A Formacao Do Engenheiro Inovador

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    A FORMAO DO

    ENGENHEIROINOVADOR

    uma viso internacional

    Marcos Azevedo da Silveira

    2005

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    Copyright 2005 by Marcos Azevedo da Silveira

    O autor subscreve a licena para uso no comercial conforme a Atribuio-UsoNo-Comercial 2.0 da Creative Commons (texto completo emhttp://creativecommons.org/licenses/by-nc/2.0).Segundo esta licena, partes do texto ou todo o texto podem ser copiados,reproduzidos e distribudos, ou a partir dele criar obras derivadas, desde que:a) seja dado crdito ao autor original,b) a presente obra ou suas partes no sejam utilizadas para fins comerciais,c) para cada novo uso ou distribuio seja deixado claro para outros os termos

    da licena desta obra.Qualquer uma dessas condies pode ser renunciada, desde que o autor concedasua permisso. Qualquer direito de uso legtimo (fair use) concedido por lei, ouqualquer outro direito protegido pela legislao local, no so em hiptesealguma afetados pelo disposto acima.

    Catalogao-na-fonte

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro PUC-RioSistema Maxwell - LAMBDA - PUC-RIO / DEE

    URL:http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.brRua Marqus de So Vicente, n225.

    Gvea - Rio de Janeiro, RJ

    S587 Silveira, Marcos Azevedo daA formao do engenheiro inovador : uma viso

    internacional / Marcos Azevedo da Silveira. Rio de JaneiroPUC-Rio, Sistema Maxwell, 2005.

    147 p. : il.

    ISBN 85-905658-2-3

    1. Formao do engenheiro. 2. Inovao. 3. Papel doengenheiro. I. Ttulo.

    CDD 620

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    PREFCIO DO AUTOR

    O conjunto de idias apresentadas neste livro fruto de um trabalhocoletivo, produto de um grupo que h mais de dez anos vem discutindo o temada formao do engenheiro no mbito nacional e internacional. Fazem partedeste grupo interessado na formao do engenheiro inovador os colegas CliaNovaes, Christian R. Kelber, Isabel Paes e Silva, Jos A. Aranha, Jos A. Parise,Lus A. Meirelles, Luiz A. Pimenta-Bueno, Luiz Carlos Scavarda do Carmo, ManoelR. de Freitas, Mauro Schwanke da Silva, Sinval Zaidan Gama e Terezinha Costa.Os artigos que serviram de base maior parte dos captulos - e que l estoextensivamente citados - atestam este carter coletivo, s quebrado pelo fato deque o texto final de minha responsabilidade - e da seus exageros, lacunas oufalhas.

    O livro no existiria sem o encorajamento e a amizade de Luiz CarlosScavarda do Carmo e de Jos Alberto Parise. Em especial do ltimo, que, comomeu superior hierrquico, passou-me a misso de preparar o livro e foi oconstante revisor e crtico ao longo de sua preparao, em muito enriquecendo o

    texto inicial. Para eles, meu especial agradecimento. E claro, meusagradecimentos e desculpas aos meus alunos de graduao, cobaias e crticos demeus experimentos didticos.

    A concepo grfica e o trabalho que permitiram seu lanamento em papele tambm eletronicamente - dentro das Publicaes On-line do Sistema Maxwell -foram executados pela equipe do LAMBDA, laboratrio do DEE/PUC-Rio, criado edirigido pela professora Ana Pavani. A ela e a toda a sua equipe meus sincerosagradecimentos.

    Finalmente, meu carinho e admirao para minha esposa e companheira (eco-autora!), Marlise Arajo, com quem muito aprendo ao observar a metodologiadidtica que desenvolve junto ao Ensino Mdio, no Colgio Pedro II, e com quemdiscuto continuamente as idias que me assolam as meninges.

    A organizao do livro alterna captulos onde os problemas so colocadoscom captulos onde os conceitos fundamentais so trabalhados (aparecendo a ohabitus acadmico do autor), entremeados de sees que apresentam casos reaisindicando possveis caminhos. Uma sugesto , em primeira leitura, ler pelo altoas sees mais acadmicas, deixando sua abordagem para quando fornecessrio, se tal ocorrer algum dia.

    Rio de Janeiro, abril de 2005

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    QUAL A MELHOR FORMAO PARA NOSSOSENGENHEIROS?

    Todos ns, engenheiros professores, j fizemos essa pergunta em algum

    momento de nossa vida acadmica. Mais ainda: se indagarmos a cada docente denossa instituio quais competncias e habilidades devem ser conferidas aosnossos alunos para que, quando formados, atendam adequadamente sociedade, quais fatores mais afetam seu processo de aprendizagem, nos tantosanos que passam por nossas escolas, ou qual perfil deve ser buscado naformao do engenheiro, ficaremos surpresos com a diversidade de respostas,at dentro de um mesmo departamento.

    Em certas ocasies, notamos, inclusive, que alguns destes perfis sodistintos daqueles preconizados no projeto pedaggico dos cursos, como se este

    j no atendesse sua funo de servir como pano de fundo para as decisesacadmicas e pedaggicas do corpo docente, suplantado por outros fatores que,eventualmente, se tornam predominantes.

    Respostas a estes e a tantos outros questionamentos que fazem do livrodo professor Marcos da Silveira uma importante contribuio ao cenrio atual daEducao em Engenharia.

    Para entendermos este cenrio, preciso recuar 40 anos, quando teve incioum apoio sistemtico ps-graduao e pesquisa no pas, com claros reflexosnos cursos de graduao das engenharias. Hoje, a grande maioria dosprofessores de Engenharia qualificada com o grau de mestre ou doutor. Suaatuao, do vestibular ps-graduao, trouxe, mais do qualquer outro fator,uma contribuio positiva e inegvel qualidade da Engenharia Nacional. Poroutro lado, os massivos investimentos realizados na rea de ps-graduao epesquisa a partir, principalmente, de recursos pblicos - jamais foramacompanhados de igual esforo na Graduao. Algumas excees podem serdestacadas: a fase do programa REENGE, nos anos 90, ainda que efmera,imprimiu uma vitalidade indita ao Ensino de Engenharia, disseminando adiscusso do tema; um esforo ainda mais notvel na medida em que ocorreu,em grande parte, no mbito de redes regionais e nacionais. Provo e Avaliaodas Condies de Ensino, posteriormente substitudos pelo SINAES, tambmcontriburam para o estabelecimento de uma cultura de diagnstico eplanejamento na Graduao da Engenharia.

    Estimulados por estas medidas de mbito nacional, muitos de ns,professores, aprofundamo-nos no tema de Educao em Engenharia. No entanto,ao contrrio de nossa formao como pesquisadores (tipicamente doutores, 2+4anos, incluindo cursos completos ou estgios no exterior), nosso aprimoramentocomo mestres formadores de engenheiros limitou-se, em grande parte, aalgumas poucas horas de palestras ou seminrios sobre o assunto. Igualmente,

    arrisco-me a afirmar que, baseado em minha prpria experincia, grande partedos que se sentiram atrados pelo estudo na rea de Educao em Engenharia, oforam por contingncia de suas atribuies acadmico-administrativas. Oprofessor Marcos da Silveira, ativo participante do REENGE desde seusprimrdios, e com ecltica formao em Matemtica, Fsica e Engenharia, foge aeste padro. Por este motivo, suas reflexes sobre a formao do engenheiro,encontradas em expressiva produo acadmica na rea de Ensino deEngenharia, deveriam, necessariamente, estar contidas, de alguma forma, empoucos compndios: desta necessidade de compartilhamento de conhecimento,to relevante e enriquecedor, resultou o presente livro.

    A literatura sobre o Ensino de Engenharia ainda insuficiente no Brasil.Neste sentido, com A Formao do Engenheiro Inovador, estudo meticuloso

    com viso histrica e geogrfica do processo de formao do engenheiro -

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    seguido de proposta voltada Inovao - o professor Marcos da Silveira contribuidecisivamente para a discusso sobre o tema.

    Resta a todos ns, aps a leitura, a responsabilidade de refletir acerca deuma nova questo, ainda mais desafiadora que aquela que inaugura esteprefcio: Qual a melhor formao para nossos professores de Engenharia? .

    Jos Alberto dos Reis PariseDecano do Centro Tcnico Cientfico

    PUC-Rio

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    SUMRIO

    Contra Capa i

    Prefcio do Autor iii

    Prefcio do Parise ivSumrio vi

    Lista de siglas utilizadas viii

    I. O PAPEL DO ENGENHEIRO E SUA FORMAO 1

    I.1. Mudanas no campo de atuao do engenheiro 3

    I.2. Funes, perfis de formao e papis do engenheiro 6

    O modelo francs 9

    O modelo alemo 10

    O modelo anglo-saxo 11O caso brasileiro 16

    Uma mudana estratgica nas Amricas 19

    I.3. Acordos internacionais e o problema da certificao 22

    I.4. A construo do currculo de engenharia 26

    II. UM QUADRO CONCEITAL PARA A FORMAO DO ENGENHEIRO 28

    II.1. Alguns conceitos fundamentais 29

    Competncias 29

    Saberes, conhecimentos, savoir-faire 31Habilidade 33

    Aptido, atitude, etc. 33

    Voltando s competncias 34

    Currculo 35

    II.2. Um quadro terico descrevendo as atividades de engenharia 38

    II.3. O perfil de formao 44

    II.4. A estrutura curricular de um curso de engenharia 48

    II.5. Exemplos 52III. A ESCOLHA DOS PERFIS DE FORMAO 57

    III.1. Ponto de vista do mercado de trabalho 58

    Uma observao final 66

    III.2. Ponto de vista da sociedade 68

    III.3. Ponto de vista da academia 71

    III.4. Ponto de vista do aluno 75

    Apndice III. Diretrizes curriculares e perfis de formao citados 79

    Lista de competncias (skills) da ABET 79

    Listas de competncias industriais e alguns comentrios 79

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    Lista de recomendaes curriculares da ABENGE 81

    Diretrizes curriculares nacionais para os cursos de engenharia 83

    IV. EDUCAO PARA A INOVAO 87

    IV.1. A engenharia e as cadeias produtivas 87

    A engenharia hoje 89Os pases em desenvolvimento 91

    IV.2. Algumas definies referentes educao e poltica de

    inovaes91

    Cadeias produtivas e inovaes 92

    Modos de financiamento 94

    IV.3. Educao para a inovao 96

    Mudanas estruturais e de paradigma 98

    IV.4. A formao do engenheiro empreendedor: uma nova estruturauniversitria

    99

    O engenheiro empreendedor com base cientfica 100

    Desenvolvendo engenheiros empreendedores em universidades 101

    Gerenciando a mudana cultural da instituio 101

    Como mover a universidade 107

    As meta-estruturas de organizao e contato 108

    V. CURRCULOS PARA ENGENHEIROS INOVADORES 111

    V.1. Uma discusso aberta 113V.2. Disciplinas de projeto 116

    V.3. Currculos em torno de projetos 122

    V.4. Um modelo radical: o tempo do projeto 128

    V.5. O tempo e o espao do aprendizado 130

    Apndice V.1. Avaliao de projetos na EC-Lille 133

    Apndice V.2. A formao cultural e humanstica 133

    EPLOGO 135

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    Lista de siglas utilizadasABENGE - Associao Brasileira de

