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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA CENTRO DE EDUCAÇÃO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA – CPCJ PROGRAMA DE MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIA JURÍDICA – PMCJ ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITI VO
A FUNÇÃO JUDICIAL NO TRATAMENTO
DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
RUDSON MARCOS
Itajaí (SC), julho de 2009.
ii
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA CENTRO DE EDUCAÇÃO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS, POLÍTICAS E SOCIAIS CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA – CPCJ PROGRAMA DE MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIA JURÍDICA – PMCJ ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITI VO
A FUNÇÃO JUDICIAL NO TRATAMENTO
DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
RUDSON MARCOS
Dissertação submetida ao Programa de
Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí –
UNIVALI, como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre em
Ciência Jurídica. Orientador: Professor Doutor ALEXANDRE MORAIS DA RO SA Co-orientador: Professor Doutor JOÃO JOSÉ LEAL
Itajaí (SC), julho de 2009.
iii
AGRADECIMENTOS
Ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por seus gestores, especialmente ao
Coordenador dos Magistrados, que concederam o apoio financeiro e viabilizaram
os meios necessários à realização do curso de Mestrado;
Ao orientador Professor Doutor Alexandre Morais da Rosa, referência de
magistrado e pesquisador, que aceitou a orientação da pesquisa que dá
sustentação ao presente trabalho, fornecendo-me o apoio não só material, mas
também moral para consecução desta dissertação;
Ao co-orientador, Professor Doutor João José Leal, exemplo de Promotor de
Justiça e Professor que, mesmo com as adversidades que a vida lhe impôs no
curso da pesquisa, sempre me dispensou dedicação maior do que mereci,
tornando-se um paradigma de ser humano;
Ao Doutor Pedro Manoel Abreu e Doutora Maria da Graça dos Santos Dias,
membros componentes da banca avaliadora desta dissertação, pelo
profissionalismo demonstrado;
A todos os Professores do curso do CPCJ/UNIVALI, que descortinaram a
dimensão do Direito, ultrapassando a barreira das leis e códigos;
Aos prestativos Funcionários do CPCJ/UNIVALI, que jamais se furtaram em
fornecer os diversos auxílios a mim prestados, durante nosso convívio;
A todos os colegas de curso do Mestrado do CPCJ/UNIVALI, pelo saudável
convívio, que por si só, já valeu a pena os esforços empreendidos;
Enfim, a todos aqueles que, de uma forma ou de outra, contribuíram para a
conclusão do curso de Mestrado.
iv
DEDICATÓRIA
A todos(as) aqueles(as) que dedicaram suas vidas, na luta pela
concretização dos direitos humanos das mulheres.
A minha esposa Daiane, agradeço-lhe, especialmente, pela tolerância
durante minhas ausências para a realização do Mestrado, sonho
acalentado há tempos.
A minha mãe, Zeli Maria Marcos, símbolo de garra e determinação, que
demonstrou com exemplos, o doce sabor da dignidade.
v
Época triste a nossa,
em que é mais fácil quebrar um átomo do que um preconceito.
(Albert Einstein-1879-1955).
vi
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo
aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do
Vale do Itajaí, a coordenação do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica, a
Banca Examinadora e o Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca
do mesmo.
Itajaí (SC), julho de 2009.
RUDSON MARCOS
MESTRANDO
vii
PÁGINA DE APROVAÇÃO
SERÁ ENTREGUE PELA SECRETARIA DO PROGRAMA DE MESTRA DO EM CIÊNCIA JURÍDICA DA UNIVALI APÓS A DEFESA EM BANCA.
viii
ROL DE CATEGORIAS
1 – Função Judicial:
Diz respeito à atividade estatal exercida preponderantemente pelo Poder
Judiciário, por meio de declaração do Direito em casos concretos, bem
como pela aplicação do Direito preexistente, sendo uma atividade
irrevogável por outros poderes do Estado e exercida por meio de resolução
de conflitos entre as partes.
2 - Violência Doméstica:
É qualquer violência perpetrada na unidade doméstica, nas relações de
família ou no âmbito afetivo, geralmente cometida por um membro da
relação conjugal, podendo a vítima ser homem, mulher, criança,
adolescente, idoso ou adulto, independentemente do gênero1.
3 – Política Jurídica:
Complexo de medidas que têm como objetivo, a correção, derrogação ou
proposição de normas jurídicas ou de mudanças de rumo na Jurisprudência
dos Tribunais, tendo como referente a realização dos valores jurídicos.2
4 - Direitos Fundamentais:
Direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito
constitucional positivo de determinado Estado, tendo como características a
limitação no espaço territorial e vinculada ao tempo de vigência de
determinada ordem constitucional.
5 - Direitos Humanos:
São os direitos previstos no plano dos documentos de direito internacional,
por estarem vinculados ao reconhecimento do ser humano como
destinatários de normas jurídicas dotadas de caráter moral,
1 Nações Unidas/MJ/SNDH. Glossário. Uma vida sem violência é um direito nosso, p. 2. 2 MELO, Osvado Ferreira de. Dicionário de política jurídica. Florianópolis: OAB-SC, 2000. p. 77.
ix
independentemente de sua vinculação com ordem constitucional de
determinado Estado e que aspiram à validade universal, para todos os
povos e por tempo indeterminado.
6 – Justiça Consensual:
Entende-se por Justiça Consensual, o modelo de Justiça em que a
resolução dos litígios é protagonizada pela autonomia da vontade
manifestada pelo autor de um ilícito e pelo titular do direito de ação,
privilegiando-se os interesses da vítima e propiciando as condições à
transação, por meio de concessões recíprocas, sob a vigilância judiciária.
7 – Cuidado:
O que se opõe ao descuido e ao descaso é o cuidado. Cuidar é mais que um ato;
é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção, de zelo e de
desvelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de
responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro”.3
8 – Lógica Meritória:
Refere-se ao postulado no qual as distribuições das riquezas e posições sociais
na hierarquia das sociedades devem ser norteadas privativamente pelos critérios
de aptidões intelectuais e capacidade de cada indivíduo, como expressão da
lógica liberal.
9 – Ações Afirmativas :
Refere-se ao poder-dever estatal de promover, no interior da sociedade, a
igualdade fática, materialmente concretizada, orientando-se para a nivelacão e
para a gestão das diferenças, através de um tratamento jurídico diferenciado, com
vistas à consolidação da igualdade material de oportunidades sociais e na
equivalência de direitos entre os distintos membros da sociedade civil,
faticamente distintos.
3 BOFF, Leonardo. Saber Cuidar. Ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes,
2004. p. 33.
x
SUMÁRIO
RESUMO .......................................................................................... XII
ABSTRACT .......................................... ........................................... XIII
INTRODUÇÃO ................................................................................... 1
CAPÍTULO 1 ........................................ .............................................. 8
DIREITOS HUMANOS FEMININOS: ANÁLISE HISTÓRICA DA LUTA PELA CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS MULHERES ...................................... ......................................... 8 1.1 NOTAS INTRODUTÓRIAS ........................... .................................................... 8
1.2 O CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS . .................... 10
1.3 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS E FUNDA MENTAIS DAS MULHERES ...................................... ........................................................... 14
1.3.1 OS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES NA PRÉ-HISTÓRIA .............. 15
1.3.2 OS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES NA IDADE ANTIGA .............. 16
1.3.3 OS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES NA IDADE MÉDIA ................ 20
1.3.4 OS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES NA IDADE MODERNA ......... 22
1.3.5 OS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES NA IDADE CONTEMPORÂNEA ..................................... ........................................................ 26
1.3.6 OS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES, NO BRASIL ......................... 28
1.4 A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DA MULHER NOS INSTRUMENTOS DE DIREITO INTERNACIONAL ............. ................................ 33
CAPÍTULO 2 ........................................ ............................................ 39
RAÍZES DA VIOLÊNCIA. CONTROLE PENAL DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO BRASIL. ANÁLISE SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE DA LEI MARIA DA PENHA ......... ......... 39 2.1 NOTAS INTRODUTÓRIAS ........................... .................................................. 39
2.2 O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA. CONCEITO E ABORDAGEM H ISTÓRICA E MULTIDISCIPLINAR .................................. .......................................................... 39
2.3 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER - CONCEITOS E POLÍTICAS CRIMINAIS PARA O ENFRENTAMENT O ............. 45
2.4 ANÁLISE DA LEI MARIA DA PENHA - ORIGENS E CONCE ITOS .............. 50
2.4.1 ORIGEM DA LEI MARIA DA PENHA ........................................................... 50
xi
2.4.2 CONCEITO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER ............................................................................................................... 53
2.4.3 VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO ÂMBITO DA UNIDADE DOMÉSTICA .............................................................................................................................. 54
2.4.4 VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO ÂMBITO DA FAMÍLIA .................... 55
2.4.5 VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER DECORRENTE DA RELAÇÃO ÍNTIMA DE AFETO ............................................................................................................ 56
2.5 MECANISMOS PROCESSUAIS QUE OBJETIVAM REPRIMIR A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER .............. ................................. 57
2.6 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA CONSTITUCIONALIDADE DA LEI MARIA DA PENHA .......................................... ................................................................. 61
2.6.1 LEI MARIA DA PENHA E A ORDEM CONSTITUCIONAL BRASILEIRA .... 65
2.6.2 LEI MARIA DA PENHA E AS AÇÕES AFIRMATIVAS ................................ 69
2.6.3 A NECESSIDADE DA EXTENSÃO DA PROTEÇÃO CONTRA A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ÀS CRIANÇAS, IDOSOS E ADULTOS ...................... 71
2.6.4 A POSSIBILIDADE DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI MARIA DA PENHA SEM REDUÇÃO DE TEXTO OU SENTENÇAS ADITIVAS .......................................... ................................................................... 73
CAPÍTULO 3 ........................................ ............................................ 78
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS. .. 78 3.1 NOTAS INTRODUTÓRIAS ........................... .................................................. 78
3.2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PENAL E PROCESSUA L PENAL ANTECEDENTES DA LEI N.º 9.099/95. ................. ............................................. 78
3.3 MICROSSISTEMA DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS E C RIMINAIS NO BRASIL ............................................ ..................................................................... 84
3.4 O CRIME DE LESÕES CORPORAIS LEVES E CULPOSAS NO CONTEXTO DA LEI MARIA DA PENHA ............................. ..................................................... 90
3.4.1 NATUREZA DA AÇÃO PENAL ............................................. ...................... 91
3.4.2 ENTENDIMENTOS FAVORÁVEIS À AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA .................................... .......................................................... 93
3.4.3 ENTENDIMENTOS FAVORÁVEIS À AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA .......................................... 96
3.4.4 RAZÕES DE POLÍTICA JURÍDICA EM FAVOR DA AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA .......................................... 98
3.4.5 RAZÕES DECORRENTES DO PROCESSO LEGISLATIVO DE CRIAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA ................................................................................. 104
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................. .............................. 108
REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS ..................... ................... 115
xii
RESUMO
A presente Dissertação tem como objeto o estudo do
fenômeno da violência doméstica no Brasil, bem como a compatibilidade da Lei
Maria da Penha com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,
além da adequação hermenêutica com o sistema jurídico pátrio vigente. Possui o
objetivo de maximizar a potencialidade dos mecanismos legais de proteção contra
a violência doméstica, estendendo a todos os membros que compõem a unidade
familiar, por meio de técnicas interpretativas constitucionais adequadas, assim
como, resguardar os interesses da vítima deste fenômeno, com a adoção de
institutos desjudicializadores, por meio da valorização da função judicial, quanto à
superação de obstáculos dogmáticos constantes da Lei Maria da Penha. A
pesquisa procurou contextualizar a evolução dos Direitos Humanos femininos, ao
longo da história da humanidade, a conceituação e a abrangência legal da Lei
Maria da Penha no sistema jurídico brasileiro, para se chegar à conclusão da
constitucionalidade da Lei Maria da Penha, bem como da necessidade de adoção
de política jurídica, pelo Poder Judiciário, no enfrentamento da violência
doméstica, pautada na consensualidade, por meio da aplicação de institutos
constantes do microssistema dos Juizados Especiais aos casos de crimes de
pequeno e médio potencial ofensivo, decorrentes de violência doméstica. O
presente trabalho insere-se no contexto da pesquisa realizada na área de
concentração de fundamentos do direito positivo e vincula-se à linha de pesquisa
de produção e aplicação do direito, desenvolvida no âmbito do programa de
Mestrado da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Quanto à metodologia
aplicada, utilizou-se a de documentação indireta, nas modalidades bibliográficas e
documental. O método de procedimento é o monográfico e o de abordagem foi o
hipotético-dedutivo. Foram utilizadas as Técnicas do Referente, da Categoria e do
Conceito Operacional.
Palavras-Chave: Violência doméstica. Direitos humanos da
mulher. Função judicial. Política Jurídica. Judicialização das relações privadas.
xiii
ABSTRACT
This Dissertation aims to study the domestic violence in
Brazil as well as the compatibility of Maria da Penha Law to the Constitution of the
Federative Republic of Brazil in 1988, besides adapting the clarifying law to the
legal native system in force. It aims to maximize the potentiality of legal
mechanisms for protection against the domestic violence, extending to all the
members that compose the family unit, through proper constitutional interpretative
techniques and also protecting the interests of the victim by adopting judicial
institutes and through the improvement of the judicial function regarding
overcoming constant dogmatic obstacles of the Maria da Penha Law. This study
has intended to contextualize the evolution of the Women’s Rights throughout the
history of mankind and the conceptualization and the legal range of Maria da
Penha Law in the legal Brazilian system in order to come to the conclusion of the
constitutionality of Maria da Penha Law as well as the necessity of adopting a
legal policy by the Judiciary in dealing with the domestic violence, lined in the
concession, through the application of constant institutes in the microenvironment
of Special Courts to the cases of minor and medium offensive potential crimes
resulted from domestic violence. This work is inserted in the context of the
research conducted in an area of concentration of positive law application and it is
also linked to research production line and the application of the law, developed
under the Master Graduation Program at the University of Vale do Itajaí –
UNIVALI. The indirect documentation methodology was used either for the
bibliographical or the documentary arrangements. The proceeding method is the
dissertation and the approaching used was the hypothetical deductive one. The
Referent techniques, Category and the Operational Concept were used.
Keywords: domestic violence, Women’s Rights, Judicial
function, Legal policy, Legalization of Private Relations.
1
INTRODUÇÃO
No dia 06 de setembro de 2006, o Tribunal de Justiça de
Santa Catarina, pioneiramente, instalou os três primeiros juizados de combate à
violência doméstica contra a mulher, no Brasil, iniciando a concretização de uma
política, no âmbito judiciário, para a proteção das mulheres vítimas desta
patologia social, como forma de implementar o sonho acalentado durante séculos,
quanto à efetivação dos direitos à igualdade, ao respeito à dignidade e aos
direitos humanos femininos.
