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MASARYKOVA UNIVERZITA Filozofická fakulta Ústav románských jazyků a literatur Portugalský jazyk a literatura A Filosofia Existencial Nos Três Romances de Vergílio Ferreira Magisterská diplomová práce Bc. Martina Harthová Vedoucí práce: Mgr. Silvie Špánková Brno 2009

A Filosofia Existencial Nos Três Romances de Vergílio Ferreira

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Page 1: A Filosofia Existencial Nos Três Romances de Vergílio Ferreira

MASARYKOVA UNIVERZITA

Filozofická fakulta

Ústav románských jazyků a literatur

Portugalský jazyk a literatura

A Filosofia Existencial Nos Três Romances

de Vergílio Ferreira

Magisterská diplomová práce

Bc. Martina Harthová

Vedoucí práce: Mgr. Silvie Špánková

Brno 2009

Page 2: A Filosofia Existencial Nos Três Romances de Vergílio Ferreira

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Prohlašuji, že jsem diplomovou práci vypracovala samostatně s využitím uvedených pramenů a literatury.

……………………………………………..

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3

Za vstřícnost, pečlivost a především motivující vedení této práce práce upřímně

děkuji Mgr. Silvii Špánkové. Srdečné poděkování též patří Dianě Matias.

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A morte tem um duplo aspecto: Ela é o não ser. Mas é também o ser, o ser horrivelmente material do cadáver.

Milan Kundera: O Livro do Riso e do Esquecimento

Se olho a um espelho, erro – Não me acho no que projecto.

Mário de Sá-Carneiro: Dispersão

Criar deuses é a mais estranha função da nossa espécie. Nem podemos aspirar as rosas: vivemos asfixiados de divino...

António Patrício: Serão Inquieto

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Índice Siglas..............................................................................................................................7

1. Introdução ......................................................................................................................8

1.1. Vergílio Ferreira: romancista de teor ensaístico ...................................................8

1.2. Objectivos do trabalho ..........................................................................................9

2. Literatura e filosofia: um diálogo, ou discussão? ........................................................11

2.1. Arte, filosofia e ciência.......................................................................................11

2.2. Utilidade da filosofia nos nossos dias.................................................................12

2.3. Literário versus Filosófico ..................................................................................13

2.3.1. Literário/não-literário, filosófico/não-filosófico.......................................14

2.3.2. Superioridade da filosofia.........................................................................18

2.3.3. Existencialismo: fusão completa da literatura e filosofia .........................21

3. Influências da filosofia.................................................................................................24

3.1. Fenomenologia....................................................................................................24

3.1.1. Edmund Husserl e Martin Heidegger .......................................................24 3.1.2. Maurice Merleau-Ponty e a fenomenologia da percepção........................25

3.2. Filosofias da existência.......................................................................................27

3.2.1. Sören Kierkegaard e Friedrich Nietzsche: precursores do existencialismo..........................................................................................28

3.2.2. Karl Jaspers...............................................................................................29

3.2.3. Jean-Paul Sartre ........................................................................................30 3.2.4. Albert Camus ............................................................................................31

4. Filosofia em Vergílio Ferreira .....................................................................................34

4.1. Chegada ao existencialismo................................................................................34

4.2. Pensamento de Vergílio Ferreira ........................................................................38

4.2.1. Essência humana e a redução fenomenológica.........................................38

4.2.2. Absurdo humano.......................................................................................40

5. A temática das obras analisadas...................................................................................43

5.1. Cântico Final.......................................................................................................43

5.1.1. A ligação com o Absoluto através da Arte ...............................................43

5.1.2. A narração heterodiegética e híbrida ........................................................46

5.2. Aparição..............................................................................................................47

5.2.1. A busca da presença do EU ......................................................................47 5.2.2. O narrador-personagem-autor...................................................................50

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6

5.3. Estrela Polar........................................................................................................51

5.3.1. Como ser eu nos outros?...........................................................................51

5.3.2. Na sombra do novo romance ....................................................................55

6. Subjectividade e temporalidade ...................................................................................57

6.1. EU – o início absoluto ........................................................................................57

6.2. O corpo espiritualizado.......................................................................................58

6.3. A mortalidade do nosso corpo e a (i)mortalidade do nosso EU .........................60

6.3.1. O tempo irreversível .................................................................................60

6.3.2. Da morte inverosímil até a reconciliação .................................................61

7. A comunhão intersubjectiva ........................................................................................65

7.1. A solidão com alguém ........................................................................................65

7.2. O espelho e a evidência do duplo .......................................................................67

7.3. O amor e a questão do terceiro ...........................................................................69

8. A Arte no lugar de Deus ..............................................................................................73

8.1. O antropocentrismo de Vergílio Ferreira............................................................73

8.1.1. O mundo sem Deus...................................................................................73 8.1.2. O reino do homem ....................................................................................75

8.2. O artista Criador..................................................................................................76

9. Conclusão ....................................................................................................................79

Bibliografia ..................................................................................................................82

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Siglas

Na citação das obras de Vergílio Ferreira utilizamos as siglas que a seguir se

indicam e identificam. As páginas citadas correspondem às da edição referida na

Bibliografia.

AP – Aparição

CC II – Conta-Corrente II

CC III – Conta-Corrente III

CC IV – Conta-Corrente IV

CC V – Conta-Corrente V

CF – Cântico Final

CFut – Carta ao Futuro

EA-se – Um Escritor Apresenta-se

EI II – Espaço do Invisível II

EP – Estrela Polar

FS – Da Fenomenologia a Sartre

IC – Invocação ao Meu Corpo

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1. Introdução

1.1. Vergílio Ferreira: romancista de teor ensaístico

O Homem, a Vida, a Morte, a Arte. Os temas obsessivos da obra fecundam do

escritor quem, apesar de se ter consagrado aos vários géneros literários (escreveu

romances mas também ensaios, contos e diário), representa, antes de tudo, um dos

melhores romancistas portugueses do século XX. A obra de Vergílio Ferreira,

ultrapassando as fronteiras entre romance e ensaio, unifica-se nos pensamentos do autor

e, assim, nas questões surgidas nos seus romances. Não é por acaso que o próprio

escritor opta pela designação romances-problema. Este quer deixar sempre pelo menos

um problema, não totalmente resolvido, para que o leitor possa reflectir.

A vida e a obra são indissociáveis em Vergílio Ferreira. A sua aldeia natal,

situada na Serra da Estrela, deixou os ecos repetidos na sua produção literária. O mesmo

pode-se dizer da sua situação familiar. Trata-se da partida dos pais para os Estados

Unidos, quando Vergílio Ferreira tinha apenas dois ou três anos. O escritor refere-se

muito a ausência dos pais, aliás, este facto torna-se omnipresente ao longo da sua

escrita. Outro momento decisivo para o seu futuro foi a permanência de seis anos no

Seminário do Fundão. Esta experiência será, mais tarde, retratada de uma forma

ficcional em Manhã Submersa (1953).

A vida literária de Vergílio Ferreira começou nos anos 40, ainda em plena

ditadura salazarista. Integrando-se a princípio na corrente neo-realista, publicou, durante

a época da Segunda Guerra Mundial, o romance O Caminho Fica Longe (1943),

seguido pelos romances Onde Tudo Foi Morrendo (1944) e Vagão J (1946).

Foi nesta altura que surgiu em França uma série de obras inspiradas pela

filosofia que iriam ter uma grande influência na Europa e no mundo. Como Sartre,

Vergílio Ferreira manteve-se distante em relação às correntes como o surrealismo,

marxismo, psicanálise.1 O existencialismo, muito pelo contrário, infiltrou-se nos seus

romances. No ano 1949, Vergílio Ferreira escreveu o romance Mudança, cujo título, por

si só, já indica uma viragem. Com esta obra o escritor começa a conquistar a sua voz

própria. No entanto, em muitos aspectos é Mudança um dos mais bem conseguidos 1 BRITO, Ferreira de: Vergílio Ferreira e o modelo cultural francês. In Vergílio Ferreira: Cinquenta anos de vida literária. Actas do colóquio interdisciplinar, Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1995, p. 123.

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romances neo-realistas. Eduardo Lourenço, no prefácio da 4ª edição deste romance,

afirma que Vergílio Ferreira jamais escrevera tão bom romance neo-realista como

Mudança.2 Este romance é o mais ambíguo, uma vez que Carlos, a personagem

principal de Mudança, é já, como escreve Lourenço, um herói existencial, a antítese do

herói neo-realista.3 É na sua boca que Vergílio Ferreira põe as meditações existenciais

que caracterizarão em seguida os seus romances.

Com Aparição (1959) será definitivamente considerado como o escritor do

romance de feição existencial. A partir daí dedica-se aos mesmos problemas,

acrescentando sempre alguma ponderação nova que, porém, cabe no sistema vergiliano.

É certo que, Vergílio Ferreira aderindo à filosofia existencial, distancia-se do neo-

realismo. Além disso, é notável que a temática existencial lhe possibilitara manter uma

posição política de clara demarcação do fascismo.

Cada vez mais, Vergílio Ferreira se afasta da narrativa clássica, com a história

linearmente contada. Com o “novo romance” adopta as técnicas com as quais renova o

processo de montagem do romance. Não lhe interessa, porém, a filosofia que o “novo

romance” trouxera.

O romance Para Sempre (1983) culmina no teor autobiográfico do escritor.

Neste lugar convém mencionar que Vergílio Ferreira nos deixou o diário em nove

volumes, cinco da primeira série e quatro da nova série, intitulado Conta-Corrente, que

o escritor começara a escrever a partir de 1969. No ano passado saiu, graças a Fernanda

Irene Fonseca, o diário póstumo do escritor, Diário Inédito: 1944-1949, prefaciado pela

autora.

1.2. Objectivos do trabalho

Foi o próprio Vergílio Ferreira quem, de certo modo, assinalou a nossa escolha

acerca do tema deste trabalho. Nas várias entrevistas que foram feitas ao grande

escritor, teve este explicação quanto à natureza filosófica dos seus romances. Várias

vezes proclamou que os seus romances não eram exclusivamente filosóficos, portanto

também preferia chamá-los romances-problema. No entanto, nas outras obras, quer nos

2 LOURENÇO, Eduardo: Prefácio In FERREIRA, Vergílio: Mudança, 4ª ed.. Lisboa, Bertrand, 1978, p. 10. 3 Idem, Ibidem, p. 15.

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ensaios quer nos diários, escreveu sobre as questões metafísicas que pretendera

sublinhar em certas obras.

Como vimos, é sempre difícil marcar as fronteiras rígidas entre o género literário

e o filosófico. Naturalmente, não se trata só de literatura ou de filosofia, onde existe o

problema da delimitação das áreas do estudo. Todavia estas duas foram tocantes à obra

vergiliana. Assim, surgiu o objectivo do nosso trabalho. O nosso interesse foi também

apoiado pela evidência da discussão incessantemente actual e existente, ao mesmo

tempo, no domínio da literatura e da filosofia. Isto é, qual é a relação verdadeira entre

estas duas? O segundo capítulo, de certo modo extenso, mostra só o esboço daquilo que

chamamos o diálogo entre filosofia e literatura.

A terceira parte do trabalho vai-nos servir como plataforma filosófica. Já no

nosso trabalho Aspectos Filosóficos no Romance Aparição de Vergílio Ferreira

escrevemos em parte sobre alguns dos filósofos que fortemente influenciaram o nosso

escritor. Esse trabalho será o nosso ponto de partida. Ao contrário do primeiro, o

trabalho aqui exposto aprofundará a filosofia daqueles cujas reminiscências podemos

encontrar na obra vergiliana. Antes de nos dedicarmos à análise da obra romanesca de

Vergílio Ferreira, apresentaremos o sumário do seu pensamento filosófico, adoptando,

sobretudo, os ensaios do autor. Assim, não julgamos relevante usar o método de

dedução, isto é, não achamos possível deduzir o pensamento filosófico do autor

somente através da obra literária. Se o fizéssemos, desmentiríamos completamente o

sentido da filosofia.

Para os nossos fins da análise escolhemos três romances de Vergílio Ferreira:

Cântico Final (1960), Aparição (1959) e Estrela Polar (1962). O romance Cântico

Final, publicado em 1960, mas escrito no ano 1956, antes de Aparição, predetermina

muitas das questões, posteriormente analisadas em Aparição. Escolhemos este romance

também por este desenvolver detalhadamente duas das preocupações principais de

Vergílio Ferreira: a morte e a arte. Aparição, como já foi dito, representa o melhor, o

pendor existencial do escritor. Estrela Polar, por sua vez, simpatiza muito com

Aparição, desenvolvendo e aprofundando alguns aspectos já esboçados em Aparição.

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2. Literatura e filosofia: um diálogo, ou discussão?

2.1. Arte, filosofia e ciência

Aproximação entre filosofia, literatura e ciência foi notável desde sempre. As

fronteiras entre elas podem ser às vezes dificilmente definidas, portanto, retirar-nos-

emos de quaisquer indicações certas que nos possam assegurar o que pertence, sem

excepção, à área da filosofia, da literatura e da ciência. Ao mesmo tempo, não

pretendemos consignar que as áreas de pesquisa ou de investigação da filosofia, da

literatura e da ciência sejam iguais, visto que, podemos sempre caracterizá-las

separadamente. O nosso objectivo é mostrar que a articulação entre estas três disciplinas

fica nos seus próprios centros de discussão.

Um dos maiores problemas da filosofia e da literatura é a busca dos seus

sentidos, das suas próprias naturezas: O que é a literatura? O que é a filosofia?

Contrariamente à ciência trata-se da busca interminável. “[...] O problema da natureza

da literatura continua a ser [...] o problema fundamental de toda a teoria e de toda a

crítica literária.” 4 O objecto da filosofia parece o mais abstracto. Não recorreremos às

definições complicadas e bastar-nos-á seguir a opinião de Ortega y Gasset cuja

afirmação acerca da filosofia é seguinte: “[...] A filosofia é o esforço intelectual por

excelência”5 e “Filosofia é conhecimento do Universo ou de tudo quanto há.”6

No nosso trabalho não poremos demasiadamente em destaque a relação entre a

filosofia e a ciência devido à sua raiz comum. A ciência antes de ser destacada, fazia

parte da filosofia. A filosofia7 tem a origem no espanto e na admiração dos gregos

antigos que depois do desabamento da mitologia tradicional precisavam distinguir as

hipóteses dos conhecimentos. A filosofia foi assim a primeira e única ciência. Foi,

nomeadamente, a cosmovisão, especialmente antes de Galileu, que ficou no centro dos

interesses filosóficos dos gregos antigos. Da filosofia formaram-se e separaram-se,

sucessivamente, as ciências particulares como matemática, física, astronomia, lógica,

retórica, etc. A filosofia começou a restringir, por efeito da concretização das ciências, a

sua essência. Enquanto a ciência trabalha com um experimento mediante o qual tenta

confirmar, ou desmentir as suas pressuposições, a filosofia nunca aceitará nenhuma 4 AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel: Teoria da Literatura. Coimbra, Livraria Almedina, 1973, pp. 26–27. 5 ORTEGA Y GASSET, José: O que é a filosofia? (trad. J. Bento). Lisboa, Cotovia, 1994, p.69. 6 Idem, Ibidem, p. 75. 7 A palavra filosofia vem dos alunos de Pitágoras que começaram a chamar o seu professor o filósofo.

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afirmação como incontestável e não facilitará as respostas definitivas. A filosofia não

disponibiliza de nenhum método firme, até aproveita os métodos das outras ciências. A

Filosofia não nos oferece nem um conhecimento certo nem uma instrução rígida. Para

os fins deste trabalho usaremos a palavra filosofia no sentido mais amplo, ou seja, não

faremos sempre a diferença entre filosofia e ciência. Nos casos particulares, o que é o

caso do capítulo seguinte, diferenciaremos a filosofia da ciência, falaremos assim, da

filosofia no sentido mais estrito.

2.2. Utilidade da filosofia nos nossos dias

Além do objectivo do seu estudo, a filosofia tem o problema ontológico com a

justificação da sua existência, com a sua autoafirmação em relação ao mundo.

Decidimos incluir este capítulo na nossa tese visto que achamos que se duvida mais, em

geral, da importância da filosofia do que da literatura. Durante os séculos, os filósofos

preocuparam-se com a questão do estatuto da filosofia. Trata-se apenas da teoria pura,

liberta dos problemas quotidianos, ou devia esta aplicar os seus conhecimentos na

realidade, ou seja, pode a filosofia ter a ver com a utilidade?

Estamos de acordo com Erwin Kerz que acaba o seu ensaio, tentando responder

à questão “Deverá a Filosofia limitar-se à interpretação do real, ou deverá tentar, com

os seus meios, contribuir para a modificação do mundo?”8 com as palavras que

confirmam que é importante interpretar o mundo e modificá-lo. Se não o fizéssemos, a

filosofia não seria mais do que, em palavras de Karl Popper, um passatempo

escandaloso. Este termo de Popper, representante do realismo crítico, usa Kerz9 para

que possa apoiar a sua opinião acerca da filosofia. De certa maneira, concorda assim

com Karl Marx segundo o qual os filósofos, mais do que interpretáram o mundo,

modificáram-no.

A Filosofia não pode, porém, directamente mudar o mundo, mas pode denunciar

todos os dogmas e ideologias, teorias erradas, arrogância política e social que despreza

os direitos no nosso mundo.10 Os seus pensamentos e as suas opiniões podem exprimir-

se em arte - em literatura, em música, em artes plásticas. No fundo, a discordância dos

cidadãos com os acontecimentos históricos e com a política manifestou-se muitas vezes

8 KERZ, Erwin: A Torre Inclinada dos Filósofos. (trad. Maria Tamagnini) In Seminário de Literatura e Filosofia Portuguesas (Actas). Lisboa, Fundação Lusíada, 2001, p. 112. 9 Idem, Ibidem, p. 116. 10 Idem, Ibidem, p. 116.

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primeiro em arte, especialmente nas épocas quando se não podia falar abertamente. A

linguagem literária convinha por o seu metaforismo. Segundo Cerqueira Gonçalves11 a

crítica faz parte da essência da filosofia: “A filosofia é[...] crítica [...] para realizar a

irrecusável exigência de aperfeiçoamento ontológico, mediante rigorosa e lúcida

selecção e hierarquização.”12

A filosofia, pode ser então, muito útil na nossa sociedade apesar de devermos

trabalhar com o termo utilidade com reserva. A filosofia não quer cair na mera

utilidade, uma vez que não se trataria da filosofia. “A filosofia não brota por ser útil

[...] É constituitivamente necessária ao intelectual.” 13 Segundo Ortega y Gasset o acto

de filosofar não é necessário, se por necessário se entende ser útil para outra coisa. Mas

acrescenta que a necessidade do útil é apenas relativa. “A verdadeira necessidade é a

que o ser sente de ser o que é – a ave de voar, o peixe de vogar e o intelecto de

filosofar.”14

2.3. Literário versus Filosófico

Em consideração ao anteriormente escrito, ousamo-nos a acentuar o facto que

desde o mundo antigo existem dois tipos de discurso15 – literário e filosófico. A

necessidade de distinguir a literatura da filosofia foi sempre frisada. A natureza da

literatura é fictícia, enquanto a filosofia acentua a maneira como deveríamos ver e

entender o mundo.

No início do século vinte Ludwig Wittgenstein começou a estudar a crítica da

linguagem. Muito cedo surgiu a convicção que a nossa experiência com o mundo liga-

se ao modo segundo o qual o mundo é fixado e construído na linguagem. Cerqueira

Gonçalves também vê a diferença entre a literatura e a filosofia nas suas relações à

linguagem. “A filosofia abordou frequentemente a sua própria relação à linguagem

11 Catedrático de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, n. 1930. A sua pesquisa dedica-se, além do mais, à hermenêutica e a filosofia da linguagem. (Cf. PACHECO, Cândida: Verbete “Gonçalves, Joaquim Cerqueira” In Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. II, Lisboa – São Paulo, Verbo, 1990, pp. 896–897.) 12 GONÇALVES, Cerqueira: Fazer Filosofia Como e Onde? Braga, FFUCP, 1990, p. 23. 13 ORTEGA Y GASSET, op.cit., p. 70. 14 Idem, Ibidem, p. 69. 15 Ao dizermos a literatura e a filosofia, temos sempre em mente o discurso literário e o discurso filosófico. Como não conseguimos definir os limites rigorosos entre a literatura e a filosofia, achamos mais conveniente falar dos discursos. Uma obra literária pode ser escrita no discurso que tem a ver com a filosofia e ao contrário. Não é preciso confirmar que hajam ideias filosóficas nos textos literários ou que a filosofia aproveita os géneros literários, como o aforismo, diálogo ou fragmento, para que se possa construir e transmitir.

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pelo lado negativo, considerando que esta representa uma dificuldade, mesmo uma

infidelidade, à expressão do pensamento.”16 A literatura, por sua vez, intensifica o

poder metaforizante da linguagem e multiplica as ambiguidades. “A literatura é o

domínio privilegiado da língua.”17

Assim, a filosofia analítica declinou do discurso literário e mostrou a sua

simpatia pelas ciências exactas. Heidegger e Sartre, ao contrário, com as suas prosas

filosóficas aproximaram-se mais do discurso literário. Uma certa ruptura chegou com o

novo discurso chamado theory que teve a sua origem na consequência da crítica da

língua de Wittgenstein e na deconstrução da significação de linguagem de Derrida.

