir de uma lei, é criado o Instituto Goiano do Folclore. O

primeiro instrumento de divulgação deste trabalho foi uma revista trimestral, que se

chamou Folclórica, fundada em 1972. De fato, a criação do Instituto Goiano, além de

representar a participação de Goiás em um movimento nacional, demonstrava a

institucionalização das manifestações populares por órgãos governamentais, refletindo

a política da época, no que dizia respeito à cultura entendida como folclórica. Alguns

autores, em anos anteriores, já se haviam preocupado com a temática das manifestações

populares, como os vários viajantes que estiveram em Goiás, no século XIX, além de

vários outros memorialistas como Silva e Souza, Cunha Matos e Couto Magalhães. O

início do século XX traz outros autores, como Henrique Silva, com algumas notícias na

Informação Goyana292, e Hugo de Carvalho Ramos, que com Tropas e Boiadas

sintetizou diversos aspectos da cultura goiana que fizeram parte de sua preocupações.

Outro representante do período é Americano do Brasil que, além de Cancioneiro e

Trovas no Brasil Central, de 1922, publicará Lendas e Encantamentos do Sertão, em

1938. Em 1941, um professor paulistano, José A. Teixeira publicará, Folclore Goian,o

contando, inclusive, com o patrocínio do governo do Estado.

A criação do Instituto Goiano do Folclore de fato só

institucionalizou um movimento que já existia. Regina Lacerda, escritora vilaboense,

parece ter sido uma representante legítima deste movimento: além de inúmeros artigos,

escreveu vários livros e representava Goiás nacionalmente, nas questões do folclore.

291 CAVALCANTI, Maria Laura V de Castros & VILHEBA, Luís Rodolfo da Paixão. Traçando Fronteiras: Florestan Fernandes e a marginalização do folclore. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: vol 3, nº 5 1990 p. 75-92.

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Em 1968, publicou na revista brasileira do folclore artigo sobre Goiás, Traços da

cultura portuguesa em Goiás.293 Em 1977, elaborou um número da coleção do

folclore brasileiro sobre Goiás294, organizada pelo MEC e FUNARTE, o que outros

Estados como Alagoas, Maranhão, Rio Grande do Norte e Piauí já haviam feito. No

número que organizou, Lacerda faz opções bem ligadas com a sua própria experiência

nestas manifestações populares e, no caso das festas, já cita como as principais: a

Romaria de Trindade, sobre a qual escreveu um livro, a procissão do Fogaréu em Vila

Boa, sua cidade natal e a Festa do Divino de Pirenópolis (onde possuía muitos contatos)

sobre a qual faz algumas referências em um de seus livros295. O espaço que coube a

Pirenópolis neste processo não foi pequeno. O editor da revista folclórica que circulou

ininterruptamente por 8 anos de 1972 a 1979 era simplesmente o jornalista Braz de

Pina, membro da importante família pirenopolina que esteve em toda sua trajetória

envolvida com os festejos do Divino.

A festa do Divino, neste período, também foi grande

inspiradora de inúmeros trabalhos. O antropólogo Carlos Rodrigues Brandão foi autor

de dois deles, o primeiro, Cavalhadas de Pirenópolis, que lhe deu o prêmio Americano

do Brasil, em 1973, publicado no ano seguinte e, depois, o Divino, o Santo e a

Senhora, publicado em 1979. É esse autor apontado pela revista folclórica de 1979

“como um dos que mais contribuem para a riqueza bibliográfica de Goiás no campo do

folclore” 296 Brandão, embora não fosse propriamente um folclorista, mas um

antropólogo, não foi o único a escrever sobre a festa do Divino de Pirenópolis. Mara

Públio de Souza Veiga Jardim e Niomar de Souza Pereira, em 1979, lançaram trabalho

292 Revista goiana que circulou no Rio de Janeiro no início do século XX. 293 LACERDA, Regina. Traços da Cultura Portuguesa em Goiás. In: Rev Brasileira do Folclore. Rio de Janeiro, MEC, 1968. 294 Idem, Folclore Brasileiro-Goiás- Rio de Janeiro, MEC, 1977. 295 LACERDA, Regina. Papa Ceia. Notícias do Folclore Goiano. Goiânia, Oriente. 1968.296 Revista Folclórica nº 7 ano 8/ 1979.

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sobre a festa do Divino em Goiás e Pirenópolis. Niomar , em 1983, lança o livro

Cavalhadas no Brasil, com grandes referências à festa de Pirenópolis, e o lançamento

teve direito a ser noticiado no programa da festa daquele ano. Nos anos 80, outro livro

sobre Pirenópolis era esperado e noticiado pela revista folclórica: era o da arquiteta

Grace Curado, Pirenópolis Uma Cidade para o Turismo, que, embora não tratasse

especificamente da festa, como qualquer trabalho daquela época não deixou de

mencionar algo sobre o festejo.

Em 1972, o setor de folclore do Museu Antropológico da

Universidade Federal de Goiás organizou um projeto de pesquisa que visava uma

divisão regional do folclore para fins de estudo e defesa no Estado de Goiás297. A

iniciativa parecia ser um pouco diferente daquelas dos folcloristas, sendo que as

organizadoras fizeram um levantamento etnográfico, iconográfico e bibliográfico para

articular o projeto. Dividiram o Estado em regiões e fizeram um levantamento dos

principais aspectos do que consideravam folclore, como as festas, o artesanato, os

folguedos populares, além do levantamento de material folclórico para coleta. Na

verdade, essa proposta não se diferenciava muito daquela dos folcloristas: estava

completamente ligada a eles, ao deixara bem claro que as manifestações culturais

goianas eram vistas como algo que precisava ser coletado, conhecido, divulgado e

preservado, para não correr o risco de desaparecer. Esse setor do folclore era incipiente:

iniciara as suas atividades no ano anterior à organização do projeto, e a primeira coleta

de material, documentada com gravações, fotografias e eslaides, fora feita durante a

festa do Divino de Pirenópolis..

O movimento folclórico, nos anos 70, articulou vários eventos

que demonstraram ser o período propício para tais questões. Foram eles: o concurso

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de monografias sobre o folclore, “Americano do Brasil”, em 1973, a semana do folclore

e artesanato e o concurso de monografia, em 1977, e outros eventos nacionais e

regionais que buscavam envolver o movimento folclórico no Brasil como um todo. Um

elo importante dessa articulação entre o regional e o nacional foi Ático Villas Boas,

escritor e folclorista goiano que assumiu a vice-presidência do Instituto Nacional do

Folclore, no final dos anos 70.

O Instituto Goiano do Folclore não pode ser entendido apenas

como uma extensão do movimento nacional do folclore, outras questões estavam

envolvidas nessa política. É importante ressaltar que existiam muitos interesses locais

envolvidos nessas questões. Assim, foi contemporânea à instituição deste organismo a

criação de uma empresa de turismo para o Estado de Goiás, GOIASTUR, a qual vai se

envolver amplamente com as questões culturais como forma de construir uma imagem

turística do Estado a partir das manifestações populares, entre outros aspectos. A

criação da Goiastur insere-se também no contexto da patrimonialização, pois nos anos

70, período no qual surge essa empresa, o Movimento do Patrimônio Histórico e

Nacional articulava no Brasil o turismo cultural e para isso se aliou a empresas como a

EMBRATUR, assim como contratou técnicos estrangeiros para orientar os trabalhos.

Nesse momento, com o desenvolvimento de indústrias e a construção de estradas por

todo o Brasil, tornou-se mais fácil o acesso a regiões antes desconhecidas. Assim, a

concepção de patrimônio será ampliada, sendo que o bem cultural passará a ser visto

como algo que deveria ser preservado mas também utilizado de forma que o tornasse

dinâmico e operacional.

A GOIASTUR foi criada em 1972, com o objetivo de

desenvolver e articular o turismo regional;

297 GARCIA, Marcolina Martins & BREDA Judite Ivanir. Divisão Regional para o estudo e defesa do

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“Suprir a iniciativa privada, nas áreas que ainda não

despertaram seu interesse, promovendo a construção e exploração, diretamente ou

mediante concessão de empreendimentos reputados importantes para o

desenvolvimento do turismo do estado, tais como ....

Colaborar com o Instituto do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional na recuperação, conservação e exploração dos bens históricos,

artísticos e folclóricos do Estado, assim como no tombamento de bens móveis e

imóveis, monumentos naturais, sítios e paisagens, cuja proteção e conservação sejam

consideradas de interesse cultural ou turístico.“298

Como pudemos perceber, pelo trecho do estatuto acima, esta

empresa estava amplamente envolvida em projeto regional que articulava folclore,

patrimônio e turismo. E é nesse sentido que Pirenópolis foi alvo de preocupações de

autoridades, na época por representar um tipo específico de cidade cuja memória

histórica, expressa e viva no patrimônio arquitetônico e também nas manifestações

culturais, contemplava os interesses regionais e nacionais de associar o patrimônio

histórico e artístico à cultura local, entendida como folclore, tendo o turismo como elo

para essas partes. Em Pirenópolis a GOIASTUR irá se envolver amplamente com a

festa do Divino, por oferecer ela elementos importantes para contemplar os seus

objetivos.

3.4- Cavalhada, uma Festa (re)criada

Durante o período da romanização, a festa do Divino foi um dos

principais alvos da Igreja Católica na sua política reformadora da sociedade. De todas

as manifestações, a que gerou mais conflitos foi a folia ao Espírito Santo, muitas vezes

folclore no Estado de Goiás. Goiânia, Cegraf, 1972.

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proibida e desconsiderados os seus aspectos religiosos. Porém, a partir dos anos 60,

outra manifestação da festa estará diretamente ligada às mudanças que a cidade

sofreria, cujo desdobramento seria o início de uma política de sua patrimonialização e

também da festa do Divino. Esta manifestação era a cavalhada, cuja dinamização

representava também a contrapartida da situação vivida, ou seja o enfraquecimento da

política reformista da Igreja Católica, principalmente em relação às festas do Divino.

Elas passariam a compor um contexto (patrimonialização), sobreposto ao primeiro

(romanização), com o qual iria conviver conflituosamente.

Esse evento teve apresentações esporádicas durante todo o

século XIX e no século XX isso permaneceu ainda por muitos anos. Algumas versões

locais afirmam que o que não existia era um grupo sólido de cavaleiros o que

dificultava a sua apresentação anualmente, outros acreditam que a cavalhada dependia

da vontade do Imperador para acontecer.

“Cavalhada em Pirenópolis era uma coisa muito boa. Toda a

festa tinha, mas acontece que foi ficando tudo muito ruim, Pirenópolis ficou parado

muitos anos. E acabou. Ninguém mais conhecia cavalhada não. Ninguém. A última

que teve foi.. um imperador chamado Gastão Jaime de Siqueira. Nem teve 24

cavaleiro junto, pro que não tinha gente, ninguém interessava. A cavalhada são

dezesseis cavaleiro, era muito ruim, coisa e tal. Ninguém mais falava em cavalhada

em Pirenópolis...

Então cavalhada, acabou, ninguém interessava mais. Quando

foi em 34 o Lulu de Pina, Luis d’ Abadia de Pina queria levar a cavalhada . Então,

chamou o pessoal que tinha corrido cavalhada naquele tempo...pedindo opinião. Aí

apareceu os cavaleiro “véio”, Antônio José da Veiga, Antônio Jaime e outros, né, aí,

ninguém sabia nada nem como é que começava, parava nem nada. Aí me chamaram,

Otacílio Ferreira, um advogado, já morreu. Este advogado me chamou e disse: você

vai correr em meu lugar. Aí eu falei: eu nunca corri cavalhada, uai. Não, você vai

correr de embaixador, de mouro. Já começou por aí, mais caro, né..

298 Estatuto Social da Empresa de Turismo do Estado de Goiás/GOIASTUR, 1976.

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O Senhor João José, hoje com 92 anos, foi um dos pioneiros da

cavalhada do século XX. Pelo seu depoimento, é possível perceber que, no ano em que

correu pela primeira vez, houve a iniciativa de realizá-la, por parte do, Imperador citado:

Lulu de Pina. Neste período, o Imperador parecia ter bastante influência neste evento.

Outra versão confirma isto:

“Era mais difícil correr cavalhada. Era pouca gente que tinha

interesse em correr cavalhada. Hoje não! Hoje tem...Hoje o interesse é muito. Acho

que se saírem dez cavaleiros tranquilamente se substitui. Há uns vinte anos atrás, para

correr cavalhada você tinha que estar procurando os outros, o Imperador, às vezes,

pagava o cara por dia. O sujeito na roça, sempre trabalhou, e lá era mais barato- o dia

de serviço na roça era mais barato- Mas aqui já houve caso do Imperador pagar para o

cidadão vir correr cavalhada. Entendeu? Hoje não tem! Hoje, todo mundo (todo

mundo no bom sentido)...o pessoal quer correr cavalhada. Acho que se faltar vinte e

quatro, vamos substituir os vinte e quatro! Aqui tem cavaleiro que já correu e quer

correr cavalhada de novo, tem quem não correu que quer correr! Porque hoje também

ficou assim...Ela está mais propagada; a Cavalhada hoje ela está mais bonita, é

famosa, então todo mundo quer correr!299

Talvez os fatores que impediam acontecer a cavalhada fossem

muitos, e como não existia um grupo de cavaleiros articulados, cabia ao imperador tomar a

iniciativa. O Senhor João José apresenta versão de que a iniciativa de organizar a roupa,

com cavalo e ensaios sempre foi dos cavaleiros e que muitos imperadores não

organizavam cavalhada por outros motivos:

...Sempre por conta do cavaleiro. Mas o imperador tinha a

obrigação para fazer despesa né, dar o café de manhã e dava o café a uma hora da

tarde, porque era o outro ensaio. Era assim. Então sujeito não tinha nada. Ninguém

ajudava. Então acabou. Então seu Lulu resolveu alevantar a cavalhada. Então eu fiquei

299 Entrevista com o senhor Antônio Roberto Machado “Rei Mouro da cavalhada” ,46 anos, agropecuarista. Em Pirenópolis 29/05/1998

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como embaixador de mouro, o Neco de Sá como rei de cristão, o seu Júlio como rei

de mouro ai arrumamo a cavalhada.”300

A iniciativa de arrumar a roupa, por parte do cavaleiro da

cavalhada se confirma em outros depoimentos.

...A primeira que eu corri foi à minha custa. Eu tenho

anotado a despesa que eu fiz. Naquele tempo era dinheiro de mil réis ainda. Eu gastei

111. Tenho anotado! {riso} Para vestir eu e e o cavalo. Naquele tempo, as coisa era

mais fácil umas coisa, outras, não!.301

O Sr João José afirma que a partir dos anos 30, a cavalhada

precisou ser totalmente recriada, pois há a muitos anos ela não acontecia, e nem todos se

lembravam de como era:

“Aí, ninguém.. como é que começa essa carreira? Não sei.

Como é que começa aquela outra? Não sei. Alguém tinha anotado as carreira, as saída,

mas também era só. Aí fomo ensaiar, nós ensaiamo em três campo. Um atrás do

carmo, atrás da Igreja do carmo. Lá, fizemos um campo. O antigo campo da cavalhada

onde é o campo da aviação hoje. Nós ensaiava lá de manhã cedo a tarde nós ensaiava

ai atrás do carmo e a noite nós ensaiava no campo de futebol...Era eu, Ataliba, de

Aquino, Júlio César de Aquino, pai dele, Manoel Inácio de Sá, genro de seu Júlio...Era

ensaiando, pelejando com aquilo, chamava o Otacílio; Ah! Não sei mais. Chamava

outro, ninguém sabia mais não. Então fomo parpando, pegava caroço de mio, colocava

em cima duma mesa então fazia a carreira som o caroço de mio, um ia pra lá, outro ia

pra cá. Até que nós conseguimo a saída.”302

Esse depoimento nos leva a concluir que a cavalhada de

Pirenópolis possivelmente, tenha deixado de acontecer, durante tantos anos anteriores à

década de 1930, pelos dois motivos explicitados anteriormente: falta de um grupo sólido de

300 Entevista com o Sr. João José, 91anos, aposentado, junho, 1998.301 Entrevista com o Snr. Venceslau, 81 anos, aposentado, 27 de maio de 1999.302 Entrevista com o Sr. João José de Oliveira, aposentado, 91 anos em Pirenópolis, junho de 1999.

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cavaleiros para correr cavalhada e falta de apoio dos Imperadores, e pelos mais diversos

motivos. Isto só começará a ser mudado a partir dos anos 60.

Segundo Pompeu de Pina, hoje as cavalhadas acontecem sem

maiores obstáculos, diferentemente do passado, quando, como atividade incipiente, ela

acontecia em meio a muitas dificuldades.303

O senhor “Lalau” relata que participou a primeira vez em 1940,

quando este evento, ainda era atrás da igreja, no largo da Matriz; e participou por muito

tempo:

“Não foi só cavalhada aqui em Pirenópolis não, inclusive,

em Goiânia, em Brasília, foram 24! Eu era primeiro Cavaleiro de fila. Era 5º cristão...

Depois, eu fui correr como rei. Acho que foi 8 ou 10 cavalhadas que eu corri como

rei...Meu pai correu também..ele deixou de correr, minha mãe guardava a vestimenta

dele – até quando eu comecei a correr, usei alguma coisa que ele já tinha usado (já

velho, não é!? Mas estava guardado!).

...ah, nessa primeira cavalhada, já fazia uns dez ano aí, foi

uns 20 dias ou mais de ensaios! Quando eu entrei, tinha 5 cavaleiros velho que já tinha

corrido. Só! O resto foi tudo rapaz!”304

Sebastião Dias Goulão, contemporâneo de Sr. Lalau nos conta

como foi a sua experiência de correr cavalhada nos anos 40:

“Naquele tempo era novo. Os companheiro tudo resolveu

correr, também entrei no meio! Morava em fazenda, então, vimo pará aqui, achei

bom,. Mas, naquele tempo, a cavalhada, o ensaio não era aqui não! O ensaio era aqui

no taquaral. Nós levantava de madrugada para ensaiar... Não tinha gente como ensaia

hoje não. Agora, eu corri no campo ali da matriz. Corri em 40 e 41, e depois corri de

303 Entrevista realizada com o Sr. Cristóvão Pompeu de Pina, em Pirenópolis no dia 27/05/96 304 Entrevista com o Sr Venceslau Antônio de Oliveira, Sr. “Lalau” 81 anos, pirenopolino, 27/05/1998, aposentado.

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novo, não recordo mais! Corri quatro vezes. ..Hoje começa Domingo, Segunda e

Terça. Naquele tempo começava Segunda, Terça e terminava Quarta.

É divertimento! Mas eu achava melhor não a cavalhada,

achava melhor o ensaio com os companheiro.. Era simples. Hoje, você vê que a

cavalhada começa correr tarde-ontem foi quase três horas, não foi? Que é tanta coisa:

tem ali aqueles congos, tem pastorinha, diversas diversão, não é? Tinha nada disso

não. Era simples!”305

O Sr Joãozico Lopes também nos relata a sua participação, na

cavalhada, iniciada nos anos 50:

“a primeira cavalhada que eu corri foi em 53. Corri de 53 até

78. Depois eu passei só a organizar. Cavaleiro! Depois corri como Embaixador e,

agora, acompanhando a vida ai até...Está com...é quarenta, e cinco anos! 306

Nesses depoimentos não está claro o período em que a cavalhada

passa a ser recorrente, sendo que alguns apontam os anos 30 e outros os anos 40. De fato, a

partir desses anos a cavalhada será gradativamente estruturada e recriada. Esse processo

irá culminar nos anos 50 e 60, período em que a Igreja redefinia seus posicionamentos e a

cidade organizava sua memória local, recriando alguns elementos dela, relacionados com

estes festejos. Tivemos acesso a um documento307 pertencente à família de um cavaleiro

no qual anotaram os anos em que houve cavalhada em Pirenópolis. Neste documento os

intervalos entre uma cavalhada e outra passam a ser menores, a partir de 1934, o que

coincide com a memória do sr. João José cujo depoimento citamos anteriormente. Porém

ainda era uma manifestação que não acontecia todos os anos.

305 Entrevista com o Senhor Sebastião Dias Goulão, 77 anos, aposentado, 24/05/1999. 306 Entrevista com o Sr. Joãozico Lopes, maio de 1998. 307 Relação de Imperadores da Festa do Divino de Pirenópolis, organizado pela família do Sr. Joãozico Lopes.