    Ensino de EngenhariaABET - Accreditation Board of

    Engineering and TechnologyASEE - American Society for

    Engineering EducationASIBEI - Asociacin Iberoamericana

    para Enseanza de IngenieraASME - Americam Society of

    Mechanical EngineeringBNDE - Banco Nacional do

    Desenvolvimento EconmicoBNDES - Banco Nacional do

    Desenvolvimento Econmico eSocial

    CALTEC - California Institut ofTechnology

    CAPES - Coordenao deAperfeioamento do Pessoal deEnsino Superior (rgo do MEC)

    CCS - Centro de Cincias Sociais (daPUC-Rio)

    CEFETs - Centros Federais de EnsinoTecolgico

    CELPE - Companhia Eltrica dePernambuco

    CENPES - Centro de Pesquisa (daPETROBRAS)

    CEPEL - Centro de Pesquisa em

    Eletricidade (da ELETROBRAS)CERJ - Companhia de Eletricidade doRio de Janeiro

    CFE - Conselho Federal de EducaoCNE - Conselho Nacional de

    EducaoCNPq - Conselho Nacional de

    PesquisaCNRS - Conseil National de

    Recherche Scientifique (Frana)COBENGEs - Congressos Barsileiros

    de Ensino de Engenharia

    CONFEA - Conselho Federal deEngenharia, Arquitetura eAgronomia

    COPPE - Coordenaa de Programasde Ps-Graduao em Engenharia(da UFRJ)

    CR - coeficiente de rendimento(mdia ponderada das notas dealunos de graduao)

    CREAs - Conselhos Regionais deEngenharia e Arquitetura

    CEFI - Centre de ressources et deprospective sur les grandescoles d'ingnieurs et de gestion,

    et sur les emplois d'encadrement(Frana)

    CRITT - Centre Regional deIntgration Technique etTechnologique (Frana)

    CTC - Centro Tcnico Cientfico (daPUC-Rio)

    DUT - Diplme UniversitarireTechnologique

    Ecs Ecoles CentralesEC-Nantes - cole Centrale de

    NantesEC-Lille cole Centrale de LilleEC-Lyon cole Centrale de LyonEC-Paris cole Centrale de ParisECTS - Europeen Credit Transfer

    System (sistema europeu de

    crditos universitrios)EDF - Electricit et Gaz de FranceEMBRAPA - Empresa Brasileira de

    Pesquisa AgropecuriaENSAM - cole Nationale Superieure

    d'Arts et MtiersESC-Lille - cole Superieure de

    Commerce de LilleESG - Escola Superior de GuerraEST - cole Superieure de

    TlcommunicationsFac - Facult (gria francesa)

    FAPERJ - Fundao de Amparo Pesquisa do Estado do Rio deJaneiro

    FAPESP - Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo

    FEANI - Fdration Europenned'Associations Nationalesd'Ingnieurs

    FIESP - Federao das Indstrias doEstado de So Paulo

    FIRJAN - Federao das Indstrias doEstado do Rio de Janeiro

    FFT - Fast Fourier TransformFHC - Fernado Henrique CardososFINEP - Financiadora de Estudos e

    Projetos (do MCT)ICECEs - International Conferences

    on Engineering and ComputerEducation

    ICEEs - International Conferences onEngineering Education

    IEEE - Institut of Electrical andEletronic Engineers

    IME - Instituto Militar de EngenhariaINEER - International Network for

    Engineering & EducationResearch

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    INPI - Instituto Nacional dePropriedade Industrial

    INT - Instituto Nacional deTecnologia

    IRCCyN - Institut de Recherche enCommunication et Cyberntique

    de NantesIASEE - Ibero-American Seminar on

    Engineering EducationITA - Instituto Tecnolgico da

    AeronuticaIUT - Institut Universitaire

    TechnologiqueLATTES - Currculo informatizado

    para pesquisadores organizadopelo CNPq

    MBA - Master in Business andAdministration

    MCT - Ministruio da Cincia eTecnologiaMEC - Ministrio da EducaoMIT - Massachussets Institut of

    TechnologyMSc - Master of ScienceNSF - National Science Foundaton

    (EEUU)OGM - organismo genticamente

    modificadoOMC - Organizao Mundial do

    Comrcio

    ONU - Organizao das NaesUnidasPADCT - Programa de Apoio ao

    Desenvolvimento Cientfico eTecnolgico (MCT)

    PhD - Doctor in PhilosophyPID - controlador Proporcional +

    Integral + DerivativoPISA - Program for International

    Student Assessment (OECD -Organization for Economic Co-operation and Development)

    PPP - projeto poltico-pedaggicoPRODENGE - Programa deDesenvolvimento da Engenharia(FINEP)

    PUCMG - Pontifcia UniversidadeCatlica de Minas Gerais

    PUC-Rio - Pontifcia UniversidadeCatlica do Rio de Janeiro

    PUCRS - Pontifcia UniversidadeCatlica do Rio Grande do Sul

    RECOPE - Redes Cooperativas deEngenharia (sub-programa doPRODENGE)

    REENGE - Rengenharia daEngenharia (sub-programa doPRODENGE)

    SAE - Society of AutomotiveEngineers

    SEBRAE - Servio de Apoio s Micro

    e Pequenas EmpresasSEFI - Service de l'Emploi, de la

    Formation et de l'InsertionProfessionelles (Frana)

    SENAI - Servio Nacional deAprendizagem Industrial

    SESU - Secretaria de Ensino Superior(MEC)

    SUCCED - Southearsten Universityand College Coalition forEngineering Education

    TecGraf - Laboratrio do

    Departamento de Informtica daPUC-RioTFC - trabalho de fim de cursoTIMSS - Trends in Mathematical and

    Sciences StudyUEALC - Espao comum de endino

    superior para a Unio Europia ea Amrica Latina

    UERJ - Universidade do Estado doRio de Janeiro

    UFMG - Universidade Federal deMinas Gerais

    UFRGS - Universidade Federal do doRio Grande do SulUFRJ - Universidade Federal do Rio

    de JaneiroUFSC - Universidade Federal de

    Santa CatarinaUMIST - University of Manchester

    (RU)UNICAMP - Universidade Estadual de

    CampinasUNIFEI Universidade Federal de

    Itajub (antiga EFEI)

    UNIMEP - Universidade Metodista dePiracicabaUNIP - Universidade PaulistaUNISINOS - Universidade do Vale

    dos SinosUNIVAP - Universidade do Vale do

    ParabaUSP - Universidade de So PauloVBA - Verbund behinderter

    ArbeitgeberInnen (AssociaoAlem de Trabalhadores).

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    Captulo I O papel do engenheiro e sua formao

    1

    Captulo I

    O PAPEL DO ENGENHEIRO E SUA FORMAO

    O contexto social e econmico onde os engenheiros atuam mudouradicalmente desde a criao dos cursos destinados sua formao, no final dosculo XVIII, mudana que se acelerou nos ltimos decnios do sculo XX. Novastecnologias, como a pesquisa operacional, a informtica, as telecomunicaes eas biotecnologias, no s deram origem a novas ferramentas, exigindo umaformao complementar, mas alteraram profundamente os processos de trabalhoe suas representaes. Novas questes passaram a afetar esta atuao, como asrelacionadas aos impactos ambientais e sociais das atividades produtivas, criandonovos problemas e novas reas de trabalho e novas regulamentaes a seremconsideradas (ou construdas). O mercado de trabalho estendeu-se para o setorde servios seja porque este foi trazido para dentro do planejamento da

    produo pela busca da "qualidade total", pelo uso intensivo das redes detelecomunicao e da informtica e pela modularizao e terceirizao de partedos sistemas de gerenciamento e produo, seja porque os servios em geralesto cada vez mais dependentes da capacidade de formalizao e organizaoprprias engenharia.

    Estas mudanas tem levado ao aparecimento de novos cursos, habilitaes,modalidades e especializaes, alm da necessidade de contnua adaptao doscursos j existentes e que no pode ser atendida apenas pela criao de cursosde ps-graduao. As questes que devem ser colocadas e respondidas - dianteda criao ou mudana de cursos de engenharia, passaram a ser repetidas ourecolocadas com enorme freqncia, exigindo o desenvolvimento de umametodologia mais sistemtica para sua abordagem.

    Quais os perfis de formao melhor indicados para a situao atual? Comoescolh-los, diante das diferentes vises de futuro encontradas na academia e nasociedade, representando os mais diversos interesses? Como considerar asituao local de cada escola e as mutaes do mercado de trabalho? Comodesenvolver currculos e estratgias didticas frente s novas necessidades e aosnovos e variados perfis de formao? Dado que a capacidade de produzirinovaes tecnolgicas e transform-las em produtos tornou-se um dos principaisativos econmicos, como preparar os engenheiros para esta nova misso,levando em considerao inclusive o projeto de pas e a situao nacional?Como avaliar os resultados obtidos e informar sociedade o que est, de fato,lhe sendo oferecido?

    A relevncia atual destas questes gerou o aumento de sua discusso

    nacional e internacional. Vrias sociedades e organizaes foram criadas emtorno destes temas (ABENGE, ASIBEI, SEFI, ASEE, INEER, ABET, etc.),promovendo um grande nmero de conferncias (Congressos Brasileiros deEnsino de Engenharia COBENGE, os enormes congressos da ASEE, e asInternational Conferences on Engineering Education - ICEE, e.g.), alm deprogramas governamentais especialmente dedicados (Engineering EducationCoalizations/ NSF/EEUU e PRODENGE/REENGE, e.g.). Diversos acordosinternacionais tm sido firmados buscando a criao de reas comuns deformao (mobilidade de estudantes), ou visando o reconhecimento oucredenciamento de ttulos, como as Declaraes do Rio de Janeiro (1999) e deParis (2000) criando a UEALC (espao comum de ensino superior para a UnioEuropia, Amrica Latina e Caribe), a Declarao de Bologna (1999) criando oespao comum europeu para a educao em engenharia, e os Acordos deWashington (1989) e de Sidney (2001) criando o espao comum em educaoem engenharia para os pases de lngua inglesa.

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    Captulo I O papel do engenheiro e sua formao

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    Estas questes tornam-se especialmente incmodas quando percebemos adistncia entre os diferentes perfis de formao propostos pela academia, pelosorganismos encarregados do registro de profissionais, e pelos rgos quecredenciam e avaliam as escolas de engenharia, sem deixar de mencionar asexpectativas no mercado de trabalho1. Pensamos tanto nos perfis explicitamentepropostos como nos definidos implicitamente a partir das sistemticas de

    avaliao, como ocorreu com o Exame Nacional de Cursos brasileiro, vulgo"Provo"2.

    Estas questes so essenciais para nosso pas devido sua dependnciatecnolgica, em uma sociedade internacional onde a inovao tecnolgica umdos principais trunfos econmicos e polticos questo ainda pouco consideradana formao dos engenheiros brasileiros e em discusso ainda inconclusa noCongresso Nacional.