Após a realização de diversos tratados e convenções
internacionais, ratificados pelo Estado brasileiro, no intuito de implementar
mecanismos de proteção dos direitos humanos das mulheres, no que se refere à
consecução do direito de conviver na relação privada em ambiente livre de todas
as formas de violências, opressões e submissões, o Brasil editou a Lei Maria da
Penha, por meio da Lei n.º 11.340, publicada em 08 de agosto de 2006, com o
objetivo expresso de criar mecanismos tendentes à coibição do fenômeno da
violência doméstica e familiar contra a mulher, dispondo sobre a criação de
unidades jurisdicionais específicas à proteção da mulher e alterando dispositivos
do Códigos Penal brasileiro e outras legislações extravagantes.
Os instrumentos legais formalmente vigentes no
ordenamento jurídico brasileiro constituem-se em enorme desafios ao poder
público, notadamente ao Poder Judiciário, quanto ao enfrentamento e combate do
grave fenômeno da violência doméstica contra as mulheres, ocorrentes no mundo
afora e, especialmente, no Brasil.
É nesta perspetiva de desafio histórico de implementação de
um Poder Judiciário democrático, legitimado pelos interesses advindos da
Sociedade Civil e voltado para a consecução da cidadania ativa que nasceu o
interesse pelo tema violência doméstica, dentro da linha de pesquisa no presente
trabalho.
2
A violência doméstica contra a mulher, no Brasil, constitui-se
em fenômeno condenado à invisibilidade, inserida no contexto da cultura
patriarcal outrora dominante, por meio da qual a mulher, historicamente, vinha
sendo relegada a funções secundárias da sociedade, no espaço público e
imposta às mais variadas formas de submissões no espaço privado.
Neste contexto, a violência familiar contra a mulher, no Brasil
tem alcançado índices alarmantes, constituindo-se em grave ofensa aos direitos
humanos femininos. Para se ter a dimensão do tamanho deste fenômeno, impõe-
se a análise da pesquisa efetuada pelo IBGE, no final da década de 1980, na qual
se apurou que 63% das agressões físicas contra as mulheres eram praticadas no
âmbito das relações domésticas, evidenciando que o espaço privado, em vez de
representar o refúgio pacífico, tem-se transformado, em sua maioria, em campo
fértil para as mais variadas formas de violência contra a mulher. Em pesquisas
mais recentes, os dados são mais estarrecedores, ainda. Segundo a Fundação
Perseu Abramo, em levantamento realizada no ano de 2001, a taxa de projeção
de espancamento de mulheres, no âmbito doméstico, atingia a impressionante
grandeza de, a cada 15 segundos, uma mulher no Brasil é vítima de violência
doméstica.
Foi justamente o interesse pelo estudo da dimensão do
fenômeno da violência, em geral e da violência doméstica contra as mulheres,
especialmente, que motivou o interesse pelo estudo no presente trabalho.
A presente pesquisa tem como objeto o estudo do fenômeno
da violência doméstica, no Brasil, bem como a compatibilidade da Lei Maria da
Penha com a Constituição da República Federativa do Brasil, assim como a
adequação hermenêutica com o sistema jurídico pátrio. Enfoca-se a violência
familiar sob a perspectiva da valorização da função judicial na superação de
obstáculos dogmáticos que possam infirmar a potencialidade dos institutos
constantes da Lei Maria da Penha, por meio de mecanismos interpretativos
compatíveis com a política jurídica de promoção dos direitos humanos femininos.
3
Esta Dissertação foi desenvolvida na esfera da linha de
pesquisa da Produção e Aplicação do Direito e tem como área de concentração,
os Fundamentos do Direito Positivo.
O objetivo institucional4 é a obtenção do Título de Mestre em
Ciência Jurídica pelo Programa de Mestrado Acadêmico em Ciência Jurídica do
Curso de Pós Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica, da Universidade do
Vale do Itajaí - UNIVALI.
O objetivo geral é analisar os institutos jurídicos constantes
da Lei Maria da Penha, em cotejo com o sistema Constitucional, Penal e
Processual Penal brasileiro, para investigar em que medida se dá a intervenção
Estatal no âmbito das relações privadas, com vistas a sugerir a adoção de política
criminal compatível com a sistemática político-criminal pautada na proteção e
valorização dos interesses da vítima de violência doméstica.
Os objetivos específicos do trabalho são: Analisar os Direitos
Humanos e Fundamentais das mulheres através da História; Evidenciar que a
violência doméstica contra a mulher atenta contra os direitos humanos femininos;
Delimitar o conceito e abrangência da Lei Maria da Penha; Defender a
constitucionalidade deste Estatuto, por meio da adoção de mecanismos
hermenêuticos de superação da dogmática legal, em busca de maximizar a
potencialidade dos institutos jurídicos protetivos tendentes a erradicar a violência
intrafamiliar; Estender a aplicação dos institutos protetivos de violência doméstica
a todas as crianças, idosos e adultos integrantes da unidade familiar; Propiciar a
aplicação de institutos constantes da Lei dos Juizados Especiais aos casos de
violência doméstica, com o intuito de valorizar os interesses das vítimas,
normalmente, as mulheres, concebendo a elas o direito ao processamento ou não
de seus agressores, nos casos de crimes de menor ou médio potencial ofensivo.
Como hipóteses para a realização da pesquisa, tem-se:
4 Nesta Introdução, cumpre-se o previsto em PASOLD, César Luiz. Prática da pesquisa jurídica:
idéias e ferramentas úteis para o pesquisador do Direito. 10. ed. Florianópolis: OAB/SC, 2007. p. 158-163.
4
a) É possível a preservação da constitucionalidade dos
diversos institutos protetivos contra a violência doméstica, constantes da Lei
Maria da Penha, que tratam desigualmente homens e mulheres;
b) O crime de lesões corporais leves ou culposas, resultante
de violência doméstica é processado mediante ação penal de natureza pública,
porém condicionada à representação da vítima, como forma de valorizar os seus
interesses, em respeito à autonomia de sua vontade;
c) A adoção de política jurídica pautada na consensualidade,
com vistas a resguardar a harmonia familiar, nos crimes decorrentes de violência
doméstica, em detrimento da política criminal repressiva, reafirma os direitos
humanos da mulher.
Assim, a presente Dissertação se divide em três capítulos,
além desta Introdução e das Considerações Finais.
No capítulo inicial, as investigações realizadas buscam
demonstrar por meio da História, como ciência auxiliar do Direito, as formas de
organização das sociedades familiares, desde os povos primitivos até a
sociedade contemporânea, com destaque para o papel protagonista das mulheres
nas relações familiares, para evidenciar que os direitos humanos femininos foram
historicamente relegados a segundo plano, cuja concretização mostra-se como
um processo lento, paulatino e conta com inúmeras adversidades, ao longo dos
tempos.
Também são objetos de investigação, neste espaço, as
análises dos diversos instrumentos internacionais, especialmente os tratados e
convenções, destinados à implementação de políticas aptas à proteção e
promoção dos direitos das mulheres, tanto no espaço público, quanto no espaço
privado. Destacam-se, neste contexto, as formalizações de documentos
internacionais tendentes à erradicação da violência doméstica e familiar contra a
mulher, alçando este fenômeno à forma atentatória aos direitos humanos. Releva
destacar que o Brasil ratificou diversos tratados e convenções sobre o tema,
incorporando-os ao ordenamento jurídico pátrio, motivo pelo qual, antes mesmo
5
da edição da Lei Maria da Penha, o Brasil já estava obrigado a desenvolver
políticas protetivas e afirmativas, quanto aos direitos femininos, especialmente, no
combate à violência doméstica.
No capítulo intermediário, afigura-se como objeto de
investigação, a fenomenologia da violência, como manifestação social, suas
implicações nas sociedades atuais, causas e formas do controle penal da
violência.
Em particular, a violência doméstica contra a mulher é
analisada sob os diversos ângulos das ciências, com especial destaque para a
análise conceitual e formulação de políticas jurídicas implementadas, no Brasil,
para o enfrentamento desta patologia social.
O âmbito de abrangência da Lei Maria da Penha, como
instrumento de combate à violência doméstica também é objeto de investigação,
com destaque para a ampliação do espectro protetivo da família, o qual
transborda o âmbito da unidade doméstica, para alcançar as relações informais
de família, bem como as relações decorrentes do afeto, em inequívoca expansão
do conceito convencional de família, tratado na legislação civilista codificada.
Os institutos protetivos e mecanismos procedimentais
constantes da Lei Maria da Penha são analisados no curso da investigação, de
forma crítica e com vistas a propiciar o debate quanto à adoção de política jurídica
de proteção, em rede, das mulheres, incumbindo ao Estado a criação de
mecanismos de apoio e de promoção aos direitos das mulheres vítimas de
violência familiar, para o fim de suprir suas mais variadas necessidades.
No contexto da análise crítica da Lei Maria da Penha, o
trabalho enfrenta a questão da constitucionalidade deste Estatuto. Neste espaço,
o dispositivo constitucional brasileiro acerca do combate à violência doméstica
será cotejado com o conteúdo axiológico da Lei Maria da Penha, sob a
perspectiva dos objetivos e proposições afirmativas para a promoção da
igualdade material, no trato dos direitos femininos, com vistas a aferir a
compatibilidade deste Diploma com a ordem constitucional vigente.
6
Em outra análise, agora sob o ponto de vista sistêmico do
ordenamento jurídico vigente, verifica-se a necessidade de extensão dos
mecanismos de coibição à violência doméstica às crianças, idosos e adultos,
independentemente do gênero, ante a adoção, no Brasil, de mecanismos distintos
para a proteção segmentada dos diversos grupos sociais, seja por meio do
Estatuto da Criança e do Adolescente, seja através do Estatuto do Idoso ou,
ainda, sob a perspectiva de se conceber eficácia ao postulado da dignidade da
pessoa humana, no que se refere à proteção de todos os membros componentes
da unidade familiar, submetidos à violência doméstica.
Sob esta ótica e com vistas a preservar a constitucionalidade
da Lei Maria da Penha, maximizando seu potencial protetivo, adota-se o
mecanismo de interpretação constitucional sem redução de texto ou de sentenças
aditivas, para o fim de estender o conteúdo protetivo deste Estatuto a qualquer
dos membros da unidade familiar, em situação de violência doméstica, como
forma de política jurídico-criminal adequada a tutelar o bem jurídico subjacente,
qual seja, a promoção de todos os membros da unidade familiar a conviver em
ambiente permeado pelo afeto, pela solidariedade e em paz, assentado sobre o
conteúdo valorativo do cuidado.
No derradeiro capítulo, as investigações focarão análises
sobre o microssistema dos Juizados Especiais Criminais, bem como sobre os
institutos desjudicializadores constantes do sistema penal brasileiro, destacando a
importância destes mecanismos, no âmbito da adoção de uma política
consensual, coerente e sistematizada para o enfrentamento da criminalidade de
pequeno e médio potencial ofensivo.
Neste contexto, serão cotejados os mecanismos
procedimentais constantes da Lei Maria da Penha com a possibilidade de
inserção dos institutos dos Juizados Especiais Criminais, quanto aos
procedimentos penais decorrentes de violência doméstica, como forma de
concretizar a política criminal de Direito Penal mínimo, permeada no sistema
criminal pátrio.
7
Dentre os mecanismos constantes do microssistema dos
Juizados Especiais Criminais, foca-se o presente trabalho na importância da
adoção do instituto da representação da vítima, nos crimes de lesões corporais
leves e culposas, decorrentes de violência doméstica e familiar.
Esta posição é analisada sob diversos prismas, desde os
motivos de encaminhamento legislativo da Lei Maria da Penha, passando pelos
objetivos deste Estatuto e culminando com a formulação de política do direito, no
âmbito do Poder Judiciário, como ente legitimador dos anseios da Sociedade
Civil, por meio do qual, na perspectiva dworkiana, insta reconstruir não somente
os fatos apresentados em Juízo, mas também as normas regentes, com vistas a
potencializar a dimensão principiológica das normas jurídicas.
Neste viés, pontuar a problemática da violência doméstica,
sob o ângulo dos anseios da vítima, em sua maioria, mulheres, valorizando-a em
seu potencial de discernimento, especialmente quanto à escolha do
processamento ou não do agressor nos casos decorrentes de lesões corporais
leves e culposas, diante da complexidade que envolve a relação familiar, é
medida que se afigura compatível com os objetivos da Lei Maria da Penha e
coaduna-se com o postulado da dignidade humana, além do que, constitui-se em
medida de política jurídica necessária à concretização da histórica luta das
mulheres pela implementação dos direitos humanos femininos.
No que se refere à metodologia de pesquisa aplicada, será
utilizada a de documentação indireta, nas modalidades bibliográficas e
documental. O método de procedimento é o monográfico, e o de abordagem será
o hipotético-dedutivo. Serão utilizadas as Técnicas do referente, da Categoria e
do Conceito Operacional ao longo do relatório da pesquisa efetuada.
Em consonância com a metodologia empregada no Curso
de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica – CPCJ/UNIVALI, as
categorias fundamentais e seus conceitos operacionais foram apresentados no
início do trabalho, na forma de Rol de Categorias.
Portanto, esse é o ambiente da pesquisa empreendida.
8
CAPÍTULO 1
DIREITOS HUMANOS FEMININOS: ANÁLISE HISTÓRICA DA LUTA PELA CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
DAS MULHERES
1.1 NOTAS INTRODUTÓRIAS
O Estado Moderno de Direito5 nasceu e floresceu na Europa
no Século XIV, com o enfraquecimento e declínio do período medieval. Foi com o
movimento artístico, literário e político denominado Renascença, que se iniciou,
nesta época, e estendeu-se até o século XIX. Neste período, o Estado Moderno
de Direito ganhou seus contornos teóricos, moldados pelos pensamentos
iluministas, os quais efetivaram as formulações teóricas deste modelo de
organização social, política e jurídica, o qual se irradiou para as sociedades
ocidentais, dentre as quais, a sociedade brasileira.
O declínio dos ideais individualistas apregoados pelos
iluministas no Estado Moderno começou a dar sinais de evidência com o
direcionamento de Estados voltados para a garantia de direitos sociais, por meio
dos quais, paralelamente aos direitos que impunham ao Estado obrigações
negativas, no campo das liberdades individuais, passou-se a reconhecer o direito
a prestações positivas do Estado, por meio de prestações de serviços6.