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Mesmo não sendo freqüente, acreditamos que já nos anos 40 a

cavalhada de Pirenópolis já se tornava um ícone externo da festa do Divino e de

Pirenópolis. Afirmamos isso, baseando-nos em um acontecimento: em 1942, ocasião em

que foi realizado o batismo cultural da nova capital, Goiânia,308 a Cavalhada de Pirenópolis

se apresentou na ocasião do evento como parte da programação da cerimônia. No Livro de

Tombo da matriz está registrada a participação da cidade no evento:

“No dia da inauguração, 5 de julho de 1942, houve missa

festiva e sermão vespertino. Parece que o povo mostrou pouco interesse por este

histórico acontecimento único da fundação de Goiânia. Lá na capital, repetiu-se a

nossa cavalhada e Pirenópolis ocupou um lugar honroso na exposição de todos os

municípios do Estado” 309

O sr. João José afirma que na época foi um dos que correram essa

cavalhada em Goiânia. No período, já havia deixado de correr em Pirenópolis, mas foi

convidado para ajudar a realizar o evento. Isto deve-se ao fato de na época não existir um

grupo sólido de cavaleiros.

“Acontece que veio Goiânia, pessoal foi atrás de mim. Como

é que vamo levar a cavalhada em Goiânia, o prefeito. O prefeito naquela época era

José Augusto Curado. Então vamo levar a cavalhada em Goiânia. .. Bom, aí reuni e

eu falei eu vou sim, mas tem que levar a banda de música, seis moças pra vestir

cavaleiro, 24 pegador de lança, e tem que levar 24 cavalo, o tratador desses cavalo,

fomo com a maior delegação que já teve. Então levamo a cavalhada em Goiânia. Mas

não corremo três dias, corremo dois...”310

308 Goiânia transformou-se em capital do Estado nos anos 30 dentro de uma nova política nacional e teve como articulador Pedro Ludovico Teixeira. 309 Livro de tombo da Igreja Matriz 1928-1955 p. 82 310 Entrevista com o Sr. João José, junho de 1999.

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Este depoimento nos faz perceber a existência de uma articulação

política, entre autoridades locais e regionais, em torno desse evento. Elas procuravam

sintetizar alguns aspectos da cultura goiana simbolicamente articulados com o surgimento

de uma nova capital, que procuraria ser um amálgama desses vários aspectos. O sr. João

José nos afirmou ainda que a Cavalhada de Pirenópolis fora a única do Estado inteiro a se

apresentar na cerimônia e que haviam sido convidados pelo Jaime Câmara, empresário

goiano no ramo das telecomunicações.

A apresentação da Cavalhada de Pirenópolis em Goiânia deixou

um importante registro em um texto escrito pelo folclorista do Instituto Nacional do

Folclore, Renato de Almeida, que assistiu à apresentação durante o batismo cultural. Sobre

ela abordou alguns aspectos que serviram de contraponto para sua análise da cavalhada no

Brasil, em Cavalhadas dramáticas311. Alguns aspectos chamaram a atenção desse

folclorista:

“A cavalhada de Goiânia não era de gente do povo, o que se

podia ver, mesmo sem a informação do meio social dos figurantes, pela precisão e

justeza dos movimentos dos cavaleiros elegantes e ágeis, revelando um requinte e um

esmero que não se encontram nas apresentações de terreiro, com seu delicioso

desajeito e sua formas rudimentares, sempre em formação, pois a fluidez as

caracteriza.”312

311 ALMEIDA, Renato. Cavalhadas Dramáticas In; folclórica nº 3, ano 2 1973, Goiânia, Instituto goiano do folclore, p.37-54. 312 Idem

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Esta observação reforça a hipótese que já neste período a cavalhada

representava positivamente a cultura de Pirenópolis o que influenciou que em torno dela

fossem construídos diversos elementos da identidade local. No entanto, esse processo teria

diversos desdobramentos, e só a partir dos anos 60 é que a cavalhada se estruturaria como

um evento recorrente e representativo da festa do Divino.

Uma questão, contudo, nos faz refletir sobre muitos aspectos.

Durante os anos em que ocorreram os conflitos em torno da posse do largo da Matriz,

lugar onde tradicionalmente corria-se a cavalhada, essa manifestação deixou de acontecer,

tal como nos atesta o documento da família do Sr. Joãozico Lopes. Neste período, a última

cavalhada ocorrida no largo foi em 1958, só voltando a acontecer em 1966, quando ele já

estava tomado pelas construções do prédio do Correio, da Casa Paroquial e do Fórum. Já

partir desse ano a cavalhada passou a ser realizada em um campo de futebol e ali ocorre até

os dias atuais.

Em referência a esse acontecimento, podemos concluir que a

cavalhada foi uma representante legítima da relação que as festas tiveram com os

processos analisados: romanização e patrimonialização. Simbolicamente, a apresentação da

cavalhada no largo representava que ela estava de certa forma sob o domínio da Igreja,

embora os cavaleiros nem sempre estivessem ligados ao pároco. Quando deixa de

acontecer, no final dos anos 50, só voltando a ressurgir quase uma década depois,

novamente simboliza a fragilização do poder da Igreja pela perda gradativa de espaço

político na sociedade em questão. É interessante perceber que a cavalhada, após deixar de

acontecer no largo, será fortalecida e a partir daí terá uma seqüência praticamente

ininterrupta. Outra questão que emerge, nesse processo, é que o novo perfil urbano de

Pirenópolis vai redefinir espaços públicos, privados, sagrados e profanos. A cavalhada,

nesse contexto de mudança, assumia um outro papel, que a transformaria em uma

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manifestação turística e “folclórica”, tendo em vista que a cidade nesse momento já se

articulava em torno desses aspectos.

Já nos 60, o turismo local começou a ser articulado. Em 1965, a

Câmara Municipal autorizava o poder executivo a assinar convênio com a Secretaria de

Indústria e Comércio do Estado para a construção de obras de turismo na cidade. Assim,

aprovaram a Lei nº 7/65, que autorizava, através de convênio, construir um hotel de

turismo, um lago artificial e outras obras destinadas a incentivar o turismo neste

município.313 Há outros registros que apontam os anos 60 como o início do movimento

em prol do turismo local.

Maria Alice Barbosa, em uma pesquisa sobre Pirenópolis, afirmou

que desde a década de 60 Pirenópolis recebia visitantes da recém-fundada Brasília,

principalmente estudantes universitários. Nesta época, porém, o acesso à cidade, por terra e

em região montanhosa, era muito difícil. A procura anterior se dava quase que

exclusivamente por ocasião das “Cavalhadas”, parte das comemorações da festa do

Divino.314 Um depoimento endossa essas premissas.

“Até os anos 60 nós vivíamos totalmente fechados, sem qualquer contato.

Apenas uns poucos contatos que vinham com um onibuzinho, muito pouco. A nossa

festa do Divino era uma festança, mas local, da região. Daí a pouco a nossa festa do

Divino tornou-se de vulto nacional. Teve uns anos que ela chegou a espantar! Parecia

festival de inverno. Isso em 65, 66 até 70. Em 1966, a Universidade de Brasília

resolveu promover a festa do Divino em Pirenópolis. Com a propaganda eles

divulgaram a festa e foi uma loucura.” 315

313 Livro de Leis da Prefeitura Municipal de Pirenópolis fls 130-131 314 BARBOSA, Maria Alice Cunha. As Estratégias de preservação no núcleo histórico urbano de Pirenópolis. Dissertação de Mestrado, Brasília, UNB, 1992 p 71. 315 Entrevista com o Sr. Pompeu Cristovam de Pina, Secretário de turismo, 1990 IN: BARBOSA, Maria Alice Cunha op. cit p. 71

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O outro aspecto que reforça a idéia de um movimento turístico

neste período é a Pensão Padre Rosa que foi pioneira nesse sentido.

“A pensão padre Rosas foi no período 1960/75. O período áureo foi a

partir de 68. No princípio era uma pensão apenas para esconder o jogo que carteavam

mas acabou virando uma pensão extraordinária” 316

De acordo com Barbosa, “muitas pessoas se deslocavam de Brasília

e de Goiânia para irem comer nesta pensão, conhecida pela quantidade e variedade de

carnes de caça e doces que serviam, colocando-os todos sobre a mesa, virando até uma

“doença” comer na Pensão Padre Rosa”. No ano de 1965, a Câmara Municipal travava

discussões sobre a possível isenção de impostos para o proprietário dessa pensão, Jayme

Juanito, o que se concretizou com a Lei nº 9/65, 317 com previsão para vigorar a partir do

ano seguinte. Essa iniciativa fazia parte das ações da prefeitura, preocupada em achar

formas de aumentar as rendas municipais e atrair indústrias para o local. Demonstrando

essas questões, no ano de 1966, a primeira lei aprovada concedia isenção de impostos de

Indústria e Profissões às novas indústrias que se instalassem no Município, a partir de

1969. 318 No ano de 1968 a Prefeitura representada por Emmanoel Jaime Lopes, aprovou

nova lei autorizando a construção de um hotel municipal de turismo bem como a abertura

de crédito, no valor de Cr$ 50.000, 00 para os início das obras.319 Apenas anos depois em

1971, é aprovada lei para a aquisição do terreno para a construção do hotel.320

Especialmente a partir dos anos 70, percebemos que o

investimento local concentrou-se na Festa do Divino e nas Cavalhadas, uma vez que já

316 Idem p. 72317 Livro de Leis da Prefeitura Municipal de Pirenópolis, 1965, fl 131318 Idem ano de 1966 fl 142319 Idem ano de 1968 fl 187.320 Idem lei nº 18/71 fl 55

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neste período atraíam muitas pessoas para a cidade. Em 1971, através de uma lei, a

prefeitura ficava autorizada a efetuar despesas com a parte “folclórica” na festa do Divino,

lastreados por um crédito especial de Cr$ 5.000,00. Esse crédito, no entanto, sairia da

verba destinada aos serviços urbanos, à limpeza pública e a despesas de custeio de

pessoal.321 Nesse ano aprovou-se também crédito de Cr$ 3.000,00 para pagamento de

reportagem sobre Pirenópolis a ser publicada no guia turístico “Conheça Goiás”, e, nesse

caso, o dinheiro também sairia da verba destinada aos serviços urbanos.322 Ainda neste

ano, a Prefeitura, numa demonstração de preocupação com a memória histórica da cidade,

parte do patrimônio local e atração para o turismo, aprova lei considerando a banda de

música Phoênix323 como órgão de utilidade pública.324 Uma outra lei, aprovada também no

ano de 1971, demonstrou o interesse local em promover a imagem cultural de Pirenópolis,

neste ano a Prefeitura autorizou a confecção de 1.500 postais coloridos com vistas da

cidade.325

As iniciativas em torno da divulgação e realização da festa do

Divino tiveram continuidade nos anos seguintes. Em 1972, através de uma lei, é aprovado

crédito de Cr$ 6.000,00 para ajudar a realização das Cavalhadas.326 Neste ano, mais Cr$

6.000,00 foram liberados para custeio da parte “folclórica” da festa do Divino Espírito

Santo.327 No entanto, neste ano, a aprovação destas leis não foi consensual na Câmara

Municipal. No dia 4 de maio daquele ano, durante uma sessão, o vereador José Martins de

Arruda manifestou-se contrário à aprovação desta verba, dizendo que na cavalhada deveria

correr só quem tivesse condições. Estava sozinho nessa proposta: imediatamente, outro

321 Idem ano 1971, lei nº 6/71, fl 49 322 Livro de Leis da Prefeitura Municipal de Pirenópolis lei nº 5/71 fl 49 323 Esta banda foi fundada no final do século XIX por músicos locais e até dias atuais acompanha as procissões e demais eventos da Festa do Divino Espírito Santo. 324 Livro de Leis ano de 1971 lei nº 12/71.325 Idem lei nº 20/71 fl 5.6 326 Idem ano de 1972 lei nº 10/72 fl 69.327 Idem ano de 1972 lei nº 34/72 fl 82

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vereador, Otto Trier, disse achar justa a verba para o fim de conservar as cavalhadas, por

serem tradição da cidade, sendo que o projeto foi aprovado com cinco votos contra um, o

do vereador José Arruda que finaliza a sessão dizendo ter dado o seu voto contra,

representando as moças que não assistiam às cavalhadas. 328

Na sessão da Câmara do dia 09 de maio o vereador Pompêo

Cristóvam de Pina requereu verbalmente o envio de um ofício ao sr. Prefeito com o pedido

de limpeza do campo de futebol para receber as cavalhadas, uma vez que o requerimento já

havia sido aprovado por com unanimidade. O vereador José Martins, quando entrou em

segunda discussão o projeto de lei nº 12/72, argumentou ser desfavorável a ele, frisando

que concordava em que as cavalhadas eram tradicionais e faziam parte dos festejos do

Divino, mas que a Prefeitura tinha compromissos primordiais com escolas que

funcionavam desprovidas de prédios e com regiões sem condições de tráfego. Os

vereadores Pompêo Cristóvam de Pina e Otto Trier saíram na defensiva do projeto, afinal

aprovado por seis votos contra um, o do vereador José Martins de Arruda.329 No ano de

1973, novamente foi aprovado na Câmara projeto que autorizava a Prefeitura a

subvencionar os festejos do Espírito Santo, através da lei 6/73.330

Essas leis aprovadas nos fazem refletir sobre dois aspectos

importantes. Primeiro, demonstravam a preocupação do poder público municipal para com

os festejos porque eles representavam um aspecto positivo da cidade e contribuíam para o

turismo local. Depois, estas medidas mostravam que as cavalhadas estavam deixando de

ser uma apresentação com envolvimento local e passavam a ser um espetáculo para os que

vinham de fora. Assim, seria necessário o investimento já que a imagem externa da cidade

estava a cada dia mais imbricada com a cavalhada.

328 Atas da Câmara Municipal de Pirenópolis 1971-1978 fl 22329 Idem fl 25330 Livro de Leis ano de 1973 lei nº 06/73 fl 129

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A criação da GOIASTUR influenciou muitos aspectos desse

contexto no qual a cavalhada se inseria. Em 1973, um dos cavaleiros da cavalhada,

assessor jurídico da Goiastur, articulou uma mudança em torno da indumentária dos

cavaleiros.

“Eu participei da primeira cavalhada em 1973. E levando-se em

consideração a história, eu via que aqui em Pirenópolis as cavalhadas eles usavam as

vestimentas que não tinham nada a ver com a tradição, ou com a história universal,

porque os cristãos representavam as cruzadas, isso aí vem de Carlos Magno e os doze

pares de França, e que as vestimentas deles tinham muito a ver, ou eram cópia fiel de

soldados! Era colete e chapéu, boné, quepe de exército, resolvi mudar, depois de

ampla discussão democrática, entre todos os cavaleiros ... “331

Este depoimento demonstra em parte a política da Goiastur: as

festas deveriam se adequar ao turismo, contrariando um pouco a opinião dos folcloristas.

Segundo o sr. Possidônio, aquela mudança, fruto de uma pesquisa feita por ele próprio em

livros de História, era uma forma de “melhorar o visual” das cavalhadas:

“A cavalhada, ela esteve por acabar! E precisava que isso aí se aviventasse. Precisava

que agente trouxesse uma nova conscientização, depois de dicutido aí eu mostrei o

livro pra cada uma das pessoas...E a cavalhada é muito mesclada (são pessoas de

níveis diferentes, não é?) Então, foi preciso que nós discutíssemos muito isso para

chegar a esta conclusão de que maneira, nós fizéssemos a cavalhada mudar no seu

vestuário e maneira de correr a cavalhada. Não mudamos a essência da cavalhada (as

carreiras, as evoluções, as embaixadas) mudamos o visual porque nós não tínhamos

nada a ver (um fardamento de milícia , de polícia.).”332

Essas mudanças aconteceram no ano de 1974, conforme atesta o

depoente: Naquele ano toda a indumentária da cavalhada foi financiada pelo governo do

Estado, na época Irapuã da Costa Júnior, através da Goiastur.

331 Entrevista com o sr. Possidônio Guilherme Rabelo. 53 anos, Advogado em Pirenópolis.

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“...ele deu tudo o que nós precisávamos: deu espora, arreio, bota, cabeçada, rédea, e

inclusive as roupas e o pagamento das costureiras para a confecção....Pelo governo do

Estado de Goiás através da Goiastur..”333

Essa iniciativa, em nenhum momento pode ser considerada benesse

da GOIASTUR, cujos projetos deveriam envolver estas manifestações, divulgando-as e

auxiliando financeiramente.

A criação da GOIASTUR não fez cessar o movimento local, que

procurava dinamizar o turismo da cidade, através da festa do Divino e das cavalhadas. Em

1976, o vereador João Aires da Silva requeria ao plenário o envio de um ofício ao chefe

do executivo solicitando-lhe que mandasse iluminar as ruas da cidade e construir uma

caixa em frente à Igreja Matriz, para levantamento de mastros, quando dos festejos do

Divino. Outra preocupação sua era zelar pelas ruas da cidade, que segundo ele, estavam

abandonadas. Como a cidade receberia muitos visitantes, poderiam eles levar de volta uma

impressão muito indigna da cidade. O projeto foi aprovado unanimamente.334

No ano de 1977, várias foram as medidas de organização da festa

por parte do poder público municipal. No dia 04 de abril, o vereador Assuero Barbo de

Siqueira, num ofício a ser enviado à Goiastur, requereu o pagamento das costureiras das

cavalhadas. No dia 06 o vereador Iélio Benedito Figueiredo exigiu o envio de um ofício ao

Prefeito com o pedido de apoio aos cavaleiros da cavalhada, assim como de uma limpeza

rápida onde os turistas se acomodavam, também foi sendo aprovado unanimamente. No

dia 03 de maio daquele ano, outro vereador, Marciano Bueno Leite, requeria o envio de

ofício solicitando a construção de sanitários públicos no campo das cavalhadas, sendo

aprovado sem controvérsias.

332 Idem.333 Idem334 Atas da Câmara Municipal de Pirenópolis 1971-1978 fl 102 e 103

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Ainda neste ano de 1977, um vereador colocou em discussão um

assunto que demonstrava ter a política da GOIASTUR, muitas fragilidades. Esse vereador,

Assuero Siqueira manifestava-se favorável à aprovação de convênio da Prefeitura com esta

empresa de turismo mas nunca à compra de ações dela. Outro parlamentar, Cristóvam José

de Oliveira, manifestou ser contrário à compra de ações desta empresa, que se transformara

em Sociedade de Economia Mista de capital autorizado em 1975. Na ocasião, disse que

conhecia a Goiastur tanto por dentro como por fora, e que sobre presidente, conhecido seu,

poderia dizer que era um homem cafajeste e salafrário. Afirmava isso pela razão que se

segue:

“O conhecido miquitório público situado abaixo da prefeitura gastou Cr$

40.000,00 e ele Ladislau apresentou a conta de Cr$ 165.000,00. Que para implantar o

turismo nesta cidade não haveria necessidade de compra de ações, sendo eu a favor

do convênio com a GOIASTUR, não com as compras de ações..”335

No ano de 1978, a Câmara aprovou projeto enviado pelo

executivo, autorizando-o a firmar convênio com a GOIASTUR. Na ocasião, fez uso da

palavra o vereador João Coelho Araújo manifestando-se sobre essa empresa, disse que ela,

mesmo estando em falência, ela continuava a dar apoio aos festejos do Divino Espírito

Santo. O vereador Cristóvão de Oliveira manifestou-se contrário aos dizereres do vereador

João, aí os debates se prolongaram levando a extremos. E, não ficando satisfeitos, calaram-

se.336

A imprensa mantinha esse debate aceso. Em 1978, o jornal Gazeta

traz reportagem com a seguinte manchete: “PIRENÓPOLIS, SEM CONDIÇÕES

TURÍSTÍCAS”, e texto de chamada;

335 Idem fl 148.336 Atas da Câmara Municipal 1971-1978; fl 197e 198.

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“Pirenópolis vem sendo divulgado, pela Goiastur, em âmbito nacional,

como uma grande atração turística do Estado. Uma total irresponsabilidade, afirmam

os entendidos no assunto. Irresponsabilidade?...Perguntam os céticos. Claro,

respondem os expertos, pois aquela cidade histórica, apesar da riqueza folclórica que

possui, não dispõem de nenhuma estrutura para receber o fluxo turístico (nem o fluxo

de alto nível, nem tampouco o fluxo do turismo doméstico)

Começa pela ausência de estradas. A velha estrada, estreita em demasia,

sem asfalto e sem qualquer placa indicativa, envolvendo todo o mundo num banho de

poeira vermelha e sufocante, o que desanima o mais fanático estudioso das

manifestações populares ou o mais louco amante das viagens”337

A reportagem era provocativa do início até o fim, ressaltando todos

os aspectos negativos da festa e da cidade. Um alvo da crítica também era a Goiastur, que

seria um ponto muito negativo para que a cidade viesse a se tornar turística. O primeiro

aspecto era que a cidade não possuía nem 200 leitos para hospedar pessoas. Naquele, ano

para hospedar diplomatas de Brasília e alguns elementos da imprensa, a Prefeitura afirmou

que foi obrigada a alugar e improvisar o colégio como hospedaria. A crítica vinha

sobretudo porque a empresa Goiastur havia projetado, para a cidade de Goiás, um hotel de

luxo que ainda não havia saído do papel. Outras críticas envolviam diretamente a aplicação

de verbas da Goiastur:

“Naquela cidade o povo esclarecido comenta, a boca pequena, é claro e

uma ar de deboche, que a goiastur diz ter empregado ali na cidade 2 bilhões de

cruzeiros. Todos riem e riem, como se contassem uma boa piada e perguntam num

caro espontâneo:

-Empregou em quê? No som do campo das Cavalhadas. No feitio de

cartazes cores? Ou em obras invisíveis?