    Estas questes tornam-se prementes se considerarmos a atual presso daOrganizao Mundial do Comrcio (OMC) no sentido de tornar mais flexvel aregulamentao de acesso aos mercados nacionais de educao, com propostasexplcitas por parte do Banco Mundial, dos EEUU, da Austrlia e do Japo.

    Estas questes possuem relevncia tcnica, como os especialistas na rea

    de educao no cansam de assinalar3, porque entre um perfil de formaodesejado (com suas listas de competncias), o currculo planejado e o currculoreal, h distncias tanto maiores quanto maior a esperana de que elas ocorrampor mudanas espontneas de atitude das escolas e de seus professores.

    Em uma conhecida boutade4, um aluno pergunta a seu professor como podeser mudado o currculo do curso de engenharia. Este responde que h duasformas, a normal e a milagrosa. O aluno pergunta pela forma normal. O professorlhe responde que aquela em que um anjo desce ao Conselho Universitrio eentrega um currculo novo. Naturalmente espantado, o aluno pergunta qual ,ento, a forma milagrosa. Resposta: o Conselho Universitrio encomendarpesquisas, discutir com os professores os seus resultados, os objetivos dauniversidade, os meios e as possibilidades, e ento organizar e promulgar o novo

    currculo.Adiantando uma das crticas a esta boutade, cabe lembrar que mudanasem currculos no so realizadas de forma completa em um instantedeterminado. So realizadas ao longo de todo um demorado processo,comeando pela escolha de uma viso de futuro, de um perfil de formao,passando pela elaborao, experimentao e avaliao de novos currculos, novasestratgias e novas metodologias, at a implantao incremental (e sempreexperimental, isto , sujeita a revises) dos novos objetivos e mtodos assimdelineados.

    Neste trabalho pretendemos fornecer subsdios para enfrentar algumas dasquestes colocadas acima. Comearemos comentando as mudanas scio-econmicas que afetam atualmente a atividade do engenheiro. Depois

    investigaremos rapidamente os diferentes perfis de formao e os papisexercidos ou propostos para engenheiros, em especial no Brasil. O que permitircriticar as diferentes definies de engenharia encontradas na literatura e osperfis de formao para engenheiros propostos para o incio deste sculo.

    1 Temas desenvolvidos em trabalhos recentes, como Sinval Z. Gama, O perfil de formao doengenheiro eltrico para o sculo XXI, Tese de Doutorado, Programa de Ps-Graduao emEngenharia Eltrica, PUC-Rio, 2002.2 O perfil exigido pelo "Provo" pode ser descrito como a capacidade de resolver problemas tpicos docontedo acadmico de uma determinada habilitao da engenharia em provas escritas de 4 horas, oque limita os problemas a um conjunto bsico ou paradigmtico, pr-estabelecido, sem que sejapossvel o exerccio da criatividade e das atitudes prprias a um engenheiro.3 Ver Ph. Perrenoud, La transposition didactique partir de pratiques: des savoirs aux comptences,in Revue des sciences de l'ducation (Montral), Vol XXIV, n. 3, 1998, pp. 487-514 (acessvel no sitedo autor), ou Ph. Perrenoud, Paquay, Altet e Charlier, Formando professores profissionais. Quaisestratgias? Quais competncias?Porto Alegre, RS: ARTMED Ed.4 Citada na Conferncia Anual da ASEE de 1993 (1993 ASEE Annual Conference Proceedings).

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    Captulo I O papel do engenheiro e sua formao

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    Ilustrados por estas crticas, poderemos problematizar a questo de onde e comoobter informaes para desenvolver currculos de engenharia e discutir algumasdas dificuldades a serem consideradas, incluindo a a questo dos valores quepresidem a construo de um currculo. O referencial terico ser apresentado noprximo captulo.

    I.1. Mudanas no campo de atuao dos engenheiros

    Um exemplo interessante de mudana no campo de atuao dado pelosengenheiros eletricistas, especialistas em sistemas de potncia. No passadorecente (h 20 anos) exigia-se que estes engenheiros fossem apenascompetentes em projetar e gerenciar sistemas de gerao, transmisso edistribuio de energia eltrica. Outras caractersticas, como liderana oucompetncia administrativa, eram apenas mencionadas como desejveis, nocomo determinantes. Temas como previso da demanda de energia eltrica,projeto de construo de novas usinas ou de novas linhas de transmisso, ouainda a determinao dos fluxos de potncia, eram da alada puramente tcnica

    destes engenheiros, no mximo dividindo a discusso com engenheiros civis (nocaso da construo de barragens, por exemplo) ou economistas (para tratar definanciamentos). A competncia e a responsabilidade exigidas eramessencialmente tcnicas.

    Hoje em dia, a construo de uma barragem pode ser adiada por anos (oumesmo impedida) por razes ambientais, acionadas pelas muitas ONGs dedicadasao assunto. Por esta razes, deve ser cotejada com a possibilidade do uso defontes alternativas de energia. Da equipe de projeto devem fazer parteengenheiros eletricistas, engenheiros civis, advogados, economistas, gelogos,gegrafos e socilogos, pois a nova usina deve ser projetada a partir de umaclara viso histrico/social, considerando seus impactos ambientais, sociais epolticos, alm dos legais e econmicos. Como declarou o Diretor Tcnico da

    ELETRONUCLEAR em alocuo recente na PUC-Rio, uma nova usina nuclear devecomear a ser discutida a partir das convenincias econmicas, polticas eambientais, para s ento, e em funo delas, passar discusso tcnica. Porm,como separar os diferentes domnios de discusso se as possibilidades tcnicasafetam as decises econmicas, polticas e ambientais, e vice-versa?

    O equipamento eltrico atual deve ser substitudo (trazendo a qualidade daenergia fornecida aos padres exigidos pelas agncias reguladoras) ou mantido (oque implica em polticas pesadas de manuteno e maior risco de multas porparte das mesmas agncias)? Se uma nova tecnologia for esperada para osprximos cinco anos, a segunda opo pode ser a melhor: equipamentos eltricoscostumam ter vida til de trinta anos, e, se a nova tecnologia trouxer ganhoscompensadores em pouco tempo, vale a pena esperar. A anlise de

    custo/benefcio da substituio de equipamentos imbrica fortemente ascompetncias cientficas (prever as novas tecnologias), tcnicas, econmicas elegais (a regulamentao do setor extremamente complexa).

    Os engenheiros trabalhando com temas tcnicos, mas no envolvidos emmanuteno ou compra de equipamento, costumam estar s voltas comintegrao, desenvolvimento ou anlise de sistemas. A palavra muitogenrica, mas descreve um mundo muito preciso no seio de uma empresa: comoas informaes sobre a operao (tcnica e comercial) so recolhidas, analisadas,trocadas, relatadas, integradas, e postas a servio da tomada de decises. Todostrabalham sobre computadores, usando e adaptando programas, mas pensandoprofundamente sobre as atividades da empresa e de como torn-las maiseficientes, evitando perdas, integrando operaes, mudando a logstica daoperao e da troca de dados e informaes.

    Neste campo aparecem os maiores ganhos de produtividade no final dosculo XX constitui o cerne da sociedade da informao, freqentemente

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    confundida com a influncia da computao e das telecomunicaes5. Call-centers, despacho de energia de sistemas interligados, sistemas de comutao ecentrais (automatizadas) de controle so exemplos destes sistemas interligadosno centro das discusses e do trabalho dos engenheiros. Embora as redes deinformaes (viva a Internet e as telecomunicaes rpidas e baratas!) alterem aordem de grandeza dos ganhos de produtividade, a essncia dos processos est

    em novos modelos organizacionais, novas formas de exposio e apresentao,novos algoritmos de processamento de dados e de clculo matemtico, e umacompreenso mais profunda do fenmeno logstico.

    Uma visita a FURNAS, LIGHT ou ao OMS mostrar rapidamente que oslucros ou perdas esto essencialmente relacionados ao uso de programas toabstrusos quanto o Wave (aplicao de programao matemtica) ou aestratgias racionais e sistemticas discutidas nas diversas equipes que formamestas empresas e, em grande parte, desenvolvidas no CEPEL ou nasuniversidades. Porm as escolas de engenharia no tratam destes assuntos,limitando-se aos fundamentos tcnicos de cada especialidade.

    Continuando o exemplo, a descoberta de novos "produtos" (tipos de energiae novas formas de distribuio e de tarifao) destinados a ocupar novos nichos

    de mercado passou a ser muito importante para a sade financeira das empresase no interesse do consumidor. No ambiente estatizado da dcada de 70 a decisopoltico-econmica era centralizada e monoltica, sendo considerado maisimportante garantir a oferta de energia a qualquer custo que diminuir o seu preopara o consumidor final (embora este fosse fortemente subsidiado para aindstria) ou ainda adapt-la a necessidades particulares. Hoje, novas questesenvolvendo a segurana e a qualidade do fornecimento de energia eltrica, olucro ou o prejuzo das empresas, e o custo e o preo da energia, mobilizamempresas, agncias reguladoras, o governo e o pblico em geral mesmo que osnovos modelos gerenciais do setor ainda no estejam estabelecidos (com apossvel exceo da Gr-Bretanha) e que a formao atual dos engenheiros delasencarregados no contemple estes temas.

    Decises econmicas deste tipo exigem a escolha de uma viso de futuro(que no e no precisa ser uniforme entre empresas e/ou governos), a possede uma boa viso de mercado, alm de uma profunda compreenso das questestcnicas subjacentes. No so decises para economistas ou administradores,considerando sua formao habitual. A no ser que tenham tido previamente anecessria formao tcnica: a de engenheiro eletricista. Por outro lado,engenheiros eletricistas no costumam possuir a viso de mercado ou a formaoadministrativa necessria. Este ltimo comentrio explica, em parte, a procura deMBAs por parte dos engenheiros do setor eltrico6, como forma de complementarsua formao.

    Outras caractersticas tem sido assinaladas pelas gerncias de recursoshumanos das empresas do setor eltrico7, mesmo antes dos recentes escndalos

    no mercado energtico norte-americano: comportamento tico, capacidade detrabalhar em equipe e experincia internacional, por exemplo.J neste exemplo, explorado rapidamente, podemos ver um conjunto de

    mudanas tecnolgicas, organizacionais, econmicas e culturais alterando ocampo de atuao do engenheiro. Uma rpida pesquisa na literatura permite

    5 Que so condies necessrias mas no suficientementes para o aumento da produtividade.6 Sinval Z. Gama, O perfil de formao do engenheiro eltrico para o sculo XXI, Tese de Doutorado,Programa de Ps-Graduao em Engenharia Eltrica, PUC-Rio, 2002.7 Ver as especificaes para candidatos a empregos na Light S. A. e na Iberdrola do Brasil, porexemplo, ou os resultados da pesquisa realizada para a USP e a FIESP, em 1998, comentados emMaria C. Moraes, O perfil do engenheiro dos novos tempos e as novas pautas educacionais, in Irlanvon Lisingen, Luiz T. do V. Pereira, Carla G. Cabral e Walter A. Bazzo (organizadores), Formao doEngenheiro, Florianpolis, SC: Editora da UFSC, 1999, pp. 53 66. Ou, internacionalmente, a palestrade Luane Morell na Industry Round Table (Relatprio da Fora Tarefa D), apresentando os requisitosde algumas das principais indstrias norte-americanas, em http://www.univap.br/iasee2003.