Trata-se da mistura da literatura, crítica literária, crítica da língua e filosofia ensaística

(por ex. Derrida, Lyotard).18 O discurso literário foi, a seguir, várias vezes

revalorizado.19 Em consequência da crítica da linguagem revelou-se que no discurso

literário prevalece o modo narrativo, ou seja, a narratividade.20 21 22

2.3.1. Literário/não-literário, filosófico/não-filosófico

Tanto o discurso literário, como o filosófico têm as suas propriedades que os

caracterizam, mas ao mesmo tempo, são, no nosso entender, exactamente estas

propriedades que levam os dois discursos às dificuldades. O problema da filosofia

consiste no facto desta não ter a sua área autónoma23 e, muito pelo contrário, esta falta

da própria área24 constitui a essência da filosofia. A literatura, por sua vez, tem a área do

seu interesse muito melhor restringida, não existe, todavia, a definição exacta que

16 GONÇALVES, Cerqueira: Verbete “Filosofia e Literatura” In Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. II, Lisboa – São Paulo, Verbo, 1990, p. 599. 17 Idem, Ibidem, p. 599. 18 GRABES, Herbert: Verbete “Filozofie a literatura” In NÜNNING, Ansgar (ed.): Lexikon teorie literatury a kultury (trad. A. Urválek - Z. Adamová). Brno, Host, 2006, pp. 233–234. (A tradução de checo para o português foi feita pela autora deste trabalho.) 19 Na teoria dos símbolos de Goodman a literatura têm a mesma importância cognitiva como a ciência/a filosofia. Cf. GOODMAN, Nelson: Ways of Worldmaking. Indianapolis, Hackett, 1984. 20 GRABES, op.cit., p. 235. 21 Mais no Verbete “Narratividade” de Ansgar Nünning In NÜNNING, Ansgar (ed.): Lexikon teorie literatury a kultury (trad. A. Urválek - Z. Adamová). Brno, Host, 2006, pp. 539–540. 22 A narratividade não é, em exclusivo, somente a característica da literatura. O modo narrativo, por exemplo, faz parte do discurso histórico ou da crítica de arte. 23 Pela palavra “autónoma” entendemos neste contexto um domínio exacto da pesquisa filosófica, o que quer dizer que a filosofia pode exprimir-se em todos os domínios do conhecimento humano. A filosofia é autónoma, como veremos posteriormente, no sentido dos seus objectivos. Achamos, por isso, o termo de autonomia da filosofia bastante complicado. 24 “A filosofia é uma actividade do espírito que se diferencia de todos os outros métodos do pensamento devido à sua complexidade sinóptica e ao seu potencial crítico.” In KERZ, Erwin: A Torre Inclinada dos Filósofos. (trad. Maria Tamagnini) In Seminário de Literatura e Filosofia Portuguesas (Actas). Lisboa, Fundação Lusíada, 2001, p. 115. Complexidade sinóptica significa, segundo Kerz, que a Filosofia não fica limitada a conhecimentos num determinado campo da realidade.

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marque as fronteiras entre a literatura e as outras áreas, ou seja, as características que

podiam ser consideradas como os signos da literatura, encontram-se também nos textos

não-literários.

Para avançarmos, podemos trabalhar com a negação do termo literário e do

filosófico. Conforme a opinião dos autores Deleuze e Guattari propomos que cada

disciplina esteja em relação com a sua negação. Como a filosofia está ligada com a não-

filosofia, a arte faz mesma coisa com a não-arte (a literatura com a não-literatura) e a

ciência com a não-ciência.

Não se trata de dizer apenas que a arte deve formar-nos, despertar-nos, ensinar-nos a sentir, nós que não somos artistas, e a filosofia deve ensinar-nos a conceber, e a ciência a conhecer. Tais pedagogias não são possíveis se cada uma das disciplinas, por sua conta, não estiver numa relação essencial com o Não que lhe diz respeito.25

Sempre temos de definir o contrário para chegarmos à qualquer conclusão. Também

Aguiar e Silva menciona algo parecido na sua Teoria da Literatura: “[...] a obra

literária constitui uma determinada forma de mensagem verbal, o problema reside em

distinguir a linguagem literária da linguagem não literária.” 26

A importância da relação entre o filosófico e não-filosófico está tematizada na

obra de Paul Ricœur.27 Na sua obra podem-se salientar dois aspectos essenciais como

traços próprios dessa relação. Em primeiro lugar, o discurso filosófico não é originário,

uma vez que, segundo ele, a filosofia não começa nada absolutamente, porque, em

filosofia, todo o começo é “reapropriação”.28 Em segundo lugar, o discurso filosófico

instaura uma ruptura em relação àquilo de que se apropria para começar, e que,

portanto, é autónomo. Ou seja, “o que está em questão no tema da articulação do

filosófico com o não-filosófico é um paradoxo engendrado pela dupla afirmação da

autonomia do discurso filosófico e da sua dependência em relação e um “fora de si”

25 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix: O que é a filosofia? (trad. M. Barahona, A. Guerreiro). Lisboa, Editorial Presença, 1992, pp. 190–191. 26 AGUIAR E SILVA, op.cit., p. 26. 27 O nome de Paul Ricœur está ligado ao pensamento filosófico da hermenêutica, mas também a filosofia de vontade, à etica, à antropologia filosófica, à epistemologia das ciências humanas, à filosofia do tempo e da narratividade. Renova também a teoria da subjectividade, a filosofia política e a filosofia da religião. Impõe-se cada vez mais no panorama da filosofia francesa da segunda metade do século XX, como uma figura de máximo relevo. Mais em RENAUD, Michel: Verbete “Ricœur, Paul” In Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. IV, Lisboa – São Paulo, Verbo, 1992, p. 775. 28 O termo de Ricœur. “O conceito de apropriação fornece-nos a dimensão formadora do texto. Este constitui o medium pelo qual o sujeito se compreende a si mesmo.” In RICŒUR, Paul: Teoria da Interpretação (trad. Artur Morão), Intodução de Isabel Gomes. Porto, Porto Editora, 1995, p. 153.

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que, assim, o determina.29 Segundo Ricœur, a filosofia tem sempre relações com a não-

filosofia, porque a filosofia não tem objecto próprio, tem as suas raízes fora de si

própria. A Filosofia utiliza os resultados de outras ciências, e assim, pode-se imergir na

interpretação destes resultados e fazer a especulação. A filosofia não tem nenhum

compromisso, o que representa a garantia de independência, graças a ela descobre as

relações do saber, verifica os factos, valoriza as experiências, formula previsões. “[...] a

Filosofia é o único método autocrítico do pensamento. Não há, por exemplo, qualquer

processo físico que possa explicar o que é a Física e que intenções ela tem. Toda a

reflexão sobre isto é já Filosofia.”30 Portanto, pode-se falar neste aspecto,

contrariamente àquilo já dito no início deste capítulo, da autonomia da filosofia,

conquanto a sua autonomia não seja inequívoca.

Durante os séculos, a palavra literatura ganhava vários sentidos. Recorreremos

novamente à Teoria da Literatura de Aguiar e Silva e à opinião, que achamos relevante

para os nossos dias, que no século XVIII a noção de literatura ganhou o sentido de

criação estética, como específica categoria intelectual e específica forma do

conhecimento.31 O aspecto estético, juntamente com os outros, podia ser uma das

características essenciais da obra de arte em geral.

Logo entramos, contudo, em confusões. Aguiar e Silva relembra alguns

linguísticos como Jan Mukařovský e Roman Jakobson que definiram o sentido da

literatura como o resultado de uma das funções da linguagem verbal. Mukařovský

acrescentou às três funções da linguagem caracterizadas por Karl Bühler –

representação, expressão e apelo – uma quarta função, designada como função estética.

Esta teoria da função estética aparece numa forma mais desenvolvida em Jakobson

como função poética. Mukařovský afirma que a função estética é omnipresente e está

implicada, pelo menos potencialmente, em todo o acto linguístico.32 Carmo d’Orey

acrescenta justamente que qualquer coisa, incluindo uma obra científica ou filosófica,

pode simbolizar esteticamente e uma obra de arte pode levar o símbolo filosófico ou

científico.33 Também Nelson Goodman desenvolve no seu livro Ways of Worldmaking a

29 HENRIQUES, Fernanda: Filosofia e Literatura: Um percurso hermenêutico com Paul Ricœur. Évora, Universidade de Évora, 2001, p.406. 30 KERZ, op.cit., p. 115. 31 AGUIAR E SILVA, op.cit., p. 23. 32 Idem, Ibidem, pp. 27–30. 33 D’OREY, Carmo: Filosofia e Literatura. In Poiética do Mundo. Lisboa, Edições Colibri, 2001, p. 595. A teoria dos sistemas simbólicos analisa as propriedades sintácticas e semânticas de todos os sistemas, dentro e fora da arte. Permite especificar os linguísticos por oposição aos representacionais e aos notacionais e, assim, aproximar a literatura, a filosofia e a ciência. A teoria do funcionamento estético,

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17

teoria, dizendo que praticamente tudo pode funcionar como obra de arte. A questão

verdadeira não é, segundo ele, dizer quais os objectos que são constantemente as obras

de arte, mas sim em quais circunstâncias pode um objecto funcionar como obra de

arte.34

Como vimos, o aspecto estético de uma obra de arte é uma questão bem

discutível. O outro aspecto, que mencionaremos, e que já não é o aspecto geral de arte,

mas em exclusivo da literatura, não é também muito claro. À pergunta O que é a

literatura respondem as formalistas com a literariedade. O termo literariedade foi

cunhado por Roman Jakobson, num ensaio de 1921 sobre a nova poesia russa. Segundo

Roman Jakobson é a literariedade mas não a literatura que constitui o objecto da

ciência literária, ou seja, aquilo pelo qual uma dada obra é uma obra literária.35 No ver

de Manuel Pimentel não é esta característica de arte suficiente. Admite que assim como

a obra literária, caracteriza-se também a obra filosófica pela literariedade. Ele afirma

que:

a literariedade faz apelo a um juízo estético que se forma na base de uma intuição de valores onde se enraíza todo o juízo metodológico que procura apropriar-se da literariedade como objecto próprio de investigação [...] Face ao texto, o sujeito, leitor e intérprete, forma de modo intuitivo um juízo.36

por sua vez, permite especificar o estético por oposição ao não-estético e distinguir, no âmbito do linguístico, a literatura, a filosofia e a ciência. (D’OREY, Carmo: Filosofia e Literatura. In Poiética do Mundo. Lisboa, Edições Colibri, 2001, p. 595.) Cf. GOODMAN, Nelson: Languages of Art, An Approach to the Theory of Symbols. Indianapolis, Hackett, 1976, cap. IV e V; Idem, Ways of Worldmaking. Indianapolis, Hackett, 1984, cap. IV. 34 GOODMAN, Nelson: Ways of Worldmaking. Indianapolis, Hackett, 1984, pp. 66–67. Não é por acaso que o autor deu o título ao quarto capítulo do livro citado When is art? Na sua opinião, todos os objectos podem ganhar, em certas circunstâncias, a função estética, mesmo uma pedra que encontramos na rua e deixamos num museu geológico. Por outro lado, a pintura de Rembrant pode, por exemplo, reprimir a sua função estética, se a deslocarmos na janela onde substituirá o vidro partido. Mas isto não quer dizer que tudo seja obra de arte. A pedra colocada num museu adquire a função simbólica de amostra da pedra da dada época, da sua origem ou da estrutura, mas não é a obra de arte. Goodman quer encontrar a resposta certa à pergunta O que é a arte? portanto preocupa-se com aquilo que não é a arte para que possa com mais facilidade definir a arte. A obra de arte nunca pode deixar de ser a obra de arte, ou seja, quando uma obra de arte funciona como um objecto útil, amplifica-se. A pintura de Rembrant será sempre a obra de arte, como nunca perderá a tinta. De maneira semelhante, uma cadeira nunca deixará de ser uma cadeira mesmo que ninguém se sente nela. (In GOODMAN: 1984, op.cit., pp. 66–69.) A teoria dos símbolos estuda detalhadamente os sintomas do estético (mais em GOODMAN). 35 GUSMÃO, Manuel: Verbete “Literariedade” In Biblos: Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa. Vol. III, Lisboa – São Paulo, Verbo, 1999, p. 112. 36 PIMENTEL, Manuel Cândido: Elementos para uma fenomenologia Literária do Texto Filosófico. Philosophica: Filosofia e Literatura, 9, 1997, p. 22.

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18

O leitor fica perante o texto cujo sentido não é pré-dado, mas é preciso que o leitor

aproveite as suas experiências que tinha encontrado nos outros textos. Assim é a

literariedade inerente também ao discurso filosófico.

A discussão em torno da literariedade da obra filosófica flutua entre a convicção de que o texto filosófico possui, à semelhança do literário, uma lógica de significações implicada na composição e organização da matéria textual e uma definição das convenções que historicamente se têm posto tanto à sua construção como à sua abordagem.37

Pimentel mostra que nem a literariedade, a qual os formalistas russos consideraram

fundamental na área da literatura, tem a ver com a filosofia. No capítulo seguinte,

desenvolveremos mais esta relação complexa.

2.3.2. Superioridade da filosofia

Apesar de termos confirmado a existência de dois discursos, é preciso ainda

acrescentar que estes entram sempre em confronto e lutam, cada um, pela sua

superioridade. Este diálogo interminável, entre a filosofia e a literatura, somente

justifica a nossa escolha em escrever sobre os aspectos filosóficos nas obras literárias

seleccionadas. Apoiaremo-nos em toda a história da filosofia. Por exemplo, segundo

Platão, a filosofia tem um valor superior, segundo Nietzsche é a literatura cujo valor é

superior. Kant, por sua vez, considera a relação entre a filosofia e a literatura

complementar. Mostraremos umas abordagens dalguns pensadores e elucidaremos

assim o título deste capítulo que quadra com a nossa opinião.

Como já mencionámos, a filosofia tem as suas raízes fora de si própria, Ricœur

encontra-as na poética, ou seja, o seu interesse pela poética não é um fim em si mesmo.

A preocupação ricoeuriana com a linguagem poética representa um momento mediador

para que possa criar condições para o desenvolvimento do trabalho filosófico. Na obra

de Ricoeur a filosofia enraiza-se no não-filosófico com a finalidade de encontrar as

razões que legitimem a textualidade literária, poética ou ficcional, como capaz de ser

fonte para o labor filosófico. Toda a sua investigação no campo da dimensão poética da

linguagem é orientada pelo desejo de a legitimar filosoficamente como uma parceira.38

37 Idem, Ibidem, p. 23. 38 HENRIQUES: 2001, op.cit., pp. 435–436.

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19

Cerqueira Gonçalves vai mais além, dizendo que, no fundo, tudo é literatura, e

defendendo de que a filosofia vai mais longe do que a literatura. No Editorial do

número da Philosophica dedicado ao estudo da relação filosofia-literatura Cerqueira

Gonçalves escreve: “toda a filosofia é literatura, mas nem toda a literatura é

filosofia”.39 Gonçalves não quer ver filosofia em todos os textos literários, não pretende

reduzi-la à literatura. Afirma que a filosofia “não se contenta com quaisquer sentidos

possíveis40, mas aponta sempre para a máxima exigência de sentido”. 41 Já na sua tese

Fazer Filosofia Como e Onde? Gonçalves escreve: “a filosofia é literatura”.42 Na

mesma tese reforça a sua ideia de superioridade da filosofia: “Se a literatura optimiza

as potencialidades da linguagem, o mesmo é dizer, de manifestar o sentido do real, na

constituição do mundo, muito melhor o pode fazer a expressão filosófica dela, pois é a

sua tarefa levar às últimas instâncias a trajectória do sentido.”43 E mais adiante

escreve: “[...] no discurso filosófico atinge a língua a sua melhor expressão, pelo facto

de aí conseguir realizar o que jaz no seu fundamental desígnio – o sentido mais

amplo.”44

Fernanda Henriques concorda com Cerqueira Gonçalves quando diz: “Filosofia

e literatura são assumidas como lugares de expressão e exploração das potencialidades

ontológicas da linguagem [...] A filosofia demarca-se da literatura: esta configuraria

um mundo possível de sentido, aquele realizaria a figura do mundo.”45 A literatura fica

sempre na construção de um mundo possível, onde valem não as regras verdadeiras,

mas sim as regras estéticas, pertencentes ao mundo possível. Em contrapartida, a

filosofia não pode escapar à verdade, que reclama a plenitude ontológica.46 Apesar de

Fernanda Henriques partilhar algumas das posições que favorecem à afirmação tudo é

literatura, e no caso da hierarquização de saberes, às vezes colocaria a filosofia acima 39 GONÇALVES, Cerqueira: “Editorial”. Philosophica: Filosofia e Literatura, 9, 1997, p. 4. Mais acerca desta afirmação no verbete “Filosofia e Literatura” de Cerqueira Gonçalves em Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. II, Lisboa - São Paulo, Verbo, 1990, pp. 599–603. 40 Acerca do possível em literatura também: “(...) embora a literatura se alimente da atracção do melhor mundo possível, fica-se, quase sempre, na construção de um mundo possível, onde critérios de ordem estética se sobrepõem às injunções de verdade, que reclamam plenitude ontológica, a que filosofia não pode escapar.” In GONÇALVES: 1990, op.cit., p. 31. 41 GONÇALVES: 1997, op.cit., p. 5. 42 GONÇALVES: 1990, op.cit., p. 31. 43 Idem, Ibidem, p. 31. 44 Idem, Ibidem, p. 37. 45 HENRIQUES, Fernanda: É legítimo o uso da literatura no processo de transmissão da filosofia? Philosophica: Filosofia e Literatura, 9, 1997, p. 153. 46 Há ainda um outro factor que menciona Fernanda Henriques nesta articulação entre o filosófico e literário. É o facto de “a literatura poder introduzir no mundo transparente da filosofia e da pureza do conceito, a opacidade e a impureza do literário [...] a literatura não quer ser transparente.” In HENRIQUES: 1997, op.cit., p. 166. A literatura busca o sentido do real, mas nunca o dirá directamente.

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da literatura, chega à conclusão que as relações entre o filosófico e o literário são

horizontais e não verticais.

Carmo d’Orey, por sua vez, defende no seu artigo Filosofia e Literatura três

teses: 1. Nem toda a filosofia é literatura; 2. Nem toda a literatura é boa literatura; 3. A

filosofia não é superior à literatura. No ponto um e três discorda assim com Cerqueira

Gonçalves. Acerca do ponto dois, este não o toma em conta. Arte, filosofia e ciência

constituem a nossa forma humana de conhecer e nenhum tem no seu ver qualquer

espécie de privilégio sobre os outros. “O ponto comum a todos consiste na sua

potencialidade cognitiva; a diferença, no modo como nos facultam conhecimentos

diversos. Assim, a opção entre eles depende dos nossos objectivos e interesses.”47 No

nosso entender, esta divisão é muito simplificada, mas concordamos com o autor que

nenhuma delas tem qualquer privilégio, como também afirma Fernanda Henriques.

Também já Aristóteles, na sua Metafísica, afirmou, sobre as ciências, que todas são

necessárias, mas nenhuma superior.

D’Orey toma a teoria dos símbolos de Goodman segundo o qual se diz que o que

distingue ciência, filosofia e arte são propriedades sintácticas e semânticas dos sistemas

através dos quais são construídas. Para os objectivos deste trabalho é inútil explicar esta

teoria de uma forma pormenorizada. D’Orey, apoiado em Goodman, chegou à

conclusão que na interpretação de um texto não estamos apenas interessados naquilo

que as palavras denotam, mas paralelamente também nas palavras e nas propriedades

que possuem. Um poema, por exemplo, chama a nossa atenção para as suas eufonias –

rimas, ritmos e aliterações e Cézanne representou na suas pinturas naturezas mortas

apenas para exibir um jogo de formas geométricas e de cores complementares.48 “[...]

Num texto literário, o “como é” dito conta tanto e em alguns casos mais do que “o que

é” dito.” 49 No texto filosófico o conteúdo é mais importante do que a forma, o discurso

pretende-se transparente. Mas nem sempre é assim. Como já foi dito, os textos

filosóficos aproveitam as formas literárias, assim, algumas obras filosóficas são

inseparáveis das suas propriedades formais. A estas propriedades chamemos estilo.

Todos os textos têm o estilo, também um livro de receitas de cozinha o tem,

portanto, não basta ter estilo para que consideremos um texto qualquer uma obra

literária. Pela razão de que o seu “estilo não faz parte das propriedades exemplificadas

47 D’OREY, op.cit., p. 595. 48 Idem, Ibidem, p. 600. 49 Idem, Ibidem, p. 601.

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pelo texto”.50 Ou seja, no caso do livro de receitas é importante o conteúdo e não o

estilo. Segundo o seu estilo podemos reconhecer que se trata apenas de um livro de

receitas. Não escolhemos a receita que tem o melhor estilo mas a receita cujo conteúdo

convém melhor aos nossos objectivos. No caso das obras filosóficas, algumas têm o

estilo, outras não. “[...] Embora possuam o estilo, não o exibem como uma qualidade a

ter em conta”.51 Portanto, Carmo d’Orey pode dizer que “apenas alguma filosofia,

proporcionalmente pouca, é literatura”.52

Como podemos ver, as opiniões divergem e nenhuma delas é mais ou menos

verdadeira. Queríamos só mostrar que esta discussão existe e não é simples. Ao mesmo

tempo precisámos justificar que o assunto da nossa tese é sempre actual. Concordamos

plenamente com Fernanda Henriques de que a relação entre filosofia e literatura é

horizontal e com todos os que dizem que a filosofia não é superior quanto à importância

das disciplinas. Nenhuma delas é mais importante do que outra. Mas achamos a

filosofia superior no sentido que fica em cima de todas as ciências como falado

anteriormente.

2.3.3. Existencialismo: fusão completa da literatura e filosofia

Foi a hermenêutica filosófica53 a principal responsável que se aproximou da

análise literária e suas teorias e por ter envolvido a filosofia nos temas e problemas da

literatura.54

A hermenêutica, de facto, nasceu (...) da fusão entre exegese bíblica, filologia clássica e jurisprudência. Esta fusão entre várias disciplinas pôde ser operada graças a uma revolução coperniciana que fez passar a questão “o que é o compreender?” antes da questão de sentido de tal ou tal texto ou de tal de tal categoria de textos (sagrados ou profanos, poéticos ou jurídicos).55

50 Idem, Ibidem, p. 602. 51 Idem, Ibidem, p. 602. 52 Idem, Ibidem, p. 603. 53 Utilizamos o termo hermenêutica no sentido que ganhou no século XIX, adoptado por Schleiermacher com um intuito puramente filosófico. Trata-se duma doutrina universal da interpretação. A seguir foi conceptualizada por W. Dilthey, M. Heidegger, H.G. Gadamer e P. Ricœur. Mais em MORÃO, A.: Verbete “Hermenêutica” In Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. II, Lisboa – São Paulo, Verbo, 1990, pp. 1096–1109. 54 PIMENTEL, op.cit., pp. 19 e 21. 55 RICŒUR, Paul: Do Texto à acção (trad. Alcino Cartaxo e Maria Sarabando). Porto, Rés, 1989, pp. 38–39. Ricœur fala do enraizamento fenomenológico da hermenêutica e relembra o famoso círculo hermenêutico entre o sentido (objectivo) de um texto e a sua pré-compreensão por um leitor singular aparecia, então, como um caso particular da conexão a que Husserl, noutras circunstâncias, chamava correlação noético-noemática.

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22

Diálogo entre a literatura e a especulação filosófica é marcante sobretudo na segunda

metade do século XX, embora seja de observar que o pensamento filosófico sempre,

como já pudemos justificar nos capítulos anteriores, usa as formas consideradas típicas

da literatura. Sempre que se fala da literatura filosófica, lembramo-nos do

existencialismo, o que achamos interessante. Este facto está desenvolvido no livro

Literature Considered as Philosophy. The French Example de Everett Knight onde o

autor define o existencialismo como “boa escrita criador”.

Knight formula relação entre a literatura e o existencialismo. O seu ponto de

partida é a afirmação que existencialismo não é ideia, mas sim o movimento. Assim o

existencialismo é mais perto do romantismo, do que do espinozismo ou relativismo, por

exemplo. Foi a literatura, em geral, que mais contribuiu no romantismo, enquanto no

caso do existencialismo foi a filosofia.