Agora fizeram uma estrada –atalho, de 26 quilômetros de poeira nova

solta que vai dar na rodovia Belém-Brasília. A estrada é boa, não resta dúvida. Mas

337 Jornal Gazeta de Goiás. Goiânia, 20 a 27 de maio de 1978. P. 8

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porque não a asfaltaram? O turismo alí pode ser explorado em nível comercial- que

dará lucros, garantem os observadores. Ademais, Pirenópolis tem representantes

importantes no governo estadual.”338

Esta reportagem sem dúvida nos apresenta os aspectos

contraditórios dessa política. No entanto, no ano seguinte, em outro jornal divulga-se nota

de apoio do governo à festa de Pirenópolis;

“A festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis contará com o apoio do

governo Estadual, segundo informações do diretor presidente Elder de Camargo

Passos, que na última Terça –feira esteve visitando aquela cidade, onde manteve

contato com o prefeito Altamir Mendonça e os organizadores dos festejos. A Goiastur

cuidará de solicitar policiamento para os cinco primeiros dias de junho- período de

cavalhada- de montar um esquema de recepção aos turistas e visitantes e ainda

montará a arquibancada no campo de apresentação dos cavaleiros, o esquema de apoio

inclui a compra das balas de festim para os cavaleiros da cavalhada e também a

manutenção dos sanitários públicos durante os principais dias da festa.” 339

A GOIASTUR, mesmo com dificuldades financeiras, como

constantemente era anunciado na imprensa, procurou organizar algumas campanhas de

turismo. Uma delas, articulada em 1979, tinha o seguinte slogan: ESTE ANO, CONHEÇA

O BRASIL. MAS COMECE POR GOIÁS. A proposta era uma parceria com a empresa

Cardealtur; nas imagens selecionaram diversos aspectos turísticos de Goiás, como as

pedras de Paraúna, as águas termais de Caldas Novas, o rio Araguaia e também

Pirenópolis, cujo ícone era um grupo de mascarados na festa do Divino pelas ruas da

cidade.

Internamente, a questão turismo em Pirenópolis gerou muita

polêmica pois a cada ano a cidade recebia mais turistas durante os festejos do Divino e a

338 Idem.

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ausência de uma infra-estrutura apropriada perdurava. A Igreja, em seus registros,

documentava a sua insatisfação com o grande número de pessoas que apareciam na cidade,

contribuindo para profanizar ainda mais os festejos do Divino e incluia aí outros

responsáveis por essas questões. No ano de 1974, o padre afirmava que junto com as

pessoas de fora vinha toda a bebida, o nudismo e a miséria, o que tornava até necessária a

intervenção da polícia. No ano seguinte, voltou a criticar a presença de turistas na cidade.

Depois de elogiar a parte religiosa da festa, declarou que antes desse fenômeno era tudo

mais simples e mais dirigido para Deus e que nos dias atuais tudo voltava-se mais para o

mundano, com divertimentos, bebidas, danças e mulheres. 340

Na Câmara municipal houve muitas manifestações de desagrado

contra o turismo, tal como ele estava acontecendo. Como exemplo, em 1979, o vereador

Cristóvam José de Oliveira, no uso da palavra, manifestou profunda insatisfação quanto à

questão que, para ele, era por falta de autoridades para a aplicação de leis. No ano

seguinte, por ocasião da festa do Divino, voltou a abordar o assunto. Declarou-se

decepcionado com os homens e autoridades de Pirenópolis, que não tomavam

providências contra a anarquia do povo que vinha para a cidade com o nome de turista e

que abusava da sociedade. Por fim, apelou para a formação de uma corrente para combater

esses “vândalos” ( grifo da autora)341. No mesmo ano, 1980, durante os festejos do Divino,

um grupo de mascarados levantou uma faixa preta dentro do campo da cavalhada com o

texto: “ENTERRO DO TURISTA FAROFEIRO”342 . Uma foto da faixa foi publicada em

um jornal como chamada para a matéria que retratava o movimento local contra as

precárias condições da cidade para receber tantos turistas e contra as atitudes de muitos

que iam até lá apenas para aproveitarem, sem se preocuparem com a cidade.

339 O popular, Goiânia, 29/04/79 p. 6340 Livro de tombo 1956-1980 fl 58 e 61341 Atas da Câmara Municipal de Pirenópolis 1978-1983 fl 49 e 120.

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Esse movimento ressaltado é parte de todo o processo discutido que

por sua vez teve avanços e contradições. Se a população local se insurgia contra esse

turismo desenfreado e sem estrutura, existia um projeto político local e regional para

incentivar esse mesmo turismo a partir da Festa do Divino e das Cavalhadas. As

contradições e controvérsias foram diversas porém, o caminho estava traçado. A partir dele

a política de patrimonialização se desdobra, sendo que em 1988 a cidade é tombada

Monumento Histórico Nacional, o que veio facilitar e favorecer o turismo local com

algumas verbas e o início da recuperação dos diversos monumentos da cidade, anos depois.

A cidade e a festa estavam nacionalmente consagradas como elementos presentes da

cultura brasileira. A partir daí o turismo local teve um boom, que se estende até dias atuais,

e cidade adquiriu uma grande estrutura, em relação ao tamanho dela, para receber pessoas

do Brasil inteiro em feriados, férias e também na ocasião da festa do Divino e das

Cavalhadas.

342 Jornal Diário da manhã. Goiânia, 22 de agosto de 1981.

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Capítulo IV- Tradições (Re) Inventadas.

“Pesquisa, salvamento, exaltação da memória coletiva não mais nos acontecimentos mas ao longo do tempo, busca dessa memória menos nos textos do que nas palavras, nas imagens, nos gestos, nos ritos e nas festas; é umaconversão do olhar histórico...”

(Jacques Le Goff, História & Memória)

A festa do Divino em Pirenópolis foi modificando-se, ao longo do

tempo recortado neste trabalho, recriando os seus símbolos, personagens e eventos. Por um

lado, essa recriação demonstrou que toda manifestação coletiva é tão dinâmica quanto a

própria sociedade que a organiza e dela participa. Por outro lado, estas festas revelaram

possuir elementos que mudam mais lentamente e como parte de uma “tradição” local

perpassam épocas e se transformam em lugares de memória assim como Pierre Nora242

conceituou. Os lugares de memória seriam aqueles elementos que a imaginação coletiva

dos grupos investe de uma aura simbólica, de modo que adquirem diversos significados

para eles. Aproximando esta definição de Nora aos festejos de Pirenópolis, em torno do

culto ao Espírito Santo, procuramos estabelecer uma íntima relação entre a construção de

uma memória local em torno dessas festas e seus respectivos símbolos e eventos eleitos

por essa sociedade. Esta concepção de história de Nora é compartilhada por Le Goff, que

atribui isso a uma revolução da memória, que prima por renunciar a uma temporalidade

linear em proveito dos tempos vividos múltiplos, nos quais o individual e o coletivo estão

enraizados e fazem diferentes usos dessa memória.243

Alguns eventos das festas mudam lentamente, outros mudam de

acordo com a dinâmica da sociedade. Neste capítulo, dialogaremos com alguns autores que

242 NORA, Pierre. Entre Memória e História : A Problemática dos lugares. In; Projeto-História PUC/SP. São Paulo, nº 10 dezembro/ 93. Tradução de Yara Maria Aun Khoury.

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perceberam como a dinâmica da cultura de determinadas sociedades lida com a tradição. O

primeiro autor é Hobsbawm, que, a partir do conceito de tradições inventadas, acredita

que as tradições não se referem a um passado longínquo. Elas fazem parte de acordos e

definições entre os grupos sociais envolvidos e são modificadas e recriadas de modo que

ofereçam algum sentido para eles, além de serem indícios de mudanças importantes na

sociedade em questão.244 Giddéns245 também defende a idéia de que as tradições são

dinâmicas e acredita que elas estão ligadas ao ritual e que têm suas conexões com a

solidariedade social; dessa forma, não aceita mecanicamente a continuidade de preceitos.

Este autor nos possibilita a aproximação de Halbwachs, que considera que a memória é

reconstruída, tendo como base o presente, estabelecendo com o passado uma relação

dinâmica e seletiva. Esta concepção de Halbwachs reforça nossas premissas, uma vez que

as tradições estão intimamente ligadas com a memória coletiva. Canclini,246 vem para

somar nessa discussão, uma vez que acredita que as culturas tradicionais se

desenvolveram, transformando-se.

Em Pirenópolis, a festa do Divino será organizada de modo que

consiga sintetizar uma amálgama de interesses diversos envolvendo grupos familiares,

políticos e eclesiásticos e, ao mesmo tempo, simbolizar a identidade cultural da cidade,

redefinida principalmente a partir das primeiras décadas do século XX, quando o cenário

regional sofrerá uma nova configuração de grupos e estratégias políticas. A memória da

festa pulverizou-se nos mais diferentes eventos que compõem a programação dos festejos.

Assim, temos a impressão de uma festa calcada em muitas outras festas particularizadas,

243 LE GOFF, Jacques. História & Memória. Tradução Bernardo Leitão, 3ª edição. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1994. p. 473. 244 HOBSBAWM, Eric. A Invenção das Tradições. São Paulo, Paz e Terra/História, 1984. p. 20

245 GIDDENS, Anthony. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: Modernização Reflexiva. Política, Tradição e Estética na Ordem Social Moderna. BECK, Ulrich et alli. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1994.

246 CANCLINI, Néstor GarciaCulturas Híbridas. Tradução de Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa, 2ª

ed. São Paulo: Edusp,1998.

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umas até com vida própria, como se tornou o caso da Cavalhada. Por outro lado, estes

eventos estiveram e estão totalmente imbricados numa simbiose tornando-se complexo

estabelecer fronteiras entre o sagrado e o profano, o moderno e o tradicional, o público e o

privado.

Neste capítulo propomo-nos a analisar algumas dessas mudanças

ocorridas na festa do Divino de Pirenópolis principalmente a partir dos anos de 1970,

período em que a festa sofre grandes reconfigurações, em função de novas características

assumidas, algumas já mencionadas neste trabalho. Este momento de mudanças provocou

a redefinição de algumas características rituais e simbólicas da festa, indicando que esse

evento precisava adaptar-se ao novo contexto de Pirenópolis. Essas alterações na festa

foram articuladas pelos próprios grupos envolvidos, famílias locais, Igreja e poder público,

uma vez que para eles, a festa tinha sido tão dinâmica como a sua própria vida.

Um recurso, entre outras fontes das quais já fizemos uso, serão as

fontes orais. Em nosso caso, elaboramos as entrevistas, tentando vislumbrar os elementos

que permaneceram nos discursos locais entre pessoas de uma mesma família ou não.

Observamos claramente que vários elementos, conceitos e opiniões sobre a festa foram

gestados em períodos anteriores ao depoente, que se encarregou de sua reelaboração

através do “filtro” da memória. Procuramos direcionar os questionamentos para a

experiência individual do depoente, pois dessa forma ele também estaria depondo sobre a

sua experiência social, uma vez que a memória, segundo Halbwacs,247 embora talhada de

experiências individuais, é sempre coletiva, pois o indivíduo no processo de rememoração

prioriza os aspectos vivenciados coletivamente, pela sua natureza social. Evidenciando

esses propósitos e procurando apreender noções e percepções da festa em tempos mais

remotos, valorizamos o depoimento dos velhos em nosso trabalho. Em grande parte das

247 HALBWACHS, Maurice. A Memória coletiva. São Paulo, Vértice, 1990.

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entrevistas que realizamos priorizamos depoentes com mais de 60 anos. Isto nos permitiu

compor outras temporalidades para a festa do Divino Espírito Santo que estiveram

entrelaçadas com as memórias individuais dessas pessoas.

Neste capítulo, optamos, inicialmente, por identificar alguns

guardiães da memória local e as formas através das quais a festa do Divino tem sido

lembrada e reelaborada por esta sociedade e identificamos aí alguns elementos dessa

tradição oral local em torno dos festejos do Divino Espírito Santo. Em seguida, analisamos

parte dessa dinâmica cultural festiva e como a memória coletiva local se encarregou de

reelaborar diversos sentidos para ela. Por fim enfocamos a cavalhada por ter sido um dos

eventos da festa que mais se recriaram.

4.1 - O Divino nas Memórias

A festa do Divino em Pirenópolis ocupa atualmente um lugar

privilegiado na memória coletiva local. A maior parte das pessoas que moram na cidade já

se envolveu de alguma forma com esses festejos, seja por iniciativa própria, seja da

família. Assim, todos têm muitas “histórias” para contar. Percebemos que essa memória

coletiva foi elaborada a partir das diversas experiências vivenciadas, que, por sua vez,

passaram de geração para geração, sendo recriadas de modo que, com o passar do tempo,

atribuíam-se diversos significados à festa, ao mesmo tempo que identificava-se a sociedade

local,através de várias características desse festejo.

Muitas dessas festas se destacaram pela fartura ou pela quantidade

de fogos que o Imperador gastou nos festejos. A tradição oral local afirma que, pela

quantidade de fogos gastos, o Imperador demonstrava o seu poder aquisitivo e simbolizava

com isso o seu poder de “fogo” para organizar os festejos do Divino.

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“Antigamente tinha dança de Tapuio, tinha congada,

contradança, depende do festeiro, eu achava que quem devia entrar na sorte da festa é

só gente que pode que gosta de festa que devia entrar na sorte do Divino, é meu

pensamento...”

“... Não é que pessoa pobre não tem direito não, tem, mas eu

acho que é uma festa de pompa e festa de pompa é só pra quem tem...Ano passado foi

uma festa falada...”Em 53 teve uma festa muito boa, quando um parente nosso o

Agostinho de Pina foi o Festeiro...Ele reformou a banda de música, tinha dinheiro

né?...tinha oito músicos, ele dobrou para quase 20, ele vestiu uns quatro cavaleiros por

conta dele mesmo, entendeu?248

“Em 1917 Chico de Sá foi o Imperador naquela época, era o

homem mais rico que tinha aqui, né. Fez uma festa dora do comum. Naquela ocasião

começou a aparecer as primeiras pessoa de Jaraguá, de Corumbá, de Anápolis. E daí

pra cá veio, quando Pedro Ludovico veio aqui em Pirenópolis numa festa do Divino

do Elói Basílio, aí daí pra cá começou a melhorar a festa, né. Agora, a festa tomou

impulso depois da festa do Décio de Carvalho. “ 249

“Tinha, assim... Antigamente tinham os coronéis porque

naquele tempo precisava de muito dinheiro e os coronéis qu davam conta de fazer né?

Mas toda vida teve esse amor. Por exemplo, o Dr. Lourenço Dias, ele é da Academia

Brasileira de Juristas ( um nome nacional) o pai dele foi Imperador, três vezes

Imperador do Divino aqui em Pirenópolis. ..” 250

“Teve muita gente pobre na sorte. E fez boa festa, porque o

povo ajudou. Aqui teve um Oliveira da Veiga, era um pobretão. Ele foi Imperador

duas vezes, três vezes parece, o povo ajudou”251

“E quando era um Imperador mais pobre, todo mundo

ajudava. Não tinha problema. Então matava um boi pra distribuir pro povo. Não era

um só não. Então mandava a carne pra tudo que era pobreza. Chamava boi do Divino.

E aí ants da festa começava a fazer a “veronca”...é um doce branquinho assim. Esse

248 Entrevista com o Sr. Eduardo de Pina dia 23/05/1996 em Pirenópolis-Go249 Depoimento do Sr. João José de Oliveira 250 Depoimento do Sr. Tasso Mendonça, 78, em Pirenópolis, 29/05/1998. 251 entrevista com o Sr. João José de Oliveira.

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doce é da festa do Divino... Aí chegava Domingo do Divino era a pompa da festa,

buscar o Imperador e tocando a banda de música, atrás e fogos, congo,

contradança.”252

A memória local tem lidado contraditoriamente com a tradição do

Imperador, na festa do Divino. Na maior parte dos casos, as festas tinham sido associadas

à fartura e à riqueza dos Imperador, tal como percebemos nos depoimentos acima. Porém,

os depoentes são unânimes em afirmar que nem sempre a festa era promovida por pessoas

de posses. Está expresso nessa memória que a “tradição” da festa tem se justificado a

partir da crença no Espírito Santo. Porém, a identidade dela, unanimamente atribuída à

fartura e à pompa, foi mantida, mesmo quando promovida por Imperadores pobres,

porque eles recebiam doações de modo que a fartura fosse garantida. A opinião das

pessoas, quando se referem a esta questão, tende a provocar essas contradições, uma vez

que a fé e a devoção assumem no discurso uma força maior.

A festa do Divino, em Pirenópolis, é uma tradição local, que, por

sua vez, tem sido recriada, assim como a sociedade que a organiza e dela participa.

Contudo, as tradições necessitam de depositários de memórias, pessoas que pertençam ao

grupo e que se encarreguem de fornecer as interpretações dessa tradição. Para Giddéns,253

os guardiães da memória podem ser aqueles que dão as ordens em determinada sociedade

sem representarem necessariamente pessoas superiores. Geralmente, o que faculta a essas

pessoas tornar-se guardiães é a confiança e a lealdade pessoal. Para Ecléa Bosi, são os

velhos os principais depositários de memórias dos grupos, uma vez que o seu desligamento

do mundo do trabalho e a experiência de vida dão a eles a posição privilegiada para

252 Entrevista com o sr. Teodorico Pereira. 253GIDDÉNS, Anthony. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: Modernização Reflexiva. Política, Tradição e Estética na Ordem Social Moderna. BECK, Ulrich et alli. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1994 p. 103-104.

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assumir esta função.254 Ambas as posições envolvem a concepção de memória coletiva de

Halbwachs, pois, esses depositários de memórias são responsáveis por organizá-las de tal

modo que dêem significado para o grupo envolvido.255

Um marco para a memória coletiva local foi a publicação da obra

Esboço Histórico de Pirenópolis de Jarbas Jayme, um dos principais guardiães da memória

da cidade. Este livro cuja edição póstuma foi financiada pela Prefeitura local256 estabeleceu

algumas características interessantes na memória sobre a festa do Divino. Muitos dos

dados apresentados por ele, como datas, nomes e feitos, característicos de uma obra

memorialista, passaram a compor muitos discursos locais, no que diz respeito à festa do

Divino, provocando uma fusão de memórias coletivas com a memória histórica construída

por Jarbas Jayme. Alguns exemplos de dados apresentados por Jayme, que não foram

comprovados documentalmente, mas que passaram a compor a memória da festa, foram as

datas do início da festa, em 1819, e da cavalhada, em 1826, a relação dos Imperadores do

Divino reproduzida anualmente nos programas da festa, a história do surgimento das

pastorinhas e sua inclusão nos festejos do Divino, assim como algumas festas famosas,

como foi o caso de uma promovida pelo coronel Chico de Sá, em 1917.