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    organizar uma lista de mudanas um pouco mais abrangente, prenhe decontradies e conflitos.1. O fim da "guerra fria", com a queda do muro de Berlin, diminuindo o incentivo

    inveno cientfica geradora de prestgio ou associada ao poderio militar(donde cincia bsica, fsica nuclear e aos programas espaciais),privilegiando a busca de inovaes e de novos produtos comercializveis, e

    alterando a distribuio de poder o que levou tentativa de impor ahegemonia da "lgica de mercado", apresentada como pensamento nico (omodelo neo-liberal), de forma a ampliar e fixar o poder econmico daspotncias dominantes. Conseqncias: desregulamentao, onda de privatizaes, abertura de

    mercados segundo a lgica da OMC, crescente importncia do mercadofinanceiro, maior competio nacional e internacional, maior insegurana(prpria alta volatilidade dos mercados financeiros) donde maiornecessidade de considerar o risco e de trabalhar com e sob suasconseqncias, etc.

    2. Nova diviso internacional do trabalho com empresas multi-nacionaispassando a supra-nacionais e mudando de lugar seus centros de produo de

    acordo com as vicissitudes polticas.3. Novas tecnologias: aumento da rapidez das telecomunicaes e da capacidadede transmitir massas de dados em pouco tempo, informtica, redes decomunicaes (inclusive a Internet), nanotecnologias (com a conseqenteminiaturizao e barateamento de equipamentos), biotecnologias (cujoimpacto s comea a se fazer sentir), bio-nanotecnologias, etc. Conseqncias: alterao dos processos de trabalho entra a toda a

    engenharia de sistemas, centro das atividades do engenheiro moderno - edas pautas comerciais, alterao das tcnicas mais viveis, novos produtosbaseados em inovaes, compresso dos preos das matrias primas e dosinsumos industrializados bsicos contra maior valor adicionado associado snovas tecnologias, etc.

    4. Exacerbao da busca do aumento de produtividade uma das preocupaestradicionais dos engenheiros. Conseqncias: aumento da padronizao e modularizao dos produtos e

    dos processos de trabalho, levando terceirizao e alterao daorganizao industrial, concomitantes com maiores esforos nacompactao dos processos de trabalho8; automao de processos defabricao e projeto, diminuio da necessidade de engenheiros (eoperrios) operando junto s mquinas e ao "cho de fbrica". Necessidadede uma maior quantidade de cabeas trabalhando em torno da integraodas operaes e dos sistemas que as controlam e regulam. Diviso dostrabalhadores entre os empregados permanentes e os temporrios ou"terceirizados" em funo das novas atividades exigindo alta formao, mas

    secundrias em relao aos objetivos da empresa.5. Surgimento da "sociedade de servios" ou "sociedade ps-industrial", onde amaior parte das atividades e dos postos de trabalho encontra-se junto aocliente e voltada para satisfazer seus interesses9.

    8 Heitor M. Caulliraux, Estratgias de produo e automao: Formulao e anlise, Tese de Doutorado,Programa de Ps-Graduao em de Engenharia Eltrica, PUC-Rio, 1990; e Luiz A. Meirelles,Miniaturizao e Reduo da Necessidade de Trabalho, Tese de Doutorado, Programa de Ps-Graduaoem de Engenharia Eltrica, PUC-Rio, 1991.9 Marcos A. da Silveira, Luiz A. Meirelles e Maria I. Paes e Silva, Notas sobre o curso de engenharia, inNova Viso dos Cursos de Engenharia e suas Implicaes na Universidade Moderna: uma Proposta daPUC-Rio, Relatrio Interno do Decanato do CTC, PUC-Rio, 1995; e Luiz C. Scavarda do Carmo, J. A.Pimenta-Bueno, J. A. Aranha, Therezinha S. Costa, Jos A. dos R. Parise, Maria A. M. Davidovich, Marcos

    A. da Silveira, The Entrepreneurial Engineer - A New Paradigm for the Reform of Engineering Education,Proceedings of the ICEE97, vol. I, 398-408, Southern Illinois Un. at Carbondale, USA, 1997, e suas listasde referncias.

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    6. Conscincia pblica das limitaes energticas e dos problemas ecolgicos,que pode ser datada da crise do petrleo, em 1973, e das primeirascatstrofes ecolgicas com grandes navios petroleiros (Exxon-Valdez eAmoco-Cadiz), dos acidentes de Chernobil e de Three Mile Islands, e dasquestes ligadas destruio da camada de oznio e ao efeito estufa. Conseqncias: busca de novas formas de energia, aparecimento da

    questo da reciclagem de materiais, regulamentaes ecolgicas, exignciade estudos de impacto ambiental, movimentos ecolgicos no-governamentais ativos e influentes, nascimento da indstria de remediaoambiental, etc.

    7. Maior exigncia quanto aos direitos do consumidor. Conseqncias: princpios de qualidade total, maior controle por parte de

    rgos e agncias reguladoras, popularidade dos sistemas de certificao,cdigos de defesa do consumidor gerando grande movimentao jurdica,novas exigncias em torno da "political correcteness".Esta mudanas, levando ampliao do escopo da atuao do engenheiro e

    alterao da sua forma de atuao, aparecem nas definies utilizadas para"engenharia". Do texto comum em torno de 1970, "profissional competente para

    projetar, implementar e gerenciar processos de transformao de materiais", oque exclui servios que no tenham como objeto imediato materiais e mquinas,passou-se pelos conceitos de " problem solver" e de "designer" (de basetecnolgica, bem entendido), chegando a um "profissional competente paraprojetar, implementar e gerenciar intervenes em prticas sociais de basetecnolgica, considerando seus impactos ambientais, econmicos e sociais". Estaltima definio, mais abrangente e referida sociedade e cultura onde oengenheiro est imerso, aparece em um dos textos que serviu de base aoPrograma REENGE10. Voltaremos a este assunto mais adiante, depois de revisarfunes, perfis de formao e papis sociais propostos para engenheiros, eobservar a multiplicidade de propostas existentes (internacionalmente) para aformao de engenheiros.

    I.2. Funes, perfis de formao e papis do engenheiro

    Primeiro, revisaremos rapidamente as funes a serem exercidas porengenheiros dentro da representao tradicional da profisso, organizando aterminologia para a apresentao dos seus perfis de formao e papis sociais.Fugiremos s nomenclaturas tradicionais (encontrada nas publicaes dascorporaes de engenheiros) para evitar confundir "funo", "cargo" e "papelsocial".

    Tradicionalmente, espera-se que o engenheiro recm-formado exera umafuno tcnica de execuo na empresa sob o controle de um engenheiro

    experiente, como formao complementar. Tendo sucesso, passa a "chefe deequipe tcnica" encarregada de tarefas de produo ou de manuteno, ou a de"gerente de estoque", estas duas funes tambm citadas como "engenheiro deobra" ou "engenheiro de cho-de-fbrica". Outra possibilidade, mais rara, passar a "projetista" dentro de uma equipe especializada. Em ambos os casos oengenheiro utiliza a linguagem das plantas, diagramas tcnicos, planilhas etabelas de especificao (de produtos, de processos, de operaes)11. Muitopoucos ocupam a funo de "projetista" em nveis mais altos, at chegar a dirigirequipes ou empresas especialmente dedicadas. A maioria dos engenheiros passaa "gerente tcnico", encarregado de comandar as equipes tcnicas, traar asgrandes linhas de projetos, tomar decises sobre compras ou vendas. Nesta

    10 da Silveira et al., 1995, op. cit.11 Em contraste com a linguagem de frmulas usadas pelos matemticos, fsicos e qumicos, ou dosmapas, relatrios e monografias comuns em outras reas tecnolgicas (geologia, psicologia, direito,por exemplo), e mais ainda com os produtos finais de designers e comunicadores sociais.

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    funo o engenheiro ainda usa a linguagem das plantas, embora ocupe o seutempo com estudos, relatrios e contratos. Finalmente, o engenheiro, tendosucesso, passa funo de "administrador tcnico" (e, depois, de"administrador", simplesmente), tendo que tomar decises polticas tcnicas efinanceiras, administrar recursos humanos e relacionar-se com o pblico. Aatividade, neste caso, passa pela direo de reunies de tcnicos e assessores,

    pela preparao de memorandos e contratos e pelas negociaes empresariais(dentro da empresa ou com seus clientes).

    No entanto, sob o denominao de funo tcnica aparecem ocupaesno contempladas nas escolas de engenharia. Depois de um perodo circulandopela empresa (trainees) ou participando de cursos internos de formao12, grandeparte dos engenheiros passam a trabalhar em vendas, atendimento aos clientesou a analisar, desenvolver e integrar sistemas. Nestas atividades utilizamseriamente o conhecimento tcnico prprio profisso, e tambm toda umagama de conhecimentos e capacidades associados atualmente funo

    engenheiro, porm desconsiderados pelas escolas.Dodridge13, por exemplo, afirma que 70% dos engenheiros britnicos

    trabalham fora de sua especialidade tcnica, o que explica o "desemprego" dos

    engenheiros alardeado pelas corporaes profissionais. Uma pesquisa do SENAIrealizada no Brasil na dcada de 70 j mostrava um percentual semelhante paraos engenheiros trabalhando na rede ferroviria: 67% no ocupavam as funestcnicas associadas ao papel social esperado na sociedade brasileira na poca,necessitando de uma formao diferente daquela ministrada ento nas escolas deengenharia, embora ainda vinculada engenharia.

    Completando este quadro, cabe citar a minoria dos profissionais que socontratados como "pesquisadores" em centros de pesquisa, empresas deconsultoria, escolas de engenharia e universidades, dedicados aodesenvolvimento de estudos e produtos ou cincia da engenharia. Mas noesquecer que engenheiros exercem a funo de "professor" ou de treinadortambm nas empresas so responsveis pelos cursos internos e pelo

    treinamento de suas equipes.Novas funes apareceram como conseqncia das mudanas apontadasacima. Elas giram em torno da capacidade que tem o engenheiro bem formado deenfrentar problemas pensando com clareza e considerando as possibilidades e oslimites tcnicos. Uma ilustrao interessante e mordaz o personagem Dilbert,da histria em quadrinhos de mesmo nome que publicada nos jornais14. Ali, oengenheiro o nico personagem cuja inteligncia est voltada ao sucesso daoperao da empresa, e que consegue fazer anlises fundamentadas depossibilidades - ou impossibilidades, situao preferida pelo autor da tira. comose, ao perguntarmos onde est a inteligncia de um processo produtivo,fossemos sempre encontr-la em uma funo exercida por um engenheiro(quando so necessrios formalizao ou modelagem matemtica e

    conhecimentos tecnolgicos, articulados de forma inteligente) ou por umadvogado (no caso de atuao jurdica ou poltica, atividades voltadas representao de interesses e s escolhas estratgicas)15.