5 Para BOBBIO, o Estado de Direito Moderno apresenta a seguinte sistematização conceitual: 1)
Estrutura formal do sistema jurídico, garantia das liberdades fundamentais com a aplicação da lei geral e abstrata por parte de juizes independentes; 2) Estrutura material do sistema jurídico: liberdade de concorrência no mercado, reconhecida no comércio aos sujeitos da propriedade; 3) Estrutura social do sistema jurídico: a questão social e as políticas reformistas de integração da classe trabalhadora; 4) Estrutura política do sistema jurídico: separação e distribuição do poder” BOBBIO, Norberto. et alii. Dicionário de política. 2. Vol. 13. ed. Brasília: UnB. 2007, p. 401.
6 Estes modelos Constitucionais prestacionais ganharam forma com a Constituição Mexicana, de 1917, a primeira a incorporar estes ideais, posteriormente com Constituição Alemã, de Weimar, em 1917, bem como a Constituição a Constituição Espanhola, em 1931. No Brasil, a primeira Constituição a adotar esses direitos prestacionais, foi a Constituição de 1.934, no que foi seguida pelas posteriores. Neste sentido: CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do direito constitucional. 1. ed. Curitiba: Juruá. 2002, p. 208-211.
9
Assim, a crise do Estado Moderno identifica-se,
basicamente, pela legitimação de desigualdades sociais, pela aceitação de
exclusões raciais e de gênero e pelo impedimento de exercícios da cidadania
ativa, principalmente, da camada menos favorecida economicamente.
Nesta ordem de idéias, impõe-se a análise contextual dos
direitos das mulheres, sob a ótica de um direito fundamental prestacional, no
sentido da necessidade de o Estado prover condições mínimas, por meio de
serviços públicos, adoções de políticas protetivas, bem como editar normas
cogentes com o objetivo de efetivar os direitos humanos das mulheres,
especialmente, as vítimas de violência doméstica.
Hodiernamente, os relacionamentos interpessoais estão
pautados nas complexidades inerentes ao convívio social, fruto de perplexidades
decorrentes de profundas crises que desafiam a sociedade atual, as quais
possuem raízes, em sua maioria, nos efeitos deletérios da economia globalizada,
na organização social desajustada e na incapacidade política do Estado em
atender aos anseios do povo.
Estes aspectos caracterizam a Sociedade e o Estado
Contemporâneo Democrático7, que constituem o panorama teórico, utilizado como
pano de fundo para as análises perpetradas no presente trabalho.
O objetivo, neste particular, é a demonstração da
importância da sedimentação dos direitos fundamentais, especialmente os
relacionados aos direitos das mulheres, vítimas de violência doméstica.
A dignidade da mulher, vista como cidadã sujeita de direitos,
também é objeto de estudo neste tópico, cotejando as categorias jurídicas
relacionadas aos direitos humanos, numa análise conceitual e histórica,
7 Para o conceito de Estado Contemporâneo Democrático, adota-se o fornecido por Paulo Márcio
Cruz, para quem “O Estado Contemporâneo Democrático é o também chamado de Estado Social, Estado de Bem-Estar ou Estado Social-Democrata, entendido como aquele que intervém na Sociedade para garantir oportunidades iguais a seus cidadãos nos âmbitos econômico, social e cultural” CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia e Estado Contemporâneo. 3. ed. Curitiba: Juruá. 2004, p. 152-153.
10
necessária à demonstração da importância na implementação dos direitos
básicos da mulher, vítima de agressão no âmbito do lar conjugal.
Impõe-se esclarecer que o trabalho pretende pautar-se na
análise crítica dos limites da ciência, sua responsabilidade e seu papel na
sociedade contemporânea. Neste contexto, a ciência opera uma ruptura com tudo
o que é da ordem do sensível, valorativo, ideológico, mitológico ou simbólico.8
Para o contexto da presente investigação, importante a
aproximação de conteúdos normativos com diretrizes morais, éticas e valorativas
que permeiam a sociedade atual, como forma de expandir a razão sensível, até
então renegada pela ciência tradicional, pautada na lógica racional.
1.2 O CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS
O discernimento sobre o conceito e a amplitude dos direitos
fundamentais evoluiu, ao longo da história, constituindo-se em valores essenciais
a qualquer ordem jurídica contemporânea, não se concebendo, no presente
estágio de evolução da humanidade, a fundação de um Estado sem a garantia
mínima dos direitos fundamentais aos cidadãos, ante os diplomas internacionais
de caráter impositivo, bem como o estágio atual de evolução da Sociedade Civil,
que não mais permite atrocidades aos direitos inerentes à própria condição
humana.
Na lição de BOBBIO:
Desde seu primeiro aparecimento no pensamento político dos séculos XVII e XVIII, a doutrina dos direitos do homem já evoluiu muito, ainda que entre contradições, refutações, limitações. Embora a meta final de uma sociedade de livres e iguais, que reproduza na realidade o hipotético estado da natureza, precisamente por ser utópica, não tenha sido alcançada, foram
8 DIAS, Maria da Graça dos Santos. Novos estudos jurídicos. Direito e Pós-Modernidade. Volume
11, n.º 1. Itajaí/SC: Univali Editora, jan-jun 2006. p. 103-115.
11
percorridas várias etapas, das quais não se poderá facilmente voltar atrás.9
Os direitos fundamentais possuem objetivo primordial de
assegurar a promoção de condições dignas de vida a cada cidadão, por meio de
serviços públicos, ações governamentais, políticas inclusivas desenvolvidas pelo
Estado, num evidente caráter positivo da atuação estatal. De outro lado, os
direitos fundamentais assumem a feição negativa da autuação do Estado, na
medida em que se constitui na garantia de defesa do indivíduo contra os abusos
cometidos pelos órgãos e agentes públicos constituídos.
As expressões direitos humanos e direitos fundamentais
referem-se a dois conceitos similares, porém, com sentidos diversos, que são
confundidos e utilizados como expressões sinônimas, usualmente. Neste
diapasão, impende-se conceituar as expressões direitos humanos e direitos
fundamentais, no intuito de demonstrar os sentidos e os alcances de cada
categoria.
HÖFFE assinala que:
[...] a pertinência da diferenciação conceitual entre direitos humanos e fundamentais está justamente no sentido de que os direitos humanos integram apenas uma espécie de moral jurídica universal, antes de serem reconhecidos e positivados nas Constituições, ocasiões em que se convertem em direitos fundamentais, constituindo-se em elementos do direito positivo de uma determinada comunidade jurídica. 10
No mesmo sentido, SARLET preconiza que:
As expressões “direitos fundamentais” e “direitos humanos” (ou similares), em que pese sua habitual utilização como sinônimas, se reportam a significados distintos. No mínimo, para os que
9 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Nova. Rio de
Janeiro: Elsevier. 2004, p. 78.
10 HÖFFE, Otfried. Derecho intercultural. Tradução Rafael Sevilla. Barcelona: Gedisa, 2000. p. 166.
12
preferem o termo “direitos humanos”, há que se referir – sob pena de correr-se o risco de gerar uma espécie de equívocos – se eles estão sendo analisados pelo prisma do direito internacional ou na sua dimensão constitucional positiva”.11
Nesta mesma direção, aponta CANOTILHO, para quem os
direitos humanos são aqueles válidos para todos os povos e em todos em
tempos, enquanto os Direitos Fundamentais são garantidos e limitados espaço-
temporalmente.
Para este autor: Os direitos do homem arrancariam da
própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal; os
Direitos Fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem
jurídica concreta.12
Portanto, diante destes parâmetros, pode-se conceituar os
direitos humanos como sendo aqueles previstos no plano dos documentos de
direito internacional, por estarem vinculados ao reconhecimento do ser humano
como destinatário de normas jurídicas dotadas de caráter moral,
independentemente de sua vinculação com ordem constitucional de determinado
Estado e que aspiram à validade universal, para todos os povos, por tempo
indeterminado.
Já, para fins do presente trabalho, conceitua-se direitos
fundamentais como sendo aqueles positivados na ordem constitucional vigente de
cada nação, no caso específico, catalogados na Constituição da República
Federativa do Brasil, de 1.988, tendo como características a limitação no espaço
territorial brasileiro e vinculados ao tempo de vigência da ordem constitucional, do
Brasil.
Na perspectiva da construção de uma teoria do Direito,
fundamentada, não nos moldes do contrato social defendido pelos teóricos
11 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9 ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008. p. 38.
12 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra: Coimbra ed, 2003. p. 393.
13
iluministas, mas sim, do ponto de vista da Justiça Política13, tem-se que a
liberdade integral de cada indivíduo no Estado de natureza resulta da simetria
social de ser-vítima e ser-agente, porquanto na medida da possibilidade de lesão
a direitos de outrem, automaticamente, está submetido, também, à liberdade do
outro, o que evidencia que um convívio social genuinamente ausente de coerção,
mostra-se impossível.
Na dicção de DIAS:
Os direitos humanos caracterizam-se como direitos subjetivos, que qualquer homem, em qualquer circunstância, pode reivindicar. Apresentam, assim, como pretensões de direito, que têm como correlativos deveres, débitos. Por isso, o ser humano é concomitantemente sujeito e objeto em relação aos Direitos Humanos, pois tanto as pretensões de Direitos Humanos como os deveres humanos efetivam-se somente pelo desempenho recíproco dos homens. A reciprocidade apenas quando aliada à pretensão de direito e ao dever correlato é que cria direito. A renúncia constitui condição para que a liberdade de ação se torne possível na perspectiva social.14
Neste viés, diante da complexidade da convivência social e
familiar, afigura-se possível a renúncia de determinados direitos, em situações
excepcionais, para o fim de salvaguardar interesses de maior valoração, na ótica
de seu destinatário, porquanto nenhum direito se afigura como absoluto, mesmo
erigido à categoria de direitos fundamentais ou direitos humanos.
No caso específico dos direitos humanos e fundamentais
das mulheres, em que pese serem alvo de freqüente reconhecimento, no plano
formal, perfectibilizados nos diversos diplomas internacionais, resultantes na
positivação no ordenamento jurídico brasileiro, cuja análise far-se-á adiante,
13 Para o conceito de Justiça Política, mostra-se adequado o entendimento de HÖFFE, para
quem: O princípio básico da Justiça Política consiste na coexistência da liberdade distributivamente vantajosa. HÖFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do Direito e do Estado. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 312.
14 DIAS, Maria da Graça dos Santos. A Justiça e o imaginário social. Florianópolis: Momento Atual, 2003. p. 61.
14
contudo, na prática, a concretização dos direitos das mulheres está longe de ser
totalmente implementada, neste país.
Assim sendo, conhecer os direitos humanos e fundamentais
das mulheres, bem como a amplitude e as limitações deles, afigura-se essencial à
garantia e proteção dos interesses femininos, na perspectiva de assegurar a
pacificação, seja no relacionamento social, nas ações laborativas ou no reduto do
seu lar conjugal, porquanto a Justiça não pode perder de vista seu objetivo maior,
qual seja, a busca pela Paz Social, seja nas relações sociais ou nas esferas
afetivas.
1.3 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS E FUNDA MENTAIS
DAS MULHERES
A análise da condição da mulher, na sociedade
contemporânea, exige uma descrição histórica, acerca da luta feminista à
implementação dos mais comezinhos direitos inerentes à sua condição humana,
na medida em que se pretende estabelecer um resgate histórico ao
reconhecimento da importância das mulheres na concretização dos avanços
sociais, políticos e jurídicos nas sociedades, ao longo dos tempos.
No intuito de propiciar uma visão panorâmica acerca do
fenômeno da conquista histórica das mulheres na implementação de seus
direitos, ainda em andamento, importante traçar notas acerca da evolução dos
direitos humanos das mulheres, ao longo da história da humanidade15.
15 Para o fim do presente trabalho, adotou-se a seguinte ordem cronológica: 1) Idade Pré-
Histórica: desde o surgimento do homem até a invenção da escrita, por volta do ano 4.000 a.C. 2) Idade Antiga – Da invenção da escrita, há cerca de 4.000 a.C. até a queda de Roma (Capital do Império Romano do Ocidente), em 476, d.C. 3) Idade Média – Inicia-se com a queda de Roma, em 476 d.C até a queda de Constantinopla, (Capital do Império Romano do Oriente), em 1.453 d.C. 4) A Idade Moderna inicia-se em 1.453 d.C e perdura até a o surgimento dos Estados Prestacionais, em 1.917, por meio da Constituição mexicana. Por fim, 5) A Idade Contemporânea surge no início do Século XX e perdura até os dias atuais. Embora ciente da controvérsia acerca destes fatos e datas, afigura-se didática a adoção da ordem cronológica apresentada, a qual foi formulada a partir dos indicativos constantes da obra de: SANTOS, Sidney Francisco Reis dos. MULHER: sujeito ou objeto de sua própria história? um olhar interdisciplinar na história dos direitos humanos das mulheres. Florianópolis: OAB/SC, 2006. p. 73, bem como da obra de PASOLD, Cesar Luiz. Função social do Estado Contemporâneo. 2. ed. Florianópolis: Estudantil, 1988. p. 46.
15
1.3.1 OS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES NA PRÉ-HISTÓ RIA
Há provas decorrentes de estudos, em diversos sítios
arqueológicos, de que, já no início do período pré-histórico, as mulheres detinham
grande envolvimento nas evoluções tribais, sendo submetidas a extenuantes
afazeres na tribo, dentre os quais se destacavam a coleta de comidas, tais como:
folhas, raízes, grãos, além do cuidado com as crianças, fabricação de cerâmicas,
preparação de alimentos, fabricação de ornamentos. As funções de caça e pesca
eram, geralmente, reservadas para os homens.
Para SANTOS:
O exercício destas funções pelas mulheres iniciava-se desde o nascer do sol perdurando até o sol poente, numa jornada dura, que levavam-nas ao falecimento precoce, porquanto a maioria das mulheres morriam antes dos vinte anos de idade, sendo raras as que atingiam trinta anos e só excepcionalmente alcançavam quarenta anos de idade.16
Identificam-se nestas sociedades pré-históricas o limiar dos
direitos humanos das mulheres, pois se constata que nestas comunidades
imperava um matriarcado, tendo em conta que os homens não as exploravam,
tampouco as ordenavam no trabalho, abstraindo-se de apropriarem de sua
produção. Estudos demonstram que, neste período, as mulheres detinham o livre
arbítrio quanto ao seu direito de locomoção, bem como, quanto ao uso de seu
corpo ou de seus filhos, não havendo registros de fetiches de virgindade ou de
castidade feminina, tampouco era exigida a exclusividade sexual da mulher.
