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Adonai Sant'Anna Matemática e Sociedade sexta-feira, 24 de outubro de 2014 A fragilidade de demonstrações em matemática Na última terça-feira, dia 21, o professor Newton da Costa ministrou uma palestra para uma pequena turma minha de graduação. Ele falou sobre o conceito de demonstração em matemática. Faço aqui uma transcrição livre desta palestra, devidamente revisada pelo próprio professor Newton. Desejo a todos uma leitura crítica. _______________ Demonstração transcrição livre de palestra de Newton da Costa Quando Euclides de Alexandria utilizou o método axiomático para apresentar a geometria em seu célebre livro Elementos, ele deixou muito clara (para os padrões da época) a visão de que axiomas e postulados permitem a inferência dedutiva de novas afirmações sobre geometria, conhecidas como teoremas. Este é o mais antigo registro do uso do método axiomático em matemática. Desde então houve grandes avanços no método axiomático. Postulados e axiomas passaram a ser sinônimos e este método deixou de ser uma mera ferramenta didática no estudo de geometria para se tornar objeto de estudos dos próprios matemáticos em contextos muito mais amplos. Isso porque o conceito de demonstração, pelo menos em matemática, passou de mera intuição para algo que deveria ser compreendido com grande rigor. Grosso modo, uma teoria axiomática consiste de dois ingredientes: linguagem e lógica. Início

A Fragilidade de Demonstrações Em Matemática

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Adonai Sant'Anna

Matemática e Sociedade

sexta-feira, 24 de outubro de 2014A fragilidade de demonstrações em matemática

Na última terça-feira, dia 21, o professor Newton da Costa ministrou uma palestrapara uma pequena turma minha de graduação. Ele falou sobre o conceito dedemonstração em matemática. Faço aqui uma transcrição livre desta palestra,devidamente revisada pelo próprio professor Newton.

Desejo a todos uma leitura crítica._______________

Demonstraçãotranscrição livre de palestra de Newton da Costa

Quando Euclides de Alexandria utilizou o método axiomático para apresentar ageometria em seu célebre livro Elementos, ele deixou muito clara (para os padrões daépoca) a visão de que axiomas e postulados permitem a inferência dedutiva de novasafirmações sobre geometria, conhecidas como teoremas. Este é o mais antigo registrodo uso do método axiomático em matemática.

Desde então houve grandes avanços no método axiomático. Postulados e axiomaspassaram a ser sinônimos e este método deixou de ser uma mera ferramenta didáticano estudo de geometria para se tornar objeto de estudos dos próprios matemáticos emcontextos muito mais amplos. Isso porque o conceito de demonstração, pelo menosem matemática, passou de mera intuição para algo que deveria ser compreendido comgrande rigor.

Grosso modo, uma teoria axiomática consiste de dois ingredientes: linguagem e lógica.

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A linguagem permite explicitar quais são os conceitos primitivos da teoria e quais sãoos seus princípios fundamentais, também conhecidos como axiomas. Quanto à lógica,ela se refere a regras de inferência e postulados específicos que permitem a deduçãode novas afirmações (chamadas de teoremas) a partir dos axiomas. Neste contexto,uma demonstração é uma sequência de afirmações (ou fórmulas, no jargão usual damatemática) que atende a certas condições impostas pela lógica da teoria axiomática.E um teorema é a última fórmula de uma demonstração.

Portanto, para qualificar com rigor os conceitos de demonstração e teorema, faz-senecessário o emprego do método axiomático. E, diante deste fato, o processo deformalização é imprescindível.

Na prática matemáticos raramente são formais. Mas o estudo de lógica garante, entreoutras coisas, que mesmo demonstrações feitas de forma meramente intuitiva (comoocorre na maioria das vezes em livros e mesmo em salas de aula) podem ser tratadasde forma rigorosa e formal.

No entanto, o conceito de demonstração em matemática jamais ficou restrito aodomínio da mera formalização. Sempre foi necessária uma contraparte social, nosentido de que demonstrações possam ser compartilhadas entre matemáticos e nosentido de que matemáticos precisam sentir se uma dada demonstração está corretaou não. Apesar da noção de "sentir" ser vaga, é justamente a troca de ideias e críticasentre pares profissionais que legitima ou descarta uma ideia matemática, como umademonstração.

Mas a partir da segunda metade do século 20 esse quadro todo começou a mudar.

Em 1976 Kenneth Appel e Wolfgang Haken "provaram" o célebre teorema das quatrocores utilizando um computador IBM 360. O enunciado não rigoroso do teorema é oseguinte: "Dado um mapa plano, dividido em regiões, bastam quatro cores para colori-lo de modo que regiões separadas por apenas uma fronteira não tenham a mesmacor." Apesar de existir uma infinidade de possíveis mapas planos, Kenneth e Hakenreduziram todos os casos possíveis a apenas 1936 configurações redutíveis. E, apósconsumirem mais de mil horas de processamento, conseguiram "demonstrar" oteorema.

Por que, neste contexto, colocar a palavra "demonstrar" entre aspas? O motivo ésimples. Por um lado, até hoje nenhum ser humano conseguiu acompanhar ademonstração do teorema das quatro cores feita pela máquina, mesmo após aimpressão de todas as milhares de páginas que exibem as supostas 1936configurações que contemplem todos os possíveis mapas planos. E, por outro lado,programas de computador são naturalmente não confiáveis. Desde os primórdios dacomputação sabe-se que não é possível conceber um programa de computadorsecundário que verifique o desempenho de um outro programa executado por uma

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máquina.