Caso seja a afirmação em cima, que o existencialismo é o movimento,

verdadeira, encontraremos a marca disso em todo lugar, em pensamento e em arte.

Devido à esta fusão da filosofia com a literatura, podemos simplesmente dizer que

Sartre, Simone de Beauvoir ou Gabriel Marcel são novelistas ou dramaturgos, mesmo

como os filósofos. Albert Camus no seu Mito de Sísifo escreve exactamente a mesma

coisa: “Já não se contam histórias, cria-se o próprio universo. Os grandes romancistas

são romancistas filósofos”.56 E mais adiante Camus escreve: “O filósofo, mesmo que

seja Kant, é criador. Tem as suas personagens, os seus símbolos e a sua acção

secreta.”57 A literatura fica sob a tutela da filosofia apesar de tentar fazer o contrário.

Mas a questão da tutelagem não é assim tão determinante. A literatura e a filosofia

deviam chegar às mesmas conclusões independentemente uma da outra. Assim, a

literatura devia ser filosofia. Mas, ao mesmo tempo, o fenómeno cultural que acontece

paralelamente, ou quase assim, não pode ser dito de forma independente, uma vez que

são ambos descendentes do clima da opinião produzida numa certa conjuntura da

história humana.58

Ao longo da obra de Albert Camus encontramos a dupla referência

literatura/filosofia. Em Camus, arte e filosofia encontram-se unidas pela sua finalidade

profunda e pela mesma origem. Camus rejeita desde logo a ideia de uma separação

56 CAMUS, Albert: O Mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Lisboa, Edição Livros do Brasil, 1983, p. 125. 57 Idem, Ibidem, p. 124. 58 KNIGHT, Everett W.: Literature Considered as Philosophy. The French Example. New York, Collier Books, 1962, pp. 15–16.

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23

frontal entre Filosofia e Arte e mais especificamente entre Filosofia e Romance: “Quase

escuso de dizer que é o mesmo tormento que leva o homem e essas atitudes (inteligência

e criação). Por isso, de começo, elas coincidem.”59 Merleau-Ponty, por sua vez,

reconhece no romance uma vocação filosófica e metafísica. A tarefa do romancista é

semelhante à tarefa do filósofo que se cumpre sob o método fenomenológico.60 No

pensamento de Camus, porém, a filosofia e a arte não são a mesma coisa. O pensamento

entra na obra de arte mas somente como inteligência ordenadora. Não impera, senão

mataria a riqueza da imaginação criadora.61 “A obra de arte não é um substituto do

discurso filosófico, mas um outro modo de buscar o sentido da existência.”62

Como vimos, o problema tocante à relação entre o discurso filosófico e do

literário é bastante complexo. No entanto, a sua existência permite-nos fazer uma

análise filosófica a partir dos textos literários. Não pretendemos resolver as

preocupações acima mencionadas, mas gostaríamos encontrar os pensamentos

filosóficos nas obras literárias. Explicámos qual é a utilidade da filosofia e mostrámos

que a sua relação com a literatura fica no centro de interesse dos filósofos e dos críticos

literários. Como foi dito, a filosofia aproveita os géneros literários, sobretudo o ensaio.

Nos capítulos seguintes veremos que também o romance pode servir como plataforma

para as ideias filosóficas.

59 CAMUS, op.cit., p. 120. 60 NÜNNING, op.cit., p. 234. 61 GIRÃO, José Manuel: Hermenêutica do Sentido e do Absurdo em Albert Camus. Existência, filosofia e literatura.Coimbra, Universidade de Coimbra, 1992, p. 29. 62 Idem, Ibidem, p. 29.

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3. Influências da filosofia

Para os fins da nossa dissertação de mestrado, que pretende de modo mais

aprofundado analisar o pensamento de Vergílio Ferreira, é indispensável dedicar um

capítulo às correntes que modificaram a filosofia do nosso escritor. Não queríamos,

porém, cair na mera enumeração dos sistemas filosóficos dos vários pensadores.

Portanto analisaremos detalhadamente somente aqueles que influenciaram Vergílio

Ferreira de modo significativo.

3.1. Fenomenologia

3.1.1. Edmund Husserl e Martin Heidegger

A fenomenologia, um dos mais importantes e mais amplos movimentos

filosóficos do século XX, é ligada a Edmund Husserl, o seu fundador.63 À

fenomenologia, no modo mais estrito, pertencem os filósofos influenciados

directamente por Husserl, ou aqueles que participaram na publicação Jahrbuch für

Philosophie und phänomenologische Forschung (Anuário para filosofia e estudo

fenomenológico) que saia entre os anos 1913 e 1930. A fenomenologia baseia-se na

desconfiança nas construções do idealismo especulativo e do neokantismo e exprime-se

contra uso dos métodos científicos relativamente aos problemas filosóficos.64 O

neokantismo, tal como o positivismo, vê a melhor solução em “cientização” da filosofia.

A fenomenologia, sendo sobretudo a crítica gigantesca da ciência actual, quer procurar

as essências das coisas a priori, antes da deformação científica, por meio da redução

fenomenológica. Com o termo epoché Husserl chama o acto “dar tudo em parêntesis”,

ou seja, libertar-se de todos os preconceitos. Resultantes fenómenos disponíveis à nossa

consciência facilitam o conhecimento natural do mundo. Tudo ocorre através da nossa

consciência.

63 Presentemente é a fenomenologia concebida em exclusividade como este movimento do século XX. Mas a origem etimológica desta palavra provém do grego fainomenon e na filosofia de Hegel (Fenomenologia do Espírito) o processo da auto-aparição do espírito absoluto foi chamado também fenomenologia; veja Filosofický slovník. Olomouc, Nakladatelství Olomouc, 2002, p. 119–121. 64 CORETH E. - EHLEN P. - HAEFFNER G. - RICKEN F. (eds.): Filosofie 20. století. 5. díl ediční řady Dějiny filosofie. (trad. B. Horyna). Olomouc, Nakladatelství Olomouc, 2006, p. 13.

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25

A crítica do ego transcendental,65 implantada por Husserl como o sujeito

absoluto (a consciência absoluta) que cumpre os processos fenomenológicos acima

mencionados, foi o ponto de partida da fenomenologia de Heidegger, o discípulo de

Husserl. Heidegger deslocou a redução fenomenológica “para a terra” e fez a

transfiguração de toda a fenomenologia. Heidegger ataca a ideia da consciência absoluta

dizendo que se trata da pura construção teorética e que Husserl não examinava o ser

desta consciência e o ser em geral. Desde Heidegger a questão principal da

fenomenologia constitui-se na interrogação sobre o sentido do ser, e não sobre o estudo

da consciência absoluta como fazia Husserl.

O ente humano caracteriza-se precisamente por se interrogar sobre o seu ser.

Heidegger quer descobrir as condições do ser daquela entidade66 que é, em geral, capaz

de perguntar pelo seu ser, porque sempre o entende dalgum modo. Se não o entendesse,

não poderia perguntar. Aquela entidade que em cada caso questiona e investiga é

denominada por Heidegger o Dasein. O Dasein é a única entidade que existe e existe no

mundo. Temos de ter a possibilidade de passar pela nossa existência, a qual alcançamos

o melhor nas situações-limite. O Dasein é também a única entidade na qual se fundem a

existência com a essência. Outras coisas não existem, mas são (estão). O homem é

lançado ao mundo em que se tem de instalar e sente a preocupação com a sua estadia, a

qual é temporal (por isso O Ser e o Tempo) e é chamada Sorge. O homem é a existência

para a morte e se ele aceitar este facto, o seu ser será autêntico.

3.1.2. Maurice Merleau-Ponty e a fenomenologia da percepção

Entre os pensadores franceses, influenciados pela escola fenomenológica,

Merleau-Ponty é aquele que se apresenta como o mais próximo seguidor de Husserl.

Rejeita, porém, a redução transcendental preconizada pelo filósofo alemão como a

chave que abria o domínio da fenomenologia transcendental. Ambos aceitam

igualmente o primado da percepção face aos outros actos da consciência, como a

imaginação e a recordação.

65 Deveríamos distinguir os termos transcendental e transcendente os quais somente Kant começou a usar no sentido diferente. Transcendental diz-se das formas cognitivas dadas antes da qualquer experiência. Enquanto a expressão transcendente assinala tudo o que ultrapassa os limites da experiência possível. 66 Heidegger repreende à metafísica tradicional que não conseguiu pôr a questão sobre o ser correctamente devido ao desrespeito pela “diferença ontológica” segundo a qual distinguimos a entidade e o ser.

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26

Na obra publicada em 1945, Phénoménologie de la Perception, decreve a

percepção como experiência originária do sentido radicalmente fundamentador, pré-

reflexivo. Sentido em “estado nascente”.67 “Anteriormente a qualquer pretensa

explicação a experiência perceptiva deve ser explicitada e descrita a partir de si

própria.” 68 O percebido não pode ser reduzido a elementos formais ou materiais que lhe

seriam anteriores, como sua condição de possibilidade, mas deve ser estudado tal como

aparece, através da reflexão fenomenológica. Segundo Merleau-Ponty reconhecemos os

fenómenos em si, o que ele chama “o verdadeiro pensar transcendental”. “O fenómeno

do fenómeno” aparece no mundo tal como é.69

Merleau-Ponty recusa a epoché husserliana. O mundo já não é para ele o

conjunto de todos os objectos de experiência possível. “Se posso duvidar de um objecto

determinado isso não significa que possa duvidar do mundo na sua totalidade, porque é

só a partir da minha situação no mundo que tal dúvida é possível.”70 Se o sujeito

perceptivo é já um ser-no-mundo e qualquer acto de consciência se funda em última

análise na consciência perceptiva, então o mundo é horizonte da minha existência. E o

problema de saber como a consciência entra em relação com o mundo não tem sentido.

Tal relação é já sempre pressuposta.71 Para pensador francês, a consciência perceptiva é

sempre uma consciência incarnada num corpo, uma consciência já situada no mundo,

assim é radicalmente um ser-no-mundo. Trata-se do mundo pré-objectivo, do mundo

anterior ao conhecimento e determinação científica. A sua fenomenologia quer

descrever a experiência primordial de nós mesmos e do mundo.

Para Merleau-Ponty o homem é um sujeito votado ao mundo. O corpo próprio e

o mundo natural aparecem em Merleau-Ponty como os pólos duma unidade dramática,

que é, afinal, a própria existência humana. Contudo, o homem não é só corpo. Um

espírito o penetra e o anima, tornando-o um corpo humano.72

O homem e as coisas tão mutuamente se reclamam e exigem que trocam entre si

as intencionalidades próprias e formam como que um sistema de referência e de

complementariedade. “De tal modo, que se queremos descobrir o real tal qual nos

aparece na experiência perceptiva, encontramo-lo carregado de predicados 67 CANTISTA, Maria: Verbete “Merleau-Ponty, Maurice” In Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. III, Lisboa – São Paulo, Verbo, 1999, pp. 818. 68 PAISANA, João: História da Filosofia e Tradição Filosófica. Lisboa, Edições Colibri, 1993, p. 84. 69 CANTISTA, op.cit., p. 819. 70 MERLEAU-PONTY, Maurice: Phénoménologie de la Perception. Apud PAISANA, op.cit., p. 87. 71 PAISANA, op.cit., p. 87. 72 SOUSA, José Antunes de: Vergílio Ferreira e a Filosofia da Sua Obra Literária. Lisboa, Aríon, 2003, p. 150–151.

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antropológicos”.73 As coisas relacionam-se comigo, mas sempre através da mediação

do meu corpo, o que significa que a natureza reclama a presença do ser humano. Trata-

se duma coexistência directa e imediata entre o sujeito e o objecto. O homem polariza-

se com o mundo por um movimento espontâneo e natural e através do seu

comportamento, abre-se ao mundo e às coisas, com as quais partilha a sua existência. A

existência humana define-se e interpreta-se por uma espécie de “apego primordial” que

tem ao mundo.74

3.2. Filosofias da existência

Sob o termo existencialismo, ou filosofia da existência, percebe-se o movimento

que surge a partir da Primeira Guerra Mundial, e que atingiu o apogeu nos anos 40 e 50.

Não se pode, porém, de modo nenhum estudar o existencialismo e a fenomenologia

separadamente, como não é possível omitir os filósofos que muito mais cedo do que no

século XX já começaram ponderar sobre a condição humana. Portanto o título deste

capítulo – Filosofias da existência.

Também não queremos classificar rigorosamente os fenomenólogos como os

fenomenólogos e os filósofos da existência como os filósofos da existência. Fazemos

assim para que o nosso trabalho seja bem organizado, inspirando-se na história da

filosofia. Por exemplo Heidegger, ainda que utilize o conceito existência e em redor

dele estabeleça a sua filosofia, declina ser chamado existencialista, designa a sua

filosofia pela “ontologia fundamental”. Sartre, por sua vez, nunca poderia chegar às

suas conclusões sem ter estudado os sistemas fenomenológicos. E ainda por cima o

existencialismo e a fenomenologia interpenetram-se e misturam-se com a antropologia e

com a filosofia do diálogo.

Nas filosofias de existência é sempre do homem concreto que se trata, sujeito à

morte, nas suas relações com os outros, buscando um sentido para o seu viver. O

existencialismo está ligado, de ponto de vista histórico-cultural, a um certo espírito de

interrogação e angústia, pondo em questão valores religiosos, sociais, ideológicos,

fundamentos da existência humana, em suma, devido ao trauma da Segunda Guerra

73 MERLEAU-PONTY, Maurice: Phénoménologie de la Perception. Apud SOUSA, op.cit., p. 155. 74 SOUSA, op.cit., p. 155.

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Mundial.75 Entre todos os autores desta “corrente” há grandes distâncias, embora

apresentem alguns aspectos relativamente comuns. Em primeiro lugar, todos têm uma

certa aversão à “filosofia das essências”. Em segundo lugar, a existência humana é a

actualidade, o momento presente, a realização de possibilidades que revelam as

qualidades do homem. Em terceiro lugar, o existencialismo considera a existência como

uma forma de ser especificamente humana, só o homem existe, as outras coisas são. As

questões que não podem resolver-se objectivamente, terão de ser colocadas

subjectivamente. O homem tem de utilizar a sua liberdade para se afirmar perante o

mundo.

Semelhante pensamento manifesta-se também no romance, novela, teatro, diário

e mesmo em cinema. Influencia a vida literária e artística, tornando-se uma filosofia da

moda, tal como acontecera no século XVII com o cartesianismo.76

Em Portugal, o existencialismo foi uma tendência na ficção nacional que se

manifestou sobretudo entre finais da década de 40 e finais da década de 50. Podemos

salientar que o principal intérprete e expositor português de filosofia existencial foi

Delfim Santos.77 O que é interessante, o existencialismo niilista de Sartre ou de Camus

teve em Portugal mais reflexos literários do que propriamente filosóficos.78 Além de

Vergílio Ferreira, maior expositor da concepção existencialista, convém nomear

Fernando Namora, Urbano Tavares Rodrigues, Fernanda Botelho ou Augusto Abelaira.

3.2.1. Sören Kierkegaard e Friedrich Nietzsche: precursores do existencialismo

No princípio do século XIX, Hegel, no seu sistema dialéctico de carácter

universal, necessário e determinista, parecia reduzir o homem a ser exclusivamente um

momento evolutivo da ideia absoluta. Contra esse abstraccionismo toma posição Sören

Kierkegaard79, esforçando-se por elaborar o que designa por “pensamento subjectivo”.

O essencial da sua reflexão filosófica é a questão da destinação do homem. Procura

superar o absurdo da existência humana recorrendo à fé. A religiosidade é única forma

de dar verdadeiro sentido ao homem e à sua vida. A existência humana só será

75 Cf. MACHADO, Álvaro Manuel (org.): Dicionário da Literatura Portuguesa. Lisboa, Editorial Presença, 1996, pp. 520–521. 76 MORUJÃO, Alexandre: Verbete “Existencialismo” In Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. II, Lisboa – São Paulo, Verbo, 1990, p. 390. 77 Mais em QUADROS, António: Verbete “Existencialismo e filosofia existencial em Portugal” In Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. II, op.cit., pp. 400–404. 78 Lembremos da relação complicada entre filosofia e literatura que analisámos no capítulo precedente. 79 Devemos salientar que Kierkegaard foi muito traduzido e estudado em Portugal. Cf. Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. II, op.cit, p. 402.

Page 29: A Filosofia Existencial Nos Três Romances de Vergílio Ferreira

29

verdadeiramente autêntica se for relação com Deus.80 A existência humana caracteriza-

se pela solidão radical resultando na angústia e na vida no limite da incerteza, por isso é

a única salvação a crença em Deus que, pela impossibilidade de ser “apanhada”, pode

ser atingida apenas por um “salto”.

Contrariamente a Kierkegaard, Nietzsche afirma que a procura do sentido do

mundo e da vida, fora deste mundo conduziu à negação do mundo e da vida. O homem,

incapaz de enfrentar a realidade única inventa um mundo para onde se pode refugiar.

Este outro mundo chama-se o “mundo do ser”, “a verdadeira realidade”, “o reino de

Deus”. Deus é visto por Nietzsche como o instrumento de crucificação da vida. Em

nome de Deus, a moral cristã declarou guerra aos instintos fundamentais da vida e

valorizou a mortificação do corpo.

Deus é a negação suprema da vida, um contra-senso. Estar à altura da “morte de

Deus” implica colocar a vida acima de qualquer suspeita, de qualquer objecção, preferi-

la a todo e qualquer outro valor. A “morte de Deus” corresponderá à sagração da vida, o

que definirá o novo modelo da humanidade: “o super-homem”. Este devia celebrar e

amar a vida na sua totalidade, não só no que tem de agradável, mas também nos seus

aspectos trágicos.81

3.2.2. Karl Jaspers

No centro do pensamento do filósofo alemão, influenciado por Kierkegaard e

parcialmente pela fenomenologia, surgem três termos importantes: Dasein, Existência e

Transcendência. O Dasein é objectivo, ou objecto do saber próprio das ciências. A

Existência equivale ao Dasein de Heidegger, exprime o homem na sua vida pessoal e

autêntica. A Transcendência refere-se à Divindade, ou Ser Absoluto e atinge-se pela “fé

filosófica”. Jaspers pretende esclarecer a Existência apoiado no Dasein e abrindo-se à

Transcendência. A liberdade, a comunicação e a historicidade são três índices

fundamentais da Existência.

Um dos pontos mais característicos da filosofia de Jaspers é a “fé filosófica”.

Difere da “fé teológica” porque não está baseada em nenhuma revelação ou crença.

Mas, a filosofia não pode prescindir da religião como não pode desprezar as ciências. A

religião, como as ciências, está ao serviço da filosofia, à qual se submete. Como a

80 CARDOSO, Miquel: Notas sobre uma Aparição existencialista. Revista ...à Beira, 1, Outubro 2002, p. 162. 81 Idem, Ibidem, pp. 163–164.

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verdade científica, sem ser negada, é superada na verdade da Existência, também a

religião é superada na filosofia, e a “fé teológica” é um meio para a “fé filosófica”, que

é a mais excelente. Um espírito não preparado para a filosofia adere-se a uma religião.

Mas o verdadeiro filósofo não a necessita porque está numa posição que a ultrapassa.82

3.2.3. Jean-Paul Sartre

Sartre é, sem dúvida, um dos principais fenomenólogos e existencialistas

franceses. O seu pensamento, fortemente influenciado por Hegel, Husserl, Heidegger,

Kierkegaard, Nietzsche e Marx, situa-se na linha do existencialismo ateu. Na sua

bibliografia encontramos romances, ensaios, peças de teatro, textos políticos e trabalhos

filosóficos.

Não é só a obra escrita de Sartre que é profundamente filosófica, mas também a

sua própria postura na vida. Sartre perdeu o pai quando tinha dois anos. Marcado pela

ausência original de um pai, dirige-se a uma época órfã de Deus, propondo-se fazer o

homem. É nisso que o existencialismo é um humanismo. Trata-se de reconhecer que o

homem é o seu próprio futuro.83 Sartre ergue o valor do próprio homem, através do

qual precisamente há valores. Ao primado do indivíduo opõe, por alargamento o

primado do homem.

Segundo Sartre temos de partir da subjectividade, ou por outras palavras, “a

existência precede a essência”.84 Isto quer dizer que todo o existencialismo é um ataque

contra o essencialismo, nega qualquer essência que pudesse exprimir a natureza humana

e que antecedesse a sua existência. Deus, o criador primordial, ou seja, o Logos, não

existe. Por isso não há ninguém quem tenha o conceito da natureza humana em mente.

Conforme Sartre: “[…] o homem primeiramente existe, encontra-se com o mundo,

surge nele e depois se define”.85 O homem é o projecto de si, tem a liberdade absoluta,

é condenado a ela, mas é responsável por aquilo que é e ao mesmo tempo por todos os

homens. O homem não pode escapar à sua total responsabilidade e consequentemente

sente a angústia.

82 Mais em FRAGATA, J: Verbete “Jaspers, Karl” In Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. III, Lisboa – São Paulo, Verbo, 1999, pp. 29–37. 83 REIMÃO, Cassiano: “Apresentação do Colóquio”. In Jean-Paul Sartre, uma Cultura da Alteridade: Filosofia e Literatura/Actas de Colóquio, coord. Cassiano Reimão. Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 2005, p. 11. 84 SARTRE, Jean-Paul: Existencialismus je humanismus (trad. P. Horák). Praha, Vyšehrad, 2004, p. 13; a tradução é nossa: [existence předchází esenci]. 85 Idem, Ibidem, p. 15; a tradução é nossa: [člověk nejprve existuje, setkává se se světem, vynořuje se v něm, a teprve potom sám sebe definuje].

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31

Afinal, se o homem nada é antes de existir e se existir é escolher-se a cada

instante, ele é apenas o que fizer de si e cada escolha é, simultaneamente, realização de

si. Muitos são os homens que não conseguem viver na angústia e procuram escapar

através de diversos comportamentos de fuga à liberdade: a mentira, a ironia e a má-fé.

O existencialismo ateu de Sartre termina, contudo, com um apelo nitidamente

optimista. Segundo ele o existencialismo não é a doutrina trágica como no pensamento

de Kierkegaard ou de Schopenhauer, senão optimista. Cada homem tem o seu destino

nas suas mãos, “[…] a única coisa que facilita ao homem viver é uma acção”.86

3.2.4. Albert Camus

Dos existencialistas contemporâneos, Albert Camus é talvez aquele que mais

influencia Vergílio Ferreira. Para Camus, a condição humana é absurda. O homem

encontra-se confrontado com este mundo mortal e limitado, onde tudo é dado para ser

retirado.