Segundo MILES. Às mulheres era facultada a assunção de
funções de líderes, conselheiras, sábias, médicas, sacerdotisas, legisladoras, eis
16 SANTOS, Sidney Francisco Reis dos. MULHER: sujeito ou objeto de sua própria história? um
olhar interdisciplinar na história dos direitos humanos das mulheres. Florianópolis: OAB/SC, 2006. p. 74.
16
que gozavam do carisma da Deusa-Mãe, advindas dos mistérios da fertilidade, da
gestação e do nascimento.17
Como se vê, nos primórdios, os direitos humanos das
mulheres apresentavam seus primeiros contornos, diante da ausência de
comprovação de submissão aos interesses masculinos, particularidade atribuída,
principalmente, à existência da cultura matriarcal, predominante nos povos tribais.
1.3.2 OS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES NA IDADE ANT IGA
A luta para a manutenção da organização social calcada no
matriarcado perdurou durante boa parte da Pré-História, estendendo-se até o
início da Idade Antiga. A longa duração desse sistema decorreu, principalmente,
dos poderes mitológicos da fertilidade das mulheres, cuja crença era no sentido
de que a reprodução humana era produto exclusivo do feminino, ante a ausência
da compreensão do homem no processo reprodutivo, advindo daí, o culto à
Deusa-Mãe, elemento essencial à formação da cultura matriarcal.
Na percepção de SANTOS:
Nenhuma ligação era feita com a importância da semente sagrada masculina para a fecundação do vaso sagrado feminino. Só as mulheres podiam produzir novas vidas e eram, por isso, reverenciadas. Dessa forma nasceu a crença de que a mulher era divina, não humana, dotada do poder mais sagrado e significativo do mundo: o poder de gerar novas vidas humanas. Desse mito surgiu o culto de adoração a grande Deusa Mãe.18
Em decorrência dessa divindade do feminino, surgiu a
primeira sacerdotisa-poeta nos antigos povos sumerianos, atual Iraque,
denominada Enheduanna, a qual gozou de poder, enquanto filha do rei Sargon I,
17 MILES, Rosalind. A história do mundo pela mulher. Rio de Janeiro: Casa Maria Editorial/LTC,
1.989, p. 42.
18 SANTOS, Sidney Francisco Reis dos. MULHER: sujeito ou objeto de sua própria história? um olhar interdisciplinar na história dos direitos humanos das mulheres. Florianópolis: OAB/SC, 2006. p. 80.
17
tendo recebido a condecoração de ministra do Lunar da Mais Alta, em razão da
encarnação da divindade feminina pelos habitantes daquele local.
Contudo, com o aprofundamento do conhecimento nas
diversas áreas do saber, notadamente nas Cidades-Estado gregas, o sistema
matriarcal passou a dar lugar à cultura do patriarca, pela qual o poder familiar
centrava-se na figura do homem, em decorrência, principalmente, da descoberta
da importância masculina no processo reprodutivo humano, advindo a adoração
por Deuses Masculinos, tendo o homem passado a ocupar lugar de destaque no
cenário mitológico, suplantando a divindade da Deusa-Mãe.
ARISTÓTELES defendia a idéia de que:
[...] os animais machos na natureza são mais perfeitos e, por isso são dirigentes, enquanto que as fêmeas são menos perfeitas e por conta disso, obedecem, sendo esta regra naturalmente aplicável a todos os homens. Aduzia que, naturalmente, o homem é mais destinado a mandar do que a mulher e que existe uma certa arte de conquista natural para os chefes de família e do Estado.19
Diversamente do entendimento de Sócrates, para quem a
igualdade entre homens e mulheres era o fundamento de sua base teórica,
ARISTÓTELES defendia que o temperamento, a coragem e a justiça não são as
mesmas nos homens e nas mulheres. Para o autor de Política, no homem, a
audácia serve para comandar, enquanto na mulher serve para executar aquilo
que outro prescreve20.
Importante notar que a valorização do homem, dentro do
sistema patriarcal, em detrimento dos direitos humanos da mulher, fortalece-se a
partir do gradual aumento do poder dos homens, através do exercício privativo
das principais funções de destaque na política e na organização social, dentro da
formatação da democracia das Cidades-Estado gregas.
19 ARISTÓTELES. Política. Tradução Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 18-32.
20 ARISTÓTELES. Política. Tradução Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 33.
18
A partir da consolidação desta concepção patriarcal, as
mulheres passaram a receber tratamento amplamente desigual, quando cotejadas
às mesmas ações perpetradas pelos homens, sejam nas atividades
desenvolvidas no espaço público ou nas práticas perpetradas no âmbito do
relacionamento privado, sem haver justificativas plausíveis para as diversas
formas de discriminação impostas a elas.
Para ilustrar o tratamento desigual dispensado à mulher
ateniense, esta, quando da prática de ato infiel era severamente punida, enquanto
que o adultério do marido era sancionado apenas com indenizações pecuniárias
para o marido traído ou simplesmente ficava impune.
Esse tratamento diferenciado revela a noção patrimonialista
que a mulher era submetida, porquanto esta era considerada domínio do homem,
o qual lhe impingia uma relação pautada na inferioridade, abstraindo-lhe direitos
humanos inerentes à liberdade de locomoção, posto que não lhe era assegurado
o direito de ir e vir em público, bem como o direito de propriedade privada, tendo
em conta que, sequer por herança, a mulher podia ser proprietária.
No que se refere à contração do matrimônio, ARISTÓTELES
defendia o tratamento desigual entre os gêneros, sob o seguinte fundamento:
É conveniente, portanto, estabelecer que o casamento das mulheres deve ser aos dezoito anos, e dos homens aos trinta e sete ou pouco antes. Desse modo, a união se fará no instante máximo do vigor, e os dois esposos terão um tempo mais ou menos igual para educar a família, até que deixem de ser aptos à procriação.21
Ademais, as mulheres, além de sofrerem sensível subtração
de direitos básicos, inerentes à sua condição humana, também se encontravam
completamente alijadas do processo democrático na Grécia antiga, não lhes
sendo concebida a qualidade de cidadãs, cuja noção, estava intrinsecamente
21 ARISTÓTELES. Política. Tradução Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 149.
19
ligada à existência de propriedades privadas, capacidade de trabalho e liberdade,
cujos direitos, em regra, eram sonegados às mulheres.
Em decorrência da grande influência que as sociedades
gregas exerceram sobre outras civilizações que as sucederam, percebe-se que o
sistema de cultura patriarcal perpassou diversos povos, culminando com seu
apogeu no início do Império Romano, período no qual se vislumbraram os
primeiros sinais de queda desse sistema, em face da atuação destacada das
mulheres, nesta época.
Conforme MURSTEIN:
Com o crescimento geo-político do Estado romano na fase da república o poder do pater familae foi relativizado, enquanto os direitos humanos das esposas aumentavam. As duas primeiras guerras Púnicas (265-241 a.C., 218-211 a.C.) serviram de catalisadores para tal transformação. Como os maridos se achavam distantes na guerra, na primavera e no verão, as esposas, que tinham de dirigir as fazendas e lares, pressionaram o Senado romano a fim de modificar as leis que tolhiam seus direitos femininos.22
Doravante, no âmbito das relações privadas, as mulheres
romanas passaram paulatinamente a conquistar direitos humanos, até então
sonegados, na medida em que se propiciaram a elas diversos direitos
patrimoniais, tais quais: o direito de herdar propriedades privadas; o de exercer o
direito de retenção de dotes, até mesmo no caso de divórcio; o direito de
administração dos bens, na ausência do cônjuge, dentre outros.
Contudo, no espaço público, os direitos políticos de
participação na organização social continuavam sendo negados às mulheres,
tendo em conta os estreitos limites do conceito de cidadania, que continuavam a
excluir os direitos das mulheres em participarem do processo político e de
assumirem funções destacadas na sociedade.
22 MURSTEIN, Bernard I. Amor, Sexo e casamento através dos tempos. Tomo I. São Paulo: Arte
Nova, 1977. p. 83.
20
1.3.3 OS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES NA IDADE MÉDIA
Em manifestação inequívoca do caráter pendular dos
direitos humanos das mulheres, no qual se afiguram constantes avanços e
retrocessos, no curso da história da humanidade, tem-se que na Idade Média,
conhecido pelo período da Escuridão na história do saber humano, no campo dos
direitos femininos não foi diferente, porquanto, nesta época, consolidou-se o
sistema patriarcal, rebaixando os direitos das mulheres ao patamar de submissão
aos direitos dos homens, em evidente retrocesso no campo social, político,
jurídico e na esfera das relações privadas e afetivas.
Na Idade Média, a cultura patriarcal assume o apogeu,
consolidando-se tanto no mundo ocidental, judaico e cristão, quanto na parte do
oriente-médio islâmico, por meio do avanço da dominação religiosa monoteísta, a
qual determinou a organização social, política e cultural, seja na esfera pública ou
na relação privada, com notáveis retrocessos no campo dos direitos humanos das
mulheres.
Conforme SANTOS:
[...] a origem ideológica de cunho psico-mitológico de dominação, dentro das tradições judaico-cristã e islâmica, reside na crença do pecado original cometido por Eva, contra o Deus Pai. As mulheres no decorrer dos séculos foram levadas a acreditar em sua inferioridade natural devido ao pecado original.23
Com efeito, o mito do pecado original é emblemático e traz
consigo a pretensão interna de dominação da mulher, seja na esfera pública ou
no espaço privado. Neste campo, acentua-se o processo de submissão das
mulheres ao domínio patrimonial em favor dos homens, cuja tônica é torná-las
propriedade privada, num processo de coisificação, inclusive quanto ao uso do
23 SANTOS, Sidney Francisco Reis dos. MULHER: sujeito ou objeto de sua própria história? um
olhar interdisciplinar na história dos direitos humanos das mulheres. Florianópolis: OAB/SC, 2006. p. 102-103.
21
corpo da mulher, perfectibilizada pela figura do cinto de castidade24, marca
indelével de agressão aos direitos humanos femininos, o que demonstra que
estas foram privadas, não somente de direitos políticos, mas também de direitos
decorrentes de sua condição de seres humanos.
Na cultura patriarcal islâmica, a negação dos direitos
humanos às mulheres fica mais evidente, na medida em que as mulheres árabes
passaram a sofrer violentas formas de opressão e agressão física, desde a
submissão ao uso do véu até às penalidades de reclusão e mutilação da genitália,
procedimento conhecido por circuncisão feminina, pelo simples fato de estarem
na condição humana de mulher, sem que jamais tivessem cometido qualquer
transgressão. Tristes práticas que, infelizmente, ainda estão presentes em nações
nas quais impera o radicalismo religioso, afeto ao islamismo, nos dias atuais.
Na observação de MURSTEIN:
A figura psico-simbólica do Deus Pai (onipotente e onisciente) criou uma hierarquia político-jurídica de um Deus Pai acima de todos os outros Deuses e Deusas, do mais forte sobre o mais fraco, do crente sobre o não-crente. Além disso, criou-se um novo conceito de relacionamento entre os seres humanos e a divindade, ou seja, doravante, o homem (varão macho da espécie humana) foi feito à imagem e semelhança do Deus Pai, desse modo, deve governar as criações de Deus Pais, ou seja, as mulheres como partes integrantes destas criações acabaram sendo submetidas à submissão de seus senhores patriarcais.25
24 Segundo SANTOS, o cinto de castidade era um instrumento trazido do oriente médio, pelas
Cruzadas, no Século XI e destinado ao controle da genitália da mulher, consistindo em uma espécie de espartilho de ferro ou prata soldado, o mais apertado possível, em torno da carne da mulher, com uma barra de ferro passada entre as suas pernas, também muito justa. Esta barra tinha dois buracos estreitos e destinados à evacuação corporal. Ao usá-lo, a mulher não podia lavar sua genitália, gerando sérias doenças genitais, já que o ferro entre suas pernas impedia e retinha sua urina, sua descarga menstrual e seus movimentos intestinais. Tornava também a locomoção normal extremamente difícil, provocando lesões ortopédicas. SANTOS, Sidney Francisco Reis dos. MULHER: sujeito ou objeto de sua própria história? um olhar interdisciplinar na história dos direitos humanos das mulheres. Florianópolis: OAB/SC, 2006. p. 104.
25 MURSTEIN, Bernard I. Amor, sexo e casamento através dos tempos. Tomo I. São Paulo: Arte Nova, 1977. p. 159.
22
Portanto, em face do domínio da religião sobre a Sociedade
feudal da Idade Média, foram personificados mitos sobre o homem criado à
imagem do Deus Pai, numa clara intenção monoteísta, em detrimento à cultura de
politeísta, até então vigente, com vistas a ceifar a idéia de admiração religiosa à
Deusa Mãe e outras crenças calcadas nos valores das mulheres, especialmente,
a fertilidade, o que, acarretou, enormes retrocessos à luta pela concretização dos
direitos humanos das mulheres, por meio do aviltamento de seus mais
comezinhos direitos inerentes à condição de seres humanos.
1.3.4 OS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES NA IDADE MODERNA
O sistema de dominação de gênero, que coloca a mulher em
situação de submissão ao homem, conhecido por modelo patriarcal perdurou com
todo o seu vigor durante o período medieval.
Ocorre que a efervescência cultural, política e social iniciada
no Estado Moderno deu seus primeiros sinais no Século XV, na Europa, com o
enfraquecimento e declínio do período medieval. Foi com o movimento artístico,
literário e político denominado Renascença, que iniciaram seus contornos
teóricos, tendo suas formulações se irradiado para as sociedades ocidentais.
Com os novos ideais, pautados, principalmente, nos
princípios da igualdade, liberdade e fraternidade, que iluminaram as bases
teóricas para as Revoluções ocorridas no final do Século XVIII, o tema de
igualdade de gênero reavivou-se, havendo grande engajamento dos movimentos
femininos, visando à concretização dos direitos humanos das mulheres.
Na Revolução que culminou com a independência dos
Estados Unidos da América, em 1.776, houve um maciço comprometimento das
mulheres, especialmente com o boicote inicial aos produtos vestuários britânicos,
tendo as mulheres norte-americanas tecido enormes quantidades de produtos
têxteis para proverem o mercado interno, sem a necessidade de importar estes
produtos da Inglaterra.
Sucede que o processo de mecanização progressivo no
setor fabril afetou sobremaneira o trabalho das mulheres na América do Norte, no
23
Século XIX. Neste período, as mulheres percebiam salários menores do que os
homens, no exercício de funções idênticas, sendo exploradas, como mão de obra
barata, em péssimas condições de trabalho, a ponto de conceberem filhos no
interior das fábricas.
Estes fatores ensejaram o surgimento de um movimento
feminista por isonomia jurídica e política de gêneros, que culminou com o clássico
protesto, realizado em 08 de março de 1.857, em que operárias de uma indústria
têxtil de Nova York revoltaram-se contra as degradantes condições de trabalho,
na busca por melhorias salariais e redução da jornada de quatorze para dez horas
de trabalho diárias.