    12 Na EMBRAER este perodo inicial de dois anos, onde os trainees realizam projetos em equipe,considerando custos, interesses dos clientes, problemas de especificao e de integrao dosdiferentes sistemas que formam um avio e recolhem/agregam as informaes para que o piloto, aequipe tcnica e a administrao da empresa de aviao tomem suas decises assuntos sequermencionados nos curso de engenharia.13 M. Dodridge, Convergence on engineering higher education Bologna and beyond, Proceedings ofthe Ibero-American Summit on Enginnering Education; So Jos dos Campos, SP: UNIVAP, 2003.14 De autoria de Scott Adams, United Featured Syndicate, Inc. Notar que o personagem doengenheiro incompetente para fazer poltica dentro da empresa, por formao e por escolha tica(seu compromisso com a qualidade dos produtos).15 Talvez devssemos considerar outras categorias, como economistas ou administradores deempresa. Os primeiros possuem formao cientfica, fazem anlises inteligentes, mas no sovoltados para resolver problemas relativos ao processo produtivo. A atual prevalncia das finanassobre a capacidade de produo do pas, resultado do domnio ideolgico dos economistas

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    Alm daquilo que chamado de sistemas e logstica, aparecematividades como a direo de micro-empresas, consultoria tcnica, anlise,projeto ou gerenciamento de processos informticos, financeiros ou tcnico-gerenciais - as novas tcnicas gerenciais ou financeiras exigem modelagemmatemtica bem acima do acessvel a contadores ou formados apenas emadministrao.

    Uma grande empresa, como FURNAS ou PETROBRS, est repleta deengenheiros exercendo funes deslocadas do quadro tcnico habitual e nocorrespondendo carreira tradicional exposta no incio desta sub-seo. O chode fbrica desapareceu do caminho da maior parte dos profissionais deengenharia. De forma mais radical, podemos dizer que as lanchonetesMacDonald's so belos exemplos de um processo construdo por engenheiros,mas que no corresponde a um de seus empregos industriais tradicionais.

    Esta funo de guardio da inteligncia do processo e encarregado dasdecises informadas reaparece na figura mtica do problem solver, presente eminmeros textos do final do sculo XX16. Sua competncia lhe habilitaria aformalizar, modelar, resolver, projetar, negociar, implementar, gerenciar eexplicar (ao pblico interno ou ao externo) os problemas de base tecnolgica. O

    sonho deste super-profissional multi-habilitado exprime um desejo nascido dapercepo de problemas gerados na interface social de inovaes tecnolgicascuja resoluo depende de capacitaes no encontradas nos profissionaisexistentes. Estes problemas so sentidos de forma tanto mais aguda quanto maisse sentem desamparados o pblico, os decisores e os formadores de opinio diante da quantidade atual de informaes tcnicas e do uso generalizado deconceitos tcnico-matemticos que transcendem sua prpria formao (falha doensino secundrio?). O fenmeno pode ser percebido na reiterada citao acientistas nos meios de comunicao, mesmo fora de seu contexto decompetncia, buscando uma apropriao indbita do prestgio tcnico-cientfico,ou, negativamente, na desconfiana em relao cincia em geral (ver aproliferao atual de terapias "suaves" ou "alternativas" e a presena sistemtica

    do "cientista do mal" nas histrias em quadrinhos e nos filmes de aventura exceto o japoneses).Os papis sociais atribudos aos engenheiros no se confundem com suas

    funes tcnicas, estando mais prximos das imagens geradas pelo sistema deeducao encarregado de sua formao. Discutiremos estes papis enquantoapresentamos um resumo dos perfis de formao de engenheiros propostos ouaplicados em alguns dos principais pases (do ponto de vista tecnolgico) e noBrasil. As fontes de informao sero citadas em notas ao p da pgina,reduzindo a descrio histrica ao mnimo.

    monetaristas sobre os ltimos governantes, confirma esta opinio. Os administradores nem semprepossuem formao para compreender o processo produtivo como um todo. Esta limita-se ao ladocontbil e financeiro ou ao problema do gerenciamento de recursos humanos, que reaparecer maisadiante como essencial para a atuao dos engenheiros com perfil gerencial. Falando genericamente eolhando os contedos e perfis de formao habituais das diferentes profisses, podemos dizer que mais fcil complementar a formao de um engenheiro no que toca questes financeiras ouadministrativas, que complementar a formao de economistas e administradores de forma a que elescompreendam o processo produtivo e este o sentido ltimo deste pargrafo.16 Que aparece bem definida nos textos da NSF e do REENGE. Ver MINISTRIO DA CINCIA ETECNOLOGIA MCT e Ministrio da Educao e do Desporto MEC, PRODENGE - Programa deDesenvolvimento da Engenharia, Documento Bsico, 1995, Rio de Janeiro; Wladimir P. Longo, Cinciae Tecnologia: evoluo, inter-relao e perspectivas,Anais do IX Enc. Nacional de Eng. de Produo,RS, Brasil, 1989; H. Etzkowitz e M. Gulbrandsen, Public entrepreneur: the trajetory of United Statesscience, technology and industrial policy, Science and Public Policy, vol. 26, number 1, London,England, 1999, pp. 53-62; M. George, S. Bragg, A. Santos, D. Denton, P. Gerber, M. Lindquist, J.Rosser, D. Sanchez, C. Meyers, Shaping the Future, Washington D.C., USA: National ScienceFoundation, 1996, http://www.nsf.org.

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    O modelo francsAs escolas de engenharia surgiram na Frana no sculo XVIII com a funo

    de formar corpos tcnicos para o estado, dentro da hierarquia j existente naburocracia de estado. Primeiro "engenheiros militares", para ocupar funestcnicas nas foras armadas. Depois "engenheiros civis", encarregados de pontes,estradas, construes e mquinas para os diferentes ministrios "civis". Os dois

    grupos eram destinados a ascender rapidamente a cargos de gerncia, tanto pelaqualificao e pela lgica prpria s hierarquias burocrticas, quanto por suaextrao social17 e pela extrema seletividade prpria a escolas com nmeroreduzido de vagas e emprego garantido ao final.

    Estes engenheiros, no incio, eram "engenheiros politcnicos",generalistas sem grande base cientfica, dominando o conjunto de tcnicas dapoca (ainda em pequeno nmero e desvinculadas do conhecimento cientfico dapoca ver a Encyclopdie de Diderot e d'Alembert), embora a escola escolhidaimprimisse uma certa especializao (cole de Ponts et Chausses, cole deMines, etc.).

    Depois da Revoluo Francesa, sob a influncia de Napoleo e de GasparMonge, a formao ganhou bases cientficas, iniciando-se o sistema 2+3: depois

    da obteno de uma boa meno no Baccalaurat (exame de final de cursosecundrio), e de dois anos de estudo nas Classes Prparatoires (essencialmentematemtica, fsica, qumica, filosofia e formao cultural, hoje acrescidas deinformtica e "princpios" de engenharia), realiza-se o exame de entrada em umadas coles de Gnie (rarssimos candidatos obtm sucesso na primeira tentativa),ao que se seguem 3 anos de estudo, com formao generalista, completada comalguma especializao no terceiro ano e diversos estgios em empresas (comoatividade curricular e controlados pelas escolas). Podemos chamar este perfil deformao de "engenheiro generalista de base cientfica"18. medida que oparque industrial francs se desenvolveu, os formandos destas escolas passaram(e ainda o fazem) a ocupar diretamente cargos de direo ou de projeto emempresas privadas ou estatais, o que induziu os cursos a desenvolver a viso

    gerencial como uma de suas caractersticas determinantes o engenheiro daGrande cole, com sua linguagem "ministerial", um personagem recorrente naliteratura e no cinema francs.

    Na metade do sculo XX s havia onze escolas de engenharia na Frana (asGrandes coles), titulando ingnieurs em nmero limitado, o que garantiaenorme seletividade19. Nos dois ltimos decnios do sculo foram muitas colesde Gnie20, variando seus perfis de formao em torno do descrito acima,eventualmente mais especializados ou mais tcnicos. A seletividade e o prestgioso sempre menores que os das escolas mais antigas.

    Porm a quantidade de ingnieurs formados sempre foi e tem sidoinsuficiente para preencher os cargos tcnicos no parque industrial francs,principalmente nas funes mais ligadas operao fabril21. Aqui aparece a face

    17 O que permanece at hoje, ver Pierre Bordieu, A economia das trocas simblicas, So Paulo, SP:Editora Perspectiva, 2001.18 Ver Edmundo C. Coelho,As Profisses Imperiais; Rio de Janeiro, RJ: Editora Record, 1999, p. 196,que chega a falar de uma "rasa preocupao com problemas prticos ou imediatos" dos egressos dacole Polytechniqye de Paris, calado em literatura da rea de sociologia e histria: E. Kranakis, Socialdeterminants of engineering practice: a comparative view of France and America in the ninenteenthcentury, Social Studies in Science, vol. 19, 1989, p. 5-70; Terry Chin, Des Corps de l'tat aux secteurindustriel: gnse de la profession d'ingnieur, 1750-1920, Revue Franaise de Sociologie, XIX, janeiro-maro de 1978, p. 39-71; G. Ahlstrom, Higher technical education and the engineeringprofession in France and Germany during the 19th century, Economy and History, vol. XXI, 2, p. 51-88, 1978.19 Bordieu, op. cit.20 227 escolas em 2005, ministrando um total de 728 habilitaes (incluindo novas habilitaes, como engenheiro biotecnolgico), tendo sido graduados 30.000 engenheiros em 2004, alm de 65instituies tcnicas ou voltadas para a educao continuada, tendo graduado 1.300 engenheiros em2004.21 Ver C. Lange, Etre Ingenieur Aujourd'hui, Paris: Editions du Rocher, 1993, p. 111-113.

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    escondida do sistema francs: h mais de oito outras maneiras de chegar funo de engenheiro sem passar por uma cole de Gnie, nem todasconcedendo um diploma de ingnieur reconhecido pela Comission des TitresdIngnieur francesa22. Para ilustrar estas possibilidades ser descrita a formaomais tcnica: depois do Baccalaurat, o aluno cursa dois anos em uma escolatcnica de nvel superior (Institut Universitaire Technologique - I.U.T.), obtendo

    um Diplme Universitaire Technologique (DUT) e, depois de trs anos deexperincia na indstria, pode realizar mais dois anos de estudos universitrioscomplementares (em meio tempo, enquanto trabalha), obtendo assim o diplomade engenheiro. Este perfil de formao pode ser denominado o de um"engenheiro tecnicista de formao longa". Cabe dizer que esta formaotem um carter essencialmente especializado, e atende essencialmente sfunes de engenheiro de obra ou de cho-de-fbrica23.