Os seus romances L`Étranger (1942) e La Peste (1942), e particularmente os

seus ensaios Le Mythe de Sysyphe (1947)87 e L`Homme revolté (1951) possuem um

cariz eminentemente filosófico, apesar da sua forma literária.88 O suicídio e o absurdo

são dois temas que se entrelaçam profundamente nas obras deste autor.

O problema central do Mito de Sísifo é saber se a descoberta do absurdo conduz

necessariamente ao suicídio. Para o homem absurdo é o suicídio um problema filosófico

verdadeiramente sério. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é, para o homem

absurdo, a questão fundamental. Camus recusa a opção pelo suicídio. É que, o suicídio

seria a libertação do homem da sua condição absurda. O suicídio seria o limite extremo

da aceitação do absurdo.89

Camus rejeita a separação entre a filosofia e a arte. Entre o criador e o pensador

há uma raiz comum: o absurdo da situação conduz o homem à arte e à filosofia. Através

da obra de arte o homem torna-se mais consciente da sua condição. Tanto a arte como a

filosofia procuram responder às mesmas preocupações existenciais que se deparam no

homem. É por isso que a criação implica lucidez, tal como o pensamento implica

86 Idem, Ibidem, p. 38; a tradução é nossa: [jediná věc, která umožňuje člověku žít, je jednání]. 87 Tradução portuguesa O Mito de Sísifo de ano 1983 com qual trabalhamos é de Urbano Tavares Rodrigues e Ana de Freitas. 88 Cf. RIBEIRO, Henrique: Verbete “Camus, Albert” In Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. I, Lisboa – São Paulo, Verbo, 1997, pp. 823–825. 89 GIRÃO, op.cit., p. 44.

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32

criatividade. “Para que uma obra absurda seja possível, é preciso que o pensamento

sob a sua forma mais lúcida esteja misturado com ela.” 90

Camus com o seu pensamento absurdo afasta-se das filosofias existenciais. A

preocupação essencial do espírito absurdo – permanecer fiel a este mundo – é esquecida

pelas filosofias existenciais. Todas estas filosofias acabaram por se demitir desta

fidelidade, desembocando num caminho muito próximo da atitude mística ou religiosa.

O que se censura no pensamento existencial é o seu intolerável salto metafísico que

Camus designa como “suicídio filosófico”, exactamente o título dum capítulo do Mito

do Sísifo. A afirmação do absurdo é, de certo modo, consequência de conceito de razão.

A razão é o único meio que possuímos de conhecer. O homem absurdo é aquele que

sabe que o seu escasso recurso é a sua razão. Camus mantém-se fiel à razão que entende

finita. O absurdo de Camus não é mais que a razão lúcida que constata os seus limites e

rejeita o “suicídio filosófico”, próprio das filosofias existenciais.

Kierkegaard nega a razão por causa da “inspiração religiosa” Mas,

paradoxalmente, essa negação também pode nascer da própria “ordem racional” o que é

o caso da filosofia de Husserl e especialmente do tema da intencionalidade. O método

husserliano é uma negação da razão clássica. Husserl pretende descobrir a essência de

cada objecto do conhecimento. Assim afasta-se do espírito absurdo e salta para a Razão

Eterna. Em Husserl vemos a racionalização total de universo. Não há, portanto, a

grande diferença entre o filósofo religioso e o filósofo abstracto, o que é caso de

Husserl. Ambos aspiram sempre ao eterno, quer na forma de Deus quer na forma de

razão, e é nisso que dão a salto. A crítica de Camus ao pensamento dito existencial é,

pois, assaz curiosa. Ele critica estas filosofias não por serem existenciais, mas no fundo

por o não serem. O problema de todos estes filósofos foi o de não se terem mantido

solidamente fiéis à concretude deste mundo. Assim Camus seria o mais genuíno dos

pensadores existenciais. A sua aversão ao termo existencialista, corresponderia à

necessidade de demarcação de um rótulo, coisa que por coerência nunca poderia aceitar.

Segundo Camus, o homem não tem dificuldade em reconhecer que pertence ao

tempo. Desejamos o futuro e fazemos projectos. Desejamos o futuro, o que significa

que tendemos para a morte, a qual tememos. E também isto é absurdo. Há momentos

em que julgamos compreender o mundo. Mas o mundo foge-nos e transforma-se

naquilo que é. Camus fala abertamente no sentimento de náusea que também preocupou

90 CAMUS, Albert: O Mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Lisboa, Edição Livros do Brasil, 1983, p. 121.

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Sartre. Esse afastamento do mundo, essa negação de nós próprios em cada coisa, que

nos atira para uma extrema solidão é para ele absurdo. O absurdo camusiano nasce do

confronto entre a consciência e a irracionalidade do mundo. Portanto o homem absurdo

pondera sobre o suicídio que Camus recusa. Rejeita também a atitude de esperança que

aniquila o irracionalismo do mundo.

A única possibilidade é a revolta.91 Só ela respeita os elementos da experiência

absurda. A lucidez da consciência revoltada liberta a consciência da banalidade dos

gestos quotidianos. Um homem quotidiano é um homem anterior à descoberta do

absurdo que vive preocupado com o futuro e acredita na sua liberdade plena. O facto de

viver no futuro impede-o de viver o presente. Um homem absurdo está consciente do

absurdo que se revela, em primeiro lugar, como consciência da morte. Este já não vive

na ilusão de liberdade, para o homem absurdo não existe amanhã. O homem absurdo

ao aceitar – como um Sísifo feliz – o seu destino, o transcende pela liberdade. Trata-se

de uma liberdade limitada. O homem absurdo é livre dentro dos seus limites. Se

aceitarmos a evidência do absurdo, não faz sentido, segundo Camus, desejar viver

melhor, mas enfrentar o mundo o mais frequentemente possível, ou seja, viver o maior

número das experiências possíveis.92

91 No Homem Revoltado de Camus surge uma continuação da reflexão iniciada no Mito do Sísifo onde se trata da relação absurdo – suicídio. No Homem Revoltado aparece a relação revolta – homicídio. O problema da morte e das suas múltiplas formas afirma-se mais uma vez como uma obsessão central da sua obra e elemento indissociável do absurdo. 92 GIRÃO, op.cit., pp. 27–48.

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4. Filosofia em Vergílio Ferreira

4.1. Chegada ao existencialismo

Logo no início deste capítulo queremos frisar duas evidências na vida literária de

Vergílio Ferreira que partilhamos com Hélder Godinho93, um dos maiores críticos da

obra vergiliana. Primeiro, apesar dos primeiros livros de Vergílio Ferreira terem sido

sofrido influências neo-realistas, pode-se ver que um mesmo universo imaginário

percorre toda a sua obra, desde os poemas da adolescência. Isto quer dizer, que em

obras vergilianas muito anteriores ao conhecimento de Sartre ou do existencialismo,

podem-se, facilmente, encontrar afinidades com a temática existencial. Segundo,

durante a sua vida literária, Vergílio Ferreira escreveu, falou, citou muitos autores, mas,

talvez, sobre nenhum tenha escrito ou falado tanto como de Sartre, umas vezes com ele

concordando, outras dele discordando. De resto, em Gouveia, na Biblioteca Municipal,

que hoje se chama “Vergílio Ferreira” está guardada a biblioteca pessoal do autor, onde

podemos consultar as obras de Sartre.

Vergílio Ferreira exprime-se nos vários lugares da sua obra, particularmente nos

seus diários e ensaios, acerca da sua relação ao existencialismo. Não contesta que o

influenciou muito:

[…] tenho tomado sempre como ponto de referência a filosofia existencialista […] foi o existencialismo que me falou mais profundamente. Não podia, portanto, abdicar de mim próprio. Mas termo existencialismo é muito vago. (EA-se, p. 173)

Mas não se sente ser o existencialista sem restrições:

[…]dizer-me existencialista não me agrada, por mil razões, entre elas a de que tal denominação pode englobar alguns aspectos que não me dizem respeito. Fundamentalmente, o que no existencialismo me interessa é o meu interesse pelo homem-problema e o que num domínio profundo se exprime pela interrogação. (EA-se, p. 172)

E pronto. Não gosto que me digam existencialista. Não é por nada. É só porque dizê-lo é investirem-me de uma exterioridade visível e pitoresca que deturpa o lado visível. (CC V, p. 571)

93 Em GODINHO, Hélder: Vergílio Ferreira e Sartre. In Jean-Paul Sartre; Uma Cultura da Alteridade: Filosofia e Literatura/ Actas de Colóquio. Coord. Cassiano Reimão. Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 2005.

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35

Como próprio Ferreira afirma, as suas relações com o existencialismo foram de início

um bocadinho ambíguas:

Hoje começa-se a marcar o aparecimento do existencialismo na Literatura Portuguesa a partir da publicação de um livro meu aparecido em fins de 1949, Mudança. Quando esse livro apareceu, imediatamente alguns críticos […] o ligaram ao existencialismo. Devo dizer-lhe que nessa data, em que já tinha lido o “L`Être et le Néant”, de Sartre, eu estava sobretudo ligado a Hegel. Demorava tempo a explicar-lhe como se pode passar de um Hegel para o existencialismo. Mas passa-se perfeitamente. De resto, hoje Hegel é dado, por M. Ponty, como um dos antecessores do existencialismo. (EA-se, pp. 230–231).

A passagem do neo-realismo para o existencialismo faz-se, pois, em Vergílio

Ferreira através de Hegel, que está na base do marxismo e também do existencialismo.

Ferreira traça o seu percurso literário em Espaço do Invisível II, dizendo que “Kant

estabelece na “Crítica do Juízo” que um artista se descobre através de outro artista.

Começa-se sempre por imitar” (EI II, p. 11). A arte é segundo Ferreira uma recriação

do mundo pela ordenação dos seus específicos elementos. A propósito, recorda a forte

impressão que o primeiro livro que leu de Eça de Queirós lhe deixou:

Mas porque nascia para a literatura com a explosão da guerra (o meu primeiro livro escrevi-o em 1939) as regras do jogo literário não as aprendi bem no Eça mas nos brasileiros. Decerto em Eça marcou-me até à inconsciência disso. […] Toda a minha geração, dita neo-realista, foi com Jorge Amado, Graciliano, Veríssimo, Lins do Rego que se descobriu para a literatura. (EI II, p. 12)

Além de Eça que Ferreira chama “o meu sempre admirado Eça” (EA-se, p. 166) existe

outro escritor de quem Ferreira nunca deixa falar. Sempre menciona que existem dois

escritores de que nunca abdicará. “Os dois escritores que de facto me impulsionaram,

me entusiasmaram e por quem continuo a ter uma grande admiração, foram Eça de

Queirós e o grande Malraux.” (EA-se, p. 166) Naturalmente, não foram só estes dois.

Ferreira não esquece também por exemplo “o grande mestre de todo o romance

contemporâneo” (EA-se, p. 166), Dostoievski, que é, pelas palavras de Ferreira, “o pai,

o avô, o bisavô de todo o romance do século XX” (EA-se, p. 166). E, por altura de

Vagão J:

foi quando descobri Hegel, […] e daí nasceu o meu livro “Mudança”. Singularmente, porém, mas não paradoxalmente, com este meu heterodoxo

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36

hegelianismo, cruzou-se a descoberta do Existencialismo, mormente através de “L`Être et le Néant. E o ponto de união foi a célebre “consciência infeliz” hegeliana, mola de todo o seu pensar. (EI II, pp. 13 e 14)

Como observa Hélder Godinho, Hegel foi a descoberta que pôs Vergílio Ferreira

no caminho que, desde Mudança, nunca mais abandonou e que, cruzado com Sartre, o

levou ao existencialismo. Sartre não foi, porém, como Vergílio Ferreira nos diz, talvez o

mais importante, mas nunca mais Ferreira deixará de com ele se confrontar. As várias

referências que faz a Sartre são, às vezes, contraditórias. Por exemplo:

L`Être et le Néant atingiu-me profundamente. Mas não me mobilizou todo. Aliás, a primeira vez que o li foi com a óptica neo-realista e foi para o repudiar. Reli-o mais tarde […] e vibrei com a inteligência de Sartre ou antes com aquilo que nele é uma locomotiva de pensar. E uma máquina admira-se mas não se ama. (CC II, p. 11)

Alguma coisa semelhante pode-se encontrar em Um Escritor Apresenta-se:

Sartre nunca me estimulou muito. Sartre é uma poderosa locomotiva de pensar, deslumbra pela sua cabeça espantosa. (EA-se, p. 173)

E, mais a seguir:

Um Sartre, sendo dos autores que muito admiro, não é dos que mais me impressionam. À sua arte prefiro de longe a de um Malraux, e à sua filosofia prefiro a de um Jaspers, que como “filosofia” lhe é talvez inferior, mas que lhe é sem dúvida superior como voz de profundeza ou simplesmente voz humana. (EA-se, p. 172)

Em Conta-Corrente III, na morte de Sartre escreve:

Sartre foi sempre para mim um escritor que muito admirei. Mas a afeição passa por outro lado, às vezes por quem lhe é inferior como Camus. (CC III, p. 33)

E, para terminar, algumas citações de Conta-Corrente V:

Mas o existencialismo de Sartre não me influenciou absolutamente em nada, para além de episódicos encontros, sempre, aliás, discutíveis. Heidegger e Jaspers e Hegel e Pascal, por exemplo, disseram-me infinitamente mais do que Sartre. (CC V, p. 87)

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Desde “Mudança” que toda a minha literatura tem que ver com o existencialismo. Mas sendo assim, por força se tem querido descobrir nela o rasto dele, nomeadamente de Sartre. Ora eu só tenho que ver com uma problemática geral, a que não vem codificada em alíneas e parágrafos, a que se define por uma certa posição em face da vida, a que tem menos que ver com Sartre do que com Dostoievski ou Pascal, a que é menos uma filosofia do que um tonalidade de ser. (CC V, p. 571)

Vergílio Ferreira é, às vezes, considerado como o porta-voz do existencialismo

português, porque foi ele quem introduzia o existencialismo na literatura portuguesa, e

foi ele, quem traduzia para a língua portuguesa o ensaio de Sartre O Existencialismo é

um Humanismo, completando-o com o prefácio extenso Da Fenomenologia a Sartre.

Também não se pode esquecer que dedicou um livro ao seu favorito, a Malraux,

Interrogação ao Destino, Malraux. Apesar de tudo isso, ele próprio recusa o rótulo do

porta-voz, explicando que tudo foi uma grande coincidência. É que, a Editora Presença

comprara os direitos de tradução de O Existencialismo É Um Humanismo, de Sartre e

pediram-lhe que alongasse o prefácio para se conseguir um bom volume com um preço

que equilibrasse o tamanho dos direitos pagos (a título de curiosidade, o ensaio de

Sartre tem na tradução portuguesa – 3ª edição, do ano 2004 – 38 páginas, enquanto o

prefácio de Ferreira é de 180 páginas).

A ambivalência em relação a Sartre e ao existencialismo corre através da toda

obra vergiliana. Mas como Ferreira afirma, tudo começou com A Fenomenologia do

Espírito de Hegel e com o L `Être et le Néant de Sartre. E apesar da ambiguidade com

que a Sartre sempre se referiu, não deixou de lhe sublinhar a grandeza e a importância.94

E é só porque ele existe nosso irmão desejável ou indesejável, que à sua voz a ouvimos como nossa. […] Sartre é hoje uma força irrecusável, mais força talvez que a de tantos intelectuais que pessoalmente prefiramos. E ainda que a sua obra se perdesse na demanda do futuro. […] Mas agora é viva, não como centro nominal de convergência, não como indicativo histórico, mas como presença a nós próprios, voz nossa que nos exprime e desencadeia as interrogações que não sabíamos formular. (FS, p. 189)

94 GODINHO, op.cit., p. 244.

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4.2. Pensamento de Vergílio Ferreira

Vergílio Ferreira foi um artista, foi um atento leitor de filósofos e foi também o

filósofo. Como escreve José Antunes Sousa sobre a obra vergiliana: “A arte e a filosofia

gozam de um estatuto de geminidade aparicional e ambas mostram idêntico grau de

indiciação ontológica.”95 Um desejo de transcendência, uma valorização da arte, uma

afeição ao homem e à humanidade, a presença do amor, a defesa ou mesmo a luta pelo

valor da liberdade, a perda da fé, a consciência de ser arremessado a um mundo absurdo

são os leitmotivs que perpassam por toda a obra de Vergílio Ferreira.96

Antes de começarmos a analisar detalhadamente de ponto de vista filosófico os

três romances da sua fase existencial, achamos útil esboçar no texto coerente os pilares

do pensamento vergiliano. É que, Vergílio Ferreira desenvolve o seu pensamento

designadamente nos seus ensaios. A sua obra ficcional serve-lhe, depois, como a

confirmação daquilo já dito, especialmente em Invocação ao Meu Corpo, e em Espaço

do Invisível I – IV.

4.2.1. Essência humana e a redução fenomenológica

Em Espaço do Invisível II, Vergílio Ferreira recusa a célebre definição de Sartre

segundo a qual o existencialismo se caracteriza por ser a existência que precede a

essência, ou seja, que o homem primeiro existe, age, e que de acordo com o que fizer

assim ele é. Não gosta desta definição porque, e de acordo com o que próprio Sartre

pretende, não lhe parece muito válida. Mais correcta, embora vaga, lhe parece a

definição que o mesmo Sartre nos frisa que todos os existencialismos se unificam por

admitirem que temos de partir da subjectividade. Vergílio Ferreira propõe a definição

seguinte: “o existencialismo é a corrente de pensamento que, regressada ao existente

humano, a ele privilegia e dele parte para todo o ulterior questionar” (EI II, p. 47). Ou

então, e paralelamente ou implicitamente a essa definição, preferia dizer que “o

existencialismo é uma corrente de pensamento que reabsorve no próprio EU de cada

um toda e qualquer problemática e a revê através do seu raciocinar pessoal ou

preferentemente da sua profunda vivência.” (EI II, p. 47). Nenhum questionar portanto

95 SOUSA, José Antunes de: Vergílio Ferreira In CALAFATE, Pedro (dir.): História do Pensamento Filosófico Português. Vol. V, Tomo I. Lisboa, Caminho, 2000, p. 435. 96 Cf. QUADROS, op.cit., pp. 518–520.

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se estabelece em abstracto, de fora para dentro, mas antes se retoma a partir da nossa

dimensão original, ou seja, verdadeiramente, de dentro para fora.

Para Vergílio Ferreira a realidade existe porque o homem está aí para a captar e

enquanto ele está. Esta conotação antropológica tem como ponto de partida, não só a

realidade do sujeito que pensa, mas a anterioridade da sua existência a todo o pensar.

Ferreira transforma a afirmação de Descartes. Já não é “penso, logo existo”, mas o

“existo, logo penso”. O existir, o sentir que se existe, é anterior a qualquer pensar. “O

antes de todos os antes é a emergência do EU, esse EU de que Vergílio Ferreira tem

uma agudíssima consciência e que é o pressuposto de qualquer pensamento posterior

(sem qualquer minimização do pensamento).97

A metafísica moderna fisicalizou-se, positivou-se, ao hipertrofiar a essência,

sede única da verdade. Assim se estabeleceu, segundo Merleau-Ponty, uma oposição

radical entre “o facto cego e a essência transparente, entre um sujeito absolutamente

constituinte, e um objecto plenamente construído”.98 A ciência moderna é guiada por

uma epistemologia que “quer saber para dominar”. A denúncia de um pseudo-absoluto,

neutralizador do sentido irredutível do eu vivo, é o pano de fundo do discurso

vergiliano.99 Coerente com a matriz filosófica, Vergílio Ferreira aplica-se zelosamente

na redução transcendental.

Há duas zonas no homem que são a das origens e da concretização, a do indizível e a do dizível, a do absoluto e a da redutibilidade. O mundo em que nos movemos é o da realidade imediata onde nos é possível o localizável, o referenciável, o convertível e explicável. Mas o que se explica e referencia e localiza tem a sua identificação última, a sua legitimidade, no que já não pode legitimar-se ou identificar-se senão como a categórica e pura verdade de se ser, a indiscutibilidade do que se é que frequentemente […] nós traduzimos pela fórmula quase desesperada do “porque sim.” (IC, pp. 101–102)

A verdadeira redução fenomenológica, a suspensão do juízo, desemboca no ser-no-

mundo heideggeriano, no corpo-próprio pontyano, ou no eu-corpo vergiliano. Desta

suspensão fenomenológica do mundo fica a subjectividade corpórea do EU que se vê no

seu próprio estar sendo. Como observa José Antunes de Sousa100, dessa epoché

97 CARDOSO, op.cit., p. 172. 98 CANTISTA, Maria: Filosofia, Hoje: Ecos no Pensamento Português. Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1993, p. 283. 99 Idem, Ibidem, p. 284. 100 SOUSA: 2000, op.cit., p. 437.

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existencial que desontologiza o real objectual surge, na sua trágica solidão, o sujeito

fundante e absoluto que se dá num clima de oblíqua a ambígua com-vivência mundana:

O mundo existe como projecção do nosso corpo, como o necessário termo de uma apetência, como o objecto que a luz busca para que essa mesma luz exista. (IC, p. 261)

Nós somos o nosso corpo. Aqui surge uma certa ambiguidade. O nosso EU é eterno no

mais profundo e íntimo de nós, mas é o corpo que contraria esse desígnio:

Na profundidade de nós o nosso “eu” é eterno, e todavia é justamente o corpo que nos contesta a eternidade. (IC, p. 257)

A redução transcendental, de perfil existencial, desemboca, pois, na subjectividade

corpórea como autêntico começo, realidade do sentido auroral, enraizamento sensível

do inteligível”.101

4.2.2. Absurdo humano

Além da questão do homem existe no pensamento vergiliano outra questão

muito importante. É questão de Deus. Em redor delas cristaliza-se todo o discurso de

Vergílio Ferreira. A sua concepção da suprema dignidade do homem condiciona a sua

concepção de Deus. A relação entre Deus e o homem não deixa de se pôr em termos de

conflito. Deus constitui a grande ameaça para a liberdade e dignidade do homem. O

homem não se contenta com declarar a “morte” de Deus, vai mais longe. Substitui Deus

pelo homem. A liberdade humana retoma a Deus o que lhe pertence. Na antropologia

vergiliana, a imensa dignidade do homem lhe vem essencialmente de ser livre, de poder

dispor de si e de ter conhecimento disso. O homem é o único ser livre no mundo.102 Mas

esta liberdade parece pela primeira vista não absoluta.

O homem vive sempre num drama. Como aponta José Antunes de Sousa, é

como se o homem vergiliano se realizasse apenas no destino de desejar realizar-se. O

homem realiza-se no acto de sonhar, mas não na concretização do sonho que sonha.