Neste terrível episódio, os empregadores fecharam as portes
das unidades fabris e atearam fogo no prédio, dando ensejo à morte de 129
mulheres trabalhadoras, revelando a ideologia do desprezo e do desrespeito para
com a vida das mulheres, em ato atentatório à dignidade humana. Em função
desse lamentável fato, em 1975, a Organização das Nações Unidas incluiu o dia 8
de março, como o Dia Internacional da Mulher.
Também, durante a Revolução Francesa, em 1789 as
mulheres tiveram significativa participação na luta contra o despotismo
monárquico francês, por meio de marchas e insurreições, tal qual a conhecida
marcha de Versalhes, em 05 de outubro de 1789, na qual, cerca de 8.000
mulheres insurgiram-se diante da falta de produtos alimentícios no mercado e a
ausência do Rei Luis XVI da cidade de Paris, selando seus destinos. Tais
movimentos influenciaram sobremaneira os debates teóricos nos movimentos
coletivos revolucionários na França.
Embora o movimento feminista tenha sido importante à
instauração da nova ordem política francesa, mesmo assm, as mulheres foram
afastadas dos direitos ligados à cidadania política e à organização social, por
meio de exclusão de assembléias, comissões e partidos políticos regentes dessa
nova ordem.
24
Nesse contexto é que surge, em 1.791, na França, a
Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, de autoria de Olympe de Gouges,
reputado como o documento mais importante na consecução dos direitos
humanos das mulheres.
Na lição de RODRIGUES:
Em seu texto ela [Olympe de Gouges] defende a igualdade dos sexos, fundamentada na natureza e na razão, ressaltando que as mulheres obtiveram vantagem alguma, embora tenham colaborado com os homens na Revolução. Para ela, o não reconhecimento da igualdade da mulher por parte dos legisladores revolucionários representava uma afronta aos princípios revolucionários. Ela defendia o direito ao sufrágio, tanto ativo quanto passivo, para todas as mulheres. Ela considerava que a mulher deveria ser sujeito dos diversos direitos proclamados na Declaração de Direitos do homem e do cidadão de 1789. 26
Embora tenha importância singular na história dos direitos
femininos, ALDA FACIO anota que:
[...] a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã não sensibilizou os detentores do poder francês, tendo, ao revés, sido Olympe de Gouges condenada à morte e guilhotinada em 07 de novembro de 1793, sob a acusação de subverter a ordem natural, durante a Revolução Francesa, por ter “esquecido as virtudes de seu sexo para imiscuir-se nos assuntos da República”, conforme anunciado pelo procurador Chaumette, ao anunciar sua condenação, determinada por Robespierre.27
Como se vê, infelizmente, os ideais da Revolução Francesa
foram dominados pela cultura patriarcal, na qual os direitos do homem e do
cidadão dizem respeito ao varão da espécie humana, propiciando, por longo
período, a exclusão das mulheres no cenário público, na medida que as
26 RODRIGUES, Maria Alice. A mulher no espaço privado: da incapacidade à igualdade de
direitos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 15.
27 FACIO, Alda. Sexismo no direito dos direitos humanos. mulheres e direitos humanos na América Latina. Traduzido por Maria Edith do Amaral Di Giorgi. São Paulo: CLADEM, 1992. p. 30.
25
afastaram da participação política, legitimando a ideologia de incapacidade
feminina no trato da coisa pública, sob o argumento de que, por natureza, são
destinadas aos afazeres familiares e privados, para as quais possuem virtudes
específicas, ideologia esta perfectibilizada pelo Código Napoleônico francês e que
influenciou a cultura jurídica dominante no mundo ocidental, inclusive no Brasil.
Por outro lado, releva destacar o importante avanço para os
direitos humano femininos, ocorrido no curso da Revolução Russa, em 1917.
Segundo RODRIGUES:
“quando operárias, acompanhadas pelos filhos protestavam por melhores condições de vida nas ruas de Petrogrado. O movimento cresceu, inclusive com adesão de homens, o que levou o Czar russo abdicar do Governo, o que propiciou a formação de um governo provisório, o qual, dentre as suas ações, erigiu a mulher à categoria de cidadã, conferindo-lhe direitos políticos, tanto de votar, quanto de ser votada. Também foi suprimido o poder marital nas relações conjugais; o aborto foi autorizado sem restrições e as uniões de fato foram reconhecidas, tal qual o casamento. Entretanto, sucedeu que o conturbado período revolucionário estalinista na Rússia, em 1920, suprimiu tais direitos conferidos às mulheres, restabelecendo antigos valores e, por conseqüência, retomando a submissão das mulheres”28.
Como se percebe, muito embora as mulheres tenham
desempenhado importantes papéis no curso dos períodos revolucionários
ocorridos no seio da era moderna, porém, não houve uma ruptura material no
trato da posição das mulheres, frente aos novos desafios que se instauraram a
partir do novo regime.
Esta situação de submissão das mulheres perdura até os
dias atuais, em função da concepção patriarcal que sobreviveu à ruptura dos
sistemas feudais, projetando-se, agora de forma dissimulada, durante todo o
período da modernidade, tendo alcançado a era contemporânea, por meio de
28 RODRIGUES, Maria Alice. A mulher no espaço privado: da incapacidade à igualdade de
direitos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 19-20.
26
resquícios de uma cultura calcada na idéia de inferiorização das mulheres,
verdadeira chaga social, que se mantém até os dias atuais.
1.3.5 OS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES NA IDADE
CONTEMPORÂNEA
O movimento pela concretização dos direitos humanos
feministas ganhou larga amplitude no limiar do Século XX, a partir de 1918,
notadamente nos países da Inglaterra, França, Nova Zelândia e Estados Unidos,
quando importantes vitórias na luta pelo reconhecimento de direitos passaram a
se solidificar, especialmente com a conquista aos direitos políticos, o que
propiciou o fortalecendo da cidadania das mulheres, que passaram a exercer os
direitos inerentes ao voto, tanto ativa, quanto passivamente, circunstância que
consubstanciou a ocupação das mulheres no cenário público.
Na observação de MILES:
o direito ao voto foi uma das bandeiras de luta do movimento feminista do século XIX, conhecido como movimento sufragista. Essa luta pelo voto prolongou-se durante sete décadas nos Estados Unidos da América e na Inglaterra. Elas conquistaram nos EUA, em 1920, o direito ao voto, e na Inglaterra, em 1928, sendo que esses movimentos sufragistas foram marcados por lutas contra o sistema patriarcal. Todavia, a Nova Zelândia foi a pioneira a admitir este direito ao voto feminino, em 1893.29
Também o período das duas Grandes Guerras Mundiais
foram profícuos na sedimentação dos direitos das mulheres, porquanto a
realidade destas épocas evidenciavam a necessidade dos homens prestarem
serviços militares, nas forças armadas, momento em que foram propiciadas
diversas ocupações laborativas às mulheres nas cidades, tendo elas, nestas
ocasiões, exitosamente, demonstrada a capacidade para o exercício de diversos
trabalhos, nos mais variados setores das atividades humanas, até então
29 MILES, Rosalind. A história do mundo pela mulher. Rio de Janeiro: Casa Maria Editorial/LTC,
1.989. p. 260.
27
reservado ao sexo masculino, por força da barreira cultural fundada no sistema
patriarcal.
Contudo, em face do retorno dos soldados das guerras,
após o término, principalmente, da Segunda Guerra Mundial, os espaços
laborativos ocupados pelas mulheres, no mercado de trabalho, voltaram a ser
exercidos pelos homens, tendo o Estado forçado as mulheres ao retorno do
exercício dos seus afazeres domésticos, ceifando, em grande parte, os direitos
alcançados nos espaços público e privado, o que gerou fortes insatisfações das
mulheres.
Esta situação, propiciou o fortalecimento do movimento
feminista, a partir da metade do Século XX, que passou a se organizar para a
reivindicar seus direitos.
A participação das mulheres mexicanas nas lutas por
transformações sociais naquele país, durante a Revolução Zapatista, igualmente
é merecedora de destaque, na medida em que elas representaram cerca de trinta
por cento das forças rebeldes, manejando armas e lutando contra uma tripla
opressão: mulheres, indígenas e pobres.
Consoante aponta GREENHALGH:
[...] fruto desta conquista, adveio a Lei Revolucionária de Mulheres, no México, na qual foi assegurada a participação das mulheres na organização social, com o estabelecimento de direitos na área da educação, saúde, alimentação, bem como na isonomia de salários, às formas não-violentas, assim como a livre escolha de maridos e do número de filhos.30
Em decorrência do avanço organizacional do movimento
feminista, diversas reivindicações históricas foram contempladas em inúmeros
documentos internacionais, a partir do reconhecimento dos direitos humanos das
mulheres pela Organização das Nações Unidas, principalmente a partir da
30 GREENHALGH, Laura. Guerrilheiras zapatistas: elas desafiam a morte para erguer um sonho
na selva. A arte da reportagem. Volume I. São Paulo: Scritta, 1996. p. 647-648.
28
Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, que se
constitui em importante instrumento político para o reconhecimento gradativo do
direito à igualdade entre mulheres e homens, tanto nos espaços públicos, quanto
nas esferas das relações privadas, sendo um verdadeiro marco, que iluminou
diversos outros documentos internacionais, na busca pela concretização dos
direitos humanos das mulheres, que pela importância no presente trabalho,
merecerá análise em tópico separado.
1.3.6 OS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES, NO BRASIL
No Brasil, tal qual os processos revolucionários mundiais, o
movimento pela concretização dos direitos humanos das mulheres foi lento,
gradativo e com inúmeros percalços, ao longo da história.
A sociedade da era colonial do Brasil era caracterizada
como uma sociedade patriarcal, com atividades econômicas eminentemente
rurais e extratitivistas, nas quais não eram assegurados às mulheres diversos
direitos humanos, especialmente, o direito ao voto, bem como imperava a
submissão da mulher ao homem no âmbito privado, vedando-se o exercício à
atividade laboral remunerada.
Por volta de 1850, nasceram as primeiras organizações de
mulheres, em busca da implantação dos direitos inerentes à igualdade de gênero,
especialmente, o direito à educação e ao voto. Uma das vozes mais
representativas deste movimento foi Nísia Floresta, natural de Rio Grande do
Norte. Ela foi abolicionista, republicana e feminista, cujas ações foram incansáveis
na defesa da educação às mulheres, tendo denunciado a ignorância em que eram
mantidas meninas, em afronta aos direitos inerentes à condição humana.
Em conseqüência deste movimento, somente em 1879, o
governo brasileiro concede a possibilidade de as mulheres cursarem o ensino de
nível superior, muito embora as mulheres pioneiras nesta trajetória fossem
objetos de discriminação e preconceito social, por conta da cultura dominante de
que esta atividade afrontava a natureza da mulher.
29
Com o início do processo de industrialização do país, no
início do Século XX, especialmente nos grandes centros urbanos que se
formavam na Região Sudeste brasileira, as mulheres brasileiras começaram a
ingressar no mercado de trabalho, laborando, principalmente, no setor de
serviços, ocupando funções, especialmente, de professoras, enfermeiras e
telefonistas, dentre outras.
Digno de registro, na percepção de GOLDENBERG:
[...] foi a iniciativa do Governo do Estado de Rio Grande do Norte que, em 1927 contemplou na Constituição Estadual a possibilidade das mulheres votarem e serem votadas, o que culminou, em 1929, com a eleição de Alzira Soriano de Souza, primeira mulher do Brasil e da América do Sul a ocupar este cargo público, abrindo caminho para a ocupação das mulheres no espaço público do cenário político brasileiro. 31
O pioneirismo do Governo potiguar influenciou o Governo
Federal, o qual somente em 1932 promulgou ato normativo concedendo o direito
ao sufrágio às mulheres brasileiras, propiciando, em todo o território nacional, o
direito das mulheres votarem e serem votadas, constituindo-se em importante
marco na consecução dos direitos humanos das mulheres, no Brasil.
Este movimento feminista foi ganhando força e culminou
com a introdução na Constituição Federal de 1934, do direito à igualdade de
gênero, contemplando neste documento, Direitos Fundamentais às mulheres,
inerentes às condições de trabalho, isonomia salarial e proteção à maternidade.
Impende destacar a importância do exercício do sufrágio, na
medida em que os direitos advindos da cidadania eram intimamente ligados ao
exercício do voto, daí porque, o alijamento da mulher no processo eleitoral, além
de possuir o condão de afastá-la do processo democrático, a impedia de exercer
inúmeros direitos reservados aos cidadãos, de forma que a mulher era excluída
do conceito de cidadã.
31 GOLDENBERG, Miriam. TOSCANO, Moema. A revolução das mulheres: um balanço do
feminismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1992. p. 27.
30
Já, nas Constituições Federais de 1937 e de 1967, no
contexto político de ditaduras, os direitos humanos em geral, especialmente os
inerentes à condição da mulher, não foram priorizados, havendo manifesto
retrocesso na luta pelos direitos das mulheres.
Embora as investigações no campo cível refujam ao objeto
da presente pesquisa, porquanto o trabalho centra-se nos aspectos
constitucionais, penais e processuais penais da violência doméstica, porém a
análise no campo familiar dos direitos femininos merecem atenção, na medida em
que o fenômeno da violência intrafamiliar acaba por interferir na ordem de direitos
civis das mulheres. Assim, afigura-se importante conceber uma visão panorâmica
dos direitos humanos femininos, também na esfera do Direito Civil.
Neste sentido, tem-se que o Código Civil brasileiro, de 1917
demonstrou ser altamente imbuído da concepção patriarcal, introjetando ao longo
de seus dispositivos a submissão das mulheres aos interesses dos homens, na
relação conjugal, colocando-as em inequívoca posição de inferioridade de gênero.
Neste diapasão, destaca-se a colocação da mulher em igualdade de situação
jurídica à dos pródigos, silvícolas e menores púberes, impingindo a ela um
tratamento de relativa incapacidade de exercício de seus direitos, o que propicia
uma histórica negação ao direito à autonomia da vontade feminina, em expressar
sua manifestação, no trato das relações inerentes à vida privada.
Para se ter idéia do sistema patriarcal, imposto à mulher
casada, pela sistemática do Código Civil de 1917, ao marido era facultada a
fiscalização das relações pessoais da mulher, o controle de visitas, a vigilância
em suas correspondências. O exercício do poder familiar sobre os filhos era
incumbência do marido. Nas relações familiares, se houvesse discordância sobre
a administração dos bens e sobre os filhos, preponderava a posição do marido. A
mulher casada, para abrir o seu próprio negócio dependia do consentimento
deste, assim como para manter conta bancária, empreender viagem para o
exterior, litigar em juízo, dentre outras atividades da vida civil.