Em 1996 uma versão mais simples da demonstração do teorema das quatro cores foipublicada. No entanto, os problemas da não verificabilidade humana e da nãoconfiabilidade da máquina ainda persistem.

Em 1997 William McCune publicou em Journal of Automated Reasoning um artigosobre a demonstração da conjectura de Robbins feita por uma máquina. A conjecturaestabelece que toda álgebra de Robbins é uma álgebra booleana. Este é um segundoexemplo de demonstração matemática feita originalmente por um computador e, nestecaso, de forma praticamente acidental.

Mas outros exemplos aquecem ainda mais as discussões sobre o que, afinal, é umademonstração em matemática.

Em 1611 o grande astrônomo Johannes Kepler conjecturou que o mais densoempacotamento de esferas de mesmo tamanho é o cúbico ou hexagonal. E em 1997Thomas Hales publicou uma série de relatórios, totalizando 250 páginas, nos quaisuma abordagem completamente nova era apresentada para resolver a conjectura deKepler. Hales fez extenso uso de um programa de computador! O prestigiadoperiódico Annals of Mathematics reuniu doze avaliadores para decidir se a provaapresentada por Hales estava correta. Após quatro anos de árduo trabalho, o parecerfinal foi de que os avaliadores estavam 99% certos de que não havia erros nademonstração sugerida por Hales.

Um exemplo fascinante sobre os limites da aplicabilidade da computação emmatemática é a conjectura de Mertens. Esta estabelece que a função de Mertens écotada pela raiz quadrada de seu argumento. E, mais importante ainda, se aconjectura de Mertens fosse verdadeira, ela implicaria na hipótese de Riemann, umdos problemas matemáticos do milênio. Para bilhões de valores do argumento dafunção de Mertens, programas de computador apenas apontavam para a validade daconjectura. No entanto, em 1985 Andrew Odlyzko e Herman te Riele apresentaramuma demonstração indireta da falsidade da conjectura de Mertens, usando justamenterecursos computacionais. Hoje se sabe que deve existir pelo menos um contra-exemplo em valores de argumento acima de dez elevado a catorze.

Mas o exemplo mais fascinante que permite questionar o conceito de demonstraçãoem matemática nada tem a ver com computação. Trata-se da célebre classificação dosgrupos simples finitos, a qual permite a classificação de todos os grupos finitos. Ademonstração deste teorema de classificação está disponível na forma de dezenas demilhares de páginas publicadas em centenas de artigos em periódicos especializadosao longo de cerca de meio século. Nenhum algebrista até hoje conseguiu acompanharesta extensa demonstração em sua totalidade. O melhor que se consegue é apenas agarantia de uns e de outros de que partes da demonstração estão corretas. Mas falta a

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Adonai às 00:03

visão holística da demonstração deste teorema de classificação, a qual parece serinacessível à mente de uma só pessoa.

Portanto, levando em conta que matemática é uma atividade social, fortementedependente da interação entre profissionais desta área e fundamentalmentesustentada pelo conceito de demonstração, o que, afinal de contas, é umademonstração?

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Respostas

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6 comentários:

Joao Marcos 6 de novembro de 2014 16:56Excelente post. Vale notar que a classificação dos grupos simples finitos tem sido paulatinamentedigerida e reprocessada, nos últimos anos, e "novas gerações" de demonstrações têm sido produzidas.Particularmente bem sucedido, neste sentido, foi o esforço recente de formalização do teorema de Feit-Thomson (segundo o qual todo grupo simples finito não-comutativo tem ordem par) com o uso doassistente de demonstração Coq. Obviamente, este tipo de desenvolvimento se baseia em uma noçãomuito precisa, contemporânea, do que é uma demonstração .Responder

Anônimo 26 de novembro de 2014 10:35Saiu anteontem no blog do professor Keith Devlin: http://profkeithdevlin.org/2014/11/24/what-is-a-proof-really/Responder

Adonai 26 de novembro de 2014 18:16Grato pela dica, Anônimo. Texto interessante.

Leandro Martins 8 de dezembro de 2014 18:44Tenho o livro "Os Elementos", de Euclides. Alguém aqui no blog teria interesse nele????Responder

Leandro Martins 8 de dezembro de 2014 18:47ERRATA: o nome do livro é "Elementos", e não "Os Elementos".........

Desculpem-me pela falha.......

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Ítalo Oliveira 12 de janeiro de 2015 23:57Li o texto abaixo recentemente e me lembrou essa palestra do Newton da Costa (acima transcrita):

Mathematician's anger over his unread 500-page proof

http://www.newscientist.com/article/dn26753-mathematicians-anger-over-his-unread-500page-proof.html#.VLR7MSvF_T-Responder

Adonai

Professor Associado do Departamento de Matemática da UFPR. Autor de dois livros sobre lógicapublicados no Brasil, e de dezenas de artigos publicados em periódicos especializados dematemática, física e filosofia, no Brasil e no exterior. Atualmente está trabalhando em dois projetos

cinematográficos, sendo que um deles visa uma crítica inédita às universidades federais brasileiras. Para maisdetalhes ver a página "Sobre o autor do blog".Visualizar meu perfil completo

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