    Os dois caminhos aqui apresentados para a formao de engenheiros naFrana (cole dIngnieurs e I.U.T.) so os mais formalizados. O custo por aluno(para o estado, que o financia integralmente) muito alto, especialmente noprimeiro caso. Quase todos os outros caminhos passam pelas Facults dePhilosophie, Sciences et Lettres, originalmente destinadas a formar professores e

    "homens de cultura", e correspondem a um investimento muito menor por partedo estado - o custo por aluno nas "Fac" muito menor que nos institutos eescolas especializados. Desta forma, apesar de uma contnua reclamao sobre o"baixo" nvel das "Fac", e sem assum-lo explicitamente, o governo francsequaciona o problema de financiamento do ensino superior, e promove uma forteseleo para o acesso s principais escolas de formao de engenheiros.

    Os papis sociais (representados inclusive na literatura e no cinema) foramapresentados: o "engenheiro gerencial" das Grandes coles, dominando umdiscurso e uma forma de apresentao "ministerial", destinado aos grandes jogosde poder (e extrado de uma reduzida camada social); o "engenheiro de projeto"ou "assessor tcnico", detentor de um discurso tcnico-cientfico e cada vez maisorientado para desenvolver sua prpria empresa, formado pelas demais coles de

    Gnie; e o "engenheiro operacional", que no porta o ttulo de ingnieur, oriundode outro extrato social e destinado a trabalhar no cho de fbrica ou na rea devendas. No h, na Frana, leis limitando o exerccio da funo engenheiro aosportadores de diplomas especficos, ou Ordens ou Conselhos com poder decertificao oficial.

    O modelo alemoNo final do sculo XIX, contrapondo-se ao sistema francs, a Alemanha

    organizou um sistema de formao de engenheiros integrado com a indstria, deenorme sucesso. O sistema encontra-se repetido na Sua, no Japo, na Rssia,na Itlia, e em muitos outros pases desenvolvidos. Prev duas formaesradicalmente diferentes. Em ambas, o grande orgulho alemo destacado por

    todos os informantes com quem o autor conversou e confirmado pelos alunos quel se doutoraram o sistema de estgios e a participao das indstrias juntos escolas e aos cursos.

    Nas Fachhochschles o engenheiro recebe uma formao essencialmentetcnica, entremeada de estgios na indstria, ao longo de trs anos, sem maiorespreocupaes com embasamento cientfico. Podemos denominar este perfil deformao de "engenheiro tecnicista de formao curta", naturalmente muitoespecializado. A sociedade alem v este caminho como o mais curto acesso a

    22Ibd., p. 115-116, onde aparece um diagrama explicando os nove caminhos de formao. Dois doscaminhos passam por um doutorado, sem acesso direto ao diploma dingnieur. Hoje em dia deve seradicionado o caminho que termina por um Master francs, formalmente equivalente ao diploma deIngnieur.23 Para uma viso histrica da criao destes caminhos, ver C. R. Day, The making of mechanicalengineers in France: the coles d'Arts et Mtiers, 1803-1914, French Historical Studies, v. 10, p.4389-460, 1978.

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    um emprego industrial, sem despender esforos excessivos na obteno de umacultura que no v diretamente relacionada a seus objetivos. Embora naAlemanha no parea existir alguma restrio a que estes engenheiros ocupemcargos de direo nas empresas, a expectativa social no dirige este tcnico ps-graduao (o que era uma impossibilidade at h pouco tempo) ou a cargosde gerncia.

    O outro diploma obtido em uma Technische Universitt (anteriormenteHochschulen), ao longo de cinco anos, seguindo at 2004 o esquema 2+3: doisanos de estudos cientficos bsicos e trs anos em estudos muito especializados,culminando com o projeto de fim de curso e a tese de diploma24. No hformao gerencial ou humanstica. O autor foi informado que comum o alunodispender seis anos para obter o grau de ingenieur, por atrasos na entrega datese de diploma, conseqncia dos estgios na indstria. Podemos denominareste perfil de formao de "engenheiro especializado de base cientfica". Anova disposio 3+2 ser comentada adiante.

    O diploma das Fachochschles, at 2002, no dava acesso legal a umacomplementao acadmica, a formao associada sendo vista como terminal. Odiploma das Universitt confere maior prestgio social e permite passagem ao

    Doktorat por este caminho se formam os grandes especialistas, pesquisadores,projetistas, consultores e professores alemes. O diploma de Universitt exigegrande investimento intelectual e financeiro por parte dos alunos sem um retornosuficientemente garantido (para o gosto alemo).

    Os papis sociais relacionados aos dois diplomas so diferentes, porm asociedade alem no parece discriminar socialmente o engenheiro de formaocurta. Respeita o grande especialista, com formao na Universitt e pareceesperar que seu nmero seja menor que o dos formados nas Fahohschles.Diplomas e papis sociais pareciam se integrar perfeitamente s funes domercado de trabalho at h pouco tempo, e assim ainda aparecem no discursooficial. As crticas atuais revelam um descompasso cada vez maior entre aformao oferecida (de altssimo nvel em relao a seus objetivos) e as

    necessidades da sociedade atual por excesso de especializao e a falta deformao gerencial e sistmica.Devemos observar que o engenheiro das Universitt voltado para a

    inovao tecnolgica, mas restrito sua extrema especializao e viso tcnica.Problema assinalado ao autor pelas autoridades da T. U. Braunschweig como dedifcil resoluo: como mudar a estrutura formal da escola e de seus cursos(baseada em hierarquias funcionais culturalmente ancoradas) para formar esteengenheiro que eles sentem como um "hbrido"?

    O modelo anglo-saxoA formao de engenheiros nos pases anglo-saxnicos aparentemente

    mais simples, mas esconde sua realidade por trs da liberdade curricular das

    diferentes escolas e universidades. Historicamente, como observa AlastairPaterson25: "Os engenheiros franceses saram de uma certa aristocracia, asgrandes escolas. So gentlemen. Na Inglaterra, os engenheiros vm de umatradio manual e de manuteno de mquinas. No meio do sculo XIX elesevoluram para estudos universitrios. Isto deixa traos vivos, que diferenciam osengenheiros dos mdicos e dos juristas". Apesar deste comentrio expressandouma viso social comum aos pases anglo-saxnicos, sempre houve uma sutilseparao em dois perfis diferentes, s recentemente formalizada ou estendidaem quadros nacionais cheios de nuances.

    24 Studien Arbeit e Diplom Arbeit, respectivamente.25 C. Lange, op. cit., p. 155. Ver tambm R. A. Buchanan, The rise of scientific engineering in Britain,British Journal for the History of Science, v. 18, 1985, p. 218-233, comentado em E. C. Campos, op.cit.

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    Olhando o currculo das escolas classificadas como "universidades depesquisa" pela Carnegie Mellon Foundation26, EEUU (escolas organizadas segundoo conceito Humboldtiano de universidade de pesquisa), encontramos a exignciade uma boa formao cientfica, de uma razovel formao humanstica, dealguma formao tcnica especializada (organizada em dois temas, o majore ominor), e uma grande liberdade de escolha de disciplinas eletivas. O MIT

    (Massachussets Institute of Technology) diz em seu informe geral que seucompromisso prover os estudantes com uma formao fortemente cientfica,tcnica e humanstica, e encoraj-los a desenvolver sua criatividade para definirproblemas e buscar solues. Para o "bachelor of science degree", os estudantesdevem completar um ncleo de exigncias igualmente divididas entre cincias ematemtica e humanidades, artes e cincias sociais (sic.). As exigncias emcincias/matemticas incluem qumica, biologia, fsica, e clculo, assim comolaboratrios e eletivas cientficas. As exigncias em humanidades, artes, ecincias sociais devem ser preenchidas com trs entre cinco categorias: estudosliterrios; linguagem, pensamento e valores; artes; culturas e sociedades; eestudos histricos. Os estudantes tambm devem completar uma exignciaescrita multidisciplinar. O esprito da formao aparece no texto de apresentao

    do MIT e est representado em seu braso, ladeado por um tcnico (um homemportando um martelo) e um professor (de beca, simbolizando o compromisso comas humanidades, termo muito bem definido na cultura anglo-saxnica)27. A notarque o curso dura 4 anos e no pressupe 2 anos de estudos prvios da basecientfica, o que o torna muito diferente dos cursos franceses.

    Situaes semelhantes ocorrem em Oxford e Cambridge (RU), queformaram os administradores do Imprio Britnico (inclusive em engenharia) apartir das letras clssicas. Poderamos citar este perfil como o de "engenheirode formao humanstica e base cientfica". Fugimos da expresso sinttica"ampla base cultural" porque o termo "cultural" costuma ser entendido comoisolado da cultura cientfica.

    Os egressos destas escolas atingem cargos de prestgio (basta consultar

    suas bem organizadas listas de ex-alunos), mas so orientados para, aps os 3ou 4 anos dispendidos na obteno do grau, preparar um PhD28, eventualmentesuavizado por um MSc ou um MBA. De fato, a maior parte dos norte-americanospreparando um PhD na rea de engenharia so oriundos das universidades depesquisa, fato que j foi ingenuamente - usado para inferir sua qualidade. Istoindica apenas que os cursos no so pensados como terminais, mas como etapasem uma formao mais profunda, levando gerncia ou pesquisa cientfica outecnolgica. Ao contrrio da formao oferecida pelas demais escolas deengenharia, so orientados para preparar uma classe dirigente comembasamento tcnico. A formao tcnica profunda poder vir na ps-graduao,se este for o interesse do aluno. Neste caso, o aluno estaria recuperando aformao francesa, na forma 3+2 (trs anos de formao geral e 2 anos de

    formao mais especializada).Olhando o currculo das escolas de engenharia (no universitrias)britnicas e de boa parte das escolas norte-americanas no classificadas comouniversidades de pesquisa, vemos uma orientao muito tcnica, sem formao

    26 Ver http://www.carnegiefoundation.org/Classification. Na lista de 2004 para cursos de doutorado(extensivos), h 103 universidades (contadas por campuses) pblicas e 49 universidades privadas nolucrativas, entre as quais os campus da Un. of California, a Colorate State Un., a Un. of Florida, aPennsylvanis State Un., a Texas A&M Un., o California Institute of Technology, a Stanford Un., a YaleUn., a Un.of Chicago, a Loyola Un. of Chicago, a Harvard Un., o MIT, a Princeton Un. (a escolha feitana lista completa arbitrria, apenas mostra exemplos). Na classificao h tambm colgiosespecializados, inclusive de engenharia.27 No braso atual foi adicionado um personagem feminino, por questes depolitical correctness .28 No texto de apresentao do MIT (ver seu site), j citado, comenta-se que 38% dos egressos de2001 do MIT passaram ps-graduao. Na mesma pgina comentado que "management andtechnical consulting firms and investment banking firms are among the top employers recruitingInstitute graduates", o que explica a formao fornecida e o desinteresse pela especializao tcnica.

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    cientfica: o "engenheiro tecnlogo de formao curta" j citado. Este oengenheiro que passa diretamente a um emprego na indstria. Mais tarde, porquestes de prestgio, poder buscar complementar sua formao com um MScou um MBA, onde estudar cincias bsicas ou ganhar uma formao gerencial,embora o nmero total dos que sigam este caminho seja bem menor que osestudantes de ps-graduao formados nas universidades de pesquisa. A

    definio desta formao dada por: "Foco na prtica de engenharia; projeto deacordo com padres e procedimentos bem definidos, uso limitado da matemtica;muitos professores com experincia industrial e/ou fortes laos com aindstria"29.