Como se vê, verdadeiramente a mulher casada, no Brasil,
era rebaixada à condição de incapaz de expressar sua manifestação consciente,
31
recebendo tratamento jurídico-legal de inferioridade, quando comparado ao
respaldo que a lei civil dispensava ao homem.
Diante deste quadro, afigurou-se como grande conquista aos
direitos humanos femininos no Brasil a mobilização que propiciou a aprovação da
Lei n.º 4.121, de 1962, conhecida como o Estatuto da Mulher casada, que tornou
a mulher casada plenamente capaz ao completar 21 anos de idade, concedendo-
lhe o direito de exercício dos atos da vida civil, independentemente do
consentimento marital. De outro lado, esta norma erigiu a mulher à condição de
colaboradora do marido para os encargos da família, advindo daí, as bases da
igualdade no que tange ao poder sobre os filhos e na administração dos bens
havidos em comum, durante a sociedade conjugal.
Outra conquista importante para os direitos das mulheres foi
a aprovação da Lei n.º 6.515/77, conhecida como Lei do Divórcio, em que pese as
resistências por parte de segmentos da Igreja Católica e Evangélicas no Brasil.
Com esta nova ordem legal, facultou-se a separação e o divórcio na sociedade
brasileira, possibilitando o rompimento do vínculo familiar, anteriormente
contraído.
Entretanto, com a rápida transformação da sociedade
brasileira, juntamente com o advento do período político de redemocratização, a
atual Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1.988,
introduziu grandes avanços na implantação dos direitos humanos femininos, fruto
da mobilização de diversos segmentos da sociedade em prol dos direitos
humanos das mulheres.
Dentre diversas conquistas, destaca-se a previsão da
proteção da dignidade humana, inclusive da mulher, bem como da contemplação
expressa do princípio da igualdade jurídica entre gêneros, ensejando o
reconhecimento de diversos direitos inerentes à condição peculiar de mulher, tais
quais: licença-maternidade; assistência aos filhos, desde o nascimento,
assegurando-lhes o direito a creches e pré-escolas, proteção ao mercado de
trabalho; igualdade de condições no exercício do poder familiar, junto aos filhos;
32
assegurou-lhe o direito à separação judicial e divórcio; o reconhecimento da união
estável, dentre outros.
Importante pontuar, especificamente no que tange à política
de coibição da violência doméstica, objeto principal da presente investigação, que
a Constituição da República Federativa do Brasil já apontou a obrigatoriedade de
o Estado criar mecanismos aptos à proteção dos membros familiares.32
Na esteira da regulamentação dos direitos humanos
femininos, catalogados na Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, foi aprovado novo Código Civil, por meio da Lei n.º 10.406, a qual entrou
em vigor em 10/01/2003, dando nova feição ao direito privado brasileiro,
especialmente, no que atine à igualdade de gêneros, objetivando transpor a
barreira da cultura patriarcal dominante pelo antigo Estatuto Civil, ao menos no
campo formal, ampliando as formas de constituição familiar, para a inclusão da
união estável, consagrando o princípio da igualdade, também, no trato das
questões patrimoniais e com os filhos advindos da relação conjugal, dentre tantos
outros direitos, identificados com o princípio da dignidade humana da mulher.
Assim, do ponto de vista formal, tem-se que atualmente
existe um arcabouço jurídico dotado de institutos e procedimentos aptos a
assegurar os direitos humanos das mulheres.
A superação da cultura patriarcal nas famílias brasileiras não
se dará, simplesmente, com a promulgação da nova ordem constitucional, bem
como pelo moderno disciplinamento das relações civis, através do novo Código
Civil. Trata-se de manifestação arraigada na cultura brasileira, constituindo-se em
enorme desafio da sociedade atual e, principalmente do Poder Judiciário, no
sentido de ser seu dever institucional promover as soluções dos litígios
decorrentes de controvérsias das relações familiares e afetivas, com base na
32 Neste sentido, dispõe o artigo 226 da CRFB: “A família, base da sociedade, tem especial
proteção do Estado. [...] §8º “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm. Acesso em 17/06/2009.
33
igualdade material e efetiva entre os entes componentes desta relação e, assim,
efetuar o resgate histórico dos direitos humanos femininos no âmbito privado.
Este apanhado histórico evidencia o tamanho da
responsabilidade dos operadores do direito, especialmente na função judicante,
ante o abismo ainda existente entre as promessas legais e a realidades fáticas no
cotidiano das mulheres brasileiras, na busca de uma implementação concreta
desses direitos.
1.4 A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DA MULHER NOS
INSTRUMENTOS DE DIREITO INTERNACIONAL
Na esfera dos instrumentos internacionais, na defesa dos
direitos humanos da mulher, tem-se como marco delineador a aprovação da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela Organização das Nações
Unidas, em 1948, documento pelo qual, genericamente, foi reconhecida a
igualdade de gênero, considerando as peculiaridades biológicas, psicológicas,
sociais e culturais das mulheres.
Contudo, no específico interesse à proteção contra as
discriminações levadas a efeito contra a mulher, afigura-se relevante instrumento
de proteção aos direitos humanos femininos os trabalhos realizados durante a I
Conferência Mundial sobre a Mulher, no México, em 1975. Destes trabalhos,
restou aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1979, a
“Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher”, cuja sigla, advinda do idioma inglês, é conhecida por “CEDAW”.
Este documento foi aprovado através da Resolução n.º
34/108 da ONU e entrou em vigor somente em 03 de setembro de 1981, após
depositados os instrumentos de ratificação.
Conforme observa TESCARI:
O Brasil foi signatário desta Convenção, tendo ratificado seu conteúdo em 01 de fevereiro de 1984, com a reservas ao artigo 15, parágrafo 4º e artigo 16, parágrafo 1º, alíneas “a”, “c”, “g” e “h”,
34
que tratam da igualdade entre homens e mulheres no âmbito da família, sob o argumento da vigência do Código Civil de 1917. Estas ressalvas foram retiradas em 1994, sendo a Convenção ratificada integralmente pelo congresso Nacional Brasileiro, por meio do Decreto Legislativo n.º 26/1994 e promulgada pelo Presidente da República, através do Decreto n.º 4.337/2002, incorporando-se ao ordenamento jurídico brasileiro.33
Os fundamentos apresentados pelo Estado brasileiro para a
formulação da reserva à Convenção representa verdadeira inversão dos valores
entre os princípios e regras, porquanto, ao tempo da aprovação da Convenção
vigia no Brasil o princípio constitucional da igualdade de gênero, conforme
dispositivo previsto no artigo 153, § 1º da Constituição brasileira, de 196934,
evidenciando, em tal postura, a manutenção de um sistema em que se privilegiam
as relações desiguais e hierárquicas da família, submetendo a mulher aos
poderes maritais, com base em dispositivo infraconstitucional aprovado sob o
manto das relações sociais mantidas no início do século XX, em detrimento a um
princípio constitucional, insculpido recentemente, que evidencia, além da
preponderância hermenêutica, também uma legitimidade social adequada aos
anseios da sociedade contemporânea.
Por meio desta Convenção foi atribuída aos Estados
signatários a responsabilidade de assegurar a interrupção de qualquer ato ou
prática de discriminação contra a mulher, motivo pelo qual, inclusive, no Brasil, foi
conferido o direito de qualquer mulher vítima de discriminação de gênero, recorrer
aos Organismos Internacionais, através de petição individual, no intuito de fazer
cessar a discriminação sofrida, em face de sua condição peculiar de mulher.
Também foi conferida a possibilidade de se implementarem
ações afirmativas abarcando áreas como trabalho, saúde, educação, direitos civis
33 TESCARI, Adriana Sader. Violência sexual contra a mulher em situação de conflito armado.
Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2005. p. 71.
34 O princípio da igualdade de gênero já era previsto no artigo 153, § 1º da Constituição brasileira, de 1967, alterada pela EC/1969, nos seguintes termos: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas”. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm. Acesso em 17/06/2009.
35
e políticos, estereótipos sexuais, prostituição e família. Este instrumento
internacional foi pioneiro na disposição expressa dos direitos humanos da mulher
e teve como fundamento o reconhecimento de que a prática da discriminação
contra a mulher viola os princípios da igualdade de direitos e da proteção à
dignidade humana, além de obstar a participação da mulher nos espaços
públicos, tradicionalmente conferidos aos homens.
Na dicção de FLÁVIA PIOVESAN, essa Convenção tem por
objetivo não só erradicar a discriminação contra a mulher e suas causas, mas
também estimular estratégias de promoção da igualdade35.
Muito embora tenha representado grandes avanços na
consecução dos direitos humanos da mulher, a Convenção CEDAW absteve
completamente de disciplinar o tratamento da violência de gênero, especialmente
a violência doméstica praticada contra a mulher, no âmbito do lar conjugal, nem
mesmo catalogando esta terrível prática identificada em diversas sociedades,
inclusive no Brasil, como forma de discriminação ou meio de obstáculo à
igualdade de gozo de direitos pelas mulheres, o que tem inibido o avanço à
determinação dos Estados quanto à implementação de políticas aptas a coibir
este triste mal das sociedades contemporâneas, fundadas na vinculação destes
atos com atentado à dignidade humana.
No bojo da Convenção CEDAW, foi previsto o
estabelecimento de um Comitê sobre Eliminação da Discriminação Contra a
Mulher. Em 1992, este comitê elaborou a Recomendação Geral 19, pela qual se
catalogou enquadrar-se em ato discriminatório contra a mulher, a prática de
violência relacionada ao gênero.
Acolhendo a recomendação deste Comitê, em 20 de
dezembro de 1993, a Assembléia Geral das Nações Unidas editou a Resolução
n.º 48/104, a qual declara que a proibição de discriminação de gênero inclui a
eliminação da violência baseada no gênero, devendo os Estados buscar meios
apropriados e políticos objetivando este fim.
35 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 143.
36
Outro marco importante para os direitos femininos foi a
Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, conhecida pela
Declaração de Viena, ocorrida na Áustria, em 1993. Neste encontro, as
organizações não-governamentais, especialmente as ligadas aos direitos
femininos, desempenharam importante papel na discussão e sistematização do
fenômeno da violência contra as mulheres como forma de atentado aos direitos
humanos, ampliando-se o debate, neste sentido.
Na observação de TESCARI, até então, os direitos das
mulheres vinham sendo tratados de maneira de compartimentalizada, o que
afastava a percepção de que as violações a esses direitos encontram-se
abrangidas no problema da violação aos Direitos Humanos.36
Efetivamente, as discussões em torno das diversas formas
de agressões contra as mulheres, especialmente as cometidas no âmbito das
relações domésticas, foram declaradas formalmente na Declaração de Viena
como sendo ações típicas de atentados aos direitos humanos das mulheres,
porquanto vulneram os aspectos de inalienabilidade, integralidade e
indivisibilidade dos Direitos Humanos universais.
Também se afigura importante instrumento internacional na
luta pela concretização dos direitos humanos das mulheres, a Quarta Conferência
das Nações Unidas sobre os Direitos da Mulher, denominada Declaração de
Pequim, realizada na China, em 1995.
Neste encontro, foi reafirmado o caráter de lesão aos
Direitos Humanos, as diversas formas de violência contra a mulher, tendo sido
traçados planos de atuação para a prevenção e eliminação destas agressões à
dignidade das mulheres.
No âmbito regional, tem-se como marco importante para o
Brasil traçar políticas protetivas aos Direitos Humanos femininos, destacando-se
as discussões entabuladas durante a Convenção Interamericana para Prevenir,
36 TESCARI, Adriana Sader. Violência sexual contra a mulher em situação de conflito armado.
Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2005. p. 72.
37
Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida como Convenção de
Belém do Pará, ocorrida em 1994.
Nesta Convenção, pontuou-se ampla discussão em torno do
tema agressões aos Direitos Humanos femininos, sendo, na ocasião, aprovada a
conceituação de violência contra a mulher, como qualquer ato ou conduta
baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou
psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada37.
Nas discussões, entendeu-se que a violência contra a
mulher deve ser tratada como grave problema de saúde pública, devendo os
Estados adotarem políticas públicas, em seus mais variados espectros de
atendimentos, para assegurar o atendimento às mulheres vitimadas.
A Convenção de Belém foi adotada por aclamação na 24ª
sessão da Assembléia-Geral da Organização dos Estados Americanos - OEA,
em 09 de junho de 1994 e ratificada integralmente, sem reservas, pelo Brasil, em
27 de novembro de 1995, sendo aprovada pelo Congresso Nacional, por meio do
Decreto Legislativo n.º 107/1995 e, posteriormente, promulgada pelo Presidente
da República, através do Decreto n.º 1.973/1996.
Como se vê, o Brasil por ser signatário dos diversos
instrumentos internacionais que tratam sobre a erradicação da violência contra as
mulheres, já dispunha de documentos legais no plano do ordenamento jurídico,
estando formalmente incumbido de traçar políticas públicas que tratassem da
coibição destas formas de atentado aos direitos humanos femininos.
Ressalte-se que, em se tratando de Convenções
Internacionais afetas aos direitos humanos, sendo ratificadas pelo Estado
Brasileiro, como nos atinentes aos direitos das mulheres, incorporam-se no
ordenamento jurídico pátrio, com força cogente, ante o previsão constitucional,
insculpida no artigo 5º, §§ 2º e 3º da Constituição da República Federativa do
37 Este é o texto constante do artigo 1º da Convenção de Belém do Pará, adotada em 9 de junho
de 1994. BRASIL. Convenção interamericana de direitos humanos, para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher. Disponível em http://www.cidh.oas.org/Basicos/Portugues/m.Belem.do.Para.htm, acesso em 08/06/2009.
38
Brasil,38 havendo distinções, somente, na ordem hierárquica das normas,
dependendo do quorum para aprovação.
Portanto, a Lei n.º 11.340, de 2006, conhecida por Lei Maria
da Penha, foi concebida num contexto internacional de esforços para a coibição
da violência doméstica contra a mulher, fenômeno este, reconhecido como forma
de violação aos direitos humanos, de cujas Convenções o Brasil é firmatário, o
que o obriga a traçar políticas públicas, formular ações legislativas e implementar
medidas judiciais que objetivem a erradicação da violência contra a mulher, no
âmbito intrafamiliar, mal que afeta milhares de brasileiras todos os dias.
Pela importância do fenômeno da violência doméstica, assim
como os mecanismos dispostos na Lei Maria da Penha para o presente trabalho,
inclusive no que se refere à compatibilidade com o texto constitucional brasileiro
de 1988, estes temas serão objetos de análise no Capítulo seguinte.