Na obra de Jayme, a festa do Divino tem sua história elaborada a

partir do século XIX, o que revela a intencionalidade de associar esse festejo aos feitos dos

homens deste século, embora essa festa já existisse em anos anteriores. Além de apresentar

características da festa, sintetizou diversos aspectos da história local que envolveu a

política, a organização do espaço urbano e principalmente os grupos locais de algumas

famílias específicas, entre elas a sua própria: os Jayme e também os Pina, cujo

envolvimento nas questões relativas à cultura local foi bastante intenso.

254BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos, São Paulo:T.A .Queiroz, 1973. 255 HALBWACHS, Maurice. op.cit.

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Além da obra de Jayme, em Pirenópolis, a memória coletiva

sobre a festa do Divino foi amplamente difundida por algumas pessoas da cidade. Um

exemplo, que tem uma relação profunda com este processo que ressaltamos, é a

participação do Sr. Pompeu Cristóvão de Pina, talvez um dos mais envolvido com os

festejos do Divino. Sua história é semelhante a de outras pessoas de sua família. Durante

a festa, é possível vê-lo participando de todas as maneiras em todos os eventos. Esse

senhor, atual secretário de cultura, entre muitos outros cargos que ocupa, participa da

organização da festa há cerca de 50 anos. O seu envolvimento com a festa é extremamente

intenso, segundo ele, foi influenciado pelo pai; Braz Luís Pompeu de Pina, outro que

também participou vários anos da festa. O exemplo de Pompeu é característico e

interessante, pois elucida o poder de alguns grupos na festa de Pirenópolis como guardiães

da memória e da história local e também como detentores da tradição dos festejos do

Divino.

“Meu pai, Braz Luis Pompeu de Pina sempre foi um

defensor das tradições, de guardar aquilo, como toda nossa família foi! Nós chegamos

aqui em Pirenópolis em 1780...ele veio do Rio de Janeiro, onde tem lá o bairro Braz

de Pina. Mas nós viemos mesmo de Portugal: os Pina do norte e os Pina do sul. Mas

nós chegamos mesmo em Portugal no ano de 1300. Éramos judeus”257

O depoimento de Pompeu demonstra que este grupo familiar

estabeleceu, através da memória coletiva, uma relação de guardiã do passado local,

principalmente pelo fato de ser uma das famílias mais antigas. A família Pina ocupou um

espaço bastante relevante na festa do Divino de Pirenópolis graças à sua relação com as

questões culturais da cidade, como as bandas, os teatros e a música. Ao longo do tempo,

os membros dessa família transferiram funções entre si e acabaram por delegar a alguns a

256 Lei nº 41/70 publicada em 12/08/1970 em Pirenópolis.257

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função de guardiães da memória familiar e da festa, no que se refere aos aspectos

controlados por eles.

Um dos patrimônios dessa família, uma enorme casa no estilo

colonial, tornou-se um dos poucos museus da cidade, conhecido localmente como “Museu

do Pompeu”. É nele que estão guardados diversos documentos, móveis antigos, fotos,

algumas peças da tipografia que imprimiu o Matutina-Meiapontense, partituras de música

e nele que funciona a sede da banda Phoênix. A partir desse exemplo, percebemos como a

relação dessa família com a história e a memória locais é persuasiva e demonstra como

determinados grupos, como a família Pina, conseguem garantir o seu poder e influência em

sua respectiva sociedade.

Outro exemplo da relação da memória coletiva com os grupos

locais é o de D. Maria Eunice Pereira e Pina, que também tem um envolvimento bastante

dinâmico com esta festa, da qual afirmou ter participado ativamente. Dois de seus filhos

foram personagens das cavalhadas por mais de 20 anos e um dos marcos da sua história de

vida foi a morte de seu marido, em 1970, por ocasião dos festejos do Divino. Naquele ano,

como era Imperador o seu cunhado, ele, por causa da morte, resolveu não realizar a

cavalhada.258 No final dos anos 70, começou a expor roupas de antigos cavaleiros, em sua

casa, inclusive a dos próprios filhos. Segundo ela, a maior parte das pessoas jogava fora

essas roupas; e assim organizou um dos museus da cidade, o museu das cavalhadas. Nos

dias atuais, D. Maria Eunice é uma referência importante, pois, além de transformar parte

da sua casa em museu para tantas indumentárias de cavaleiros, organizou um arquivo

particular com inúmeras fotos de seus filhos em várias fases da cavalhada, com programas

de programas da festa, reportagens em jornais e revistas e livros relacionados com o tema.

258 Depoimento de D. Maria Eunice Pereira e Pina. Em Pirenópolis, 22/05/1998.

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Outro exemplo de referência da memória local sobre a festa é o Sr.

Tasso, que nasceu em Pirenópolis, mas morou em Goiânia por muitos anos, onde se

formou em Medicina e exerceu a profissão por trinta anos, quinze dos quais foi professor

da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás. Assim que se afastou do

trabalho, o Sr. Tasso voltou a Pirenópolis e tem- se dedicado a ela.

“Fé, mais amor à tradição, mais do que fé: amor à tradição!

Tudo quanto é tradição de Pirenópolis eu quero, eu luto pra conservar! Aqui, festa do

Divino, eu fiz. Fica dez vezes mais caro do que o pouso de folia e eu fiz para meu

filho, que foi Imperador> e todo mundo faz por amor à tradição nossa, não é? “259

Esse senhor, que diz não poder ser Imperador pelo fato de não ser

casado religiosamente, colabora há vários anos com um dos maiores pousos de folia,

segundo os próprios moradores da cidade. Além disso, promoveu uma das festas, da qual o

seu filho foi Imperador do Divino. É interessante perceber como ele, que durante tanto

tempo morou fora da cidade, embora tenha afirmado que sempre comparecia para a festa

do Divino, ao voltar à cidade incorpora a tradição local e se torna um guardião dela. Um

exemplo disso é que guarda na sua memória vários aspectos que envolveram a sua família

e a festa do Divino:

“Todos os meus avôs foram Imperadores do Divino aqui,

tanto paternos, como maternos. Meu pai foi em 1922. Foi aliás ele que trouxe a

primeira exibição da pastorinha em Pirenópolis ..antes tinha cavalhada, tinha batalhão

( que disso eu nem lembro – foi em mil oitocentos e pouco, eu não alcancei). Mas

desde criança a gente vive essa festa ... primeiro tinha a Congada, e continua tendo né,

a zabumba- que era, para nós crianças batucada (emoção). De madrugada, escutar o

batido da zabumba, para nós era um sonho. A gente, criança saía da casa, saía na

carreira para acompanhar a zabumba todos os dias, às vezes tinha zabumba.

259 Depoimento de Sr. Tasso de Mendonça

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Hoje...Nem o barulho da cidade, parece que abafou um pouco o som que tinha

antigamente.” 260

D. Ita de Siqueira é outra pessoa, cuja memória tem referências

importantes sobre a festa do Divino. A sua família foi uma das que se envolveram

intensamente com o teatro e a música local. D. Ita é representante deles e nos apresenta

alguns aspectos relevantes para esse grupo. A sua família teve importantes personagens

locais como Joaquim Tomás da Veiga, seu avô e um dos que mais se envolveram

localmente com o teatro. Ela possivelmente herdou deles o costume pois nos afirmou que

também durante boa parte da sua juventude dedicou-se a vários papéis em peças como

Artaxerxes, Aspásia, Máscara Negra, Graças de Deus. Casou-se com Alaor de Siqueira,

também de uma família relevante do local, e juntos dedicaram-se à música e ao teatro, a

partir dos quais se identificam regionalmente. Outro exemplo do intenso envolvimento

desse casal com as questões culturais é que o sr. Alaor de Siqueira foi um dos proprietários

do Cine-Teatro-Pireneus, que antes era de seu pai. Dirigiu este cinema de 1960 até 1975,

quando o vendeu para a Prefeitura.

Desde os 12 anos de idade, D. Ita, hoje com 67 anos, participa da

orquestração de missas e também das novenas do Espírito Santo. Atualmente forma par

com seu marido, Sr. Alaor de Siqueira, compondo uma dupla de violonistas responsáveis

por vários eventos musicais. Um desses eventos, dirigido por eles, é a revista as

Pastorinhas, um auto natalino que se tornou uma tradição de Pirenópolis e há quase duas

décadas tem sido dirigido por eles, tanto na parte artística como na musical. Na memória

de D. Ita estão registrados outros nomes que se envolveram com as Pastorinhas, entre eles

Joaquim Propício de Pina, o primeiro maestro que orquestrou a revista, assim como José

260 Entrevista com o Sr. Tasso de Mendonça.

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Joaquim Nascimento, outro maestro cuja orquestração é atualmente seguida pela D. Ita

e pelo Sr. Alaor:

“Eu comecei porque eu fiquei na parte artística eu era

inspetora mas como o colégio fechou e as freiras foram embora aí eu fiscalizei o

Couto Magalhães de Anápolis um pouco aí depois eu fiquei à disposição da parte

artística. E naquela época o prefeito me solicitou para fazer a direção da revista porque

a gente já fazia direção da orquestra....Depois eu passei com o meu marido a fazer a

direção da revista já vai fazer dezessete anos...

Em relação às “Pastorinhas”, a sua memória familiar cruza-se

com a memória coletiva sobre a festa:

“..A revista as Pastorinhas veio para Pirenópolis e ela foi

trazida por um telegrafista com o nome de Alonso o enredo é de uma festa religiosa

mas como ele trouxe na festa do Divino então ela foi encenada.. e ficou até hoje

levada sempre na festa do Divino e a revista foi trazida por ele e ele teve o principal

papel com o filho que fez um pastorzinho e a minha mãe que foi a primeira Diana, a

central, que hoje é viva ainda, 92 anos ela fez a caçadora que é a Diana aí no segundo

ano foi levada pelo maestro Propício de Pina...e tem a introdução importantíssima de

Pirenópolis que é o símbolo, fé, esperança, e caridade que é o ponto culminante... é

uma revista que foi até furtada ela, enquanto eles fazia o ensaio o meu avô e mais duas

pessoas parente nosso daqui levava o primeiro ato enquanto eles ensaiava o segundo

depois copiava um pedaço da noite, a família as filhas, eles copiavam depois levava o

segundo ato, o terceiro e assim conseguimos, porque ele não quis dar a revista para

Pirenópolis.”261

Desde que assumiu a direção das Pastorinhas, D. Ita afirma se

encarregar de todo o espetáculo, inclusive das roupas, que também são compradas por ela

com parte do dinheiro arrecadado no espetáculo. Esse evento não é realizado com o

261 Entrevista com D. Ita de Siqueira, musicista, em Pirenópolis, julho de 1999.

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objetivo de lucro; assume mais a função de legitimar socialmente tanto quem organiza

como quem dele participa:

Hoje fica pra nós uma roupa daquela menina hoje fica mais

ou menos novecentos ou mil reais...esse ano se for fazer é mais caro bordada de

pedraria, lantejoulas, tem as coroas, as âncoras, coração, tudo de pedraria,

trabalhada...”262

“... a coisa mais cheia que existe aqui pois o teatro fica super

lotado mais do que qualquer peça porque tem os parentes que quer ver aquela menina,

avó, tio, todo mundo quer ver aquela personagem são 32 personagens o teatro fica

cheio...todo mundo encanta...

“..É como um deby de Pirenópolis porque antigamente tinha

o baile das debutantes, hoje não temos mais um clube pra fazer um baile como era

organizado por meu tio Wilson que dava bailes maravilhosos de deby em Pirenópolis,

hoje como não tem, aquelas moças era como se fosse um deby elas tem que participar

aquilo é importantíssimo, todas as moças não só da elite mas eu também dou

oportunidade para as meninas simples, pobres, se tem voz, se tem uma estampa boa eu

dou oportunidade pra entrar também mas geralmente filhas, netas, bisnetas daquelas

personagens antigas vem vindo e vão pedinddo papéis, vem anos de toda avó...Por

exemplo minha mãe foi uma personagem depois vem a filha , vem a neta, bisneta e vai

indo...a gente prefere...”263

Quando indagada sobre por que ainda se envolve, depois de tanto

tempo, com esse festejo, sua resposta corroborou nossas hipóteses de que o que justifica o

empenho e envolvimento é a tradição e o reconhecimento de que a festa delega a seus

guardiães de memória alguns papéis que pertencem a várias gerações.

“Eu tenho amor mesmo à terra e à arte...se eu deixar de fazer

eu acho que ela não vai sair igual porque nós temos capacidade da parte musical, da

orquestra...eu sou muito esmerado no guarda roupa, porque a uns anos atrás o guarda

262 Idem263 Idem.

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roupa tava muito relaxado, porque avental cada um de um comprimento e meia , meias

curtas, porque as meias são meias calças...são coisas assim que eu tenho muito

cuidado...sou muito esmerada, eu quero levar uma coisa bonita, mesmo que eu fico um

pouco desembolsada porque a renda que entra eu tenho que dar uma parte para o

Imperador uma parte que fica pra custear esse guarda roupa mas com roupas

caríssimas a gente fica um pouco desembolsada...antigamente até o anjo fazia a sua

roupa (fantasia mais cara)hoje ninguém faz nada... tudo eu tenho que dar”264

O Sr. Ico é outro exemplo de como a memória coletiva local

organizou grande parte de suas referências, na festa do Divino. Esse senhor, que na época

da entrevista estava com 72 anos, não pertence a nenhuma das famílias mais relevantes,

mas mesmo assim a sua experiência lhe facultou o direito de tornar-se um guardião da

memória local. Atualmente aposentado, o sr. Ico é um personagem interessante e foi um

dos tocadores dos sinos das igrejas locais por muitos anos. Ele nos chamou a atenção pelo

fato de ter privilegiado inúmeros aspectos, os mais variados possíveis, sobre a festa, nos

seus mais diversos eventos:

“Antigamente, a festa do Divino ela começava assim:

começava a novena, o ensaio da Cavalhada era escondido. Era lá no mato para

ninguém ver! Ninguém via não. Era escondido. Tradição! Mesma coisa...Aí quando

veio...Eles arrumava tudo, no dia da cavalhada que saía. Agora mesmo ensaia é na

rua...Aí tinha a roqueira-essas roqueira fazia parte da festa do Divino como não tem

agora, era... Acabava a novena era o principal da festa é a roqueira. Acabou! Então

tinha a banda de couro...”265

“Já tinha os mascarados. Então quando nós era menino,

mascarado saía naquela brincadeira doida. Tinha mascarado de todo jeito: de são

caetano, folha de bananeira..[risos] Não, eu sufocava na máscara! [risos] Então, tinha

o são caetano e aquela “coiseira” Então pega, e eles saía para a rua e nos brincava com

os mascarado, gritava assim: -curucucu atrás do baú!- Eles corria atrás da gente, a

gente amoitava, era aquela festa festão na cidade!”

264 Idem

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Todos esses depoimentos são apenas fragmentos de memórias de

pessoas que participaram, ao longo de suas vidas, da festa do Divino de Pirenópolis. Nesse

trabalho não pudemos citar todas, pelos limites aos quais se restringiu, mas elas

representam o movimento que a festa do Divino tem vivido nos últimos anos, movimento

que influenciou a elaboração de elementos tão positivos por essa memória coletiva.

No próximo item analisaremos de que forma esta tradição oral

elaborada pela memória coletiva tem-se recriado na festa, a partir das transformações e

permanências de seus símbolos e rituais. Continuaremos utilizando os depoimentos, pois

eles representam as formas como estas mudanças têm sido vistas e reelaboradas pelas

pessoas que vivem e fazem a festa.

4.2- A Festa em Movimento.

A folia é um exemplo claro destas recriações que ocorreram nesta

festa. As duras críticas recebidas durante o período de romanização, embora contestadas e

ignoradas muitas vezes por quem participava dela, acabaram por influenciá-la lentamente.

O depoimento abaixo, que se refere a uma situação atual da folia, nos dá pistas sobre

algumas dessas mudanças acontecidas:

“Hoje nós estamos mais ou menos nuns trezentos, esse ano a

gente não divisou não foi totalmente trezentos, tem ano que passa de trezentos são os

folião divisado, porque a folia nossa conforme nós sai com ela com trezentos folião

quando agente entra na cidade entra com quinhentos, seiscentos, oitocentos folião, já

aconteceu de chegar até com mil, mais de mil ...o giro que nós vamo fazendo vão indo

mais pessoa e participando e acompanhando... Já tem alguns anos que o povo está

participando dessa entrada na cidade...no dia que nós fazemos a entrega na cidade ai

265 Entrevista com o Sr. Teodorico Pereira, 72, aposentado em Pirenópolis. 28/05/1998.

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aquelas pessoa que não tá participando da folia, vem e participa com nós da chegada...

No giro em que nós vamos fazendo vai aumentando, entra dois, entra dez vai

aumentando, vai entrando...Aquele que não tá divisado é uma gíria é cata-pouso.”266

“Alguma coisa mudou pouca coisa, é que quando eu

comecei a participar da folia quase não tinha era som, dança, folião não podia dançar,

era expressamente proibido, quando tinha os pousos nas fazendas que havia as festas

sem ser o catira tradicional da folia, folião divisado não podia participar da festa, hoje

algumas coisa já mudou nesse sentido, mesmo os folião que estão divisado eles

dançam, mas a tradição vem vindo quase que a mesma o rigor a disciplina na nossa

folia tem a turma nova que às vezes quer exceder em alguma coisa aí a gente chama

atenção e explica como é que tem que ser o folião divisado na folia, algumas coisinha

mudou...folião não pode entrar no quintal do fazendeiro, arrancar fruta, cortar

capim..267

Em seu depoimento, o Sr. Roque de Fontes, atualmente um dos

alferes da folia rural, refere-se a um fenômeno que possivelmente aconteça na cidade há

muito tempo: a chegada dos foliões da roça, recebidos pela cidade em festa. Esses foliões,

que durante até oito dias permanecem girando por fazendas e chácaras, alimentando-se nos

pousos, tomando banho nos rios e dormindo no chão, tornam-se personagens centrais nesse

dia e após uma cavalgada pelas principais ruas seguem para a casa do Imperador, a quem

entregam os donativos recolhidos durante os giros. Em vários documentos da Igreja que

utilizamos para analisar o processo de romanização, estava expressa a insatisfação dos

párocos com esta atitude dos foliões, por acharem que esse dinheiro deveria ir para os cofres

paroquiais. Contudo, é preciso considerar que, se, por um lado, essa cerimônia, na qual o

alferes da folia entrega para o Imperador e não para o padre a coleta da folia permaneceu até

dias atuais, por outro lado, o depoimento citado nos oferece outros elementos que indicam

que a folia se modificou em outros aspectos.

266 Entrevista com o Sr. Roque de Fontes.267 Entrevista com o senhor Roque de Fontes

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De acordo com a própria definição do depoente citado, existem

atualmente dois tipos de foliões: o folião divisado ou seja, aquele que participa da folia do

começo ao fim e recebe uma divisa, uma fita vermelha fixada na roupa para ser

identificado, e aquele folião que não é divisado, ou seja, que não faz parte do grupo fixo de

foliões, e é denominado de cata-pouso, pois não tem a incumbência de participar de toda a

folia sem voltar para casa, podendo girar apenas nos dias convenientes. Acreditamos que

esta diferenciação estabelecida foi um dos aspectos da interferência do poder público e do

eclesiástico nesses eventos, uma vez que, durante toda a primeira metade do século XX,

foram constantes as críticas e regulamentações em relação a eles. O divisamento dos

foliões, possivelmente, foi uma forma de regulamentar a folia e enquadrá-la dentro do

domínio das autoridades locais, pois, ao identificar os foliões, os organizadores teriam o

controle sobre eles. Isso nos faz imaginar que esse evento foi um dos que mais se

popularizaram em Pirenópolis, pois a necessidade do divisamento nos revela que um

número grande de pessoas participava desse ritual. O divisamento resolvia outra questão:

caso o folião não pudesse comparecer a esses pousos, por motivo de trabalho, fato que

indignou muitas pessoas, que achavam que as folias influenciavam o ócio, ele poderia

participar como cata-pouso, ou seja, depois do trabalho e das obrigações cotidianas, ele se

dedicaria à festa e à devoção.