    O estado da Califrnia, EEUU, organizou oficialmente seu sistema deformao em trs nveis30. Na base, um enorme conjunto de colleges, voltadospara a formao tcnica (isto , para formar os engenheiros tecnlogos deformao curta acima descritos) 1,4 milhes de alunos em 1997. No meio, umconjunto de escolas (em torno da California State University) voltadas para aformao de professores de escolas de engenharia, onde o contato com apesquisa e desenvolvimento mais habitual, a formao cientfica maisaprimorada 340.000 alunos. Desses espera-se um MSc, mas no

    necessariamente a dedicao pesquisa. No topo, algumas universidades depesquisa (em torno da University of California, incluindo a CalTech, Stanford emais algumas universidades de pesquisa privadas), dedicadas a formar oscientistas e pesquisadores que devero alimentar o parque industrial e osinstitutos de pesquisa californianos. Espera-se que estes sempre se dirijam umPhD isto , o curso de graduao no visto como terminal, admitindo umcurrculo mais livre e mais voltado para a cincia. A notar que h a possibilidadede transferncia de alunos entre um grupo de escolas e outro, de acordo comconcursos ou recomendaes.

    O custo por aluno muito mais alto no nvel do topo que no nvelintermedirio, e mais alto ainda em relao ao custo por aluno dos colleges.Desta forma h uma distribuio de custos se todos os alunos recebessem uma

    educao para a pesquisa, o custo total ultrapassaria o oramento do estado, umdos mais ricos daquele pas! O prestgio social aumentando do college universidade de pesquisa, a seletividade das ltimas muito grande, assim comosuas exigncias. Porm, assinala o governo do estado, a atrao dos futurosprofessores pelo prestgio da pesquisa tem gerado um problema que reduz aqualidade da formao geral: os professores dos college acabam por se dedicar pesquisa como atividade principal, e os que no conseguem passar ao grupo dotopo acabam desmotivados.

    Recentemente, na Gr-Bretanha, o Engineering Council britnico, rgooficial criado por uma royal charter, passou a designar a formao (degree) emtrs tipos31: technician engineer (EngTech), um tcnico especializado, no sendo

    considerado um "higher education degree";

    29 Wayne Johnson, Diretor Executivo da University Relations Worldwide, da HP, em palestra no IASEE2003, em so Jos dos Campos, maro de 2003; citando uma definio corrente nos EEUU.30 P. David, Inside the knowledge factory, Survey Universities, The Economist, 08/10/1997,www.economist.com/editorial/freeforall/current/uni1.html. A anlise do caso norte-americano profunda, em especial do problema gerado pela corrida da classe mdia universidade e daconseqente exploso de custos. O interessante que P. David no percebe que o sistema francsbusca a diversidade, acreditando que os diplomas de estado franceses possuam uma definionica, comum a todas as escolas de engenharia o contrrio do que vimos acima mas este erro comum, devido s idiossincrasias presentes no discurso oficial gauls.31 Standards and routes to registration (SARTOR), 3nd edition; London, UK: Engineering Council;www.engc.org.uk. Ver comentrios em M. Dodridge, Convergence on engineering higher education Bologna and beyond, Proceedings of the Ibero-American Summit on Enginnering Education; So Josdos Campos, SP: UNIVAP, 2003; e Lange, op. cit., p. 103.

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    incorporated engineer (IEng), um engenheiro com formao de 3 anosorientada para a indstria, sem embasamento cientfico ("mathematicalmodelling understanding of theory and IT" 32);

    chartered engineer (CEng), um engenheiro com formao de 4 anos e boabase cientfica ("application of appropriate maths, science & IT").

    Mais especificamente, repetimos uma tabela preparada por Dodridge para

    melhor especificar a diferena entre charterede incorporated engineers:

    32 Ver a Tabela 6 em Dodridge, op. cit., que explicita a formao dos dois tipos de engenheiros,"different but equaly valuable". Ver o texto B55EngineeringInstitutionsJan00 emwww.britishcouncil.org.

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    Tabela 1 - Engenheiros britnicos. Repete a Tabela 6 de Dodridge, op. cit.,traduzida mantendo as idiossincrasias britnicas, incluindo o uso de maisculas ede ttulos formais.

    Dois Tipos de Engenheiro ProfissionalDiferentes mas com igual valor

    Todos os Engenheiros profissionais devem: Estar pessoalmente comprometido em agir conforme o cdigo de conduta

    professional apropriado, reconhecendo obrigaes para a sociedade, a profissoe o ambiente.

    Comunicar-se eficazmente - por meios orais, escritos e eletrnicos. Viver sob Desenvolvimento Profissional Continuado

    Chartered EngineerConhecimento & compreenso

    direcionados, mas necessitandoapropriado know-how

    Engenharia inovadora de nvelmximo - liderana tcnica e

    gerencial Modelagem matemtica -

    compreenso da teoria e datecnologia informtica

    Orientao sistmica (e.g. sntese deopes para projrto edesenvolvimento contnuo)

    Pesquisa pura e aplicada edesenvolvimento

    Projetar para alm dos limites daprtica atual

    Cultivar perspectivas de mdio e de

    longo termo Gerenciamento de equipes e de

    recursos - perspectiva de promoopara gerncia de nvelmdio/mximo

    Incorporated EngineerKnow-how direcionados, mas

    necessitando apropriadosconhecimento & compreenso

    Engenharia aplicada de nvelalto - julgamento independente dentro do

    campo Aplicao de apropriaas matemtica,

    cincia e tecnologia informtica Implementao detalhada do

    conhecimento atual (e.g. projeto,marketing, gerncia de manuteno)

    Controle de qualidade de produtos eservios extensivo

    Desenvolvimento de sistemas cost-effective e de procedimentos seguros

    Cultivar perspectivas de curto e demdio termo

    Gerenciamento de equipes e derecursos - possvel promoo paragerncia de nvel mdio/mximo

    Mas ateno sutileza envolvida nas denominaes e ttulos britnicos,habitualmente incompreensveis para quem no um british citizen! Incorporatedengineer e chartered engineer so graus credenciados ( accredited degrees), oprimeiro obtido aps 3 anos de estudo e o segundo aps 4 anos de estudo.Depois desta base espera-se que o profissional adquira ao menos 4 anos deexperincia profissional (inicial), para ento ser entrevistado e ter seu currculo

    analisado (Final Test of Competence & Commitment), e ento passar ao estgiofinal de seu "registro" (Registration). De fato, ser entrevistado a cada 5 anos,para renovao de seu registro, quando ser verificado seudesenvolvimentoprofissional continuado. O "registro", que lhe permite adicionar ottulo (incorporatedou chartered engineer) a seu carto de visitas (conforme atradio britnica), concedido - atualmente - pelo Engineering Council. Noesquema atual, o registro do chartered engineerexige a experincia profissionalcitada, mais estudos universitrios um PhD muito bem visto e projetos &publicaes, alm da entrevista com a comisso de credenciamento33. Neste caso automaticamente credenciado como european engineer, uma situao criada

    33 Para os que duvidam do "register" vindo aps a "accreditation" do "degree", ver a as figuras deDodridge, op. cit., muito didticas, em especial a figura 4: "formation of an engineer in the UK", ondea estrutura aqui apresentada exposta com mais clareza que nos textos legais cheios desubentendidos.

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    pela Federation Europenne d'Associations Nationales d'Ingnieurs (FEANI),associao fundada em 1951 e bem conceituada no ambiente europeu. Estaltima situao mostra que a formao do chartered engineere a do ingenieuralemo com formao longa apontam na mesma direo, mas esta convergncias fica clara quando ambos chegam ao doutorado.

    Dodridge, op. cit., comenta que deveriam ser formados trs vezes mais

    incorporated engineers que chartered engineers, considerando as necessidadesindustriais. No entanto, as estatsticas britnicas apontam consistentemente ocontrrio34. Essa tendncia contrria ao mercado de trabalho como visto pelaacademia e pelos rgos governamentais pode ser explicada pelo prestgiodiferente dos papis sociais associados aos dois tipos de engenheiro, e ao fato deque os que optam pelo caminho que leva ao chartered engineer tem acessofacilitado a um mercado de trabalho estendido e em contnua mutao, assimcomo o ingnieurfrancs.

    A conscincia deste fenmeno para a situao particular de seu pasaparece na resposta madura do representante lituano a uma das questescolocadas pelo SEFI (Socit Europenne pour la Formation des Ingnieurs)35:"no seguro preparar um especialista para um posto de trabalho

    determinado/muito concreto, porque o mercado de trabalho do pas no estestvel no momento, e as prioridades para o desenvolvimento industrial no soclaras na Litunia ... devido a mudanas das condies de trabalho ou no caso dedemisso, os graduados devem ser muito flexveis para adaptar-se a suas novascondies." E assim condena a formao especializada curta, pondo-se a favor deuma formao longa e mais generalista, voltada para o mercado de trabalhoestendido, como a do chartered engineerou a do ingnieur.

    Os papis sociais no mundo anglo-saxo dependem no apenas dos tipos deengenheiros formados, mas tambm do prestgio das escolas. As universidadesde pesquisa (nos EEUU) e Cambridge e Oxford (no RU) formam os diretores e osdirigentes nacionais, alm dos pesquisadores de alto nvel. Na outra ponta temosescolas dedicadas a formar engenheiros de cho de fbrica, orientados a postos

    de trabalho especficos.Na cultura norte-americana a educao superior vista como privilgio ecomo investimento pessoal (e no como um direito), donde o aluno discute antesde tudo a sua relao custo/benefcio. O que explica a dificuldade atual em obteralunos norte-americanos nos doutorados em engenharia. O diploma de advogadoparece ser mais compensador do ponto de vista financeiro...

    J no Reino Unido, a educao essencialmente pblica e uma tradiodando maior visibilidade social formao mais acadmica (e cientificamenteprofunda) leva preferncia pelo caminho que leva ao chartered engineer almda possibilidade de acesso ao mercado de trabalho estendido o que maisimportante no Reino Unido ou na Litunia (por exemplo) que nos EEUU,considerando ser tanto maior o risco de desemprego quanto menor o mercado

    de trabalho.O caso brasileiro

    Na Amrica Latina, os papis do engenheiro resumiam-se, na sua maioria eh at 30 anos, ao de gerente de compras de equipamentos ou de execuo deprojetos adquiridos no exterior36. Como o autor ouviu de um antigo professor doIME e da PUC-Rio, os engenheiros brasileiros:

    34 40% a mais de Chartered Engineers em 1987 e 30% a mais em 2000.35 Resposta do representante lituano dcima pergunta em The impact of the Bologna Declaration onengineering education in Europe the result of a survey (as of November 18, 2002), SEFI, inwww.ntb.ch/SEFI.36 Ver Edmundo C. Coelho, As Profisses Imperiais: Medicina, Engenharia e Advocacia no Rio de

    Janeiro, 1822-1930, Rio de Janeiro, RJ: Editora Record, 1999. Nesta obra relatada - partir deextensapesquisa documental - em profundidade a realidade tecnolgica e empresarial do pas nesteperodo, mostrando onde podiam se inserir os engenheiros,como se formavam e como atuavam.