38 Artigo 5º [...] § 2º. “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” e no seu § 3º consta: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm. Acesso em 17/06/2009.
39
CAPÍTULO 2
RAÍZES DA VIOLÊNCIA. CONTROLE PENAL DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO BRASIL. ANÁLISE SOBRE A
CONSTITUCIONALIDADE DA LEI MARIA DA PENHA
2.1 NOTAS INTRODUTÓRIAS
No presente capítulo, será abordado o fenômeno da
violência, em geral, sob o viés da multidisciplinariedade e, em particular, a
violência doméstica. Em prosseguimento, será analisada a Lei Maria da Penha,
sob o enfoque da sua compatibilidade com o sistema constitucional brasileiro,
bem como dos comandos normativos positivados na lei, cotejando-os com
sistemas de proteção à violência intrafamiliar vigentes no país, especialmente o
Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso.
2.2 O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA. CONCEITO E ABORDAGEM H ISTÓRICA E
MULTIDISCIPLINAR
A história da humanidade é, em larga medida, a evidência
da dimensão social, política e cultural do fenômeno da violência, em suas mais
variadas formas de dominação.
No Brasil e no mundo, a violência não se mostra um
fenômeno uniforme. Ao contrário, trata-se de manifestação social multifacetada,
pela qual se adotam diversas modalidades de violências, por meio de inúmeras
formas de atuação, praticadas individualmente ou por grupos.
Para o conceito de violência, adota-se a concepção indicada
por ADORNO, para quem:
Violência é forma de ação na qual uma ou mais pessoas tentam impor a sua vontade contra terceiros, utilizando como meio o uso ou a ameaça ou a força. São conflitos em relação à propriedade,
40
nas relações de gênero e de classe. Ao invés das pessoas negociarem, dialogarem, elas se apossam de meios da força, ameaçando ou usando mesmo de fato a violência para impor ao outro a vontade própria39.
A violência é tema recorrente, presente no cotidiano da vida
em sociedade, manifestada na espécie de patologia social de alta complexidade,
merecendo a atenção de diversas investigações acerca de suas raízes, causas,
formas de manifestação e meios de tratamento.
Esse fenômeno aparece com freqüência em todas as
organizações sociais, integrando o cotidiano dos grupos humanos mais variados,
seja na expressão de políticas de Estados, por meio de lutas por conquistas ou
expansões de territórios, ou, por outro lado, na manutenção de defesa dos
interesses em ataques, bem como se manifesta na individualidade, expressando-
se na violência urbana, nos conflitos individuais em seus mais diversos espaços,
incluindo-se a manifestação da violência no âmbito do espaço doméstico, no lar,
na vida privada do quotidiano das pessoas formadoras da célula denominada
unidade familiar.
Atualmente, presencia-se uma escalada da violência com
significativo avanço sobre o sofrimento humano. Os símbolos da violência
massificada são apresentados com naturalidade. Neste aspecto, a utilização da
bomba atômica em cidades japonesas; as atrocidades nos campos de
concentração na Alemanha; as intolerâncias frente às minorias étnicas no
continente africano; a fome; a miséria, tudo isso são exemplos de como a
humanidade se compraz diante de diversas manifestações da violência,
assimilando-a com naturalidade, trazendo como resultado geral a indiferença,
mostrando-se como um simples dado do cotidiano, incluído dentre tantos outros
transtornos da vida social.
Estes fatores contribuem sobremaneira para a diminuição da
atenção devida a tão devastador fenômeno social, afastando análises mais
39 ADORNO, Sérgio. Artigo “Brasil nunca economizou violência para disciplinar”. Publicado no
jornal Diário do Nordeste, em 05/04/2009, disponível no sítio: http://www.nevusp.org/portugues/index.php, acesso em 21/05/2009.
41
profundas acerca dos nefastos efeitos pedagógicos atinentes a uma cultura da
violência, internalizada no subconsciente das pessoas, projetando esta patologia
para o campo social.
Vivemos, nos dias atuais, em uma tensão contraditória. Por
um lado, a emancipação do indivíduo gerou o individualismo arrebatado; por
outro, uma coletivização ao extremo, com o nivelamento de todas as diferenças,
conduzindo, às mais variadas formas de tiranias.
Nesse contexto, enfraqueceram-se, sobremaneira, os laços
de solidariedade que unem as comunidades, com impactos desagregadores no
tecido social.
Para poder refletir sobre a problemática da violência, faz-se
necessário analisar a questão para além da criminalidade, na medida em que esta
questão representa apenas um diagnóstico das idiossincrasias sociais e das
desestruturações vividas no momento atual.
Na percepção de GAUER:
[...] a tradição ocidental manifesta-se hoje como uma conseqüência do processo de racionalização, que iniciou em fins do século XVIII e é caracterizada por uma ‘civilização legal’. No entanto, toda a legislação moderna que tenta coibir a violência não tem alcançado seus objetivos. A língua geral da lei parece não ecoar na violência da sociedade contemporânea. É como se fosse uma visitante recém-chegada a uma cidade que desconhece totalmente o seu significado.40
No Brasil, a violência tem sido o tema central de inúmeros
debates, no intuito de diminuir ou conter a escalada deste fenômeno.
Historicamente, tal debate, propiciou a criação do primeiro Código Criminal, em
1.830, considerado, para a época, como um significativo avanço, em razão do
contexto histórico cultural brasileiro, que se apresentava imerso em uma
sociedade escravocrata, cujos diplomas jurídicos aplicados, até então, eram os
40 GAUER, Ruth M. Chittó et. alii. A fenomenologia da violência. 1. Ed. Curitiba: Juruá, 2002. p.
15.
42
aplicados em Portugal, destacando-se as Ordenações Afonsinas (1446-1521) e
as Ordenações Manuelinas (1521-1603), com as quais houve o rompimento,
apenas com a Independência, em 1822.
Para LEAL41:
O primeiro Código Criminal brasileiro foi influenciado pelos códigos francês (1810) e napolitano (1819) e constitui-se num estatuto repressivo tecnicamente bem elaborado. [...] Adotou as principais idéias da Escola Clássica: princípios da responsabilidade moral e da legalidade e afirmou a crença no livre arbítrio [...]. As penas adotadas foram as seguintes: morte na forca; galés; prisão com trabalho e prisão simples; banimento, degredo e multa. [...] apesar das idéias da democracia liberal, baseada no princípio da igualdade, da fraternidade e da liberdade, a práxis jurídico-penal acabava se desenvolvendo em três níveis diferenciados: Direito Penal da aristocracia rural, dos pobres e dos negros escravos.
Com o advento do período republicano no Brasil, o contexto
político alterou sobremaneira as relações jurídicas, inclusive no tratamento do
combate à violência. Assim, por meio do Decreto 774, de 10/10/1890, foi instituído
o segundo Código Penal brasileiro, o qual contemplou alguns avanços, tais como
a abolição da pena de morte, além da instituição da prisão celular e ainda a
introdução do trabalho obrigatório ao recluso, dentre outros.
O Código Penal de 1890 foi sendo significativamente
alterado e complementado por sucessivas legislações extravagantes, criando-se
uma verdadeira balbúrdia legislativa, o que dificultava em muito a correta
compreensão e aplicação do direito repressivo daquela época.42
Posteriormente, com o surgimento do Estado Novo, em
1940, como forma de implementar o antigo desejo da Codificação das leis em
matéria criminal, instituiu-se comissão para tal finalidade, culminando com a
edição do vigente Código Penal, através do Decreto-Lei n.º 2.848, de 07/12/1940,
41 LEAL, João José. Direito Penal geral. 3. ed. Florianópolis: OAB/SC, 2004. p. 82.
42 LEAL, João José. Direito Penal geral. 3ª ed. Florianópolis: OAB/SC, 2004. p. 84.
43
o qual, em 1984 sofreu significativa alteração, notadamente na parte geral do
Código mencionado.
Quanto à organização social do Estado brasileiro, tem-se
que, somente a partir dos anos 70 é que o Brasil tem sido caracterizado como
uma sociedade industrializada e com população predominantemente urbana. Para
se ter um panorama sobre a distribuição populacional brasileira, em 1940, apenas
31,20% constituía a população urbana, passando para 44,70%, em 1960 e
chegando a 67,60%, em 1980.
Na dicção de FARIA:
Com o definitivo esgotamento do modelo de desenvolvimento, nos primeiros anos da década de 80, as regiões metropolitanas, antes uma significativa fonte de oportunidade de ocupação e de mobilidade social, converteram-se em bolsões de conflitos generalizados, justamente por causa do ‘fator de aglomeração’ que, nos anos 60 e 70 paradoxalmente havia funcionado como elemento positivo de economia de escala.43
Como se vê, a modificação do cenário populacional
brasileiro, evidenciado pelo significativo contingente migracional provocou a
explosão demográfica nas grandes cidades brasileiras, formando enormes
regiões metropolitanas, que se constituem, desde sua gênese, em campo fértil
para a explosão da violência e da criminalidade.
Diante deste quadro de desordem, a violência, em suas
diferentes manifestações, passa a ser alvo de repressão pelos aparelhos do
Estado, que buscam controlar, por meio de ações de indivíduos pertencentes a
esses aparelhos, sendo a violência o objeto principal do controle penal,
eminentemente, repressivo.
Mas, para combater a violência, no entanto, é imprescindível
que se identifiquem as diversas formas de violência, tais como: as gangs, máfia,
43 FARIA, José Eduardo, et alii. Direitos humanos, direitos sociais e justiça. São Paulo: Malheiros,
2002. p. 15.
44
crime organizado, dentre outras. Essa forma de criminalidade constitui-se em uma
violência que apresenta alto índice de sofisticação, o que a diferencia daquela dos
criminosos comuns, os desviantes que povoam as publicações especializadas.44
Na atual conjuntura social brasileira, faz-se necessário o
enfrentamento dos diversos aspectos inerentes à violência, não somente no
campo repressivo, mas também e com efetividade até maior, sob o viés
preventivo. Neste particular, mostra-se relevante desenvolver e aprimorar a
conscientização e assimilação de valores, no seio da sociedade, pautados na
cultura da pacificação social, da consensualidade familiar e do resolução de
conflitos por meios não adversariais, inclusive nos litígios judicializados.
Uma demonstração da instituição do medo e da
insegurança, decorrente da explosão da violência e da criminalidade,
notadamente nos centros urbanos, decorre da visibilidade do isolamento
voluntário dos indivíduos, com a fixação de enormes muros e grades nas
residências, condomínios e escolas, numa evidência inequívoca de que a
violência assombra a sociedade em todos os seus recantos.
O que se vê claramente é que o valor básico a pautar a
conduta das vítimas da enorme escalada da violência é a sobrevivência,
propriamente dita. Manter-se vivo é o objetivo de pessoas agredidas, o que
evidencia a instituição, no seio da sociedade, do estado de medo e violência, de
feição hobesiana, porquanto impõe-se volver às múltiplas formas do estado de
natureza.
Entretanto, é bastante recente a identificação da violência
como um problema social, na medida em que a adoção de meios repressivos pelo
Estado para enfrentamento de questões sociais, ainda é latente.
ADORNO defende a idéia de que:
44 GAUER, Ruth M. Chittó et. alii. A fenomenologia da violência. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2002. p.
21.
45
Somente há cerca de 30 anos a violência passa a ser percebida como um problema. Passa a ser vista não como uma forma de disciplina, mas como uma forma de opressão, de mutilação do corpo das pessoas. Ou como uma forma de agressão à sua integridade física e psíquica e, sobretudo, aos direitos humanos.45
Atualmente, impõe-se tratar o fenômeno da violência de
modo a que se permita relativizar o conceito de normalidade, que aparece
configurada como o espaço oposto aos espaços da anormalidade, nos mais
variados espaços da vida cotidiana, notadamente no campo das relações
domésticas e familiares, o que passa a ser objeto de análise a seguir.
2.3 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER -
CONCEITOS E POLÍTICAS CRIMINAIS PARA O ENFRENTAMENT O
No contexto da banalização do fenômeno da violência, em
geral, insere-se a violência de gênero, em particular, a qual é agravada pela
internalização deste fenômeno no trato das relações familiares, cuja tônica é o
anonimato dos agressores das mais variadas formas de agressões intrafamiliar,
cujas vítimas, em sua grande maioria, são as mulheres.
O tema da violência contra as mulheres é objeto de atenção
dos organismos internacionais, sendo o foco de estudos promovidos,
especialmente, pelas Organização das Nações Unidas – ONU, desde 1979,
quando foi realizada a Convenção sobre a Eliminação de Todas as formas de
Discriminação Contra a Mulher, sucedida pela Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida como
Convenção de Belém do Pará, realizada em 1994, assim como a Convenção de
Viena, em 1993. Tangenciando, o tema também foi abordado na Conferência
Mundial Sobre População e Desenvolvimento, realizada em Cairo, no ano de
1994, bem como a Conferência de Cúpula para o Desenvolvimento Social, de
Copenhague, em 1995, assim como a IV Conferência Mundial Sobre a Mulher,
realizada em Beijing, em 1995.
45 ADORNO, Sérgio. Artigo Brasil nunca economizou violência para disciplinar. p. 2. Publicado no
jornal Diário do Nordeste, em 05/04/2009 e disponível no sítio: http://www.nevusp.org, acesso
46
O Brasil foi signatário destes instrumentos internacionais,
incorporando ao ordenamento jurídico interno as diversas concepções acerca das
políticas de enfrentamento desta forma de agressão aos direitos humanos das
mulheres.
Por meio do Ministério da Justiça, através da Secretaria
Nacional dos Direitos Humanos, foi editado um Glossário, logo após a ratificação
da Convenção de Beijing, em 1995, no qual há os contornos básicos para a
conceituação e diferenciação de violência contra a mulher e violência
doméstica/intrafamiliar, que serão adotados, para o presente escopo.
De acordo com a Organização das Nações Unidas, violência
contra a mulher é conceituada como qualquer ação ou conduta que cause morte,
dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público
como no privado, motivada apenas pela sua condição de mulher. 46
Já, a conceituação de violência intrafamiliar ou violência
doméstica, segundo a ONU, é qualquer violência perpetrada no lar ou na unidade
doméstica, geralmente por um membro da família que viva com a vítima, podendo
esta ser homem ou mulher, criança, adolescente ou adulto.47
Ao menos no plano formal, o Brasil já contava com
instrumentos legais destinados à coibição da violência doméstica neste país,
desde a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em
1988, eis que consta do seu artigo 226, § 8º que: O Estado assegurará a
assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando
mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
Importante anotar que a regra constitucional apontou para a
assistência estatal quanto à coibição da violência doméstica ou intrafamiliar,
relativamente à proteção de todos os membros que integram o núcleo familiar,
sejam eles crianças, adultos, jovens, idosos, homens ou mulheres, num claro
em 21/05/2009.