Assim surge o drama humano. Cada um experimenta realizar-se, mesmo sabendo que o

101 CANTISTA: 1993, op.cit., p. 286. 102 CARDOSO, op.cit., p. 172.

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não poderá nunca conseguir devido ao desconforto da “infinitude limitada”, ou seja da

morte.

Ferreira afirma, que mesmo assim, o homem é absolutamente livre: “Cada

homem escolhe-se na obscuridade de si e em face do que a sua hora lhe oferece.” (IC,

p. 118). Mas é ele sempre e só ele que escolhe e se obriga nessa escolha que é a escolha

que corresponde à pessoa que é.103 “O que escolho é o que sou. Mas o que sou é

indiscutível.” (IC, p. 131) “O humanismo é assim o valor da plena realização de nós –

é assim um “conceito-limite” como o é o da liberdade.” (IC, p. 333). Ao humanismo

vergiliano liga-se também a questão de verdade. Ferreira nega uma Verdade

transcendente e universal, mas “não aceita ficar de mãos a abanar e transcendentaliza

a necessidade dessa verdade no absoluto necessário do ser pessoal”.104

O homem moderno não vive em vista da morte. Sabemos que temos de morrer,

mas vivemos como se não fossemos morrer. Só através desta recusa da morte o homem

consegue continuar a agir seriamente e a dedicar ás suas acções a importância que lhes

dedica. A vida não é aniquilada pela presença da morte, pelo contrário. A morte é o que

há de mais próximo à vida. A morte serve para me fazer pensar sobre a vida. O saber da

morte apenas nos surge de quando em quando, nas situações-limite. É sempre o outro

que morre. O EU nunca morre “para si”, morre sempre para os outros. O EU não

testemunha o acto de morrer pessoal. Nunca coexistimos com a nossa morte, morremos

mas nunca estamos mortos.105 A morte não se espera, ela simplesmente acontece. Neste

facto consiste o absurdo das nossas vidas. Sabemos que temos que morrer, mas não

sabemos quando. A nossa morte surpreende-nos. O determinismo em que estamos

colocados torna-se mais fácil de compreender na velhice. Mesma coisa acontece com a

ideia de liberdade. As possibilidades do futuro diminuem e o homem torna-se menos

livre.

Vergílio Ferreira procura a adequar a vida, que é um pleno de ser, um absoluto,

uma positividade necessária, com a morte, que é uma nulidade integral, uma pura

ausência, um nada-nada. Ferreira decreta a aporia de absolutizar a inutilidade da vida

perante a inevitabilidade da morte. Se é absurda a vida individual, condenada

irremediavelmente, podia ser que fosse libertação o suicídio, mas bem pelo contrário. O

103 SOUSA: 2000, op.cit., p. 441. 104 Idem, Ibidem, p. 443. 105 CARDOSO, op.cit., p. 180.

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suicídio é recusado pelo Vergílio Ferreira.106 A questão do suicídio relaciona-se

intimamente com a questão do sentido da vida.

Os pilares do pensamento vergiliano esboçados neste capítulo aumentaremos nos

capítulos que se seguem. Transferi-los-emos na prática, analisando os três romances da

sua fase existencial.

106 SOUSA: 2000, op.cit., pp. 448–449.

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5. A temática das obras analisadas

Mas a força maior vinha-lhe, sim, da plenitude

do acto da criação. Por isso a arte fora para

ele sempre uma necessidade de viver.

Vergílio Ferreira: Cântico Final

5.1. Cântico Final107

5.1.1. A ligação com o Absoluto através da Arte

A concentração na actividade artística, o valor indispensável à justificação da

existência, é o leitmotiv do romance que apesar de ter sido publicado um ano depois de

Aparição, predeterminou a problemática principal que se vai revelar no romance que

analisaremos a seguir. É que, Vergílio Ferreira escreveu Cântico Final108 já no ano

1956.

Como Alberto Soares, o protagonista principal de Aparição, escreve para ser,

Mário, o pintor de Cântico Final pinta pelo mesmo motivo: “Eu pinto para estar vivo.”

(CF, p. 161) Na expressão artística une-se experiência e projecto num tempo único de

fixação.109 Cântico Final parece mesmo representar um esboço de Aparição, quer na

estruturação das personagens principais, quer na problemática que as atinge. Durante a

leitura assalta-nos a ideia pôr o sinal de igualdade, além das personagens principais,

também designadamente entre as três personagens femininas. Assim Elsa de Cântico

Final com quem Mário vive uma história amorosa, evoca a personagem de Sofia de

Aparição, Guida faz lembrar a figura de Ana e Paula pela sua vocação à arte é parecida

com pequena Cristina de Aparição.

Todos os romances que vamos analisar começam com a evidência da morte.

Assim também inicia Cântico Final. Logo no primeiro capítulo Mário, pintor e

professor de desenho num liceu da Guarda, recebe a notícia sobre a morte da mãe. Dias

107 O nome original de romance Corpo da Alegria foi posteriormente substituído por Cântico Final, provavelmente foi por causa da construção da obra em função do tempo. O título aponta a temática ligada ao passado. 108 Cântico Final foi o primeiro romance de Vergílio Ferreira levado ao cinema, com realização de Manuel Guimarães e estreado em 1974. Posteriormente foi Manhã Submersa do director Lauro António. 109 FIALHO, Maria do Céu: Homem “Paixão Inútil” na Aparição de Vergílio Ferreira. In GODINHO, Helder (org.): Estudos sobre Vergílio Ferreira. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1982, p. 49.

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depois também o seu pai morre. Mário vai para Lisboa, onde já estivera, e refaz as suas

relações com um grupo de artistas: romancista Matos, pintor Armando, médicos

Cipriano e Félix, Paula - pianista e mulher de Cipriano, advogado Rebelo com a sua

mulher Guida que é escritora. As reuniões regulares na casa de Cipriano onde se fala

sobretudo da arte, da política e questões sociais, frequentam também os outros como

Carlos Mira, contista sem sucesso que publicou só um conto, cuja alcunha é Mira-

Adamastor, e “detestável” Cidália, escritora.

Nos serões, Mário desenvolve as suas preocupações metafísicas acerca da

evidência da morte e condição do homem e da presença de si a si próprio, preocupações

que vão constituir a problemática central de Aparição. Em certos capítulos, as

personagens permanecem em longas discussões o que quase transforma o romance em

ensaio filosófico. Mário apercebe-se que discutir as questões graves é muito diferente de

vivê-las, problematizá-las a partir de si, ser o sujeito delas. É isso que o inquieta.110

“Não defendo a morte. Defendo a vida […]a vida é um prodígio enorme. Devo

defender o milagre até onde puder!” (CF, p. 45), responde Mário a Félix que proclama

que todos temos de morrer. Em Cântico Final é também acentuado o facto da ausência

do divino, o facto que se vai confirmar nos romances seguintes. Mário confessa-se

materialista, faz da arte a sua divinidade e defende o princípio da santidade sem Deus:

“Sou materialista! Mas o meu materialismo não fala só de pedras.” (CF, p. 130)

Mais importante do que o problema religioso é a perspectiva da arte como valor

justificável da existência humana. O romancista preocupa-se com a associação dos

interesses das suas personagens com outras artes, ligando a literatura com outras

manifestações artísticas. Em Cântico Final é a pintura e a dança que têm grande

importância, enquanto em Aparição será a música que vai comover a personagem

principal.

Numa das reuniões Paula prepara a surpresa: toca piano, enquanto a sua irmã

Elsa dança. Deste modo Mário conhece a bailarina, a qual, a seguir, vai pintar e com

quem vai viver a emoção amorosa. Elsa depois desaparece sem aviso qualquer.

Mário chega a saber que vai morrer muito em breve, com um cancro no

estômago. Mário antes tinha consciência que o homem é um ser-para-a-morte, mas uma

coisa é saber-se a morte, dum saber vago, outra coisa muito diferente é saber-se que se

110 JÚLIO, M. J. Nobre.: O Discurso de Vergílio Ferreira como Questionação de Deus. Lisboa, Edições Colibri, 1996, p. 55.

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morrerá muito em breve.111 Mário portanto regressa ao seu espaço original, à sua aldeia

na Serra da Estrela (esse regresso e a vida depois constituem um plano narrativo escrito

em itálico) e sente-se fascinado pela velha e abandonada capela da Senhora da Noite,

que ele conhece desde a infância. Como última tarefa da sua vida, como acto (cântico)

final, apesar de ser o ateu, decide comprá-la e quer restaurá-la. Segundo José Luís

Gavilanes Laso, a tentativa de reconstrução e decoração de uma capela deve interpretar-

se em termos de projecto. Com o seu projecto final Mário pode superar os seus

projectos anteriores como profissional do ensino, como amante e como pintor.112

“Qualquer reconstrução é um acto de rebelião contra o que está em ruínas.”113 Neste

acto material simboliza-se outro tipo de rebelião espiritual.

Mário via no ateísmo a condição de arte religiosa114. Paradoxalmente, sendo

ateu, sente o impulso de decorar a capela tal como fizeram outros artistas, como

Matisse, Goya, Chagal e outros. Mário pretende fazer da arte um absoluto. Portanto, na

parede do fundo, no lugar do altar, onde haveria de estar a Senhora da Noite, passa a ter

a face de Elsa. Mário assim junta a arte à mulher e à religião. Graças à arte consegue

unir a mulher ausente e a Ordem Universal. A morte é aqui substituída pela arte. Mário

assim cumpre a essência do humanismo vergiliano, mais patente em Aparição, de

colocar o homem nos aposentos divinos, porque Deus morreu. Em O Homem

Revoltado, Albert Camus escreve que o homem deve ocupar o lugar de Deus, em

consequência da revolução metafísica que é a continuação da revolução humana.

Para Vergílio Ferreira o ser artista determina a maneira mais autêntica de

assumir uma condição humana no tempo de Deus morto. “A arte torna-se religião e o

artista é um sacerdote.”115 Esta posição vergiliana coincide com a interpretação de

Heidegger segundo qual o pensador diz o Ser e o artista nomeia o Sagrado.116

Ao final do romance, depois da morte de Mário, todos os seus amigos vão para

aldeia de Mário a fazer algumas reconstruções da capela. A última imagem evoca a

vitória da arte. O filho de Cidália, cujo pai não é durante a leitura evidente – hesita entre

111 Idem, Ibidem, p. 56. 112 GAVILANES LASO, José L.: Vergílio Ferreira: Espaço Simbólico e Metafísico (trad. António José Massano). Lisboa, D. Quixote, 1989, p. 178. 113 Idem, Ibidem, p. 180. 114 “A aproximação de arte e religião remonta à antiguidade e, concretamente, às doutrinas platónicas sobre a inspiração divina dos poetas. Essa teoria é incorporada nas culturas da Idade Média como um dos muitos lugares comuns da época e incorpora-se nas poéticas neoplatónicas do Renascimento.” CURTIUS, Ernst Robert apud GAVILANES LASO, op.cit., p. 191. 115 GAVILANES LASO, op.cit., p. 187. 116 Idem, Ibidem, p. 188.

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Félix e Mário – confirma a sua origem, exigindo lápis e papel e gastando “horas a

reduzir o seu pequeno mundo à invenção de um “outro” mundo que o habitava, o

fascinava e só ele entendia...” (CF, p. 243)

5.1.2. A narração heterodiegética e híbrida

Cântico Final estrutura-se numa dualidade de planos narrativos, um que se

ocupa da narração do passado (a letra redonda) e o outro, referente à situação presente

(escrito em itálico). O plano de tempo referente ao passado tem uma justificação directa,

aparece como recordação expressa. A obra inicia pelo presente, é quando Mário

apercebendo-se da sua doença mortal, regressa à sua casa:

Por uma manhã breve de Dezembro, um homem subia de automóvel uma estrada de montanha. Manhã fina, linear. O homem parou um pouco, enquanto o motor arrefecia, e olhou em volta, fatigado. Aqui estou. Regressado de tudo. (CF, p. 9)

Logo na segunda página torna-se evidente que o sujeito vai cair na sua memória:

“Frente à velha casa, no automóvel parado, o homem recordava. Há quantos anos?”

(CF, p. 10) E imediatamente o narrador passa ao plano do passado, demarcado por uma

limitação de parágrafo. O passado vai constituir o verdadeiro corpo da narrativa. Maria

Alzira Seixo tenta justificar a escolha do autor acerca do tipo das letras, redondo e

itálico, dizendo que o plano do presente tem o carácter onírico, até separativo da vida

objectiva. O actual é quase um sonho porque é desesperado e considerado como uma

espécie de repouso final e um limite de toda a existência (Cântico Final).117 Os dois

planos alteram-se, evoluem paralelamente até a fusão final, causada pela morte de

Mário.

O tipo da narração difere dos restantes romances que analisaremos. Enquanto os

narradores de Aparição e de Estrela Polar são autodiegéticos, em Cântico Final

depara-se com o narrador heterodiegético. O narrador não descreve a história de fora, da

incursão extradiegética, mas aproxima-se o mais possível daquilo que chamamos a

focalização interna. O narrador não é personagem da diegese, mas narra do ponto de

vista de Mário. E abertamente aproxima-se de próprio Vergílio Ferreira. Essa ligação ao

autor é mais patente em Aparição, onde aparece o narrador-personagem-autor. Mas a

117 SEIXO, Maria Alzira: Para um Estudo da Expressão do Tempo no Romance Português Contemporâneo. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987, p. 125.

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narração heterodiegética é frequentemente interrompida pela invasão de Mário que

utiliza a primeira pessoa: “Velha casa. Velha gente. E eu só, aqui erguido com a minha

interrogação inútil.” (CF, p. 26) Ou segunda pessoa, nos casos de interpelação:

“Cidália. Que imagem de ti persegues tu na vida, com […]o teu eterno livro debaixo do

braço?” (CF, p. 101) Esta atitude deriva da forte emotividade que comove a

personagem central. Nos romances que analisaremos a seguir essa intenção aparecerá

mais nítida.

A minha vida é eterna porque é só a presença

dela a si própria, é a sua evidente necessidade.

Vergílio Ferreira: Aparição

5.2. Aparição

5.2.1. A busca da presença do EU

“Vivemos normalmente à superfície de nós. A presença de nós a nós próprios

tem algo extraordinário, de miraculoso. Assim, Aparição surgiu-me como a

necessidade de abordar e de fixar o que há de novo e perturbante nesse encontro com a

pessoa que nos habita.” (EA-se, p. 223). Com estas palavras Vergílio Ferreira justifica

a sua escolha acerca do tema do romance Aparição. O romance desenvolve a pergunta

sobre como pode o homem suportar a evidência da sua condição, sobre como

responder-lhe. Segundo Vergílio Ferreira temos de reconhecer o que somos e reabsorver

hoje, ou amanhã, ou um dia em plenitude, o que se transpôs outrora a uma dimensão

divina em que já não acreditamos.

A história começa com a chegada da personagem principal, Alberto Soares, que

é, ao mesmo tempo, o narrador da história, a Évora onde desempenha o cargo do

professor liceal. Quase num início vimos a saber que o pai de Alberto está morto e

Alberto não consegue libertar-se das suas lembranças através das quais o leitor é

transferido à aldeia natal de Alberto no tempo de Setembro quando o seu pai morreu. A

história desenrola-se em Évora, mas as recordações de Alberto são tão fortes que, lendo

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48

a história de Évora, somos de vez em quando subitamente envolvidos na acção da terra

natal.118

Depois do encontro com o doutor Moura, o ex-colega de estudos do pai de

Alberto, Alberto começa-se a relacionar com toda a família da burguesia do Dr. Moura

cujos membros importantes são os seguintes: três filhas de Moura – Ana, Sofia e

Cristina, Alfredo – marido de Ana, o engenheiro Chico, amigo do Dr. Moura, e o seu

primo Carolino, alcunhado Bexiguinha, que será o aluno de Alberto. Sua presença e

suas inquietações metafísicas119 conturbam os membros desta família e as pessoas do

seu relacionamento. Os pontos de vista das outras personagens são assumidos pelo da

personagem central, Alberto, que os elabora e depura. Porque é o tempo do herói que

realmente se manifesta na narrativa. As restantes personagens aparecem-nos sem um

tempo específico, porque vivem “em função da visão que delas tem o protagonista,

porque uma primeira pessoa está connosco e as terceiras pessoas que existem em

função dessa primeira só chegam até nós através dela.” 120

O pensamento de Alberto discorre em permanente interrogação sobre o seu EU

(=Sein, em termos heideggerianos), aquele que se oculta sob a forma do existente

(=Dasein), e cuja verdade autêntica só é alcançada numa súbita aparição, nunca

apreendida pelo conhecimento lógico-discursivo, mas pelo conhecimento intuitivo-

emotivo.121 Aparição não provém de uma fonte racional, mas irracional, como afirma

Vergílio Ferreira já no curto ensaio Carta ao Futuro, publicado um ano antes de

Aparição. Aliás, é neste ensaio, onde se fala pela primeira vez sobre o conceito de

aparição. “A luz que ilumina o estarmos sendo é intransmissível como o sentirmo-nos a

viver. Que ninguém nos demonstre a nossa verdade ou erro: não se demonstra o ser

pedra uma pedra, o ser estrela uma estrela.” (CFut, p. 50).

Como observa Beatriz Berrini, Alberto aproxima-se daqueles que já tiveram

alguma vez aparição do EU a si próprios, daqueles que têm a consciência do milagre da

vida e do silêncio da morte. E afasta-se dos que negam o mistério e absurdo, dos que se

refugiam na fé, dos tolos.122 Alberto dá aulas particulares a Sofia para que ela resolva as

118 A terra natal pertence entre os leitmotivs da obra vergiliana. No Aparição é representada por Tomás, o irmão mais velho do protagonista. 119 Aqui pode-se notar uma das diferenças principais entre Alberto e Adalberto, a personagem central de Estrela Polar. Enquanto Alberto fala dos seus pensamentos com os outros, no caso de Adalberto não é assim. É que, quase ninguém se interessa pelas suas inquietações, além das conversas curtas com o pintor Garcia. 120 SEIXO, op.cit., p. 130. 121 GAVILANES LASO, op.cit., p. 213. 122 BERRINI, Beatriz: “Aparição” de Vergílio Ferreira, Breve estudo. In GODINHO, op.cit., p. 75.

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suas dificuldades na escola. Para o leitor, alguma coisa incompreensível estabelece-se

entre eles.

Durante as férias natalícias, Alberto vai para a sua aldeia onde se trata da

partilha dos bens paternos entre os três irmãos. O papel significativo cabe ao seu irmão

Tomás com quem faz a discussão sobre o assunto que o inquieta – o sentido da

existência da vida e da morte. Quando volta a Évora, algumas coisas têm mudado.

Sofia agora namora com Carolino. E, com o andar do tempo, Alberto começa a sentir

que pouco a pouco perde interesse pela família do Dr. Moura. Isto parece evidente

porque ele tenta convencer os outros em seu redor da sua verdade, impõe as suas ideias

de uma forma violenta, fatigando às vezes até o leitor. Ele quer encontrar as respostas às

suas questões com tanto empenho que mesmo nas suas aulas no Liceu fala sobre a

experiência da aparição de si a si próprio.

Num acidente de automóvel, acontecido no dia do Carnaval, a pequena Cristina,

que desempenha o papel da criança que toca piano, representando arte e parecendo não

pertencer ao mundo terreno, sofre uma ferida de morte e a seguir com efeito morre num

hospital. A morte de Cristina foi traumática principalmente para a sua irmã mais velha,

Ana, que não podendo ter filhos, via na sua irmã uma espécie de filha (e provavelmente

por isso Ana e Alfredo decidir-se-ão pela adopção dos dois filhos do homem que se

enforcou por não ter mais a mão direita apta para semear).

Depois da morte de Cristina, Alberto esteve durante algumas semanas sem ver

ninguém da família do Dr. Moura. Alberto aluga uma casa no alto de São Bento onde

passa tempo nas suas meditações. O tema da solidão, não sendo notável só no Aparição,

não é concebido no sentido proclamado por Kierkegaard, mas aproxima-se da doutrina

heideggeriana. A solidão figura como a condição para que o homem possa apreender o

seu “EU”.

Os ciúmes de Carolino entretanto alcançaram o clímax: revela-se sinistro e hostil

em relação ao professor, tenta matá-lo, mas finalmente assassina Sofia porque não pode

tê-la de outra maneira.

Toda essa situação força Alberto a deixar Évora e ir para o Faro. Qualquer dos

romances de Vergílio Ferreira termina nos prolegómenos de uma sabedoria que é a

reconciliação, sem quaisquer ilusões, do homem com o seu destino. No final de

Aparição, Alberto submete-se à evidência da sua condição, abandona-se “ao anúncio de

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alguém numa porta que se abre” e o amor humano recria um momento novo onde

passado, presente e futuro coincidem.123

5.2.2. O narrador-personagem-autor

Como já mencionámos, o romance desenrola-se através do narrador

autodiegético. Mas o género da narração é pouco mais complicado. Desde o início

sabemos que o narrador-personagem é também idêntico com o escritor do romance, isto

quer dizer que foi o próprio Alberto Soares quem escreveu este romance. O narrador

relata a sua própria história num contexto distante daquele em que os factos narrados

foram vividos. As primeiras palavras do romance são:

Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de Verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. (AP, p. 7)

A mesma frase repete-se no final:

Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de fim de Verão entra pela varanda, lava o soalho numa pureza irreal, anterior à minha humanidade e onde, no entanto, sinto presente uma parte de mim. (AP, p. 255)

Esta presença cíclica é uma estratégia vergiliana, como veremos também em Estrela

Polar. O início e o final do romance distinguem-se também pelo tipo de letra, o itálico,

que os separa da narração que começa no primeiro capítulo. É que, O romance Aparição

está dividido em dois planos temporais. O tempo da narração, ou seja, a situação própria

do narrador (neste sentido do escritor), sempre caracterizado pelo isolamento, pelo

silêncio, é ancorado no presente. Por outro lado, o tempo narrado, protagonizado pelo

narrador-personagem, ocorre no passado que se abre através da memória de Alberto.

Podemos aqui notar uma certa evolução do romance Cântico Final: a utilização

do presente verbal. Já em Cântico Final o presente aflorava, mas o seu emprego tinha o

carácter de uma fuga à norma, tal como as intromissões da primeira pessoa no discurso.

Outra novidade consiste precisamente no aparecimento da primeira pessoa narrativa.

Utilização da primeira pessoa irá ser adoptada nos romances posteriormente publicados,

denunciando assim que esta técnica se afigurou justa para a expressão de uma intenção.

123 BRÉCHON, R. Dois textos sobre Vergílio Ferreira: 1. A metafísica do corpo; 2. Um humanismo trágico. Colóquio/Letras, 123-124, Janeiro-Junho 1992, pp. 352–353.