Segundo os depoimentos coletados junto aos organizadores atuais da

folia, chega-se a divisar até trezentos foliões a cada ano, e na chegada da cidade muitas

vezes são acompanhados por mais de mil foliões, entre os divisados e os cata-pousos. É

bem possível que o sistema de divisamento tenha estabelecido um limite para tal

participação, uma vez que isso é coerente com o sentido da criação desse sistema. O

sistema atual de oito pousos também é outro aspecto que foi modificado nessas folias. Uma

das grandes reclamações dos párocos romanizantes era que os foliões ficavam várias

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semanas longe do trabalho e da família além de darem despesas para os donos de chácaras

e fazendas por onde passavam. Assim, acreditamos que uma das medidas de controle foi

estabelecer a quantidade de pousos a serem feitos por esses foliões.

Acreditamos que tanto o sistema de divisamento quanto a

limitação de pousos em propriedades rurais foram medidas de controle herdadas do

processo de romanização, do qual as folias foram alvo. É possível imaginar que essas

interferências aconteceram lentamente e foram somadas com as novas caraterísticas

assumidas pela festa do Divino, a partir dos anos 70, e que a tradição oral local se

encarregou de repassar valores herdados do processo de romanização. Contudo, o controle

sobre as folias não foi objetivo almejado apenas pela Igreja. Durante as primeiras décadas o

século XX alguns debates na Câmara Municipal local visavam estabelecer taxas de multas,

licenças e o número de foliões que deveriam sair nos giros. Mesmo que as medidas de

controle, tanto da Câmara como da Igreja, fossem calcadas na tolerância, percebemos que

muitos dos aspectos de controle atuais foram gestados em anos anteriores aos depoentes e

são exemplos de que a festa do Divino local recriou alguns de seus aspectos, à medida em

que mantinha outros.

Os depoentes, quando consultados sobre estas questões, não nos

responderam, uma vez que na memória local muitos desses aspectos não foram

selecionados. Isso nos faz crer que todo esse sistema aconteceu lentamente, possivelmente

com a ajuda dos próprios foliões; e, embora não possamos datá-lo, é bem provável que

acompanhou o movimento da festa do Divino de Pirenópolis, que na segunda metade do

século XX redefinia práticas rituais e simbólicas. Dessa forma, acreditamos que as folias

lentamente se recriaram, preservando algumas práticas antigas e modificando outras.

É preciso entender essa dinâmica dentro dessa festa, além das

perspectivas de controle. Alguns aspectos dessas mudanças estiveram intimamente ligados

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com as variações que toda manifestação coletiva realiza ao longo do tempo. As

barraquinhas, o som mecânico, o comércio informal são exemplos de características

presentes nestes eventos, nos dias atuais, e que, por sua vez, mesclam-se com os eventos

tradicionais e reorganizam as diversas práticas culturais. Alguns organizadores acreditam

que essas manifestações estabelecem uma relação contraditória com o passado tradicional

da festa; no entanto, são eles mesmos que reconhecem que, em função do grande

crescimento da concorrência de pessoas nesses eventos, essas práticas tornam-se

necessárias. Esse é um exemplo claro que converge com o ponto de vista de Canclini268,

que acredita que as mudanças do mundo moderno não suprimem as culturas tradicionais

nem tampouco são vividas pelos sujeitos como complacência melancólica.

“Nós até estávamos reunido aqui antes de ontem pra tentar

voltar um pouco mais a folia pra trás, no sentido de tirar as barracas, tirar o som

mecânico, tirar o forró, voltar a folia ao sistema mais antigo é uma forma de purificar

um pouco mais a folia. Há uma discussão no sentido de tomar uma nova postura [...]

[...] era uma forma de ajudar o dono da casa..no começo era

cachorro quente, hambúrger, de que forma foi visto isso, era uma força que dava pro

dono da casa, de repente a comida acaba, ele tava esperando 500 pessoas, chegava

mil, então não tinha mais alimentação.. de repente começou a vir a cervejinha,

começou a vir a pinga e tal e foi crescendo e hoje existe um comércio, pessoas vem

pra folia, o número de pessoas é muito grande... a gente está entendendo que precisa

haver uma mudança pra melhor...estamos analisando que posição que iremos tomar.

Desde que eu iniciei já existia isso.”269

“Na visão minha eu não gostaria de ter isso em um pouso de

folia, o povão vem muito pra isso, só pra farra né, não vem pra devoção só pra beber e

dançar, então no meu caso se fosse dependesse só de mim eu tirava esse sonzão que

tem aí e a bebida, né... a idéia é que começaram devagarzinho pra vender um outro,

já tem uns quarenta ou cinquenta vendendo, isso é pra ganhar um dinheirinho, o santo

268 CANCLINI, Nestor Garcia. Op. cit. P. 221. 269 Entrevista com o Senhor Sizenando Jayme.

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mesmo não ganha nada, isso foi idéia dos comerciantes mesmo, ganhar uns troquinho

né?

“No passado não existia som mecânico. Era apenas, não

existia dança propriamente dita, forró, esse tipo de coisa era apenas o catira, hoje a

folia foi caminhando nessa direção nós já entramos na folia dessa forma...depois do

dever cumprido, essa festividade. As pessoas, infelizmente, uns bebem

moderadamente, outros excedem , em tudo é assim...”270

“foi uma forma de melhorar a folia. Muitas vezes o folião

ele era misturado com o resto dos convidados que participava, aí ele não tinha

nenhuma responsabilidade quando ele chegava numa propriedade rural. Se existia ali

um capim, que o fazendeiro estava reservando pra dar pro gado na seca, ele chegava lá

cortava o capim e dava pro cavalo dele, se tinha fruta no quintal, e outras formas de

depredar, o folião muitas vezes fazia ou os convidados...a criação do uniforme foi pra

dar mais responsabilidade para o folião e transformar ele um fiscal de tudo aquilo que

possa acontecer numa propriedade rural.[...] cada folião agora se sente valorizado,

uniformizado, diferenciado...Nós acampamos aqui não deixamos nenhum lixo...271

“ O comportamento dos foliões que melhorou bastante, que

era muito bagunçado, bebia pinga demais o pessoal, não fazia a chegada direitinho,

hoje está mais comportado justamente por causa do uniforme, né uniformizado pra

poder cobrar do pessoal, às vezes você falava com um , não sou folião...uniformizado

não tem jeito dele escapulir né?... eu acho que tem que ser mais manerado igual nós

tamo fazendo agora, estamos regulando o pessoal... Ma tem que ter uma cachacinha

senão fica sem graça né?...” 272

Em todos os depoimentos citados é possível perceber que a idéia de

tradição, presente no discurso, é entendida, de várias formas, como questão que precisa ser

modificada de modo que garanta a continuidade da festa e atenda às necessidades das

pessoas e da comunidade. Um exemplo atual é a criação de uniformes para os foliões. Essa

270 Entrevista com o Sr. Sizenando Jayme271 Idem272 Entrevista com Welligton Alves de Bastos

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iniciativa, que reflete os diferentes rumos que a festa do Divino está tomando, representa

essa relação dinâmica do passado e do presente entre as festas e a comunidade.

É interessante perceber que alguns depoentes que dizem querer que

a festa se purifique e volte a ser como era antes nunca chegaram a conhecê-la de forma

diferente, pois todos os entrevistados estão nela há menos de 15 anos. Verificamos também

que as mesmas pessoas que atribuem à tradição da folia a ausência do som e das

barraquinhas são as que defendem o uso de uniforme para os foliões aspecto que faz parte

da festa há menos de 5 anos dos dias atuais. Assim, entendemos que a tradição é entendida

e reelaborada coletivamente, mas nem todos têm -se apropriado dos mesmos elementos.

Quanto às esmolas arrecadadas para a festa, o que seria o objetivo

da folia, sempre possuíram uma função simbólica, dados os grandes gastos que a festa

exige. É possível que em tempos anteriores essa arrecadação fosse maior, dado este que

tornou a folia o grande alvo da Igreja, a qual achava que essas esmolas deveriam ser

repartidas entre ela e os festeiros e em nenhum momento deveriam ser empregadas em

festejos “profanos”. Por outro lado, talvez esse caráter simbólico tivesse acompanhado a

maior parte das folias, posto que, ao que nos pareceu, pela pesquisa que fizemos, a folia

caracterizou-se mais como uma festa preliminar à festa do Divino do que propriamente

como um evento religioso com coleta de esmolas e pagamento de promessas. Algumas

pistas podem ser percebidas nos depoimentos abaixo:

“A gente às vezes sai um quilometro fora daquele percurso

e chega lá e ganha R$ 0,10. O dono pega a bandeira e entra em todos os cômodos da

casa, é a crença dele, O Divino visitou todos os cômodos da sua casa e derrepente dá

R$ 0,10. Aqui no pouso, agora há um jantar ... primeiro tem um cantorio religioso

antes da janta, depois do jantar tem o agradecimento da mesa, o novo cantorio...depois

disso vai se tirar esmola pro Divino. Os músicos se posicionam e cada dois cidadão

que pega na bandeira recebe três versos.. até o final disso não se tem festa, não se toca

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som, nem nada, para tudo até que termina a esmola. Mas essa coisa é simbólica.

Muitas vezes nós temos oito pousos de folia e chegamos na cidade com R$ 200,00,

pra entregar pro Imperador.”273

“Isso aí vareia do lugar, das fazendas, tem lugar que vai

pouca gente nas fazendas, tem muita pouca gente perto né. Quem dá esmola

geralmente é o pessoal das fazendas né. É uma média razoável né, não dá muito... Nós

já entregamos mil e poucos reais, setecentos, quatrocentos, seiscentos, todo o anos

vareia, quando o Fernando Henrique entrou o dinheiro tava mais valorizado então só

vinha moedinha....agora melhorou mais a esmola....Pode doar outro tipo de coisa, esse

chapéu aqui foi doado por uma pessoa que deu como esmola aí eu peguei o meu

dinheiro passei pra esmola e fiquei com o chapéu...pode ser doado também alimento

de todo o jeito... a gente guarda mantimento, saco de arroz, deixa pro ano que vem não

tem problema.” 274

Esta pesquisa nos demonstrou que as folias assumiram o caráter

simbólico, no que diz respeito à arrecadação de dinheiro para os festejos urbanos, pois a

circulação em fazendas e chácaras é muito menor que na cidade. Acreditamos que as

doações estavam mais relacionadas com as características desses lugares. Sendo assim, a

maior parte delas era feita com frutos das colheitas e animais como vacas, porcos e

galinhas. É bem provável que esse não era o aspecto que mais indignava a Igreja Católica,

durante a romanização, e sim o fato desses eventos estarem imbuídos do sincretismo que

considera sagrado tanto o beijamento e a adoração da bandeira do Divino como as danças

e as fartas refeições coletivas realizadas durante esses pousos.

Pelo que pudemos verificar, os pousos de folia do Divino em

Pirenópolis, são considerados por muitos como uma grande festa. Nele congregam-se os

mais diversos significados: fé, festa, tradição, e também envolvimento entre muitas partes.

É válido considerar que em torno dela organizaram-se muitos dos elementos de identidade

273 Entrevista com o Sr. Sizenando Jayme.274 Entrevista com o sr. Welligton Alves de Bastos.

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da festa. Outro aspecto é que há uma preocupação muito evidente em escolher os

organizadores da folia. Percebemos que todos eles são pessoas que têm “tradição” na festa

e sem dúvida conhecem mais pessoas, o que garante os pousos e a sua continuidade. Nos

dias atuais, a folia tem vida própria, e dificilmente um Imperador consegue impedir que ela

gire. Porém, é provável que no passado tenha havido conflitos entre festeiros e foliões,

visto que entre as partes nem sempre houve acordos e convergência de opiniões. No

espaço da festa, tão múltiplo, como podemos perceber, as folias foram articulando uma

organização à parte dos festejos urbanos, (embora a sua chegada à cidade parece ter sido,

sempre uma grande “festa”), e fez de seus eventos um importante momento de

participação, no qual até os dias atuais tem se restringido à população local, ao contrário

dos outros eventos urbanos, que são assistidos e vivenciados também por turistas.

Outras mudanças caracterizam essas recriações em torno da festa

do Divino de Pirenópolis. Uma delas é a alteração do poder do Imperador. Na memória

coletiva local, as melhores festas foram aquelas em que houve muita fartura de alimentos,

fogos e eventos, como a promovida por Chico de Sá em, 1917, sobre a qual falamos

anteriormente.

“Promovida pelo rico Cel. Francisco José de Sá, “Chico de

Sá”, a festa do Divino de 1917 foi a de “de maior explendor já realizada em

Pirenópolis”, segundo o historiador Jarbas Jayme.

Além das cavalhadas, foram representados, os dramas

“Lágrimas de Maria” e “Graça de Deus”.

“a missa solene foi celebrada pelo saudoso bispo D.

Prudêncio Gomes da Silva, acolitado por diversos padres”.

Dado à fatura, o Imperador “Chico de Sá” mandou distribuir

verônicas e pãezinhos do Divino em todas as casas da cidade.”275

275 Jornal O Mensageiro, 1976, p.p. 4.

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Em vários depoimentos que coletamos houve referências a essa

festa, mesmo de pessoas que não foram contemporâneas a ele. Um exemplo é o seu

bisneto, Arnaldo Peixoto de Oliveira, Imperador do Divino em 1999:

“O Francisco José de Sá é meu bisavô por parte de pai e ele

já foi três vezes festeiro. Três vezes já organizou a festa , três vezes Imperador. Até

tem a data, eu não me recordo muito bem, mas tem! ... conhecido como Chico de Sá.

Ele também tinha um gosto enorme por essa festa, pelo que acontecia e ele foi um dos

Imperadores mais fartosos...” 276

Quando indagamos o depoente sobre o que significa a expressão

“fartoso” ele respondeu:

“É o que se dedicou mesmo, entendeu, deu bastante

comilança, ele montou uma barraquinha em cada esquina, pra atender o povo, mas na

época também a cidade era menor a vez que ele foi Imperador se não me falha a

memória foi em 1937...a cidade não era tão grande..”277

É interessante perceber que o depoente reporta a sua memória a um

período em que não havia nascido ainda. Temos aí um exemplo claro de como a tradição

oral tem organizado a memória coletiva local sobre a festa do Divino. Por outro lado,

temos nesse depoimento um argumento que explica parte dessa ambigüidade presente na

memória local no que diz respeito ao Imperador do Divino: possivelmente a fartura, sobre

a qual tanto se referem, fosse uma característica das festas menores, das quais participavam

apenas os moradores do município e das proximidades dele.

Além de proporcionar muita fartura, o Imperador deveria distribuir

comida e agasalhos aos pobres. Em Pirenópolis essa prática parece não ter sido muito

276 Entrevista com Arnaldo Peixoto de Oliveira, 25, Joalheiro/Artesão, Imperador no ano de 1999.Entrevista realizada em Pirenópolis dia 15/05/99.277 Idem.

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difundida. Nos programas que localizamos, apenas a festa de 1957 contava com essa

atividade na programação. Por outro lado, os Imperadores do Divino foram revestidos de

outros poderes, como o de libertar presos da cadeia durante a festa.

“O povo tem uma devoção com a coroa! Fora daqui, não.

Você pega a coroa, ela fica em casa, põe na cabeça no dia lá da festa, faz o cortejo

...Aqui, pra você ter uma noção, o festeiro do Divino até os anos, vamos dizer, 70

mais ou menos, o Imperador era a figura mais importante da cidade. Ele era superior

ao prefeito, superior ao juiz de direito, era tudo! Até 70, ainda tinha essa força! Mas

até quando da vigência do código penal, do novo código penal, a festa do Divino, por

exemplo, o Imperador tinha direito a indulto (indultava como o presidente da

república, hoje, tem esse direito, ..) Durante o período da festa podia até indultar

qualquer que fosse o preso! Hoje, nós fazemos esse cerimonial ainda na cadeia. Mas é

só pro-forma. Simbólica. Não... Nós tiramos também preso, mas só os presos

correcionais, aqueles que estão na rua: o bêbado que é recolhido na festa- tem lá,

assim, 30-40 bêbados que foi de ...Pequenos incidentes de trânsito, qualquer coisa lá, a

gente chega e tira fora”278!

Esse depoimento elucida as transformações ocorridas em relação a

esse poder simbólico do Imperador, que era muito maior antes de 1970. Acreditamos que

isso está ligado ao caráter que a festa assumiu. As mudanças ocorridas na festa, ligadas ao

crescimento urbano e ao turismo local, provocaram essa nova configuração quanto ao

papel simbólico do Imperador.

Considerada e tratada como festa de pompa, o poder político

esteve intimamente associado a ela e se transformou em um dos momentos de

transferências de poderes reais para poderes simbólicos. Se isso foi se modificando, talvez

se justifique pela dimensão da festa, que hoje extrapola os limites locais.

Um outro depoente nos dá outras referências sobre essa questão:

quando indagado sobre o poder do Imperador o Divino, ele respondeu:

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“Tinha! Ele podia até soltar preso da cadeia! (risos). Teve

um Imperador aqui que ele para comprar pólvora era muito custoso! Então ele: -Oh,

como é que compra salitre para fazer a pólvora para dar os tiros de roqueira?

Então, falou para ele assim:

Você vai em Brasília, que lá arruma com o exército que

compra esse salitre.

Chegou lá o Imperador pensou aqui “personado”. Aí chegou

lá e falou:

Oh, eu vim pra vocês me arranjar um salitre para mim fazer

umas pólvoras...

Aí o exército de lá...O exército respondeu para ele assim:

Mas o quê que o senhor quer fazer com pólvora...?

Não, sou Imperador.

Imperador? Ah! Não! Tem que prender esse homem!

Aí ele não sabia o quê: fazer pólvora...Imperador...Aí que o

outro foi explicar:

Não. É uma festa de tradição. Então precisa de óleo, salitre

para fazer essa pólvora para dar os tiros.[risos]

Aí que entrou a confusão, que a pessoa fala em Imperador

hoje fica tudo achando esquisito, não é? Então, toda vida teve essa coroa do Divino. O

Imperador quando depunha a coroa na cabeça, que caía Imperador, ele era autoridade

na cidade. Ele mandava!”279

Nos dias atuais, O Imperador do Divino ainda é personagem de

destaque durante a festa. Porém, se diferencia dos Imperadores do passado, sobre os quais

a memória coletiva organizou valores e distinções revestindo-os de uma aura de glória,

poder e riqueza. Algumas pessoas afirmam que ainda é o Imperador quem decide todas as

questões relacionadas à festa, outras acreditam que a festa adquiriu características que

tornaram alguns eventos independentes da vontade do Imperador, como é o caso da

278 Entrevista com o senhor Pompeu Cristóvão de Pina, advogado, 65 anos, em Pirenópolis 28/05/1998. 279 Entrevista com o senhor Teodorico Pereira “Seu Ico”72 anos, em Pirenópolis 28/05/1998.

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cavalhada. Para o Sr Venceslau, que correu a cavalhada pela primeira vez nos anos 40,

naquela época era o Imperador quem decidia se ela devia acontecer ou não:

“... A primeira que eu corri, o homem que incentivou para

levar essa festa lá outra vez foi por causa da mãe dele que já estava muito velha e ela

pediu que queria assistir uma cavalhada antes dela morrer – que ela já estava muito

velha! Então, foi o neto dela que foi sorteado Imperador. (Jácome Siqueira) E esse

homem tinha uma loja e ele vendeu todo o material a preço de custo aos cavaleiros.

Não cobrou nem um centavo a mais.” 280

Para algumas pessoas, o poder do Imperador continua inalterado

até os dias atuais:

“O Imperador...O Imperador...Acontece o seguinte, na

reunião aqui da... Tipo as cavalhadas mesmo: na reunião aqui do Domingo de aleluia,

aí eles vêm e fazem uma reunião aqui. Se o Imperador falara assim: - Eu não quero as

Cavalhadas, acabou! Aí o Imperador não quer as Cavalhadas, não vai ter as

cavalhadas. Já aconteceu festa, antes, que não teve cavalhada porque o Imperador não

quis! Mas assim faz para outras também, outras atividades da festa que pode ser por

bem o Imperador chegar e falar: -Não, eu não quero!” 281

“O Imperador é cujo nome indica, impera à vontade. O

Imperador não é festeiro! O Imperador manda e desmanda. ...Nös aqui na festa, é o

seguinte: se o presidente da República viesse à festa em Pirenópolis ele seria mais um.