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    ou controlavam obras civis (o projeto, se mais complexo, vinha do exterior37), ou gerenciavam mquinas e operrios - o chamado "engenheiro ferrovirio"

    (com projetos e manuais vindos do exterior), ou controlavam estoques e operaes simples, ou eram diretores de uma diviso da empresa composta por ele e por uma

    secretria (encarregados de compras e/ou representaes, ou da anlise de

    documentos).As competncias reais exigidas passavam mais pelo domnio de uma determinadalinguagem tcnica (mas no de sua aplicao) e pela capacidade de adaptao empresa, do que pelo domnio tcnico-instrumental da rea de formao. Issofazia com que o incipiente setor industrial da poca no distinguisse umaformao tcnica especializada de uma formao livresca e superficial, sendomais sensvel origem social dos candidatos a emprego (em geral refletida naescola de origem, preciso dizer)38.

    Outro papel social anmalo, prprio a sociedades autoritrias onde asprofisses so concedidas pelo estado a partir de imposies legais, o deresponsvel legal por projetos ou operaes. Para este papel irrelevante acapacitao tcnica, sendo importante apenas o diploma obtido em um curso

    credenciado conforme a lei e o registro do diploma na corporao legalmentecompulsria (no Brasil, o sistema CONFEA/CREAs).Os professores das escolas de engenharia costumavam ser estes mesmos

    engenheiros, ministrando aulas durante intervalos no seu trabalho.Apesar de todo o progresso do ensino da engenharia no pas ocorrido a

    partir da na anlise dos projetos REENGE no encontramos um nico programade estgio supervisionado academicamente pela escola, embora houvesseexigncia formal de estgios supervisionados desde a dcada de 70. Sencontramos estgios com superviso acadmica nos laboratrios de pesquisa,associado a bolsas de iniciao cientfica (o que permite medir sua pequenaextenso).

    Somadas freqente utilizao de livros texto tradicionais norte-americanos

    centrados na "instruo programada" (como os da Coleo Schaum, semutilizao efetiva da da fsica e matemtica ensinadas no incio dos cursos), estascaractersticas indicavam a formao, de fato, de um "engenheiro bacharel",termo muito usado em crticas formao clssica dos engenheiros brasileiros39.Do que foi observado acima, o ambiente industrial brasileiro no diferenciava o"engenheiro bacharel", apenas preparado para declinar um discurso tcnico, do"engenheiro politcnico" ou do "engenheiro especialista" definidos nos textoslegais vigentes (por listas de habilitaes legais e/ou currculos mnimos). Aignorncia do fato e a inexistncia de parmetros de comparao com escolas noexterior, salvo listas de contedos curriculares, garantia a conscincia tranqiladas escolas de engenharia e de seus professores.

    Em 1966 houve uma breve tentativa de formar "engenheiros operacionais",

    em cursos com 3 anos de durao, havendo a possibilidade de completar aformao longa cursando mais 2 anos complementares. No vale a pena discutiro perfil de formao, pretendido ou real, pois a iniciativa foi rapidamenteabortada. O sistema CONFEA/CREAs recusou-se a registrar este profissionaltratado como um engenheiro incompleto, sendo a categoria extinta na dcada de70. Quase todos os engenheiros operacionais passaram direto aos cursos

    37 Com a possvel exceo do engenheiro Andr Rebouas, cujo elogio onipresente afirma seu carterexcepcional, confirmando a regra.38 Este testemunho completamente corroborado pela extensa documentao que fundamenta E. C.Coelho, op. cit. Em especial, ver seus comentrios nas pginas 194-197, onde cita a influncia inglesaatravs dos contratos para construo de ferrovias, projetadas e executadas por engenheiros inglesescom formao tecnicista.39 E. C. Coelho, op. cit., p. 196.

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    complementares40. Apesar disso, uma pesquisa na Internet com o termo"engenheiro operacional" faz aparecer um grande nmero de citaes emdocumentos datados at 1977.

    No entanto, h no pas uma longa tradio de formao de tcnicosespecializados, centrada nos sistemas SENAI e CEFET. Rocha Pinto41, em 2002,analisou estas instituies no Estado do Rio de Janeiro do ponto de vista de seu

    perfil de formao. Enquanto o tcnico do SENAI preparado para postos detrabalho especficos (torneiro mecnico ou eletricista para residncias, porexemplo), e depende da oferta de empregos exclusiva deste posto de trabalho, odo CEFET preparado para uma atuao mais ampla, sem, no entanto, possuir abagagem de um engenheiro especialista. O que tem gerado uma crise deidentidade: o engenheiro tcnico do CEFET, ao ocupar o posto de trabalhotcnico, sente-se frustrado e questiona a formao recebida. Nem umengenheiro donde no ocupa "chefias" nem admite as repeties quecaracterizam a atividade tcnica habitual. A noo do "tcnico de nvel superior"no parece ser reconhecida na cultura (e na realidade industrial) brasileira.Donde, forosamente, onde existe, ocupada por engenheiros graduados emescolas de menor prestgio ou pelos engenheiros (prestigiados) dos CEFETs.

    Uma tentativa de resolver o problema foi a criao dos cursos seqenciais,"uma modalidade de ensino superior, em que o aluno, aps ter concludo o ensinomdio, poder ampliar os seus conhecimentos ou sua qualificao profissional,freqentando o ensino superior, sem necessariamente ingressar em um curso degraduao"42. Esta possibilidade ainda est sendo digerida pelas escolas deengenharia, que comeam a ministrar cursos seqenciais de formao especfica.Chiganer et al.43 apontam as dificuldades relativas a esta formao no associadaa um "ttulo consagrado com representao de status social", isto , sem umpapel social determinado.

    Na mesma direo podemos apontar a enorme quantidade de cursos deformao de tcnicos de nvel superior abertos por universidades de direitoprivado, e que tornaram a Universidade Estcio de S (RJ) uma das maiores

    universidades brasileiras (em nmero de alunos) sendo os responsveis por boaparte do aumento de vagas na rea tecnolgica nas faculdades/centrosuniversitrios/universidades atuais44. So cursos de 3 anos orientados para aformao profissional, exigindo um menor investimento financeiro (pelo baixocusto e menor durao) e intelectual (vestibulares menos concorridos, noexigem formao cientfica ou cultural mais aprofundadas). Diplomas de nvelsuperior devem ser aprovados pelo MEC e devem corresponder, por definiolegal, a novas profisses. Melhor do que explicar a sua estrutura legal, observarum exemplo simples: o curso em tcnica de gravao e produo fonogrfica,organizado por um dos principais profissionais brasileiros neste mercado junto Universidade Estcio de S45. Seus objetivos so capacitar o aluno em tecnologiade gravao e produo fonogrfica e como empreendedor nesta rea (tornando-

    40 Os primeiros cursos de engenharia de produo foram criados como complementos de 2 anos paraengenheiros operacionais. Por isso apareceram como engenheiro de produo mecnica, produoeltrica, etc. Ver http://www.fei.edu.br/producao/oquee.htm, onde a histria apresentada.41 Sandra R. da Rocha Pinto, A educao profissional de nvel tcnico luz do modelo decompetncias: uma anlise comparativa da implantao de trs propostas institucionais. Tese deDoutorado, Departamento de Educao, PUC-Rio, 2000.42 www.mec.gov.br.43 Lus Chiganer, Carlos E. Leal, Juarez Lopes e Antnio C. Sarquis, Cursos seqenciais na reatecnolgica, Proceedings of IASEE 2003; So Jos dos Campos, SP: UNIP, 2003.44 Estudo a ser aprofundado. No fcil obter dados das universidades citadas, pois as novasformaes aparecem sob a coberta de cursos tecnolgicos de nvel superior, cursos sequenciais oucursos de especializao todos os rtulos legais so bons, desde que correspondam a formaesprocuradas por candidatos a alunos que acreditem (com ou sem razo) que estas abram as portaspara o mercado de trabalho, ou, ao menos, criem um diferencial na concorrncia por um posto detrabalho.45 Organizado por Mayrton Bahia, est descrito (de forma clara e direta) emhttp://www.estacio.br/politecnico/cursos/gravacao_producao.asp.

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    o capaz de criar seu prprio selo ou produtora), com competncia para aproduo, divulgao e distribuio de msica em todos os seus suportes,cuidando da concepo, desenvolvimento e comercializao do produto. Omercado de trabalho para este profissional composto por estdios de gravao,produtoras de discos, selos fonogrficos, e empresas de sonorizao e produode espetculos envolvendo msica campo efervescente onde se multiplicam as

    micro-empresas e as atuaes individuais. O curso d acesso a um conjunto decertificados e diplomas (o que novidade no quadro nacional): disk jokey(DJ) aofinal do segundo perodo, assistente tcnico de estdio de udio e/ou assistentede montagem e reparo em sistemas de sonorizao, ao final do terceiro perodo,e diploma de graduao em produo fonogrfica ao final de dois anos e meio. Ocurso fornece fundamentos de acstica, eletrnica, msica, legislao, marketing,informtica, alm das tcnicas especficas ao setor profissional, e exige aptidesiniciais (verificadas por anlise de currculo) na rea musical. No um cursotcnico em eletrnica, no um curso tcnico em acstica, no um curso demsica, muito menos um curso de administrao, mas integra estes campos emtorno da produo fonogrfica. No corresponde a nenhum dos cursos pr-existentes no pas46.

    Um exemplo singular e grandioso o CEFET do Paran. Atravs deconvnios com os EEUU (USAID) e com a Alemanha, passou a formar tcnicosaltamente qualificados. A evoluo foi natural para o jovem e progressistaambiente industrial paranaense: transformou-se em escola de engenharia,formando engenheiros prezados por uma alta qualificao prtica, diferentes dosengenheiros projetistas ou com viso gerencial que sero citados adiante, e dos"engenheiros bacharis" apresentados acima. No momento h muitas escolas deengenharia, principalmente na regio Sul, seguindo o mesmo caminho (UBRA,UNISINOS, UNIVAP e PUCRS, por exemplo), resultado de parques industriaisgerados em reas contguas, e apoiadas em convnios com a indstria local. Anotar que estes engenheiros passam por uma formao longa, com perfil inicialgeneralista, pois iro trabalhar em pequenas indstrias onde tero o papel do faz-

    tudo. A formao final tcnica especializada, orientada para o mercado detrabalho regional - que est bem definido a no mais de dez quilmetros daescola. Poderamos denominar este perfil de formao como "engenheirogeneralista com formao tcnica de interesse regional". Note que,mudando a regio, mudam as competncias exigidas.

    Uma mudana estratgica nas AmricasUm exemplo espetacular de mudana estratgica de perfis de formao

    ocorreu a partir de meados da dcada de 50 do ltimo sculo, nas Amricas: acriao do conceito de "engenharia cientfica". Embora houvesse um certoempuxo do mercado de trabalho, ao menos na Amrica do Norte, as tecnologiasde base cientfica desenvolvidas na segunda metade do ltimo sculo e o

    significado poltico-social atrelado corrida espaci