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Essa intenção liga-se a um desejo de emprestar à obra uma vivacidade que, ao contacto

com o leitor, o convença de que ela existe por si própria. “O romance desvalorizou a

narrativa de personagens para adoptar a presença de uma pessoa, precisamente a do

autor.”124 Como consigna justamente Maria Alzira Seixo, a exigência de participação

do leitor na obra e que neste caso o uso da primeira pessoa liga-se em geral à realização

dos romances mais directamente ligados à corrente existencialista.125

Mas eu quero mais: a minha presença em alguém,

a minha duração em alguém... Estamos todos cheios

do nosso dom. Mas não se é rico numa ilha solitária.

Vergílio Ferreira: Estrela Polar

5.3. Estrela Polar

5.3.1. Como ser eu nos outros?

“Como é que estabelecemos uma relação com alguém? Que é que define e

identifica esse alguém?A que é que de uma pessoa nos dirigimos? (CC III, p. 218) O

romance Estrela Polar fala disso. “Estrela Polar […] continua de algum modo

Aparição. Pretendi nele acentuar o assalto ao que tenho designado por pessoas,

tematizando fundamentalmente o problema da comunhão” (EA-se, p. 239), afirma o

autor. Apesar de Estrela Polar prolongar de certo modo a temática de Aparição,

segundo Vergílio Ferreira é este romance melhor do que Aparição:

[…] esse meu pobre livro mal-amado. Livro “enigmático”, por isso mesmo ou apesar disso, penso que um dia terá talvez mais interesse que Aparição. (CC II, p. 57)

Tenho um livro mal-amado por quase toda a gente. Chama-se Estrela Polar. Ora bem, é um bom livro, de boa arquitectura e melhor escrita que Aparição. (CC IV, p. 257)

No outro lugar até avalia: “esse é o meu livro mais importante” (EA-se, p. 242).

124 SEIXO, op.cit., p. 127. 125 Idem, Ibidem, p. 127.

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Adalberto, o protagonista e narrador autodiegético, recebendo a notícia sobre a

doença da mãe, regressa às suas origens, a Penalva. Logo depois da morte da mãe, o seu

pai também morre e Adalberto fica em Penalva com a livraria que era dos seus pais. Na

livraria trabalha como empregada Aida, com qual Adalberto inicia a relação amorosa e

através dela quer procurar a essência do TU. Em breve, Adalberto conhece Alda, a irmã

gémea de Aida, extraordinariamente parecida com ela. A existência das gémeas é,

porém, desde o início posta em causa. Quando Faustino, empregado da livraria, explica

a Adalberto a história familiar da Aida/Alda, dá assim o começo à hesitação do herói:

Aida e Alda são irmãs gémeas, filhas do senhor Sousa e de D. Aura. Mas há quem diga que não, que Alda é filha de uma irmã gémea de D. Aura, uma D. Alma, que teve aquela filha quando era solteira e que D. Aura, para dignificar a irmã, a recolhera como irmã gémea de Aida, por terem ambas nascido no mesmo dia. Mas também se diz que nem sequer a filha do senhor Sousa é filha do senhor Sousa. (EP, p. 50)

Adalberto não consegue distinguir uma da outra, estabelecendo-se certa confusão, que o

leva, às vezes, trocar Aida por Alda. Uma espécie de jogo entre os três permite a

Adalberto relacionar-se com as duas irmãs ao mesmo tempo, sem saber com qual delas

está. Mas é forçado as reconhecer, que Emílio, o médico e o seu amigo, as distingue,

apaixonando por Alda:

- A Alda está aqui? – perguntei abruptamente, absurdamente, estupidamente. Emílio pôs-se sério, lutando evidentemente contra a força que lhe apagava o sorriso: - Está, está. Está aí para dentro. - Mas tens a certeza de que é ela? - Se tenho a certeza? Eh! eh! Então não havia de ter certeza? - Não a confundes nunca com a irmã? Emílio corou um pouco ou isso me pareceu por vê-lo um pouco perturbado. Conseguiu todavia recompor-se, ou assim o julguei, talvez por se ter recostado de novo: - Bom, bom. Tu sabes que a irmã é mais bonita... (EP, pp. 190–191)

Sucessivamente, a paixão de Adalberto desloca-se de Aida para Alda,

simplesmente porque Aida se lhe gastou (o conceito típico vergiliano), embora ele

continue sem saber distinguir uma da outra. Além de Emílio, no romance aparece

Garcia, um pintor, para quem pintar é algo que não pode evitar (faz lembrar Mário de

Cântico Final), Irene, mulher cega e amante de Garcia, com a qual o pintor vive uma

relação especial, até transcendental, o que Adalberto admira. A figura de Jeremias

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representa a criatura que não aguenta a sua solidão e em consequência disso bate na sua

mulher.

O leitor nunca tem a certeza se é o narrador quem se engana ou se são as

personagens. Em uma das mais importantes cenas da obra, Adalberto entra na livraria e

reconhece Alda:

Alda esperava-me com a sua alegria clara, a sua unção de vitória, essa sua evidência de beleza e de amanhã. Covas breves nas faces, o sorriso dos lábios distendidos e cerrados. Mas nesse instante, como em imagens sobrepostas ou como num ondeado de água, eu vi o rosto de Alda transformar-se. Lentamente, os lábios refluíram-lhe à gravidade, as faces descaíram a uma massa de abandono e o brilho dos olhos transfigurou-se. Era ainda o brilho vivo da frescura, eram ainda os mesmos olhos, exactamente os mesmos ou quase os mesmos que eu veria se os visse só a eles. Mas toda a mutação do rosto os alterara e eram agora só noite e cansaço e alucinação. Estonteado - Aida – clamei. […]Então, pela primeira vez, ocorreu-me a ideia absurda de que Aida e Alda tivessem sido sempre uma única pessoa. Era evidentemente absurdo que o pensasse. […]E, todavia, quantas vezes me assalta ainda esta ideia! (EP, pp. 215–216)

Certo dia, com a família de Aida/Alda vai em excursão à praia, ambas irmãs

sofrem um naufrágio e só uma delas se consegue salvar – Aida, mas Adalberto pensa

que é Alda. Alda deixa-o permanecer no equívoco, os dois casam-se e têm o filho que

irá morrer pouco tempo depois de nascer. Mais tarde, Alda revela a sua verdadeira

identidade e Adalberto não vê outra solução senão matá-la. Se matou Aida ou Alda é

um dos muitos equívocos deste romance. Adalberto é condenado a vinte anos de prisão.

E de prisão o herói escreve e reconstitui a história através da sua memória, ou seja,

como escreve Maria Joaquina Nobre Júlio: “escreve, não para se justificar, mas para

melhor se entender, para recriar um futuro que será circularmente, até ao nível

sintagmático, igual ao passado.”126 Com efeito, o final do romance resume a fábula de

Estrela Polar. Já reparámos num certo esboço em Aparição que o escritor nos fornece o

carácter circular da narração. Em Estrela Polar é deste modo apontada a problemática

não resolvida. Assim Vergílio Ferreira terminou o romance de todos os equívocos:

Só. Decerto a vida expulsou-me. […] Então, provavelmente, encontrarei Aida. Ela tem uma irmã parecida com ela, até no nome. E amarei Aida e direi: “tu, ó única”. Tudo quanto em mim é de mais o sonharei então nela e o sentirei então

126 JÚLIO, M. J. Nobre: Estrela Polar lida por Vergílio Ferreira. Vária Escrita, Nº 9, Dezembro de 2002, p. 301.

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nela e tudo em mim será ainda um excesso e perguntarei ainda: quem? onde? para que? Depois confundirei Aida com Alda e direi a Alda, que é Aida: “ó única”. Então Aida dir-me-á: “não sou quem julgas, mas que admira? Tu nunca amaste ninguém”. Haverá um filho entre os dois e já morto. E eu matá-la-ei ou dirão que a matei, porque a morte é o signo do meu excesso – e serei condenado a vinte anos. Abrir-me-ão as portas depois, se viver ainda. E voltarei para Penalva. Então encontrarei decerto Aida que tem uma irmã extraordinariamente parecida com ela. (EP, pp. 318–319)

A personagem principal, Adalberto Nogueira, vive numa solidão devido à

incapacidade de produzir a comunhão, o que é o problema central da obra. Adalberto

segue a linha de Alberto de Aparição, mas ao contrário do herói de Aparição, Adalberto

não consegue transmitir o seu problema a ninguém. Alberto Soares faz a aparição de si

a si próprio, a auto-revelação do que é nele mais profundo, do que faz dele a pessoa que

é. Ele consegue ensinar aos outros essa experiência. Isso não ocorre com Adalberto.

Ninguém o entende e portanto não chega à comunhão com os outros. O seu problema

fundamental é alcançar a comunhão com outra pessoa, conhecendo o ser de um TU que

da perspectiva do outro é um EU também. O homem faz de si o objecto que quer

conhecer. Como se escreve mais adiante na entrevista com o escritor: “Se Aparição é o

romance do eu, Estrela Polar é o romance do tu.” (EA-se, p. 243) O tema da

comunicação surge na obra segundo Vergílio Ferreira em vários níveis, “desde a

degradação do “grupo” até à situação-limite da impossível comunicação, ou antes

identificação” (EA-se, p. 239). Em relação à filosofia heideggeriana, podemos afirmar

que Alberto representa o ser-em (estar sendo) e Adalberto o ser-com.127 A

impossibilidade de conhecer a individualidade do outro (distinguir Aida da Alda) desde

a perspectiva desse outro (daí o desejo de Adalberto ser eu nos outros) condena-o à

solidão. Adalberto não é capaz cumprir a redução fenomenológica, o processo

husserliano que consiste na tentativa de extirpar da essencialidade do ser tudo “inútil”,

irrelevante. Tal como escreve José Rodrigues Paiva, nesta ficção vergiliana:

o homem é um ser-com-alguém, mas ainda assim condenado à solidão, porque cada ser, ou cada individualidade, não se revela de forma absoluta e não pode ser plenamente conhecida pelo outro.128

127 PAIVA, José Rodrigues: O Espaço-Limite no Romance de Vergílio Ferreira.Recife, Edições Encontro, 1984, p. 176. 128 Idem, Ibidem, pp. 178–179.

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5.3.2. Na sombra do novo romance

Próprio Vergílio Ferreira consigna que neste livro “a história se desenvolve num

plano de realidade-irrealidade” (EA-se, pp. 238–239), o que já observámos na temática

do romance (não sabemos se Aida/Alda é uma pessoa ou duas, não é explicitamente dito

se Adalberto matou a sua esposa, a cidade Penalva parece mais fictícia do que real,

nunca se chega a saber se Irene cega existia...etc.). Também a própria estrutura

romanesca é fundada em várias alternativas. O narrador não obedece a ordem

cronológica e assim torna a narração saltada e cheia de repetições. Em Estrela Polar

podemos então observar a influência do novo romance. O escritor, como explica numa

das entrevistas, ficou alheio à ideologia, à filosofia, à temática que o novo romance

trouxera. Mas interessou-lhe tudo o que o novo romance mudara na estrutura formal do

romance: a concepção de espaço, de tempo, a distribuição da matéria romanesca:

Ninguém, doravante, poderá escrever romance segundo os quadros, as formas da estrutura tradicional desse género. […] Nós contávamos os romances até agora, a começar pelo princípio, conduzíamo-los por aí fora até ao fim. O novo romance diz-nos: isso é artificial, ninguém recorda nada assim seguidamente. Nós recordamos aos saltos. (EA-se, pp. 240–241)

Algo parecido escreve-se em Estrela Polar, a noção do tempo é subjectiva:

O passado é um labirinto e estamos nele, um passado não tem cronologia senão para os outros, os que lhe são estranhos. Mas o nosso passado somos nós integrados nele ou ele em nós. Não há nele antes e depois, mas o mais perto e o mais longe. E o mais perto e o mais longe não se lê no calendário, mas dentro de nós. (EP, p. 57)

O leitor deste romance consegue construir o fio narrativo só com as dificuldades.

Segundo José Luís Gavilanes Laso Estrela Polar “é mais discurso do que a

narração”.129

Nesta obra desaparece o plano presente, habitualmente escrito em itálico. O

plano agora está totalmente mergulhado no passado. A narrativa constitui-se, assim,

única, sem diferenciação de planos. Há, no entanto, uma estratificação de tempos, que

deriva precisamente do ir e vir da memória do passado ao actual. O plano narrativo que

em princípio era linear, não se mantém. Verifica-se uma intromissão constante de factos

129 GAVILANES LASO, op.cit., p. 257.

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adventícios, produzida normalmente pela associação de ideias.130 O narrador-

personagem narra algumas cenas várias vezes, acrescentando sempre alguma alternação.

O texto é além disso cheio das antecipações que surgem devido à citação de um nome

que associa ideias emocionais. Por exemplo:

São três empregados com ele: o rapaz dos mandados, que passa a vida na rua, e a rapariga da caixa, da correspondência e da escolha da literatura estrangeira – Aida. Escrevo o teu nome e estremeço. Subitamente, a tua face... Há uns papéis a assinar, tu entregas-mos à minha secretária, e a tua mão como uma flor... (EP, p. 33) [Esta cena, com efeito, surge de novo mais adiante.]131

O leitor não consegue compreender tudo e fica assim cheio da curiosidade o que se

acontecerá mais adiante. “E temos assim o leitor a acompanhar o narrador na sua

inquietação.”132

Estrela Polar, é, indubitavelmente, levando em conta o seu carácter híbrido, um

dos marcos evolutivos da obra vergiliana.

130 SEIXO, op.cit., p. 143. 131 Obs. é nossa. 132 SEIXO, op.cit., p. 145.

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6. Subjectividade e temporalidade

6.1. EU – o início absoluto

Todo o questionamento filosófico tem de partir, segundo Vergílio Ferreira, da

nossa subjectividade. A nossa dimensão original é primordial. Neste capítulo e naqueles

que se seguem aprofundaremos os aspectos essenciais da filosofia vergiliana, já

esboçados na parte do nosso trabalho chamada Pensamento de Vergílio Ferreira,

apoiando-nos nos ensaios filosóficos do autor e nas obras romanescas – Cântico Final,

Aparição e Estrela Polar.

Alberto Soares proclama: “A minha presença de mim a mim próprio e a tudo o

que me cerca é de dentro de mim.” (AP, p. 9). Em Estrela Polar diz-se que nós somos o

absoluto de tudo:

[…]só nós somos testemunhas de nós neste princípio absoluto que nos somos, presença absurda, total, definitivamente suspensos sobre um mundo que nos ignora. (EP, p. 51)

O trecho de Estrela Polar faz lembrar Camus segundo o qual não conseguimos

compreender o mundo plenamente.

Alberto preocupa-se demasiadamente com o seu estar sendo, ou seja, com o seu

verdadeiro ser, ser-em. O termo de estar sendo já surge no ensaio Carta ao Futuro. Um

dia encontramos uma evidência nova que nos habita os nervos, corporiza-se connosco.

É a nossa pessoa. Estar sendo quer dizer que “um dia descobrimo-nos uma realidade

miraculosa, uma certeza de sermos, o puro acto da nossa identidade.” (CFut, p. 32)

Estar sendo é autodescoberta, chegada à nossa realidade profunda. É aquilo:

[…] o que nos afirma uma totalidade de ser, o que nos define e é a própria realidade de estarmos sendo – é o todo que nos sentimos e nos projecta, é a absoluta presença de nós a nós próprios, esta irredutível e impensável realidade do que somos, impensável e irredutível porque não podemos sê-la de fora, desdobrá-la em duas totalidades. (CFut, p. 33)

Alberto Soares quer saber a resposta à pergunta “o que é que sou?” O autor usa a

expressão estar sendo cujo sentido exprime o melhor o facto da nossa estadia no

mundo. O narrador, de acordo com Sartre, é consciente de não haver nenhuma natureza

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humana, cada um de nós apresenta uma personalidade única. O mesmo declara-se em

Invocação ao Meu Corpo:

[…] um EU ou um TU não têm género […] porque tanto o homem como a mulher dizem EU, anunciam indistintamente o puro princípio de si […] simultaneamente, porém, um EU não tem plural. Porque o plural de EU é NÓS e não EUS. Pois como ser EUS se um EU é princípio e fim de si mesmo? Para que o plural fosse EUS seria necessário que a irredutibilidade que eu sou fosse uma redutibilidade, que o princípio que em mim existe não existisse, que aquilo que me exprime fosse apenas o expresso […] (IC, pp. 76–77)

O EU tem, essencialmente, duas faces, primeira é o EU pensante, outra o EU -

objecto da reflexão. O afastamento temporal favorece a objectividade do

autoconhecimento que tem de ser no primeiro lugar antes de qualquer outra descoberta,

por outras palavras, o autoconhecimento condiciona as cognições seguintes.

Sobre o EU como objecto da reflexão escreveremos mais no capítulo dedicado à

intersubjectividade.

6.2. O corpo espiritualizado

EU é um complexo inseparável do espírito e do corpo, ou seja, o EU poderia ser

concebido só como o espírito, mas sempre se exprime através do corpo. O corpo é assim

mencionado como a morada do espírito: “Que é que te habita, que é que está em ti e és

tu?” (AP, p. 41). Ou mais adiante em Aparição escreve-se: “estou eu e aquilo que me

povoa” (AP, p. 117). Mário, ao chegar a saber da sua morte próxima, não consegue

imaginar o seu corpo desabitado:

Sinto-me todo presente a mim próprio, como é possível morrer? Como imaginar este corpo despovoado de tanta coisa que nele me criei, como imaginá-lo desabitado de mim? (CF, p. 131)

Não se trata do dualismo na consideração do homem como espírito incarnado num

corpo. O corpo não é nenhuma prisão do espírito de que este deseje libertar-se. O corpo

e o espírito constituem uma unidade: “ eu sou o meu corpo” (IC, p. 255).

Eu sou o meu corpo, posso sair dele, mas sempre e ainda dentro dele. Neste

aspecto é impressionante a parecença com a filosofia de Merleau-Ponty. Vergílio

Ferreira diz: “o homem […] é o corpo espiritualizado” (IC, p. 261) e Merleau-Ponty

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afirma: “sou uma carne animada”.133 A bailarina Elsa de Cântico Final representa a

importância do corpo, falando com Mário sobre a diferença entre a pintura e a dança:

“Você sente a vida em cor, em estrutura, penso eu. Eu sinto-a onde ela começa: no meu

corpo.” (CF, p. 64). Para Elsa o corpo é uma realidade fulgurante que se lhe revela só

na dança.

Como o nosso corpo faz uma parte inseparável do nosso EU, a mesma coisa

ocorre com o nome. Não podemos despojar-nos do nosso nome.

Porque eu não fui apenas Adalberto: fui também Alberto ou Berto, Beto, Betinho, Betinha... Quem sou? Quem fui? Que súbita e imprevisível unidade me esperava em cada nome? Porque alguma coisa em mim se transfigurava com a mudança do nome. […] Porque um nome, como o corpo, é eu também, sou ele e estou nele. (EP, p. 25)

Alberto Soares também quer saber qual pacto se estabelece entre pessoa que somos e o

nome que nos deram: “o nome, como o corpo, é nós também.” (AP, p. 18) Esta

importância do nosso nome é frisada pelo próprio escritor em Conta-Corrente V, onde

Vergílio Ferreira tenta esclarecer os nomes das suas personagens: “[…] ainda não

resolvi o problema dos nomes. Porque um nome não é coisa de somenos. Ele tem de ter

um valor eufónico apropriado à personagem.” (CC V, p. 170)

A afirmação sartriana segundo a qual a existência precede a essência quer

também dizer que a existência não é redutível à mera efectividade mas, pelo contrário,

implica necessariamente a questão do seu ser. A irredutibilidade do EU é o postulado

vergiliano. Daí a interrogação interminável de Alberto acerca do seu estar sendo.134 O

EU é o sujeito e o objecto. Adalberto pensa sobre essência de Aida/Alda:

Eu não amava Alda, mas Aida, porque Aida é que era a minha mulher, era o seu corpo que eu conhecia, era com ela que eu falava, era dela o seu olhar. Podia mesmo o seu nome não ser Aida, mas Alda. Alda, aliás, estava morta, e era pois como se não tivesse nascido. Mas tinha vivido, tinha sido, um modo único de ser a habitara, a fora. E era esse ser que eu atingia na minha ilusão. Assim era irredutível como um “eu” em cada “nós”. (EP, p. 291)

Heidegger disse que o Dasein é o ser-no-mundo, Vergílio Ferreira acrescenta

que é o nosso corpo que é no mundo. De acordo com o ensino fenomenológico também

confirma o mundo existir como projecção do nosso corpo, porque o corpo é a

133 Apud CANTISTA: 1993, op.cit., p. 291. 134 Veja também de novo a citação de Carta ao Futuro, p. 33.

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consciência. E segundo Heidegger não é possível ter a consciência pura, sempre há algo

nela, sempre se trata da consciência de algo. Isto é pela fenomenologia chamado a

intencionalidade. A consciência humana no ver de Vergílio Ferreira é aquilo que

distingue o homem do animal.

6.3. A mortalidade do nosso corpo e a (i)mortalidade do nosso EU

6.3.1. O tempo irreversível

Não se pode falar da subjectividade sem lhe supor, como correlato essencial, a

temporalidade: “O tempo não passa por mim: é de mim que ele parte.” (AP, p. 256) A

evidência que somos o nosso corpo assinala o facto que o homem é mortal. O nosso

corpo vive com o tempo que passa.

O tempo é a forma humana de se ser, a condição que tudo em nós condiciona, o fluido em que o todo do homem mergulha e o homem todo se unifica. Ponte de ligação de tudo o que ao homem acontece […] (IC, p. 78–79).

Assim a problemática do tempo […] do nosso interrogarmo-nos no mundo. […] o tempo revela-se-nos agora como a estrutura do que somos. (FS, pp. 93–94)

De acordo com Heidegger, Merleau-Ponty, Sartre e Camus, Ferreira afirma que o

homem é o ser-no-mundo e vive no tempo que decorre constantemente avante e

portanto o homem é o ser-para-a-morte. Mas ao contrário destes pensadores, como

veremos adiante, Vergílio Ferreira oferece uma via ainda mais positiva.

A questão do tempo de Aurélio Agostinho influenciou os seguintes estudos

filosóficos sobre o tempo, incluindo os de Husserl, de Heidegger e também de Vergílio

Ferreira. O conceito do tempo agostiniano desenvolvemos no nosso trabalho anterior

Aspectos Filosóficos no Romance Aparição de Vergílio Ferreira (p. 28). Lembremos só

que Agostinho reduz os três modos do tempo (passado, presente e futuro) à existência

dos três tempos presentes: o presente com a vista do passado (“memoria”), o presente

com a vista do presente (“contuitus”) e o presente com a vista do futuro

(“exspectatio").135 O que Vergílio Ferreira escreve no seu ensaio Da Fenomenologia a

Sartre não é mais do que a homenagem à filosofia agostiniana:

135 HEINZMANN, R.: Středověká filosofie. 2. díl ediční řady Dějiny filosofie. (trad. B. Horyna). Olomouc, Nakladatelství Olomouc, 2002, pp. 86–87.