Mais um! Porque aqui o Imperador não vai lá visitar o governador do Estado, não vai

visitar ninguém, não! Se quiser, o governador é que vá lá visitá-lo. Ele fica na sua

personalidade, no seu direto! Não aceita nada não! 282

O último depoente, no entanto, se contradiz quando é questionado

sobre a possível recusa de um Imperador ao acontecimento das Cavalhadas:

280 Entrevista com o Senhor Venceslau Antônio de Oliveira, Sr. Lalau, 81, aposentado, em Pirenópolis dia 27/05/1998. 281 Entrevista com o Sr. Wilson José Nogueira, 35, comerciante, em Pirenópolis, maio de 1998.

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“Seria o Imperador. Hoje, não! Hoje, é a vontade da cidade. Já passou a

ser quase que obrigatória...A prefeitura faz a cavalhada independente...” 283

A grande maioria das pessoas que entrevistamos, acredita que o

papel do Imperador sofreu algumas mudanças, o que não implica em desprestígio junto à

comunidade local.

“A gente procurou foi no dia que eu caí para Imperador –

tem o sorteio no Domingo de Pentecostes- aí, três dias depois tem o que nas

cavalhadas se chama “o batismo dos cavaleiros”, e lá eu pedi para eles correrem

Cavalhada. Nesse evento, agente pede, porque aí é separado também. Mas é influente,

digamos assim, não é necessário, entende? Mas eles falam que é necessário! Mas eles

correm independente se o Imperador pedir ou não pedir!”284

“Não tem nada a ver com isso! A cavalhada é independente!

Nós não precisamos de Imperador, nem de padre, de Igreja nem nada, é independente!

Se quiser fazer, faz; se não quiser, nós fazemos a Cavalhada porque nós corremos por

conta própria...” 285

Uma das mudanças mais expressivas em torno da figura do

Imperador é que, nos últimos anos, ele recebe uma verba estadual para custear grande parte

da festa como, por exemplo os fogos, os vários lanches que precisa dar tanto para os

grupos “folclóricos”, durante os ensaios, como para os cavaleiros da cavalhada e para os

músicos.

“Então, vai ficar mesmo só isso para a gente pagar os fogos

e fazer o restante da festa que é a parte de receber as pessoas na casa, os cavaleiros , a

banda de música, a banda de couro também- e suprir eles com lanche e mantimentos.

No caso eles vão e lancham lá. As pastorinhas e também a gente dá o lanche e,

282 Entrevista com o Sr. Pompeu Cristóvão de Pina, 65, Advogado, em Pirenópolis 28/05/98283 Idem.284 Entrevista com Arnaldo Peixoto, Imperador no ano de 1998. 285 Entrevista com o sr. Oniel Martins da Silva, 5l, proprietário rural, 27/07/98, Rei cristão da cavalhada.

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também no dia da cavalhada a gente tem que manter os cavaleiros, o camarote do

Imperador e o camarote do governo”286

“O governo do Estado manda sempre uma verba. Então ele

manda uma porcentagem. Esse ano ainda não mandou, mas eu acredito que não

demore a chegar, se vir e cobrir as despesas o Imperador e nem a Igreja não tem

despesas nenhuma!” 287

Esse dinheiro repassado para o Imperador durante a festa é uma

iniciativa que começou nos anos 70, a partir da criação da Goiastur, através de uma política

de incentivo a algumas festas regionais que representavam culturalmente o Estado. De fato,

a festa do Divino de Pirenópolis é uma comemoração que extrapolou os limites locais, e o

seu acontecimento envolve diversos aspectos políticos e sociais. É preciso compreender

que esse dinheiro não é suficiente para cobrir todos os gastos da festa; alguns Imperadores

gastam uma parte do próprio bolso:

“Do meu bolso, até agora, o equivalente a uns 10 mil reais!

Não, não! Eu não vendi nada. Eu tenho sempre um capital de giro do comércio, então

a gente tira essa verba , assim, um pouco , não é? Apesar que já tem uns chequinhos

pré datados por aí [riso]” 288

Embora a responsabilidade de organizar e custear os gastos seja do

Imperador, outras pessoas se envolvem com a organização da festa. A sua programação

desde os anos 70 tornou-se múltipla e nesse sentido é válido observar seus programas, em

anexo a este trabalho, para percebermos como a articulação de inúmeros eventos esteve

associada às novas características que a festa assumiu a partir do período citado, em função

da influência da Goiastur e do movimento local para o turismo. Com tantos eventos

286 Entrevista com Arnaldo Peixoto.287 Entrevista com o sr. Wilson José Nogueira. 288 Entrevista como o Sr. Wilson José Nogueira

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acontecendo dentro de uma festa, a sua organização ficava descentralizada das mãos do

Imperador e envolvia diversos grupos.

O programa da festa de 1979 nos dá algumas pistas sobre essas

questões ressaltadas. Nele, o Imperador convidava a todos para uma grande festa com

todos os eventos a que os moradores tinham direito: alvoradas, tocatas, danças típicas,

mascarados, cavalhadas, pastorinhas, teatros, desfiles, novenas, procissões e muitos fogos.

Na lista de agradecimento aos colaboradores estava toda a boa sociedade da época: o Padre

Tennyson, os Maestros Braz Wilson Pompeu de Pina e José Joaquim do Nascimento,

Alaor de Siqueira e Ita Lopes de Siqueira, Cristóvão Pompeu de Pina, Ataliba Mendonça

de Aquino, Luiz Armando de Pina, Márcio de Aquino de Sá, Benedito Jayme de Siqueira,

Wilno Pompeu de Pina, entre outros,289 numa demonstração de que grande parte dos

eventos da festa era organizada e promovida por grupos específicos.

No programa da festa de 1980 290 foram mencionados cerca de

vinte nomes de pessoas envolvidas no festejo com funções diversas: direção e regência da

missa, direção do teatro, direção da revista “As Pastorinhas”, regência da banda de música

Phôenix, da orquestra da Igreja, da banda de couro-zabumba, coordenação de desfiles

folclóricos e cortejos, direção da cavalhada, das serenatas, do queima, preparação da Igreja

e direção da contradança. Todas essas funções revelam que a festa estava sendo

dinamizada e seus eventos incrementados de modo que pudessem se apresentar melhor.

Contudo, essa organização ficava restrita aos grupos envolvidos com a Igreja, com o

Imperador ou com as famílias locais que detinham o controle sobre alguns desses eventos.

No que se refere à organização, como a da cavalhada, das danças,

das pastorinhas, dos congos etc., essa descentralização do domínio do Imperador, embora

revele que as fronteiras da festa se abriram em função das diversas características

289 Ver anexo nº VI programa de 1979.

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assumidas, pareceu-nos que sempre esteve presente, embora de outras formas, nesse

festejo. Na memória local, mesmo que a figura do Imperador esteja associada à fartura,

está também difundida a idéia de uma festa da comunidade, na qual as pessoas sempre

ajudam, doando alimentos e mão de obra para a sua organização.

“Essa festa é o seguinte: é uma ajuda muito grande dos

pirenopolinos, não é? Eles ajudam mesmo, colaboram trabalhando, cada um chega

com um saco de açúcar, dois de farinha de trigo, um porco, uma vaca e aí vai somando

um montão de coisas...”291

“A gente está tendo ajuda do governo agora e também as

pessoas dão, as pessoas contribuem bastante! Não como antigamente, porque

antigamente o pessoal já era mais devoto, então tinha todo esse lado de devoção, então

o povo doava mesmo! Ai doava vaca, bezerros, farinha, acúcar-tudo o que envolvia,

eles doavam- ovos, queijo...Agora mesmo a gente ganhou...Doava vaca E a gente

ganhou! Nesse ano , a gente ganhou um bezerro, uma vaca (uma banda da vaca,). Mas

assim, não foi igual, eles falam, não foi como... Mas graças a Deus, eles ajudaram e

está ajudando a festa, não é? Está ajudando.” 292

A doação de alimentos de pessoas de uma mesma comunidade

para grandes festas coletivas é uma característica que acompanhou a maior parte das festas

populares brasileiras. No caso da festa do Divino, essa característica não poderia ser

diferente, uma vez que, na maior parte das festas que lhe deram origem, como é o caso

daquelas realizadas na região dos Açores, existe um grande número de ajudantes no abate

do gado, na preparação das sopas do Espírito Santo junto à casa do Imperador, na

distribuição dessas sopas além das massas sovadas no dia de Império.293

290 Ver Anexo nº VII, programa de 1980.291 Entrevista com o sr. Wilson José Nogueira.292 Entrevista com o sr, Arnaldo Peixoto. 293 LEAL, João. As Festas do Espírito Santo nos Açores. Um estudo de Antropologia Social. Lisboa, D. Quixote, 1994.

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Em Pirenópolis, a tradição desse repasto coletivo durante a festa

concentrou-se em alguns eventos de distribuição de comida e agasalhos para pobres e

presos, prática que não chegou a difundir-se localmente, ao contrário da distribuição de

pãezinhos do Divino e de verônicas para virgens e crianças na casa de Imperador, no dia

de Pentecostes. Este evento é um dos que caracterizam a festa de Pirenópolis e

possivelmente a acompanhou durante toda a sua trajetória. Para que aconteça, um grande

número de mulheres exerce diversas funções de retaguarda, em diversos dias de trabalho

na preparação dos doces, da massa dos pãezinhos do Divino, além das centenas de

quitandas que são servidas diariamente, bem como dos jantares e demais refeições

oferecidas pelo Imperador. Pelo que pudemos perceber em nossa pesquisa, poucas pessoas

que fazem este trabalho recebem para tal. Na maior parte das vezes, é a própria família do

Imperador que assume essas funções, mas também pedem ajuda a outras pessoas da

comunidade.

Em Pirenópolis, a festa do Divino é, atualmente, uma grande festa

da comunidade e, embora tenha assumido outras características, a partir dos anos 70 e 80,

que fizeram a sociedade local redefinir algumas práticas no sentido de acompanhar as

mudanças vivenciadas, isto representou a reelaboração de sentidos para esta sociedade e

não a destruição de tais práticas, como acreditam os folcloristas. Acreditamos que o grande

número de pessoas que passaram a visitar a cidade, a partir do período citado, bem como a

influência da Goiastur e da política de patrimonialização, influenciaram a mudança de

vários eventos que se tornaram mais elaborados, tanto nas formas de apresentação como

na indumentária. Por outro lado, é preciso considerar que essa nova dinâmica da festa

aconteceu em função não apenas de grupos externos, mas também de interesses locais em

tornar a festa um evento do qual a maior parte das pessoas de Pirenópolis pudesse

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participar, pois se as pessoas e as sociedades mudam, isso também acontece com as suas

práticas culturais.

As novas características assumidas pela festa do Divino de

Pirenópolis nos fazem refletir sobre duas características apontadas por Duvignaud, em

estudo realizado sobre as festas e a civilização.294 Para este autor, as festas estariam

divididas entre festas de participação e festas espetáculos. No caso da festa de Pirenópolis,

entendemos que não é possível enquadrá-la em apenas um destes tipos específicos: as duas

características tornaram-se presentes, o que não faz dela uma festa espetáculo apenas, mas

um evento do qual a comunidade local participa intensivamente. O sentido da classificação

feita por Duvignaud refere-se a muitas práticas existentes nas festas que viveram

fenômenos parecidos com o de Pirenópolis, práticas que se tornam quase uma obrigação,

pois garantem a identidade delas.

No nosso caso, acreditamos que alguns eventos acabaram por

limitar a participação de pessoas e adquiriram características de espetáculo como é o caso

da Cavalhada. Contudo, mesmo nesse caso, acreditamos que não se resumem a um

espetáculo, pois concomitantemente acontecem diversas manifestações de participação das

pessoas. Outros eventos como “As Pastorinhas” , que se tornaram um espetáculo da festa

também, devem ser entendidos como eventos que possibilitam às famílias locais ver as

suas filhas serem apresentadas socialmente. A Congada e os ternos de Congo também são

exemplos de eventos cuja participação tem o objetivo claro de incrementar a festa, pois nos

últimos anos têm sido contratados pela Prefeitura local junto a outras cidades, e nem

mesmo aí entendemos que sejam eventos especificamente de espetáculo.

294 DUVIGNAUD, Jean. Festas e civilizações. Fortaleza/Rio de Janeiro, Tempo brasileiro. 1983

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Um outro exemplo de recriação, dentro da festa, que demonstrou

que nem todos os eventos transformavam-na em espetáculo é o surgimento dos ranchões,

que passaram a funcionar na cidade, na ocasião dos festejos do Divino, nos anos 70. O Sr.

Leonardo Batista vivenciou este processo, ao inaugurar um dos ranchões neste período,

que funciona até os dias atuais:

“Olha, o ranchão, aqui, a gente monta desde 77. Esta festa,

assim, ela sempre... Antigamente aqui eu usava mais conjunto e a gente passou, dessa

época para cá, a gente usar som mecânico –não é? –e aí ...foi uma coisa...é tradição

dessa festa! Agora...é... aqui, é o seguinte: ela é feita com a parte dos mascarados, tem

cavalhada; agora...os mascarados são os que mais ajudam a agitar a festa-não é?- e vão

às matinês mesmo! E você vê...entre com máscara e, então, é uma animação total!..” 295

Segundo este depoente, os ranchões tornaram-se tradição da festa,

já no final dos anos 70, período no qual ele muda de Goiânia para Pirenópolis e torna-se

um profissional de som em festas tanto locais como de outros municípios. Revelou-nos que

antes do som mecânico o que existia era o som aos vivo de conjuntos musicais que foram

cedendo espaço para o som mecânico e os novos ritmos musicais. Esses ranchões são, nos

dias atuais, importantes espaços de sociabilização durante a festa do Divino e, assim como

as barraquinhas, congregam diversas pessoas, principalmente nos dias de pico da festa.

Eles são um exemplo claro de que a festa tem sido recriada em várias direções e de que o

fluxo de pessoas que fazem turismo de fato contribui para uma nova configuração do

espaço festivo.

Dessa forma, não é possível estabelecer fronteiras rígidas entre

esses eventos, pois as festas, como uma representação social, carregam as duas

295 Entrevista com o Sr. Leonardo Batista de Paula, comerciante, 51 anos, em Pirenópolis dia 21/05/99

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características. O mais coerente seria considerá-las como uma intermediação entre as duas

questões.

A repetição anual de tantos eventos dentro da festa pode ser

entendida a partir de Giddéns, para quem isso significa a relação do tempo com as

tradições, as quais estão de certa forma envolvidas com o seu controle. Acredita este autor

que a tradição é a orientação para o passado, de tal forma que ele tem uma pesada

influência sobre o presente. Nesse raciocínio, a tradição também diz respeito ao futuro,

pois as práticas estabelecidas são utilizadas como uma maneira de organizá-lo. O futuro é

modelado, sem que se tenha a necessidade de esculpi-lo como um território separado. A

repetição chega a fazer o futuro voltar ao passado, enquanto também aproxima o passado

para reconstruir o futuro.296 No item seguinte damos continuidade a essa discussão

referente ao movimento dessa tradição construída em torno da festa do Divino,

particularizando, a Cavalhada, um dos principais símbolos desta festa que demonstraram

como as tradições são vivas e dinâmicas.

4.3- O Reinado da Cavalhada

A cavalhada é o evento da festa do Divino que mais se recriou

durante todo o período que analisamos neste trabalho. Os anos 70 são o grande marco

dessas mudanças, embora elas já acontecessem em anos anteriores. É nesse período que se

define um grupo de cavaleiros que vão se envolver com a festa, assumindo as novas

características presentes na sociedade em questão.

A mudança da indumentária desses cavaleiros, a partir de 1974,

sobre a qual discutimos no capítulo anterior, estabelece uma referência para entendermos

os novos posicionamentos dessa prática ritual. Isto reflete a influência que a política de

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patrimonialização trouxe para a cidade e sua Festa do Divino. Segundo alguns

depoimentos, as roupas dos cavaleiros da cavalhada até os anos 70 eram roupas de

soldados:

“Olha é o seguinte, porque essa roupa que ele está usando

hoje-que ele vai usar..Essa roupa tem na base de uns dez a doze anos que ele está

usando esta vestimenta. Ele antes, antes era simples, era uma calça branca com um

galão do lado, um blusão azul, tipo soldado mesmo, sabe? Era um tipo de soldado que

ele usava, não tinha muita coisa. Agora, hoje que eles estão com mais exigência,

pondo mais coisa, enfeitando mais, pondo capacete – de primeiro eles não tinham o

capacete, era chapéu que usava, aliás, assim, boné de soldado que usava...”297

“os cavalos, naquela época, era só cavalinho, assim, simples.

Agora, hoje, só cara que está entrando é quase só cavalo de raça, só cavalo caro... na

época que nós entramos era mais simples, o vestuário era mais simples, gora, ficou

mais...”298

“É diferenças tem, assim,...padrão, por exemplo, de

vestimenta – tem muita diferença porque, antigamente, corria era como soldado

mesmo (a parte de azul, principalmente, era uniformizado de azul, um bonezinho, isso

para os soldados atrás. Então diferença dava nos Embaixadores e rei dava diferença

pouca...” 299

“Uai, a diferença é que eles ampliou muito o tipo de

vestimenta. Antigamente, corria tudo em cavalinho pequenininho ... a vestimenta

ampliou muito!” 300

Na memória dos próprios cavaleiros está difundido uma ruptura

entre a cavalhada do passado e a atual, entendida a partir dos anos 70, depois da mudança

da indumentária que, a partir desse período, passou a contar com outros elementos antes

296 GIDDÉNS, Anthony. op. cit. p. 80.297 Depoimento da Srª Oliveira Barbosa esposa do Embaixador cristão da cavalhada, 48 anos, em Pirenópolis, maio de 1998. 298 Entrevista com André Abadias de Fontes, Pedreiro, Cavaleiro da Cavalhada, 46 anos, em Pirenópolis, maio de 1998. 299 Entrevista com Sr. Antônio Pereira Barbosa, Motorista, Embaixador Mouro da Cavalhada, 50 anos, em Pirenópolis, 24/05/1998.

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não existentes como pedrarias, rendas, cetim, penas, boá, veludo. Os cristãos, que antes se

vestiam mais simplicidade que os mouros, modificaram essa estética e passaram a ter um

visual tão luxuoso como o dos “rivais”. Quanto aos reis e embaixadores, tanto mouros

como cristãos, passaram a usar capacetes e peitorais, diferenciando-se dos demais

soldados. E, para todos os cavaleiros, adotou-se o chapéu com penas da cor referente à

sua posição: azul ou vermelho.301 Embora as mudanças referentes à estética tenham

marcado mais a memória dos cavaleiros, outras importantes mudanças aconteceram,

envolvendo a prática deste ritual.

Nos anos 60, quando se iniciaram as obras no largo da Matriz, a

cavalhada foi transferida para o campo de futebol da cidade. Essa mudança, pelo que nos

pareceu, não trouxe nenhum descontentamento por parte dos cavaleiros daquela época.

Isso se justifica pelo fato de que naqueles anos não existia um grupo definido de

cavaleiros, sendo que a última cavalhada que aconteceu no largo fora em 1958, e a

primeira que aconteceu no campo novo foi em 1966. O lugar para onde a cavalhada fora

transferida possuía condições bem diferentes das do lugar anterior e precisou ser

modificado para acompanhar as mudanças no visual das cavalhadas.

“Olha, a cavalhada, antigamente, era corrida no largo da

matriz... Era um largo que tinha um terreno irregular, mas era gramado pela natureza,

e era corrido aqui nessa praça principal! A cavalhada parou uns tempos e, quando ela

voltou, nós voltamos a correr no campo de terra. Era um campo irregular também,

com muita poeira, quando molhava, o cavalo escorregava muito, tinha muita queda;

sempre tinha problema! Agora, depois, gramou, o conforto é bem maior!” 302

300 Entrevista com Elvécio Santana de Oliveira, cavaleiro da cavalhada, 42 anos, em Pirenópolis 27/05/1998.301 Essas alterações fizeram algumas pessoas da cidade se profissionalizarem na confecção dessas roupas, no bordamento das capas ou na reforma delas, assim como ornamentos para os cavalos, pois como tornaram-se mais elaboradas, exigiam especialização no ramo da costura que requeria técnica e preparo. Um exemplo é o de Maria Aparecida de Melo, quem entrevistamos, e que há mais de dez anos se ocupa dessa função na qual é ajudada pela mãe. Ela cobra cerca de R$ 1.200, 00 pela mão de obra, na confecção de uma roupa nova.

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O fato de não termos percebido conflitos no que se refere à

transferência de lugar da cavalhada talvez se explique devido a que no largo da Matriz não

havia boas condições para se realizar o evento por causa da irregularidade do terreno.

Para algumas pessoas, o antigo campo da cavalhada comportava poucos camarotes e a

maioria dos presentes assistia ao espetáculo de pé ou precisava trazer cadeiras de casa. O

novo campo da cavalhada, no entanto, demorou vários anos para acompanhar o movimento

desse evento. Pelo depoimento acima, é possível perceber que as novas roupas dos

cavaleiros foram por um certo tempo um contraste com o campo de terra, o qual facilitava

os acidentes e a destruição das roupas com mais facilidade.

As mudanças, no que diz respeito ao campo da cavalhada, só

vieram no final dos anos 80, durante o mandato de Luís Armando Pompeu de Pina,

cavaleiro da cavalhada por vinte e cinco anos. Em seu mandato, foi feito o serviço de

terraplanagem e gramagem; também foi colocado um alambrado para separar o público

dos cavaleiros e uma arquibancada para as pessoas que não possuíam camarotes. Estes

passaram a ser fiscalizados pela Prefeitura, através de um mapa, no qual se anotava junto a

um número específico o nome da família que o ocuparia naquele ano. Não pudemos

acompanhar os critérios estabelecidos para a distribuição de tais camarotes, uma vez que,

com a mudança para o campo novo, esse número aumentou mais que em dobro. Através da

verificação desse mapa, nos dias atuais, observamos que as principais famílias locais têm o

seu lugar reservado nesses camarotes, embora pessoas de menos posses também tenham o

lugar neles. Ao que nos pareceu, esses camarotes servem a toda a família e geralmente

pertencem a ela por diferentes gerações, o que é um exemplo vivo do intenso movimento

local neste evento. Parte desses camarotes também são reservados para os cavaleiros da

302 Depoimento de Sr. Luis Armando Pompeu de Pina, 48, anos em Pirenópolis. Maio de 1999.

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cavalhada, para o Imperador, para as autoridades presentes e para o som que toca no

campo.

Estas iniciativas demonstram como a cavalhada passava a

adquirir uma importância privilegiada no rol das manifestações da festa do Divino, e isto

estava intimamente ligado ao movimento local e regional em torno do turismo cultural.

A mudança na indumentária dos cavaleiros, assim como as

alterações do espaço onde a cavalhada se apresentava provocaram outras alterações que

envolviam a relação dos cavaleiros entre si e o ritual. Passaram a realizar vários eventos

que acabaram virando “tradição”, como é o caso das várias farofadas, nome que representa

os jantares, os churrascos ou qualquer outro tipo de refeição coletiva deles, tudo

promovido por eles mesmos, pelo Imperador ou pela comunidade. Outra iniciativa curiosa

também, tomada por esses cavaleiros, foi a zebra:

“A “zebra” foi criada pelos próprios cavaleiros. Era uma

brincadeira que nós criamos que.. Era uma casa onde os cavaleiros tinham onde

chegar, descansar, fazer um caldão. Aonde os cavaleiros reuniam! Então, era uma casa

independente de festeiro, de prefeitura...Era uma casa alocada pelos próprios

cavaleiros! E esse pessoal que, à vezes vinha de fora (porque tinha cavaleiro morava

fora, que não tinha onde ficar, às vezes morava em fazenda), eles ficavam na casa,

nessa casa da “zebra”... Isso deve ter ficado de 3 a 4 anos...Não existia anteriormente!

Foi num período que criamos isso. Um período !...” 303

A criação da zebra, embora tenha permanecido por poucos anos

revelou que eles já articulavam uma organização à parte. Isto veio a ser somado a outros

eventos, uma partida de futebol entre os dois grupos e os ensaios, que para muitos

tornaram-se uma grande festa:

“Uai, é a festa nossa, é o ensaio! Porque ali, no ensaio, nós

faz bagunça, dança catira, come farofa. E, agora, a partir de amanhã em diante já não é

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festa nossa, nós já temos de fazer a festa para os outros! ...nós não pode mais fazer

barulho, não pode mais fazer essas “furrincha” que nós faz no ensaio. Amanhã é festa

para o povo que veio pra ver!”304

“ Eu gosto assim, não o dia das Cavalhadas, mas dos ensaios

nossos aí! A gente brinca, fica mais a vontade, eu acho melhor! Porque é uma festa da

gente! A gente fica à vontade! Agora, quando a gente faz Cavalhada mesmo é um

teatro, uma coisa fina, bonita, então é uma coisa séria- a gente tem que ficar sempre

atento!...”305

“..No ensaio, a festa é nossa, eu posso brincar, o outro pode

brincar comigo, coisa e tal, - e, no dia da Cavalhada, não existe brincadeira. No dia, a

festa é do povo, nós vamos fazer a festa para o povo. A nossa é no ensaio! Aí

terminou o ensaio, a nossa festa acabou. Aí nós vamos fazer festa para o povo, não

é?”306

Outros eventos, além dos ensaios, foram criados e dinamizados

por estes cavaleiros. Um deles foi a cerimônia da entrega simbólica das lanças para o

Imperador, em sua casa, quando terminavam os ensaios e depois também de circularem

pelas ruas da cidade e de se encontrarem na porta da igreja do Bonfim. Este espaço

também é palco de mais uma atitude simbólica desses cavaleiros, no dia em que se

encerram as cavalhadas: após darem uma cavalgada pelas principais ruas, todos os

cavaleiros juntos descarregam suas armas de fogo lá. Dentro do campo, as variações da

cavalhada foram menores. O assassinato do espião mouro (onça), as carreiras, as

embaixadas e o batismo dos mouros, no segundo dia, parecem ter sido muito próximos

daqueles das cavalhadas “antigas”, e os próprios cavaleiros são unânimes em afirmar que

não modificaram esses aspectos. No último dia da cavalhada, dá-se o jogo de argolinhas,

que é uma situação mais livre possivelmente variações aconteceram.

303 Entrevista, citada, com o Sr. Luis Armando Pompeu de Pina.304 Entrevista, citada, com o sr. André Abadias de Fonte, cavaleiro da cavalhada.305 Entrevista com Daniel da Silva, 27 anos, motorista, cavaleiro da cavalhada, em 29/05/98.

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Todas essas cerimônias, às quais nos referimos, estão presentes nos

programas da festa, já no final dos anos 70, e coincidem com as mudanças estruturais e

políticas, já citadas, que estiveram relacionadas com as cavalhadas.

Algumas outras situações de mudança estiveram ligadas a esses

eventos, como as diversas apresentações que compõem uma cerimônia de abertura,

também criada possivelmente a partir dos anos 70, e o som mecânico que reproduz a

música da banda que dá o ritmo para as carreiras. Nas cavalhadas antigas, segundo

depoimentos, quem dava o ritmo para o cavalo era um caixeiro que tocava dentro do

campo. Nos dias atuais, o Sr. Ignácio, de 73 anos desempenha essa função, durante os

ensaios dos cavaleiros, pois nesse momento não há som. Ele próprio diz ter tocado por

muitos anos dentro do campo e ter parado por causa do som mecânico. Outro aspecto que

não poderíamos deixar de mencionar complementa todas essas observações sobre a

cavalhada: é a alteração dos dias das corridas. Atualmente, esses eventos acontecem no

domingo, na segunda e na terça-feira. Em alguns depoimentos de pessoas que

acompanharam as cavalhadas, ainda quando aconteciam no largo da Matriz, foi afirmado

que era na segunda, terça e quarta-feira. A mudança de dias, que não foi possível datar,

possivelmente se adaptava à festa, de modo que permitisse aos turistas participar dela.

Todas essas questões ressaltadas nos demonstram como as manifestações populares são

dinâmicas; se algumas práticas se repetem anualmente, outras se recriam e se

modificam.307

Uma característica interessante que precisa ser ressaltada é que, ao

contrário do que está muito difundido sobre esta festa, os seus participantes não são os

homens mais ricos da cidade. Acreditamos que, provavelmente até o século XIX, essa

306 Entrevista com Carlos Roberto Ferreira, 44, cavaleiro da cavalhada, em Pirenópolis, 29/05/98.

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característica estivesse presente, mas principalmente a partir dos anos 70, momento de

grandes recriações nesses eventos, os cavaleiros pertenciam às mais diferentes classes

sociais: comerciantes, advogados, grandes e pequenos proprietários rurais, lavradores,

prestadores de serviço entre outros. E, para os próprios cavaleiros esta idéia de restringir a

cavalhada só aos mais ricos não está difundida.

“ Não, Era o filho de algum fazendeiro que sempre monta a

cavalo, que tem cavalo... Hoje as coisa muda! Hoje, aqui em Pirenópolis, a festa do

Divino o povo quer correr uma cavalhada e já faz uma baia no fundo do quintal, e já

compra um cavalo bom. Então é aonde mudou. O cara tem que ter dinheiro, comprar

um cavalo e já pode ser um candidato par ser um cavaleiro da cavalhada! Mas,

antigamente, não era assim! Porque é um problema: Como é que você vai criar um

cavalo na cidade? E hoje, já tem quem consegue criar”.308

“É o seguinte, rico, rico, não precisa. Mas se for meio ruim

de bolso, se não tiver alguém para ajudar, fica difícil. Hoje, para fazer uma roupa não

fica em menos de três mil reais.” 309

“Para ser cavaleiro, a própria palavra já indica: a primeira

coisa que tem que ser é, realmente, ser cavaleiro – saber andar a cavalo... – e, depois, é

ou ter cavalo ou ter condições de arrumar um cavalo emprestado –porque não precisa

de dinheiro para você correr cavalhada, ao contrário do que muita gente fala, que tem

que ter dinheiro. Negativo! Se você for correr Cavalhada e comprar tudo, hoje, fica

caro mesmo!”310

“Porque conheço pessoas aí que já participou e era pobre,

empregado de fazenda, entendeu? Hoje mesmo esteve aqui o rei de cristão, ele era

empregado de fazenda! Igual eu também- participei muitas vezes empregado de

fazenda... Que aqui tem gente que ganha igual eu ganho- quase um pouco mais de um

307 Outra invenção local envolvendo as cavalhadas foi as cavalhadas mirins no final dos anos 80. Esse evento acontece na vila matutina e dele só participam crianças. Elas acontecem um a semana depois da cavalhada convencional e a iniciativa foi de João Luiz Pompeu de Pina, ex- cavaleiro da cavalhada. 308 Entrevista com o Sr. Antônio Gaia Pires (Seu Nô) 50 anos, em Pirenópolis, 28/05/1998.309 Entrevista com o Sr. Sebastião Pimentel Filho, cavaleiro daCavalhada, 30anos, funcionário público em 28/05/98. 310 Entrevista com o Sr. Antônio Roberto Machado “Rei Mouro” em Pirenópolis 29/05/1998.

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salário que corro Cavalhada- tem fazendeiro, tem empresário, tem doutor, tem tudo no

meio. 311

A partir desses depoimentos, reforçamos a idéia de que não

devemos estabelecer fronteiras rígidas no que diz respeito à organização e participação

desses eventos. No caso da cavalhada, o grupo de cavaleiros atual possui alguns que

acompanharam grande parte das mudanças vivenciadas a partir dos anos 70, e foram eles

que testemunharam contra a presença exclusiva de pessoas ricas participando das

cavalhadas. Após as mudanças ocorridas na indumentária, a realização do evento, tornou-

se mais cara, porém, para muitos deles, a oportunidade de participar delas impele

sacrifícios e economias. Outras alternativas utilizadas são a reforma das roupas, que custa

bem menos que uma roupa nova, e o uso de cavalo emprestado. Percebemos que as

cavalhadas, principalmente após as mudanças ocorridas não são um evento para qualquer

pessoa participar. No entanto, não são necessariamente os mais ricos que dela fazem parte.

Na verdade, essa relação é bastante ambígua, pois, mesmo que não

sejam necessariamente os mais ricos que participam da cavalhada, os critérios para a

escolha de novos cavaleiros nem sempre estão definidos. Até os anos 50, quando a

Cavalhada não era recorrente,talvez esses critérios fossem menos rígidos; como a

indumentária era mais simples e não exigia padronização, tornava-se mais acessível a

participação de pessoas. Após as mudanças acontecidas, percebemos que as exigências

concentraram-se na indumentária. Porém, o fato de não serem necessariamente os mais

ricos que participavam dela nos faz acreditar que os critérios estabelecidos obedeciam a

acordos e relações de amizade entre eles, embora esses aspectos tivessem de ser

combinados com as características de um bom cavaleiro, que tivesse condições de comprar

a indumentária. Atualmente, mesmo existindo a padronização dos uniformes, por critério

311 Entrevista com o Sr. Cirilo Rodrigues Vidal, 29/05/1998.

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estabelecido entre o grupo, os participantes se diferenciam nas características do material

utilizado para a confecção das roupas, ou seja, aqueles que têm melhores condições

compram um melhor veludo, pedrarias mais caras, cavalos de raça; outros com menores

condições também participam, mesmo que utilizando materiais mais simples, embora

padronizados.

Um aspecto importante que justifica a participação nas cavalhadas,

mesmo com tantos gastos e sem nenhum retorno financeiro, é a oportunidade de estar junto

aos amigos e também de estar em destaque na sociedade, pois para a maioria a cavalhada

representa um ritual bem elaborado e a auto- imagem positiva dos cavaleiros da Cavalhada

é outro fator que demonstra como este evento acabou por se destacar em relação aos outros

e representar um relevante momento de sociabilidade masculina durante a festa:

“Porque já começa na Igreja, é tudo diferente, tudo melhor,

não é? Começa da igreja-a religião é- melhor do que os outros lugar, parece que o

povo está fazendo mais força! Aí, para a parte da festa é mais bem organizado, a

cavalhada é mais bonita, tudo mais bonito!” 312

“Mais bonita, bem mais bonita- traje das pessoas, dos

cavaleiros, dos cavalos! Tem que perceber que em 96 a Cavalhada ganhou o prêmio

da cultura do país, não foi do Estado de Goiás, mas do país em si. Então teve um

prêmio, você vê: o folclore mais bonito, na época, do prêmio da cultura”! Não tem

como! As cavalhadas de São Francisco, Corumbá, Palmeiras, Crixás, nem chegam

aos pés de nós exatamente porque a cavalhada é bonita!313

Essa auto-imagem certamente foi sendo construída lentamente

pelos próprios cavaleiros e pela sociedade em geral e também pela imprensa, que nesses

312 Entrevista com Carlos Roberto Ferreira cavaleiro da cavalhada.313 Entrevista com Sebastião Pimentel Filho, 30 anos, cavaleiro da cavalhada, em Pirenópolis , 28/05/98.

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anos passou a visitar a cidade e a realizar diversas matérias que destacavam as cavalhadas

entendidas muitas vezes como um evento à parte dos festejos do Divino. 314

Alguns cavaleiros justificam a sua participação pelo fato de

quererem dar continuidade à tradição da família, como é o caso do cavaleiro Elvécio

Santana, filho do Sr. Venceslau, que nos anos 40 correu inúmeras cavalhadas no largo da

Matriz. Outro exemplo é o de Luiz Armando, que utiliza esse argumento para justificar a

sua participação nas cavalhadas, quando indagado sobre a relação desse evento com a

tradição de sua família:

“ Olha, tem muita coisa a ver, porque me avô foi cavaleiro,

meu tio foi cavaleiro. Então, eu lembro muito bem de quando era criança, de 5-6anos,

eu ia no ensaio com um tio na garupa! Eu era um garupeiro de primeira. Então, meu

tio pegava o cavalo – seja de madrugada, ou à tarde- eu ia té no ensaio com eles e

aquilo pegou! E quando eu tomei conta de mim , eu tinha quatorze anos – deu

vontade de correr. Eu não tinha idade, eu não tinha físico para correr, era muito

raquítico, mas a paixão foi tão grande que eu acabei seno um bom cavaleiro! Comecei

como cavaleiro simples, logo fui para embaixador- fiquei uns 15 anos como

Embaixador, depois subi a rei e fiquei uns 10 anos como Rei.”315

A cavalhada tornou-se um dos símbolos da festa do Divino em

Pirenópolis, e isso aconteceu pelos diversos motivos apontados. Ela demonstrou como as

tradições podem ser modificadas e ao mesmo tempo continuar dando sentido para o grupo

envolvido, fazendo adaptações nas quais se conservam os velhos costumes em condições

novas, ou se usam velhos modelos para novos fins. 316

314 ALVES, Luiz Antônio. Pirenópolis; Festa do Divino. In; Cultura, Publicação do Ministério da Educação e Cultura, Brasília, ano I nº 2, 1971; Pirenópolis em festa (s/autor) Revista dos amigos da Mercedes Bens do Brasil S.A. nº 70 Ano XIII- 1979; PEREIRA, Niomar De S. Cavalhada!. In: Revista ícaro (revista de bordo Varig) ano VI nº 34, 1987. ; WODTKE, Marina. Os mascarados do Divino. In: Revista manchete 7 de julho de 1984 nº 1.681 ano 33; CAVALHADAS, Mouros & Cristãos na festa do Divino (s/autor), In: Revista Grifo, maio de 1979.; MARIANO, Maria Alice. Cavalhada/O Planalto Central volta à Idade Média. In: Revista manchete, Rio de Janeiro 18 de junho de 1988, nº 1887 ano 37. 315 Entrevista com Luiza Armando Pompêo de Pina.316 HOBSBAWM, Eric. Op. cit. P, 13.

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Considerações Finais

Ao longo deste trabalho, exploramos alguns aspectos que estiveram

relacionados com a prática da Festa do Divino Espírito Santo na cidade de Pirenópolis,

entre os anos de 1890 e 1988. Entendemos que essa festividade adquiriu no local citado

algumas especificidades que demonstraram como as manifestações culturais de uma

determinada sociedade transformam-se ao mesmo tempo em que se relacionam com a sua

vida cotidiana.

A festa do Divino em Pirenópolis se dinamizou localmente e

organizou um conjunto de eventos, personagens, símbolos e cores que juntos acabaram

constituindo a identidade da festa. Entre eles podemos citar as várias procissões, a queima

de fogos, os mastros, as cerimônias com a bandeira do Divino, as danças, as peças e autos

teatrais, as bandas, as folias, os reinados, os mascarados, as cavalhadas além da simbologia

em torno do Imperador do Divino, símbolo cultural que caracteriza essas festas em todos

os lugares onde é praticada. Todos esses elementos articularam-se na festa recriando a

herança cultural Ibérica herdada desde a colonização proporcionando, aos grupos locais,

possibilidades para se envolverem na promoção e realização desses festejos e assim

dinamizar o catolicismo popular.

Essa festa, no entanto, acompanhou importantes processos de

mudanças que imprimiram novas características na sociedade em que se inseriam. O

primeiro processo, a partir do qual analisamos a festa do Divino em Pirenópolis, foi o da

Romanização da Igreja Católica, que influenciou importantes redefinições para as

manifestações do catolicismo popular. Trata-se do primeiro momento de interferência

direta de eclesiásticos em práticas leigo-religiosas, toleradas, até então, por esta instituição.

O Concílio Vaticano I, em 1869, foi o ponto de partida para esse processo, que se

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fortaleceu a partir do fim do Padroado Régio em 1890, no início da época republicana,

com a separação do Estado da Igreja Católica e se estendeu até os anos 30 do século XX.

Durante este período as manifestações do catolicismo popular, entre elas, a festa do

Divino, se tornaram alvo de críticas e proibições dos párocos representantes dessa política

romanizadora. A partir daí a relação entre Igreja, Estado e sociedades locais tornou-se

ambígua pois ao tentar modificar algumas práticas existentes em tais rituais, a Igreja

entrou em confronto com famílias, Irmandades leigas e políticos influentes ao mesmo

tempo que estabelecia alianças, acordos e concessões com eles, na busca de espaço e

autonomia.