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Na realidade, o “passado”, “presente” e “futuro” são constituições secundárias do tempo fundamental que é o estarmos sendo como um puro presente, donde a tríplice ek-stase temporal se irradia. O homem é. O passado e o futuro formam uma “rede de intencionalidades” para o antes (retenção) e para o depois (protenção) […]a partir de um puro presente que em rigor não é presente, porque é o puro estar-se sendo. (FS, p. 95)

O futuro fica assim no horizonte das nossas possibilidades, o passado se reabsorve no

nosso presente e através do presente estabelecemos as relações com o passado e o

futuro. “Porque o presente não existe nem como instante: o presente presentifica-se

sob a forma de fuga.” (FS, p. 96) Alberto Soares também considera o futuro como o

seu projecto:

Mas o tempo não existe senão no instante em que estou. Que me é todo o passado senão o que posso ver nele do que me sinto, me sonho, me alegro ou me sucumbo? Que me é todo o futuro senão o agora projecto? (AP, p. 256)

6.3.2. Da morte inverosímil até a reconciliação

O homem, cujo futuro é um projecto, sabe que a sua morte também faz parte do seu

futuro. Tendemos para a morte que não significa a aniquilação da vida, mas é apenas a

margem da nossa vida. “Ora este “eu” é para morrer” (AP, p. 42), diz Alberto de

Aparição. Em Estrela Polar escreve-se: “Mas há um limite do querer, que é o limite do

que somos.” (EP, p. 10) Mário de Cântico Final, por sua vez, diz: “estava condenado

ao silêncio” (CF, p. 129). Para todos os heróis principais das obras analisadas a morte é

no início o facto inverosímil e no fim estes chegam à reconciliação. Alberto quer

“justificar a vida em face da inverosimilhança da morte”. (AP, p. 43) Mário fala com o

médico da sua aldeia natal da “inverosimilhança da morte, da certeza absurda da vida”

(CF, p. 80). E em Estrela Polar: “Acaso a morte existe assim, à face da vida […]” (EP,

p. 111)

Como vimos, Vergílio Ferreira associa sempre a morte à vida. Respeita assim a

filosofia heideggeriana. Ser o homem é, para Heidegger, um ser que se define pela

constante procura ou projecto. É natural que o homem preocupa-se também com a

morte, uma vez que esse acontecimento corta radicalmente com todos os projectos

humanos. Preocupar-se com a morte tende a preocupar-se com a vida:

Só meditando profundamente no que significa a morte é que nós poderemos ver bem o que com ela se perde e o valor disso que se perde. […] A meditação da

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morte não é pois um fim, mas um meio. Meio de valorizarmos a vida […] Se eu não valorizar a vida do homem (e não posso fazê-lo devidamente, se não souber o que na morte se perde), eu estou apto a destruir um homem com a mesma insensibilidade com que destruo um verme. Morte por morte, uma e outra são iguais. O que já não é igual é o que com uma e outra se destrói. (EI II, p. 42)

A morte faz parte da vida e este facto temos de aceitar. Só assim será a nossa vida

segundo Heidegger autêntica. No entender camusiano, o homem quotidiano, ao aceitar a

sua mortalidade, torna-se o homem absurdo que já não vive preocupado com o futuro. E

o herói vergiliano chega deste modo à reconciliação. Mário, já no fim da sua vida sente

a resignação, que não é, porém, concebida no sentido negativo:

Jamais, porém, como agora, se lhe revelara a resignação, quase a beleza de um limite atingido, e uma certa urgência inquietante de que tudo coincidisse com este limite: se a vida se lhe prolongasse, seria “excessiva”. E Mário descobria assim de novo que o artista não procurava “sobreviver” para além da morte. (CF, p. 231)

O homem para poder aceitar o facto da sua finitude, tem de ter a aparição, o termo

tão frequente no discurso vergiliano sob o qual entendemos a revelação instantânea de si

a si próprio, a consciência absoluta da nossa existência (e da nossa morte). Como já

avisámos, este conceito surge pela primeira vez em Carta ao Futuro, onde se escreve:

[…]a voz obscura que me fala transcende o passado e o futuro, vibra verticalmente desde as minhas raízes até aos limites do universo, aí onde a lembrança é só pura expectativa despojada do seu contorno, é só pura interrogação. Nesta hora absoluta, conheço a vertigem da infinitude, o halo mais distante da minha presença no mundo... (CFut, p. 20)

Em todas as obras de Vergílio Ferreira há a morte dos pais. Isto é, no entender de

Helder Godinho, um aspecto crucial. O herói fica sempre sozinho no mundo onde não

se consegue afirmar e procura uma possibilidade de existir. Vive assim o momento do

sofrimento e da peregrinação à procura da Verdade. Porque o pai faltou e não ensinou o

caminho. O herói quer reconquistar um reino que no fim da vida encontra na terra da

origem.136 Em todas as narrativas analisadas temos o sujeito que é confrontado com a

sua aldeia natal. Especialmente em Cântico Final, a meditação sobre a morte é a mais

forte. Mário regressa à aldeia, à casa em que nasceu, e aí espera a sua morte: “Nascer,

136 GODINHO, Helder: Os parentescos simbólicos em Vergílio Ferreira. In Afecto às Letras: Homenagem da Literatura Portuguesa Contemporânea a Jacinto do Prado Coelho. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984, pp. 230–231.

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viver, morrer.” (CF, p. 131) De novo deparamos com a imagem do círculo. O morrer

reassume o nascer e ciclo da vida e da morte fecha-se sobre si mesmo.137 Na casa

antiga, Mário sente-se sozinho:

E ali, sozinho, em face de si, a luz pálida do candeeiro velando a presença obscura da morte, sentiu-se visitado, num instante de vertigem, pela solidão absoluta. (CF, p. 26)

A solidão final é uma evidência que o homem também tem de aceitar. “Todo o homem

morre só; mas nem todos o sabem.” (CFut, p. 18) Mas Mário percebeu: “Morria só,

estava só à hora da morte como todos os homens.” (CF, p. 238)

Como já apontámos no capítulo dedicado ao absurdo do homem, a nossa morte

surpreende-nos porque não estamos preparados. Mário sabia que morreria em breve,

mas também não tinha certeza quando seria. Vergílio Ferreira incorpora nos seus

romances o suicídio como a antecipação da morte. Em Aparição oferece-nos o episódio

do semeador Bailote, o homem que já não tinha boa mão para semear. Em Cântico

Final encontramos o indício sobre o suicídio do pai de Mário. Guida e Rebelo também

falam do “valor” do suicídio. E Adalberto de Estrela Polar não sabe o que devia pensar

sobre o suicídio:

Só não sei ajuizar, definitivamente, sobre o valor da solidão ou da comunidade. Tal como do suicídio. É cobarde, é corajoso, o que frontalmente se mata? (EP, p. 12)

Todavia, no fim de tudo, o suicídio não representa a solução, enquanto a natural

caminhada para a morte permite uma autenticidade para a vida.

Além disso, em Cântico Final, a morte é anunciada na obra literária de Guida, o

que é um exemplo de mise en abyme. O conteúdo do livro Condenados à morte é

seguinte:

Era ainda um mundo estranho, agora marcado todo ele pela evidência absoluta que os seus personagens tinham de que haviam de morrer. (CF, p. 185)

Sintetizando, os romances vergilianos estão cheios da morte. É o nosso corpo que

morre e em consequência disso morre também o nosso espírito, ou seja, somos mortais

137 JÚLIO: 1996, op.cit., p. 112.

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porque morre o nosso corpo que faz parte inseparável do nosso espírito. Sartre oferece a

saída positiva, dizendo que apesar da evidência da morte somos livres, porque podemos

escolher. Vergílio Ferreira ainda acrescenta algo positivo. É verdade que um dia

morreremos, mas a nossa essência sempre fica nas mentes dos outros, como resta, por

exemplo, Cristina na memória de Ana.

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7. A comunhão intersubjectiva

7.1. A solidão com alguém

O homem, não conseguindo conceber-se a si próprio, procura o TU como o

elemento indispensável à compreensão do seu EU. A aparição do EU a si próprio é

também aparição do EU do outro. Um TU é para Vergílio Ferreira um EU que vemos

em alguém. Mas as análises do EU da outra pessoa são mais objectivas porque esse EU

da outra pessoa, ou seja, o TU está diante de nós, portanto Vergílio Ferreira usa o termo

o “EU objectivado”.

Porque, repara: um “tu” comparticipa ainda de um “eu”, está ainda perto dele. Um homem diz “eu”, diz “eu” uma mulher – e a ambos dizemos “tu”. (EP, p. 153)

Para podermos dizer a palavra EU, é inimaginável viver no mundo sozinho, no mundo

privativo:

Mas como conceber até um “eu”, se o não concebêssemos inexoravelmente num “tu”? […] Num mundo despovoado e nulo, como dizer “eu”? Adão, para o dizer, teria de esperar pela presença de Eva... Porque a própria relação de um “eu” com um objecto, não a imaginamos facilmente sem a relação de um “tu” com o mesmo objecto. (FS, p. 98)

A solidão existe pelo facto de não estarmos sós. Os narradores vergilianos depois de não

conseguirem a comunhão com a outra pessoa fogem à solidão e assim tentam conseguir

a comunhão, o que é impossível. Assim oscilam no círculo.

Estrela Polar é dos três romances aquele que desenvolve o mais o tema da

solidão e comunhão com a outra pessoa, neste caso com Aida/Alda. O autor escolheu de

propósito as irmãs gémeas para poder mostrar com mais facilidade que comunhão

absoluta – o desejo de Adalberto estar em outro – não é possível. “Mas eu quero mais:

a minha presença em alguém, a minha duração em alguém...” (EP, p. 87) Adalberto é

uma das personagens da obra de Vergílio Ferreira que vivem mais o sentimento da

solidão. No entanto, Emílio, o médico que vive na comunhão com os doentes nega a

existência da solidão:

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A solidão vence-se com os outros, concretamente, inequivocamente – disse Emílio de súbito. É uma evidência elementar. Aliás, a solidão não existe, é uma invenção gratuita, é uma coisa abstracta. O que há é o “grupo”. E só assim, de resto, se é eficaz. (EP, p. 192)

E mais adiante é Aida/Alda quem diz que a solidão é só a solidão com alguém:

De resto – acrescentou ainda – é exactamente porque não há solidão que dizes que há solidão. Imagina que eras o único homem no universo. Imagina que nascias de uma árvore, ou antes, porque eu quero pôr a hipótese de que não há árvores, nem astros, nem nada com que te confrontes: supõe que o universo é só o vazio e que tu nascias no meio desse vazio, sem nada para te confrontares. Como dizeres “eu estou sozinho”? Para pensares em “eu” e em “sozinho” tinhas de pensar em “tu” e em “companhia”. Só há solidão porque vivemos com os outros... (EP, p. 267)

Quanto à importância da presença do TU é Vergílio Ferreira mais perto de Husserl

e ainda mais perto de Sartre e afasta-se de Heidegger. Husserl inspirou-se na filosofia

cartesiana que consigna que o indivíduo pode apreender o corpo de outra pessoa, mas

não pode apreender esse indivíduo como sujeito:

Conheço a minha alma melhor que o meu corpo, mas eu só posso conhecer o corpo do outro uma vez que não tenho acesso à consciência dessa pessoa.138

Husserl, transformando um pouco a afirmação de Descartes, diz que estamos

conscientes dos sentimentos e experiências de outra pessoa apenas na base de

interferências empáticas a partir das nossas.139 Mas Ferreira não compartilha

plenamente deste modo solipsista de Husserl. Os seus heróis querem conhecer-se em

sentido objectivo, não em sentido psicológico. Para estes fins aproveitam o método

fenomenológico. Sartre salienta a urgência doutra pessoa, do TU, para que o EU se

aperceba de si e se autoconheça (Heidegger não exclui as outras pessoas do mundo mas

não as acha necessárias para que EU possa conhecer o seu ser, a sua existência).

138 DESCARTES, René: Meditations on First Philosophy Apud GIDDENS, Anthony: Modernidade e Identidade Pessoal (trad. port. Miguel Vale de Almeida). Oeiras, Celta Editora, 2001, p. 47. 139 GIDDENS, op.cit., p. 47.

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67

7.2. O espelho e a evidência do duplo

A presença do TU é na obra vergiliana também concebida pela imagem do

espelho, através do qual surge a dialéctica do visível X invisível. Como nos vários

lugares da sua escrita Vergílio Ferreira sublinha, o ver é a condição humana, os animais

olham. É propriamente o sentido do visão que o escritor considera o mais importante. O

encontro com os outros descreve-se no cruzar de olhares. Adalberto ao chegar a saber

que Irene, amante de Garcia, é cega, tem dificuldades perceber o valor da relação deles

que, ao mesmo tempo, plenamente admira.

Na visão do espelho praticamos o encontro consigo mesmo. Por exemplo quando

Alberto depara com a sua própria imagem reflectida num espelho assusta-se:

Diante de mim estava uma pessoa que me fitava com uma inteira individualidade que vivesse em mim e eu ignorava. Aproximei-me, fascinado, olhei de perto. E vi, vi os olhos, a face desse alguém que me habitava, que me era e eu jamais imaginara. Pela primeira vez eu tinha o alarme dessa viva realidade que era eu, desse ser vivo que até então vivera comigo na absoluta indiferença de apenas ser e em que agora descobria qualquer coisa mais, que me excedia e me metia medo. (AP, p. 64)

No romance, porém, surge o momento quando o narrador à distância dos anos pondera

sobre a sua relação com Sofia: “Não és nada para mim, eu o sei, eu o sei, não és mais

do que o inverso do que me aspiro, como um espelho de feira.” (AP, p. 187) A

comparação à lantejoula banal desvaloriza a função do espelho como o modo do nosso

autoconhecimento. Por isso Alberto assustava-se ao ver-se no espelho e por isso

também ninguém consegue descobrir a identidade da outra pessoa. O motivo de espelho

está também presente em Estrela Polar no sonho de Adalberto que este tem sobre cem

mulheres absolutamente iguais, cem cópias de Aida, como “num reflexo de espelhos”

(EP, p. 52). Sem hesitação avançou para uma delas, que era a única. Mas isso aconteceu

no sonho, na realidade Adalberto não sabia qual de duas (só!) mulheres era Aida.

Também a tentativa de ver-se repercutido no olhar do outro simboliza um espelho.

Alberto num jantar pensa por outros. Assim, através dos olhos de Ana, vemos Alberto

como “extraordinariamente magro, de pequeno bigode estúpido” (AP, p. 98) Elsa de

Cântico Final repara que Mário olha para ela de três modos diferentes:

Quando conversas, sobretudo quando discutes, olhas-me nas palavras como toda a gente. Outras vezes, olhas-me aquém das palavras, nos próprios olhos, como o

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homem banal da lascívia banal. Mas outras vezes olhas-me para lá das palavras. E então eu tenho pena de ti, porque vejo que estás triste. (CF, p. 68)

A fotografia é o outro meio metafórico que substitui o verbo ver. Em Aparição surge

através do álbum da tia Dulce.

O espelho é além disso o causador de desdobramento. Em toda a obra de

Vergílio Ferreira as personagens aparecem redobradas. Daí que encontramos em Estrela

Polar as personagens gémeas – Aida/Alda. Frequentemente aparecem personagens que

se completam, representando cada uma um aspecto do herói principal. É, por exemplo,

o caso de Adalberto, Garcia e Emílio e Jeremias. Jeremias desdobra Adalberto enquanto

futuro assassino de Aida, ele é o profeta. Emílio ama também as gémeas (Alda) e Garcia

tem uma relação com Irene que é cega, mantendo assim a união máxima.140 Em

Aparição podemos reparar numa certa afinidade entre Sofia e Ana. Sofia é mais bela e

Ana tem maior “dom metafísico” e juntamente criam uma mulher ideal para Alberto. A

dualidade Sofia/Ana encontra-se também em Cântico Final mas representada pelas

personagens Elsa/Guida. A dualidade Alberto/Carolino de Aparição faz lembrar as

personagens Adalberto/Jeremias.

Temos, aliás, outros níveis da presença do duplo em Estrela Polar. Dupla é a

paisagem: duas escadarias, loja de duas portas, etc. Espaço da história situa-se numa

pequena cidade, Penalva, mas a autenticidade desta cidade não corresponde a nenhuma

das Penalvas da geografia portuguesa. Será um marco absolutamente imaginado? Este

facto participa da atmosfera de realidade/irrealidade que entrelaça todo o romance. José

Luis Gavilnes Laso chega à conclusão que Penalva é Guarda.141 Adalberto vagueia

pelas ruas de Penalva/Guarda como se fosse perdido no labirinto. Não tem nenhuma

“estrela polar” que lhe mostrasse o sentido certo, nem a mulher certa. O narrador

explica a sua escolha acerca do título:

Talvez que se eu pusesse um outro título a esta história. Por exemplo “O Traidor”. Ou “O Criminoso”. Duas palavras breves negando e moralizando os milhares de palavras em que me comprazi. Chamo-lhe apenas “Estrela Polar”, porque sou mais corajoso ou o desejo parecer. Luz breve, que existas, onde? fugidio indício que me anuncie o meu lugar na vida... (EP, p. 309)

140 GODINHO, Helder: O Universo Imaginário de Vergílio Ferreira. Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1985, pp. 56–57. 141 Cf. GAVILANES LASO, op.cit., pp. 258–260.

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7.3. O amor e a questão do terceiro

Os heróis vergilianos relacionam-se com as mulheres porque acham que se pode

conseguir a comunhão perfeita através do amor, que só no amor é possível alcançar o

TU e então o seu EU. Entre Adalberto e Aida recomeçou um dia segundo narrador uma

espécie de jogo de compreensão e de aprofundamento do encontro deles:

Amava-te eu? – quantas vezes mo pergunto. Decerto amava-te, porque amar é reconhecer nos outros um ser misterioso, e não um objecto – tu eras uma vibração à tua volta, não a estreita presença de um corpo. Aqueles que não amamos nem odiamos são nítidos como uma pedra. Sentir neles uma pessoa é começar a amá-los ou a odiá-los. Só amamos ou odiamos quem é vivo para nós. (“Nunca amaste ninguém...”) (EP, p. 91)

Aquilo que está escrito entre parêntesis são palavras tardias de Aida/Alda que são

repetidas quase no fim do romance:

Porque te iludes tu? Que é realmente para ti um outro? Ah, “o homem, um ser único, irredutível”... Único tu! Não os outros! […] Tu nunca amaste ninguém. (EP, p. 289)

Próprio Adalberto nos outros lugares do livro revela que Aida se lhe gastou. Também

Alberto de Aparição confessa que nunca amava Sofia e Mário, por sua vez, nunca podia

ter a relação verdadeira com Elsa. Por esta razão estes três protagonistas não são

capazes responder às suas perguntas metafísicas que dizem respeito ao EU e ao TU.

Emílio adivinha a razão verdadeira acerca do amor que Adalberto está a procurar, aliás,

é o facto que se refere a todos três protagonistas:

Mas como se ilude você? O que você busca não é uma mulher, não é alguém ao pé de si; é alguém além de si. (EP, p. 223)

Em Estrela Polar Vergílio Ferreira põe a questão do terceiro. A relação com o

outro, sobretudo com a mulher amada, é sempre uma relação triangular (não no sentido

do triângulo amoroso). É preciso alguém que autentique a comunhão dos outros:

Quem nos está fitando? Perante quem somos? Tu à minha face, eu à tua: mas perante quem? Quem nos une? […] Porque só se está unido perante o que nos transcende. Mas nada estava acima de nós... (EP, p. 94)

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Nada está acima de nós – o problema típico vergiliano. Deus não existe, portanto o

narrador vive na busca de um terceiro perante quem será a comunhão com a outra

pessoa verdadeira. A comunhão não é suficiente, “é preciso uma terceira testemunha”

(EP, p. 136). Daí surge a investigação vergiliana: para quem somos? O ser no seu

entender é também ser-para-alguém. Vivemos no mundo no qual as coisas relacionam-

se connosco através do nosso corpo. As coisas são para nós. E nós vivemos para quem?

...Porque eu dizia: isto é uma pedra, isto é um livro. E isso era logo evidente, Alda reconhecia que estava ali um livro, uma pedra. Havia portanto no universo um lugar do nosso encontro. Havia um lugar de encontro para todos os homens. Ponho a minha mão sobre uma pedra do Castelo. É áspera, rugosa. Os seus grânulos enterram-se-me na pele e sei que a pedra existe. Depois puseste a tua mão. Eu dissera: - Põe a tua mão. Pousaste-a, apenas, mas eu carreguei sobre ela para ela existir bem, até a mão te ficar como um crivo de bexigas. Sorrimos. Uma pedra existia. Estava ali entre nós e nós sabíamo-lo. Mas nesse momento onde estávamos nós? Porque nós então não existíamos, a pedra é que existia por nós. Ora eu pensava: é isto a vida? um monte de pedras? […] Quando fala de pedras, está bem, um homem pode entender-se com outro homem. Mas a vida não é uma pedreira. Onde existimos nós? (EP, pp. 260–261).

Este terceiro, diante de quem ou por quem Adalberto e Aida podiam estabelecer a

comunhão, é o filho deles. O filho representa uma abertura à esperança. O motivo de

filho aparecia em Aparição através da personagem de Ana, que adopta os filhos do

semeador Bailote para solucionar o seu problema existencial. Em Cântico Final o filho

de Guida morre logo depois de sair o romance dela sobre a morte do mundo. Mário tem

o filho com Cidália que representa o contraste com Guida porquanto Cidália é a

escritora já fora de moda. Assim, Cidália predetermina a morte de Mário.

O filho estabelece então o elo de ligação entre o EU e o outro. Mas o filho de

Adalberto logo morre. Adalberto, diante do filho morto, sente-se desdobrado (aqui de

novo a imagem do espelho):

Sinto-me desdobrado e a outra pessoa de mim aterra-me. Há um muro de gelo a separá-las, há uma muralha de fogo. Ardem-me os olhos e a boca. […] Estou agora ao pé de mim, junto de mim. Quase sou feliz. (EP, p. 297)

O carácter do desdobramento de uma pessoa Vergílio Ferreira descreve em Invocação

ao meu corpo:

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O meu desdobramento é portanto do tipo daquele em que me desdobro entre o “eu” e o “mim”, entre aquele que observa e o que é observado. Porque o “eu” que observa está ainda no “eu” observado, o “mim” que contemplo inclui aquele que contempla. (IC, p. 255)

Mas depois da morte do filho de Adalberto há um muro entre o seu EU e o seu MIM.