Em Pirenópolis acompanhamos os desdobramentos desse

processo a partir do episcopado de D. Prudêncio (1908-1921) o qual visitou várias vezes

esta cidade. Porém, o episcopado anterior presidido por D. Eduardo (1891-1908) foi o

ponto de partida para o início das regulamentações e normas para as festas populares.

Durante o período que este bispo esteve à frente da diocese goiana que o primeiro

regulamento específico para tais manifestações foi publicado e denominou-se:

Regulamento para Festividades e Funções Religiosas ( Roma, 1899). D. Prudêncio irá dar

continuidade a essas regulamentações e para isso publicou uma nova versão do primeiro

regulamento, além de várias portarias que tiveram o caráter específico de enquadrar essas

manifestações festivas, entre elas a Festa do Divino, à ortodoxia romana. D. Emanuel,

bispo sucessor de D. Prudêncio, que assume o controle da diocese até os anos 50, além de

reforçar os posicionamentos anteriores será o representante regional da Ação Católica,

movimento criado na Itália nos anos 30 e que se caracterizou pela retomada da Cristandade

através da dinamização de diversos setores da Igreja como o movimento do Apostolado da

Oração, dos Vicentinos e das Filhas de Maria. A Ação Católica irá também promover a

retomada do controle do ensino assim como promover diversos congressos eucarísticos

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nacionais que visavam discutir a prática católica no Brasil. Neste período, as festas

religiosas continuaram a ser vistas pela Igreja Católica como práticas excessivas devido às

inúmeras características profanas que contradiziam as propostas reformistas desta Igreja,

como por exemplo, os fogos, as danças, os “excessos” na comida e na bebida entre outros.

A Festa do Divino tornou-se um dos principais alvos dessa política

romanizadora e reformista da Igreja visto que neste evento estiveram combinadas as mais

diferentes práticas condenadas por esta instituição. Algumas delas foram os poderes

conferidos ao Imperador do Divino em detrimento ao poder do pároco local o que

provocou conflitos no controle de espaços entre as partes, uma vez que esses personagens,

quase sempre ligados aos grupos políticos e famílias abastadas, aproveitavam o momento

da festa para reafirmar o seu poder e legitimar a sua força política e assim promoviam

banquetes, queima de fogos, danças e muitas outras “profanidades”. Uma outra prática que

foi muito condenada pela Igreja foi a folia do Divino, o momento preliminar da festa

destinado à coleta de esmolas e para levar a bandeira do Divino até as regiões rurais. Este

evento, quase sempre distante do controle eclesiástico e policial, tornou-se um importante

palco para a manifestação de diversas práticas sincréticas do catolicismo popular como a

devoção à bandeira, as danças regionais, o repasto coletivo farto e o grande consumo de

bebidas alcóolicas para aumentar a “animação” e esquentar o frio da noite. Essa fuga do

controle eclesiástico somou-se ao fato de que as esmolas coletadas nessas folias quase

sempre iam para o Imperador e não para a Igreja e isso representava, na época, uma

contradição aos seus preceitos que pretendiam o controle total das manifestações

religiosas bem como de suas rendas.

Em Pirenópolis, a Festa do Divino adquiriu todas essas

características citadas e foram duramente criticadas tanto pelos bispos como pelos párocos

locais. Na prática, o controle dessas manifestações teve algumas ambiguidades pois a

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Igreja esbarrou no poder de famílias e grupos políticos que estiveram amplamente

envolvidos com esses festejos desde períodos remotos. Contudo, é preciso ressaltar que a

política reformadora da Igreja não pretendia acabar com essas festas tendo em vista que

eram consideradas elementos importantes da religiosidade católica em relação a outros

cultos que se dinamizavam na época, como o protestantismo. A intenção da Igreja era

canalisar tantos excessos para a prática dos dogmas religiosos e para o fortalecimento do

culto católico em relação aos demais, bem como afirmar sua autonomia frente ao Estado.

Sendo assim, mesmo que muitas das críticas feitas a essas festas tenham sido duras e

contundentes, na prática, não resultaram em conflitos trágicos, pois muitos dos grupos

locais ao mesmo tempo que as promoviam, realizavam acordos e faziam concessões à

Igreja. Esta instituição, se foi incisiva nas formas de regulamentação e na concepção

negativa em relação às crenças populares, por outro lado, procurou fortalecer os grupos de

trabalho de leigos como o Apostolado da Oração e as Filhas de Maria em detrimento da

Irmandade do Santíssimo Sacramento que persistia em práticas condenadas pela Igreja.

Um exemplo prático da implementação de práticas que visavam reformar a fé católica ao

mesmo tempo que aumentava a fonte de renda da paróquia, foi a criação da Romaria dos

Pireneus, evento que tinha todo o controle exercido pela Igreja Católica de Pirenópolis.

Assim, entendemos que a Festa do Divino em Pirenópolis foi uma

manifestação da religiosidade popular bastante expressiva desde o século XIX e a

romanização acabou por contribuir para que essa festa fosse recriada em alguns aspectos

que acompanharam a mudança na sociedade organizadora e participante. Porém essas

mudanças se relacionaram também com um outro processo que conceituamos neste

trabalho de patrimonialização. Este, é fruto de um conjunto de práticas políticas que entre

outras ações criaram o SPHAN e Institutos de Folclore por todo o país. A partir daí as

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festas populares serão vistas com novos olhares e integraram uma proposta política que

incluiu as festas como parte da cultura e do patrimônio nacional.

Em Pirenópolis a patrimonizalização inicia-se nos anos 40 com o

tombamento da Igreja Matriz e a partir daí teve um lento, amplo, mas dinâmico processo

que contribuiu para diversas transformações no espaço urbano e da relação entre a

sociedade e a festas do Divino, visto que esta manifestação mesmo alvo de proibições,

críticas e denúncias recriava-se acompanhando o movimento da sociedade. Nos anos 60,

quando as interferências do poder eclesiástico sobre as festas cessaram, a Festa do Divino

de Pirenópolis, no sentido contrário de outras cidades goianas, já era uma das principais

manifestações culturais locais. Neste período, uma das manifestações da Festa, a

Cavalhada, que durante todo o século XIX e primeiras décadas do século XX, fora um

evento esporádico, neste momento será recriada localmente e acompanhou a dinâmica

urbana de Pirenópolis na época.

No início dos anos 60 o largo da Matriz passou a ser disputado

entre a Igreja e a Prefeitura, o que provocou diversos embates envolvendo essas partes e

resultou na construção de diversos prédios, entre eles o da Prefeitura, do Fórum, dos

Correios e da Casa Paroquial. Essas diversas construções em um lugar que antes pertencia

à Igreja, simbolizou a perda gradativa de espaço político desta Instituição frente às novas

características econômicas e políticas assumidas por esta sociedade. A cavalhada, que

antes acontecia no largo da matriz, foi transferida para um campo de futebol e a partir de

1966 essa manifestação dinamizou-se de tal forma que passou a representar um dos

eventos mais esperados e concorridos durante a festa.

Os anos 70 trouxeram novos caminhos e o surgimento da Goiastur,

empresa de turismo do Estado, ligada à política de patrimonialização, influenciou

diversas mudanças que assolavam esta festa, principalmente a Cavalhada que recebeu

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incentivo financeiro para a mudança de indumentária e acessórios. Essas mudanças

relacionaram-se também com o movimento do turismo que aumentava a cada dia na cidade

e que, de certa forma, estava associado à Cavalhada. Estas questões envolvendo a

cavalhada elucidou as diferentes características desse momento histórico, uma vez que,

com a patrimonialização a Igreja redefiniu as suas posturas frente à festa do Divino. A

festa será retomada pelos grupos políticos e familiares locais, embora eles nunca tenham

deixado de ter o controle de alguns aspectos da mesma, transformando- a em um evento

capaz de representar, identificar e legitimar Pirenópolis frente a outras cidades.

A partir daí, Pirenópolis e festa do Divino estarão intimamente

associados. Essa relação resultou na reelaboração constante de práticas rituais e simbólicas

responsáveis pela identificação e dinamização da sociedade em questão, responsável

também pela construção de uma memória coletiva na qual a festa do Divino teve, e ainda

tem, um lugar de destaque.

Dessa forma, entendemos que a Festa do Divino de Pirenópolis

tornou-se um evento de múltiplas ações e significados pois, como frisou Michel Vovelle,

da mesma forma que não há uma "História Imóvel", não há uma festa imóvel.

Independente da obstinação de permanência e continuidade de determinadas estruturas

formais, a festa é sempre recriada e reapropriada, refletindo paixões, conflitos, crenças e

esperanças de seu próprio tempo. Desta forma, o desafio do historiador da festa passa a ser

a compreensão dos seus significados e mudanças, em sua dinâmica relação com a

experiência dos homens e mulheres. Foi isso que nos propusemos fazer neste trabalho.

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Matriz de Nossa Senhora do Rosário de Meia Ponte –1874.

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Matriz de Nossa Senhora do Rosário de Meia Ponte-1869-1886.

Livro 2º de Contas dos irmãos de compromisso. 1862-1914

Livro n º 9 – Eleições da Irmandade do S. Sacramento de Meia

Ponte de 1850 a 1911.

Lançamento de receita e Despesa do Patrimônio da Igreja Matriz da

cidade de Meia Ponte.

Livro de Recibos da Irmandade Do Santíssimo Sacramento de Meia

Ponte- 1823 a 1871.

Livro de Receita e despesas da Irmandade do S. Sacramento.1872-

1914.

Inventário de Imagens, Prata, ouro seda, roupas e mobílias da Igreja

matriz de Pirenópolis.

Livro de Tombo da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário de

Meia Ponte-1910-1928.

Livro de Tombo da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário de

Meia Ponte-1929-1955

Livro de Tombo da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário de

Meia Ponte-1956-1980.

Livro de termos da Irmandade de São Benedito e N. Sra do Rosário

dos pretos.1836-1891

Livro de Eleições da Irmandade do Santíssimo Sacramento

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245

Arquivo particular da Família Curado (Corumbá de Goiás)

Diário de Ana das Dores Fleury Curado (INHAZINHA); abril de 1850 a fevereiro de

1886.

Arquivo Histórico Estadual.

Relatório da Câmara Municipal de Meia Ponte, 26/2/1850 Caixa de Pirenópolis.

Relatório da Câmara Municipal de Meia Ponte 5/3/1874

Relatório da Câmara Municipal de Meia Ponte 27/4/1876

Relatório da Coletoria municipal de Meia Ponte (1863)

Código de Posturas de Meia Ponte (1868)

Código de Posturas de Meia Ponte (1888)

Décima urbana de Meia Ponte (1865) livro 411

Arquivo da prefeitura de Pirenópolis.

Livro de leis n. 01; 10/12/1947 a 24/11/1968.

Livro de leis n. 02; 24/11/1968 a 07/07/1977.

Livro de leis n. 03. 07/03/1977 a 10/02/1986.

Arquivo da Câmara Municipal de Pirenópolis

Atas da Câmara Municipal- 1890-1990 (Livros Diversos)

Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central-UCG

Diário de ANA JOAQUINA; Moradora da cidade de Goiás e seu diário foi escrito

entre 1880 e 1914.

Cartório do crime de Pirenópolis

Processo criminal contra Roseno de Moraes. 1958, Maço n. 44.

Processo criminal contra José Lopes Moreira. 1954, Maço n. 52.

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Processo criminal contra João Alves Teles. 1950. Maço n. 39.

Processo criminal contra Cornélio Neres Ribeiro. 1946. Maço n. 28.

Processo criminal contra Mauro Pereira Barbosa. 1969. Maço n. 52.

Processo criminal contra Benedito José dos Santos. 1952, Maço n. 40.

Processo criminal contra João Roque. 1954. Maço n. 42.

Processo criminal contra Melciades Francisco de Pina. 1954. Maço n. 42.

Processo criminal contra Manoel de Mendonça e outros. 1932. S/n

Processo criminal contra Benedito Waldyur da Luz. 1951. Maço n. 40.

Processo criminal contra Antônio Gomes. Maço n. 39.

Processo criminal contra Sebastião Monteiro de Faria. 1983. Cx 97.

Processo criminal contra Josafá da Silva Liberato. 1983 Cx 97 .

Impressas

Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central-UCG

Periódicos

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Jornal O Estado de Goyaz - 1891/1896.

Jornal de Goyaz - 1892/1893.

Jornal a Província de Goyaz - 1869/1873-1885/1892.

Jornal A Tribuna Livre1878 -1884.

Semanário Oficial - 1894.

Jornal A Gazeta Goiana – 1890-1891.

Jornal O Lidador - 1909/1914- 1916/1917.

Jornal Nova Era - 1914/1919.

Documentos Eclesiásticos

Pastoral de D. Eduardo Duarte Silva. Bispo de S. Anna de Goyaz. Sobre o culto

Interno e Externo. Regulamento para as Festividades e Funções Religiosas. Roma,

Scuola Tipografica Saslesiana, 1899, 63 p.

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247

REGULAMENTO Reformado para as Festividades e Funções Religiosas. In: Carta

Pastoral (nona) de d. Prudêncio Gomes Da Silva. Bispo de Goyaz- 1921-Goyaz

Officina de C Alves Pinto, Goyaz, v. 3007.

Arquivo Histórico Estadual

Caixa nº 13-Pirenópolis

Jornal Gazeta de Goiás. Goiânia, 20 a 27 de maio de 1978. p. 8

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Jornal Diário da manhã. Goiânia, 22 de agosto de 1981. s/p.

Junta Comercial do Estado de Goiás (JUCEG)

Estatuto Social da Empresa de Turismo do Estado de Goiás/GOIASTUR, 1976.

Museu das Cavalhadas- Pirenópolis-Go

Jornal Nova Era, nº 3, a 90, Pirenópolis-Go

Revista Geográfica Universal, nº 23, agosto de 1976.

O MENSAGEIRO: Prefeitura Municipal de Pirenópolis- Festa do Divino-Redator

responsável: Irnaldo Jayme- edição Especial – Pirenópolis, junho de 1976.

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Pirenópolis em festa (s/autor) Revista dos amigos da Mercedes Bens do Brasil S.A.

nº 70 Ano XIII- 1979;

PEREIRA, Niomar De S. Cavalhada!. In: Revista ícaro (revista de bordo Varig) ano

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WODTKE, Marina. Os mascarados do Divino. In: Revista manchete 7 de julho de

1984 nº 1.681 ano 33;

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maio de 1979.;

MARIANO, Maria Alice. Cavalhada/O Planalto Central volta à Idade Média. In:

Revista Manchete, Rio de Janeiro 18 de junho de 1988, nº 1887 ano 37.

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248

Fontes orais

Depoente Personagem Idade Profissão Naturalidade Data da entrevista

Alexandre Luiz Pompeu de Pina

Maestro da banda Phoênix

34 Músico e comerciante

Pirenópolis 29/05/1998

André Abadias de Fonte

Cavaleiro da Cavalhada

46 Pedreiro Pirenópolis 05/98

Antônio Pereira Barbosa

Embaixador Cristão da Cavalhada

50 Motorista Pirenópolis 24/05/1998

Antônio Gaia Pires “Seu Nô”

Embaixador Mouro da Cavalhada

50 Pequeno Proprietário Rural

Pirenópolis 28/05/1998

Antônio Roberto Machado

Rei Mouro da Cavalhada

46 Agropecuarista Pirenópolis 29/05/1998e 1999

Arnaldo Peixoto de Oliveira

Imperador do Divino Espírito Santo do ano de1999.

25 Joalheiro e Artesão

Pirenópolis 15/05/1999

Carlos Roberto Ferreira

Cavaleiro da Cavalhada

44 Pequeno Proprietário Rural

Campos Altos/MG

30/05/1998

Cirilo Rodrigues Vidal

Cavaleiro da Cavalhada

59 Lavrador Pirenópolis 24/05/1998

Daniel da Silva

Cavaleiro da Cavalhada

27 Caminhoneiro Pirenópolis 29/05/1998

Dário Batista Peixoto

Cavaleiro da Cavalhada

37 Comerciante Pirenópolis 29/05/1998

Delma de Mello

Colaboradora 27 Joalheira/Artesã e contadora

Pirenópolis 28/05/1998

Diógenes Pereira

Mascarado 18 Estudante Pirenópolis 27/05/1998

Élvécio Santana Oliveira

Cavaleiro da Cavalhada

42 Fazendeiro Pirenópolis 27/05/1998

Ignácio Teodoro de Amorim

Caixeiro da Cavalhada

73 Trabalhador Rural Aposentado

Pirenópolis 22/05/1999

Roque de Fontes

Alferes da Folia 65 Comerciante Pirenópolis 05/99

Welligton “Litão”

Alferes da Folia 45 Comerciante Pirenópolis 05/99

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João Lopes da Silva “Sr. Joãozico Lopes”

Coordenador da Cavalhada

-- Oficial de Justiça Aposentado

Pirenópolis 23/05/1998

Joel Alves de Oliveira

Pároco 39 Padre São Paulo-SP 31/05/1998

Lindomar Moreira da Silva

Mascarado 18 Trabalhador Rural

Pirenópolis 23/05/1998

Luiz de Freitas Peixoto

Colaborador 61 Lavrador Pirenópolis 28/05/1998

João Luiz Pompeu de Pina

Ex- Cavaleiro da Cavalhada

50 Professor Pirenópolis 28/05/1998

Ricardo Pires da Penha

Cavaleiro da Cavalhada

20 Comerciante Pirenópolis 21/05/1998 e 21/05/1999

Leonardo Batista de Paula

Proprietário de “Rancho”

51 Comerciante Pirenópolis 21/05/1999

Leone Mendonça Sobrinho

Cavaleiro da Cavalhada

25 Comerciante e Pecuarista

Pirenópolis 22/05/1998

Maria Eunice Pereira de Pina

Colaboradora/ Proprietária do Museu das cavalhadas e mãe de ex-cavaleiros

-- Primeira dama do município

Pirenópolis 22/05/1999

Márcio de Aquino Sá

Ex-Mascarado 58 Fazendeiro Pirenópolis 23/05/1998

Márcio Estácio de Sá

Cavaleiro da Cavalhada

30 Advogado Goiânia 24/05/1998

Martinez Pereira da Silva

Cavaleiro da Cavalhada

28 Comerciante Pirenópolis 22/05/1999

Ita Lopes de Siqueira

Colaboradora 67 Musicista Pirenópolis 07/99

Orniel Martins da Silva

Rei Cristão da Cavalhada

51 Proprietário rural Goiânia 27/07/1998

Pompeu Cristóvão de Pina

Colaborador 65 Advogado/ Secretário de cultura e Turismo

Pirenópolis 28/05/1998

Possidônio Guilherme Ribeiro “Doninho”

Ex-mascarado e cavaleiro da cavalhada

53 Advogado Rio Verde-Go 05/98

Sebastião Dias Goulão

Ex- Cavaleiro da Cavalhada

77 Aposentado Pirenópolis 24/05/1999

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Sebastião Pimentel Filho

Cavaleiro da Cavalhada

30 Funcionário Público

Barreiras-BA 28/05/1998

Selmia Pereira Pina

Mascarado 42 Comerciante Pirenópolis 27/05/1998

Tasso de Mendonça

colaborador 78 Médico Pirenópolis 29/05/98

Teodorico Pereira “Seu Ico”

Colaborador 72 Aposentado Pirenópolis 28/05/1998

Venceslau Antônio de Oliveira “Seu Lalau”

Ex-Cavaleiro da Cavalhada

81 Aposentado Pirenópolis 27/05/1998

Waltair Gomes

Mascarado 42 Fazendeiro Pirenópolis 23/05/1998

Washingtn Conceição

__ 35 Delegado de Polícia

Goiânia 05/98

Wilson JoséNogueira

Imperador do Espírito Santo de 1998

35 Comerciante Pirenópolis 05/98

João José de Oliveira

Ex-cavaleiro da Cavalhada

91 Aposentado Pirenópolis 06/98

Luís Armando Pompeu de Pina

Ex- Cavaleiro da Cavalhada

48 Prefeito Pirenópolis 05/98

Sizenando Jayme

Folião 52 Comerciante Pirenópolis 05/99

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ANEXOS