No entanto, os pais estão sempre sem filhos, como diz o narrador: “Não és filho de

ninguém – quem é filho de alguém? (EP, p. 51) Outro caso representa Tomás, irmão de

Alberto. Para ele, a sua vida tem sentido só na comunhão com os filhos, mas estes não

funcionam como terceiro perante quem Tomás realiza comunhão. É que, para ele a

comunhão verdadeira é propriamente aquela que tem com os seus filhos. Uma

preocupação heideggeriana de EU é na percepção de Tomás modificada no sentido de

preocupação para com os filhos que fazem parte inseparável do seu EU.

A única solução que resta aos heróis vergilianos é assassinar a sua amante,

porque “a morte é a comunhão mais perfeita?” (EP, p. 70) O momento precursor do

assassínio é, a nosso ver, o sexo violento que está presente nos todos três romances,

entre Adalberto e Aida, Mário e Elsa e entre Alberto e Sofia. As cenas eróticas levam

consigo as conotações de violência e de perigo:

Sinto apenas o aroma do seu corpo e um desejo violento de o destruir, de passar além... Assim, quando entramos no ascensor, enquanto vamos subindo, um em face do outro, comprometidos, inquietos da longa espera, os nossos olhos evitam-se, sangrentos de crime, de suplício ou banham-se mutuamente de amargura. (EP, p. 96)

E Mário tomou-a, apoderou-se dela, angustiado em cada fibra do seu corpo. Doíam-lhe as vísceras, os ossos. Uma multidão de séculos de aflição e de raiva centrava-se-lhe em cada célula, uma fúria iluminada rasgava-lhe as mãos de sofrimento. […] Tinha, possuía! Executado de fertilidade, recuperava nas articulações, o triunfo sobre a vida, sobre a terra – triunfo quente, profundo como um urro. E sentia em Elsa o eco feliz do seu apelo, na resposta aberta e fremente à invasão da vida, na igual procura hiante dos astros inacessíveis... Enfim a noite absoluta e outra vez o mistério do amanhecer. (CF, pp. 66–67)

Passei à Porta de Avis, passei por sob os altos arcos do Aqueduto, vim sair à estrada de Arraiolos. E, chegados a casa, Sofia apoderou-se de mim com uma raiva de desespero. Abruptamente, senti inchar-me nas mãos, nas veias, o seu corpo frágil e extraordinariamente vigoroso. Os ossos doeram-me de novo, uma milenária sede de conquista, de vitória cruel, estalava-me a boca, as narinas. A lua entrava por uma janela aberta... (AP, p. 240)

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As cenas eróticas desembocam, então, na tentativa da personagem principal de se

apoderar absolutamente da outra pessoa o que se não pode fazer senão através do

assassínio, o que é, afinal, o acto desesperado. Como escreve o narrador de Estrela

Polar, enfim a comunhão perfeita não existe: “esquecia que estava só, que ninguém

podia ser por ti, nem um deus. Tu só, irredutível, princípio e fim, fechada, única e para

sempre.” (EP, p. 263)

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8. A Arte no lugar de Deus

8.1. O antropocentrismo de Vergílio Ferreira

Converter a teologia em antropocentrismo não foi a descoberta de Vergílio

Ferreira. Foi a pretensão de alguns filósofos post-hegelianos, sobretudo Feuerbach, que

queriam criar o império dos homens. Esta tentativa influenciou os escritores existenciais

como Albert Camus, em cujo livro O Homem Revoltado se analisa este problema e se

propugna a “revolução metafísica” que visa destronar o Deus.142 O desejo de fundar o

império dos homens podemos encontrar nos todos romances de Vergílio Ferreira.

8.1.1. O mundo sem Deus

O ponto de partida é para Vergílio Ferreira a afirmação proclamada em

Aparição: “Deus está morto porque sim […] Sei que ele está morto, porque não cabe

na harmonia do que sou.” (AP, p. 41) O escritor retoma a célebre ideia nietzschiana

enunciada por Zaratustra: “Deus está morto”. Também próprio Vergílio Ferreira diz que

não sabe explicar porque deixou de ser crente. Diz que estas coisas acontecem. Somos

feitos de um equilíbrio interior e certas verdades entram ou não entram nesse equilíbrio.

Pelas suas palavras:

Em dado momento a crença está certa com a nossa maneira de ser. Acreditamos. Depois deixou de estar, e deixamos de acreditar […] A crença, como o amor, o humorismo, como inclusivamente o clubismo ou a paixão política, como tantas outras coisas, nascem, morrem, entram em jogo com tudo aquilo que somos. E por vezes desaparecem. No meu caso a crença desapareceu. Um dia reparo que não acredito. Não tenho argumentos para opor à pessoa que defende que Deus existe ou, se os tenho, são argumentos que não convencem. (EA-se, pp. 122–123)

A morte de Deus é para Alberto Soares tão óbvia que não precisa nenhuma

justificação da sua inexistência: “Deus não é a minha meta, é o meu ponto de partida.”

(AP, p. 93) Ou no outro lugar: “Deus não existe. Não existia mesmo. Era evidente,

natural, claro, como era claro não haver Pai Natal.” (AP, p. 90) Vergílio Ferreira de

novo usa o verbo gastar-se: “Deus se me gastou.” (AP, p. 41) Como se gastou o amor

de Mário por Elsa, ou o amor de Alberto por Sofia, gastou-se o amor a Deus. Por sua

vez, Ferreira compartilha tal abordagem com Sartre dizendo que o seu existencialismo

142 Idem, Ibidem, p. 238.

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não tem por objectivo provar a inexistência de Deus. Sartre proclama: “ainda que Deus

existisse, nada ficaria diferente”.143 É preciso que o homem se convença que nada o

protegerá de si, nem a prova da existência de Deus.

A questão de Deus e do ateísmo surge em Cântico Final em conversas de Mário

com Elsa e, sobretudo, nos serões de sábado na casa do médico Cipriano. A morte de

Deus é em Cântico Final tão evidente que se pode dizer: “qualquer localista de

província já sabe que a decisiva descoberta destes últimos cem anos foi a de que Deus

morreu” (CF, p. 110) Plenamente concordamos com Maria Joaquina Nobre Júlio que

considera blasfemo o discurso que encontramos em Cântico Final.144 A blasfémia é um

insulto a Deus e assim é assumida por Mário:

[…] escalado o Olimpo – Mário pensava – os homens descobriram que ele estava vazio, e ficaram desapontados: sim, um deus fazia sempre falta nem que fosse para o insultar... (CF, p. 35)

Esta amostra é anti-religiosa porque nega a existência de Deus ao afirmar que o Olimpo

estava vazio. E, como veremos adiante, o homem vai retomar o lugar de Deus. O texto é

anti-religioso a um segundo nível, ao lamentar a inexistência de Deus, porque assim os

homens não o podem insultar. Outro exemplo de blasfémia, apesar de não ser tão

insultuoso, encontramo-lo na boca da Elsa:

Lembras-te de Musset? “Quando um ateu puxando do relógio, dava a Deus um quarto de hora para o fulminar”... Que pena Deus ter morrido! Já o não podemos desafiar... (CF, p. 156)

A blasfémia não é tão forte como a na boca de Mário, mas é bastante sarcástica. Segue a

pergunta de Mário: “Acreditas, acreditas que ele morreu?” (CF, p. 156) E Elsa

responde: “Sim! Profundamente, ardentemente, só acredito no meu corpo.” (CF, p.

156) A enunciação de Elsa ganha dois aspectos importantes. Um, que é neste contexto

mais relevante, Elsa acredita no seu corpo no sentido que analisaremos adiante. É que,

Deus vive no nosso corpo. Outro aspecto, já analisado por nós nos capítulos anteriores,

quer dizer que nós somos o nosso corpo.

143 SARTRE, op.cit., p. 56; a tradução é nossa: [i kdyby Bůh existoval, nic by se nezměnilo]. 144 Cf. JÚLIO: 1996, op.cit., pp. 56–57.

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8.1.2. O reino do homem

Pela morte de Deus, o homem pode nascer. Mas esta morte é considerada como o

assassínio que compromete a humanidade e exprime toda a sua condição. A morte de

Deus tem as suas consequências. Como diz Miguel Cardoso, o homem está agora só

num mundo, desprovido de qualquer sentido. O homem está órfão.145 O homem, porque

está livre, decide sobre si mesmo. Portanto pode também decidir que o Deus não tem

sentido para ele. O mundo sem Deus é, porém, o mundo sem valores que desemboca na

crise da cultura. Karl Jaspers interpreta a crise da cultura contemporânea como a

fractura relativamente a um sistema de crenças, ideologias e categorias veiculadas por

uma tradição. À semelhança de Jaspers, Vergílio Ferreira caracteriza a cultura

contemporânea como se tratando de uma cultura dos “deuses mortos”, isto é, de

esgotamento de importantes mitos que fizeram a história ocidental nos últimos

séculos.146 O mundo sucede à morte de Deus pois com a sua morte desapareceram os

valores universais que existiram a priori, como diz Sartre.

Vergílio Ferreira quer suplantar a crise instaurada pela ausência de valores e põe

como o valor o próprio homem. O absoluto Homem surge como valor irredutível a toda

a questionação. Isto é a proposta humanística de Vergílio Ferreira para a cultura

contemporânea. É propriamente a ausência da existência de Deus, que permite ao

Homem instaurar os novos valores:

Nietzsche disse-nos […] que há dois mil anos não nascia um deus. Era isso uma forma de entender uma organização da vida em torno de um Valor supremo em que todos os outros valores se reconhecessem. Nós sabemos, porém, que toda uma ordenação nova da vida se anuncia em torno da ausência desse Valor.147

“A humanidade futura devia ser puramente ateia,” (AP, p. 102) escreve-se em

Aparição. E Estrela Polar acrescenta: “um deus nasceu da minha carne […] um deus

chegou agora para recriar o mundo...” (EP, p. 275) É evidente que o homem não é

deus no sentido pleno, mas é “um deus à sua maneira pobre de animal.” (CF, p. 132)

E ainda: “Os deuses […] habitam-nos o sangue […] Os deuses não são divinos.” (CF,

145 CARDOSO, op.cit., p. 194. 146 CORREIA, Maria Manuela: Vergílio Ferreira: Um Itinerário Filosófico [tese de mestrado], Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 2003, p. 77. 147 FERREIRA, V.: Ansiedade/Angústia e a Cultura Moderna. Colóquio/Letras, 63, Setembro de 1981, p. 8.

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p. 235) A terra pertence ao homem, onde este devia construir o seu reino, designado a

Cidade do Homem, porque o mundo antigo (com Deus) já não existe:

A noite avança, a minha cidade arde sempre. Vou fundar outra noutro lado. Mas não sabia eu que ela devia arder? Acaso será possível construir uma cidade como a imagino, a Cidade do Homem? […] Mas o que sei é que o homem deve construir o seu reino […] (AP, p. 253)

No entanto, a questão de Deus nunca se resolve plenamente, nem nos romances

posteriores do autor. Deus sempre surge como a sombra com a qual os heróis

vergilianos se enfrentam. Lembremos a obsessão de Adalberto a encontrar um terceiro

perante quem se possa afirmar a sua comunhão. A palavra Deus oferece-se mas

ninguém quer aceitá-la:

Mas eu quero que os rios se resolvam uns nos outros, que o mundo seja nosso, que a terra seja do homem. […] As questões dos homens resolvem-se entre os homens. (EP, p. 72)

8.2. O artista Criador

Na filosofia de Vergílio Ferreira a Arte e o artista desempenham o papel crucial.

Ao longo da sua obra, Vergílio Ferreira reflectiu sempre sobre a Arte e as suas várias

manifestações: da literatura à pintura, da música ao bailado e ao cinema. As suas obras

são cheias de artistas: romancistas (como Guida de Cântico Final, Alberto de Aparição,

Adalberto de Estrela Polar), músicos (como Paula de Cântico Final ou Cristina de

Aparição), de bailarinas (Elsa de Cântico Final) e pintores (Mário e Armando de

Cântico Final e Garcia de Estrela Polar). Vergílio Ferreira utiliza a expressão “o pastor

do mundo” para designar o artista. Esta expressão adopta da imagem de Heidegger que

definia o poeta como o pastor do ser.148

Vergílio Ferreira vê a afinidade entre Deus e o artista, uma vez que ambos são os

criadores. A arte é assim “a sagração do próprio acto criador” (CF, p. 222). É

propriamente o acto de criação que associa o artista a Deus:

148 RODRIGUES, Isabel Cristina: Uma liturgia invisível: Arte e sagração em Vergílio Ferreira. In Vária Escrita,op.cit., p. 173.

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Deus criara o mundo à escala humana, o artista recria-o à escala divina. […] O gesto do artista responde assim à ambição-limite de reinstaurar Deus em si, reconduzindo-o desde onde o colocara, retirar-lhe os poderes que lhe concedera para os assumir totalmente. A pureza da arte exprime assim a afirmação do absoluto do homem contra tudo o que nele próprio o não é. (IC, pp. 186–187)

A obra de arte instaura o homem no poder de criação no sentido que este ainda tem

tempo para reconstruir o seu reino. A criação é entendida por Tomás de Aparição como

toda a verdade para a vida. Esta opinião é, porém, convertida pelo louco Carolino que

conclui que o homem é deus porque pode matar, pode destruir: “matar é igual a criar”

(AP, p. 113). Eternidade de Deus é substituída pela eternidade da arte. Em Cântico

Final surge o confronto entre vários tipos de arte – pintura e dança, ou seja, entre Mário

e Elsa. Mário representa a eternidade, porque a sua arte fica para sempre, mas a arte de

Elsa é temporal. No caso de Elsa é acentuada a importância do corpo que já

mencionámos portanto não é surpreendente, que a arte de Elsa morre, mesmo como o

seu corpo:

Vocês, os das artes, das letras, ainda acreditam no futuro. Trabalham com palavras, com as cores que os outros hão-de um dia recuperar. Eu salvo-me e condeno-me só comigo. Jogo tudo nesta coisa que há-de apodrecer amanhã. Creio com toda a minha ira no breve instante. Mas como é fascinante pensar que nada vai restar de mim, que eu própria e o meu público acidental esgotamos totalmente a minha arte! (CF, p. 65)

O trecho citado também mostra a forte afinidade com Camus. O sublinhado pelo autor

(“ainda acreditam no futuro”) pode-se interpretar no sentido camusiano, isto é, os

artistas que ainda acreditam no futuro não estão conscientes da sua morte. Ao contrário,

o homem absurdo já sabe que vai morrer, o que é o caso de Elsa.

Outra questão ligada à arte que assalta o leitor ao ler Cântico Final, é o

problema da arte religiosa. Mário é fascinado pela Capela da Senhora da Noite. Uma

capela é um símbolo religioso, mesmo aquela que é abandonada e que servia a fins

profanos, mantém a aura divina. Mário é tocado pela fascinação da capela enquanto

artista. Mas o acto de reconstrução da capela não representa a conversão do artista, ele

fica ateu.149

Mário porém […] via no ateísmo precisamente a condição de tal arte “religiosa”. Separado de uma crença, que decerto conheceu, o artista podia agora olhá-la

149 JÚLIO: 1996, op.cit., p. 59.

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como um qualquer valor humano – o amor, o sonho. Mas sobretudo podia reconhecer nela agora a saudade de uma harmonia perdida. Mas a lembrança de um pai que nos morreu não o ressuscita... A decoração de uma capela era o sinal sensível, corrente, de um apelo que não findara, de uma surpresa que se não esgotou. Era o fim de um fim – não o começo de um regresso. (CF, p. 171)

Reconstruir a capela, foi para Mário um acto artístico e não religioso. Especialmente foi

o gesto do seu amor por Elsa, a capela foi consagrada a ela. Ao mesmo tempo foi a

grande demonstração do humanismo vergiliano. Em vez do ente divino, apareceu no

altar a face do ser humano.

Não nos atrevemos a afirmar que se trata da divinização da mulher, mas é para

notar que mulher em geral na obra vergiliana figura como a metáfora da arte e da

comunhão artística. Através da arte os protagonistas encontram a forma mais justa de

comunicação (comunhão) com o outro. Por exemplo, o encontro de Guida com Mário

na exposição. O quadro de Galo que Mário pintara, emocionou primeiro Guida, depois

Rebelo. E, em Aparição a música aparece fundamentalmente ligada a Cristina. Estrela

Polar, por sua vez, traz a ligação entre o canto e Irene.

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9. Conclusão

Chegando ao fim do nosso trabalho, antes de resumirmos o seu conteúdo,

gostaríamos de frisar que toda a obra de Vergílio Ferreira, quer os ensaios quer os

romances, é bem ponderada e trabalhada. O escritor com muita frequência repete os

seus pensamentos nos diversos pontos da sua obra. Assim, encontrámos as questões

principais surgidas na obra literária e posteriormente desenvolvidas no diário. Ou, ao

contrário, muitas das inquietações metafísicas dos ensaios do autor, sobretudo do ensaio

“par excellence” Invocação ao Meu Corpo, constituem o cerne das suas histórias

romanescas. Mas nunca se contradiz, fica sempre fiel àquilo que em outro local haveria

sublinhado.

A literatura fazia parte da filosofia, como mencionámos no segundo capítulo

deste trabalho. Ao se emancipar do âmbito filosófico, começou a discussão que tem por

seu alvo esclarecer e definir as zonas de interesse de cada disciplina. Acentuámos que a

área da filosofia consiste no facto desta não ter a sua área autónoma, enquanto o campo

literário é muito mais restringido. Esboçámos várias atitudes possíveis acerca da relação

entre filosofia e literatura chegando à conclusão que também a filosofia tem um sentido

por si só. Não prestámos grande atenção ao afirmar a importância da literatura, uma vez

que achámos que se geralmente duvida mais sobre a relevância da filosofia. Escrevemos

sobre a “luta” entre filosofia e literatura no que diz respeito à questão da primazia.

Nenhuma delas tem, a nosso ver, qualquer privilégio, nenhuma delas é a mais

importante. Mas achámos a filosofia superior no sentido que fica em cima de todas as

ciências. Ela não tem a sua área porque todas as áreas do saber humano podem

constituir um campo para a interrogação filosófica.

Diálogo entre a literatura e a especulação filosófica é marcante sobretudo na

segunda metade do século XX, e sempre que se fala da literatura filosófica, frisa-se o

existencialismo. Como Camus nos diz, os grandes romancistas são os filósofos. Na sua

produção literária, como na de Sartre, encontrámos os ensaios filosóficos mas também

as obras ficcionais. Mas, como diz Camus, o pensamento filosófico pode entrar na obra

literária mas a literatura e filosofia não são a mesma coisa.

O existencialismo, assim, parece ser o movimento que une literatura e filosofia.

Mas falar do existencialismo condiciona tocar na fenomenologia. Vergílio Ferreira

deixa-se, notavelmente, inspirar pelos sistemas filosóficos de Husserl, Heidegger,

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Merleau-Ponty, Kierkegaard, Nietzsche, Jaspers, Sartre e Camus. Naturalmente, não são

só estes pensadores que Vergílio Ferreira gostou de ler e de dar continuidade às suas

filosofias. No nosso trabalho destacámos propriamente aqueles filósofos cujas marcas

são vastas e profundas na escrita vergiliana. O interessante é que, muitos deles, como

também o próprio Vergílio Ferreira, recusam a denominação existencialista. Frisámos a

crítica que Camus fez, orientada aos filósofos que segundo ele eram só um pouco

existenciais. Como já foi dito, Vergílio Ferreira não quer ser chamado existencialista, no

entanto, nos ensaios e nas entrevistas, fala abertamente da sua filosofia e denomina-a de

existencial.

Como podemos ver ao longo do nosso trabalho, Vergílio Ferreira não merece ser

tratado só como escritor, mas também, ao mesmo tempo, como pensador. A sua obra,

em geral, aprofunda os aspectos filosóficos, sobretudo as referentes à morte, à vida e à

condição humana. Este procura as respostas às perguntas sobre a essência humana, a

arte e, ainda, sobre Deus. Não são só, então, os seus ensaios cheios das interrogações

metafísicas, mas também se trata da obra literária que exprime, muitas vezes, grande

afinidade com o ensaísmo e vice-versa. Os ensaios vergilianos têm teor literário.

Ao dizer que obra vergiliana contém muitos vestígios dos outros filósofos, não

queremos minimamente consagrar que Vergílio Ferreira foi só o epígono. Ele escolhe

sempre a sua via própria, uma vez concordando, outra vez discordando com as opiniões

do seus precursores. Assim, por exemplo, acontece, que polemiza com Sartre,

afirmando que a famosa assertiva sartriana a existência precede a essência não é muito

válida. Oferece outro ponto de partida para todo o questionamento filosófico que é a

subjectividade. O EU vergiliano executa a redução fenomenológica que desemboca no

eu-corpo vergiliano. Isto é, nomeadamente o grande tema de Aparição. Alberto Soares

tenta fazer a redução fenomenológica para conhecer o seu EU desprovido de todos os

elementos acessórios. O EU vergiliano é feito de duas partes, que são o corpo e o

espírito. Daí surge um equívoco. Concordando com Heidegger, Vergílio Ferreira

escreve que o nosso EU é ser-para-a-morte. E acrescenta, de modo pontyano, que é o

nosso corpo que vive para a morte. A única possibilidade é chegar à reconciliação,

sabendo que vamos morrer. Neste ponto concilia com Camus. A nossa vida é absurda,

fazemos os projectos para o futuro, mas ao mesmo tempo sabemos que vamos morrer.

O acto de se autoconhecer na comunhão com o outro é desenvolvido em Estrela

Polar. Alberto Soares de Aparição não conseguiu conhecer o seu estar sendo. Portanto

Adalberto de Estrela Polar tenta através da comunhão com a mulher amada, procurar o

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seu EU. Adalberto quer-se conhecer em sentido objectivo, mas a comunhão absoluta

com Aida/Alda não é possível nem o ajuda na procura do terceiro que autentique a

relação com a outra pessoa.

A questão de morte de Deus é marcante sobretudo em Aparição e em Cântico

Final. O homem não se contenta em declarar a morte de Deus, vai mais longe. Substitui

Deus pelo homem. A liberdade humana retoma a Deus o que lhe pertence. A

antropologia vergiliana consiste no facto do homem criar o seu reino. Vivemos numa

época sem valores e Vergílio Ferreira resolve esta situação pondo como valor o próprio

homem. O exemplo eloquente é a cena de Cântico Final na qual Mário passa a face de

Elsa amada no altar.

Cântico Final valoriza a existência da arte e do artista, que tem para Vergílio

Ferreira um papel importante. Mesmo como Deus, o artista é criador. Deus criou o

mundo e o artista chegou para o recriar. Através da obra da arte, as personagens

conseguem alcançar a comunhão absoluta. Assim, no humanismo vergiliano é o artista

quem, em alguns aspectos, suplanta Deus.

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