46 Nações Unidas/MJ/SNDH. Glossário. Uma vida sem violência é um direito nosso, p. 1.
47 Nações Unidas/MJ/SNDH. Glossário. Uma vida sem violência é um direito nosso, p. 2.
47
indicativo de que a diretriz constitucional brasileira, de 1988, está em consonância
com o conceito de violência doméstica, aprovado pela ONU, na Convenção de
Beijing.
Numa análise sistemática do ordenamento jurídico brasileiro,
percebe-se que este Estado atuou em três segmentos distintos, através de
Estatutos diversos, mas que se complementam, na seara da proteção contra a
violência intrafamiliar, quais sejam: 1) o Estatuto da Criança e do Adolescente,
instituído por meio da Lei n.º 8.069/90; 2) O Estatuto do Idoso, introduzido pela Lei
n.º 10.741/2003 e 3) A Lei Maria da Penha, editada sob o n.º 11.340/2006.
Embora a delimitação do objeto do presente trabalho se
restrinja à análise da Lei Maria da Penha, importante ressaltar, em linhas gerais,
que os três diplomas normativos integram o comando constitucional brasileiro,
destinado ao combate da violência doméstica, como expressão de uma política
jurídica voltada para a consecução do “cuidado”, como valor jurídico.
Neste diapasão, no plano filosófico, mister trazer à colação o
conceito de cuidado, fornecido por LEONARDO BOFF:
O que se opõe ao descuido e ao descaso é o cuidado. Cuidar é mais que um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção, de zelo e de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro.48
No ordenamento jurídico brasileiro, o cuidado tem-se
apresentado como um princípio jurídico implícito, intimamente ligado ao princípio
da dignidade da pessoa humana, o qual tem status de fundamento do Estado49,
voltado para a efetivação dos mecanismos de proteção Estatal, principalmente à
48 BOFF, Leonardo. Saber cuidar. ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes,
2004. p. 33.
49 Assim dispõe o artigo 1º, Inciso III: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana”. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm. Acesso em 17/06/2009.
48
coibição da violência no âmbito intrafamiliar, em face do sentido ético advindo da
imperiosidade de proteção deste núcleo social e como forma de concretizar a
afetividade, no campo das relações familiares.
Neste diapasão, TUPINAMBÁ, defende a idéia de que:
[...] é inequívoca a assertiva de que o cuidado, hoje merece toda a atenção, destacando-se por sua potencialidade no sentido de representar o ápice do atual sistema jurídico de proteção das relações humanas e, em especial, das relações familiares, sendo evidente e ostensivo o grau de influência que o princípio jurídico do cuidado operou no campo das modificações trazidas com a vigência da Constituição Federal de 1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente, do Estatuto do Idoso e do Código Civil de 2002, e por meio da ratificação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança por meio do Decreto n.º 99.710/1990.50
Portanto, é nesse contexto de implementação do princípio
do cuidado, norteador do princípio da dignidade da pessoa humana, em que a Lei
Maria da Penha surge, constituindo-se em importante instrumento legal, que
deverá ser operado sob o prisma da política jurídica de proteção legal dos entes
familiares contra os atos agressivos praticados contra quaisquer dos seus
membros, em consonância com o comando constitucional.
Na seara do controle penal da violência doméstica, mostra-
se necessária a superação do modelo jurídico da família patriarcal vigente no
Brasil, principalmente antes da Constituição da República de 1988, a qual
inaugurou um novo paradigma da unidade familiar, pautada no respeito aos
direitos humanos, à dignidade de seus membros e na igualdade entre os
cônjuges.
Neste contexto, afigura-se imprescindível a superação do
modelo de política criminal tradicional, que rebaixa a mulher à condição de objeto
de intervenção e domínio por quaisquer dos membros familiares, aniquilando seus
50 TUPINAMBÁ, Roberta. O cuidado como princípio das relações familiares. Artigo publicado na
obra: PERERA, Tânia da Silva; et alii. O cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 379.
49
direitos humanos e afrontando os feixes de princípios que irradiam do princípio da
dignidade da pessoa humana, notadamente, o cuidado, sendo aquele modelo
incompatível com os preceitos expressos na ordem constitucional brasileira,
instaurada a partir de 1988.
Com efeito, no atual estágio da evolução da ciência jurídica
e, principalmente, pelo aprimoramento da sociedade brasileira, não mais se
afigura possível a defesa de posição jurídico-penal, outrora dominante, 51 em que
se admitia a tolerância de a mulher casada ser objeto de estupro pelo marido,
inexistindo crime em tais circunstâncias, diante da concepção arcaica de o marido
agir no exercício regular de direito. Este pensamento revela o predomínio de uma
cultura patriarcal, patrimonialista e de submissão da mulher às mais variadas
formas de submissão e que, infelizmente, apresenta seus resquícios nos dias
atuais.
Atualmente, mostra-se imprescindível a superação de uma
política criminal defasada no tempo, em que se reputa como exercício regular de
um direito a prática do crime de estupro pelo marido contra sua mulher, para uma
política jurídica adequada ao constitucionalismo contemporâneo, consentânea
com o valor do cuidado como princípio do direito e adequada à valorização das
diretrizes da dignidade da mulher, respeitando os seus direitos humanos,
notadamente a igualdade.
Sobre a questão em foco, destaca-se a lição de BATISTA,
que defende a idéia de que a posição predominante pode ser assim sintetizada: o
marido não pode cometer violência contra a mulher, salvo se for para obrigá-la à
51 Na década de 1950, o então Ministro do Supremo Tribunal Federal e conhecido penalista
Nélson Hungria, apesar de sua notável contribuição para a ciência penal, em diversos obras publicadas, infelizmente declarou expressamente uma posição de “coisificação” da mulher, que refletia o espírito de sua época ao defender a posição acima demonstrada, nos seguintes termos: “Questiona-se sobre se o marido pode ser, ou não, considerado réu de estupro, quando, mediante violência, constrange a esposa à prestação sexual. A solução justa é no sentido negativo. O estupro pressupõe cópula ilícita (fora do casamento). A cópula intra matrimonium é recíproco dever dos conjuges.” (...) “O marido violentador, salvo excesso inescusável, ficará isento até mesmo da pena correspondente à violência física em si mesma (excluído o crime de exercício arbitrário das próprias razões, porque a prestação corpórea não é exigível judicialmente), pois é lícita a violência necessária para o exercício regular de um direito.” HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Volume VIII. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 125-126.
50
conjunção carnal. Se isso faz algum sentido, é o sentido de que a bestialidade e o
desrespeito só encontram guarida no matrimônio.52
Neste sentido, é necessária a percepção pelos operadores
do Direito, especialmente os magistrados, quanto à função social de seus
entendimentos, os quais precisam estar em conformidade com a política jurídica
de promoção da igualdade dos gêneros, em consonância com o respeito aos
direitos humanos femininos, com o objetivo de promover a convivência dos
membros familiares, em ambiente livre de qualquer forma de violência, sob pena
de perda da legitimidade social.
Superada a necessidade de adequação de concepções
penais arcaicas atinentes ao tema de violência doméstica, ao novo modelo
jurídico-político, instaurado no Brasil, a partir da Constituição da República de
1988, impõe-se a análise do fenômeno da violência intrafamiliar, no Brasil.
Em face da importância da Lei Maria da Penha para o
presente trabalho, passa-se à análise de sua origem, conceitos, abrangência e
objetivos, em itens separados, na seqüência.
2.4 ANÁLISE DA LEI MARIA DA PENHA - ORIGENS E CONCE ITOS
Tendo em conta a necessidade de se analisar
dogmaticamente os preceitos constantes da Lei Maria da Penha, afigura-se
importante, uma abordagem separada de seu conteúdo, conforme itens
seguintes, para as formulações de política jurídica que se pretende empreender
no Capítulo posterior.
2.4.1 ORIGEM DA LEI MARIA DA PENHA
A homenagem à farmacêutica Maria da Penha Maia
Fernandes, que empresta seu nome à Lei n.° 11.340/2 006, a qual dispõe sobre
mecanismos tendentes à coibição da violência doméstica e familiar contra a
mulher no Brasil, remonta um lamentável episódio de graves ofensas aos direitos
52 BATISTA, Nilo. Decisões criminais comentadas. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1976. p. 71.
51
humanos das mulheres, bem como evidencia a omissão do Estado brasileiro,
inclusive no âmbito do Poder Judiciário, quanto à necessidade de, na prática,
promover políticas criminais efetivas ao combate deste fenômeno desestruturador
de inúmeras famílias da sociedade brasileira.
O drama vivido por Maria da Penha inicia-se na Cidade de
Fortaleza/Ceará, em 1.983, época em que contava com apenas 38 anos de idade
e mãe de três filhas menores, quando na constância do casamento com seu
então marido, o economista e professor universitário (o que revela que o
fenômeno da violência doméstica está presente em todas as classes sociais)
Marco Antônio Heredia Viveros, colombiano naturalizado brasileiro, este, por duas
vezes, tentou ceifar a vida de Maria da Penha53.
Na primeira vez, em 29 de maio de 1983, o agressor simulou
um assalto, no qual, fazendo uso de arma de fogo disparou contra a vítima,
resultando em diversas lesões, as quais deixaram-na irreversivelmente
paraplégica, mantendo-a em cadeiras de rodas até os dias atuais54. Não bastasse
este ato de barbárie, em outubro do mesmo ano, o agressor novamente investiu
contra a integridade física de Maria da Penha, ocasião em que tentou eletrocutá-
la, através de forte descarga elétrica, enquanto Maria da Penha se encontrava no
banho.
Em face das violentas agressões, Maria da Penha conseguiu
autorização judicial para deixar o lar conjugal, juntamente com suas filhas,
utilizando-se do auxílio de familiares.
As investigações policiais sobre estes fatos iniciaram-se no
mesmo ano de 1983, mas a denúncia criminal só foi oferecida em setembro de
1984. Submetido ao Tribunal do Júri, o réu somente foi condenado em 1991,
53 Os fatos aqui relatados foram extraídos do livro escrito pela própria vítima: FERNANDES, Maria
da Penha Maia. Sobrevivi, posso contar. Fortaleza: Edição do autor, 1994. p. 22.
54 Consta do processo criminal, que semanas antes da tentativa de homicídio contra Maria da Penha, Viveros convenceu a vítima a contratar um seguro de vida, constando o marido como beneficiário. Também restou demonstrado nos autos, que há poucos dias agressão, Viveros obrigou Maria da Penha a assinar o documento destinado à venda do automóvel de sua propriedade, demonstrando que o crime por ele praticado foi premeditado.
52
ocasião em que lhe foi imposta pena de oito anos de prisão, tendo lhe sido
concedido o direito de recorrer em liberdade. Em grau de recurso, o processo foi
anulado, sendo o acusado submetido ao segundo julgamento pelo Tribunal do
Júri, somente em 1996, oportunidade em que lhe foi imposta nova pena de dez
anos e seis meses de prisão. Apesar da gravidade dos crimes e da grande
quantidade de pena imposta, novamente foi-lhe concedido o direito de recorrer
solto, tendo a decisão do Conselho de Sentença sido confirmada pelo Tribunal de
Justiça do Ceará. O réu foi preso somente em 2002, portanto, quase vinte anos
depois de praticadas as terríveis agressões contra sua então esposa, Maria da
Penha. Em que pese a pena aplicada, o agressor permaneceu segregado em
regime fechado por apenas dois anos, após o que, obteve a progressão para
regime prisional mais brando.55
Em síntese, este é o relato da trágica história de sofrimento
e agressões impostas à Maria da Penha, não só pelo seu ex-marido, mas também
pelo Estado brasileiro, o qual não atuou de forma concreta para a efetiva
realização da justiça, de forma célere e eficaz. Esses fatos, infelizmente, não são
isolados. Pelo contrário, constituem-se na tônica de uma sociedade desajustada,
patrimonialista e assentada sobre as bases de uma cultura patriarcal, que ainda
insiste em apresentar os seus resquícios nos dias atuais, embora seja
completamente incompatível com o desenvolvimento da sociedade
contemporânea e a ordem jurídica brasileira, inaugurada com a Constituição da
República de 1.988.
No caso específico da vítima Maria da Penha, o descaso do
Estado brasileiro foi tamanho, que propiciou uma representação à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos –
OEA, promovida pelo Centro de Justiça e o Direito Internacional, bem como pelo
Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher.
Embora a OEA tenha solicitado informações ao Governo brasileiro, por quatro
vezes, sequer obteve resposta sobre o caso representado. Em 2001, em
55 O relato sobre o processo criminal em que Maria da Penha figura como vítima, foi extraído da
obra: DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: RT, 2007. p. 13.
53
decorrência do histórico de omissões ao combate da violência doméstica, o Brasil
foi condenado pela OEA ao pagamento de indenização, no valor de vinte mil
dólares, em favor da vítima Maria da Penha, bem como foi recomendado a este
Estado, a implementação de diversas ações político-jurídicas para o combate à
violência intrafamiliar, dentre elas, a simplificação dos procedimentos processuais
penais, objetivando a redução do tempo do processo, em que se noticia a
violência doméstica contra a mulher.
Fruto da pressão internacional e da mobilização da
sociedade civil, especialmente de diversas entidades não governamentais em
defesa dos direitos femininos, o projeto de lei que redundou na edição da Lei n.º
11.340/06, conhecida por Lei Maria da Penha, iniciou sua tramitação em 2002,
sendo sancionada pelo Presidente da República, no dia 07 de agosto de 2006,
tendo entrado em vigor no ordenamento jurídico brasileiro, a partir do dia 22 de
setembro daquele ano.56
Passa-se doravante à análise de aspectos dogmáticos e
pontuais constantes da Lei Maria da Penha.
2.4.2 CONCEITO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CO NTRA A
MULHER
Muito embora não seja recomendável a formulação legal de
conceitos jurídicos, diante da dificuldade de evolução dos conceitos, quando se
encontram hermeticamente contemplados em dispositivo legal, tem-se que o
conceito de violência doméstica e familiar, cometida contra a mulher restou
definido pelo próprio artigo 5º, da Lei n.º 11.340/2006, como sendo qualquer ação
ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico,
sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial57.
56 As notícias referentes ao processo da Maria da Penha, junto à OEA foi extraída da obra: DIAS,
Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: RT, 2007. p. 14.
57 Estabelece o artigo 5º da Lei n.º 11.340/2006: “Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de
54
Já, nos incisos que integram este dispositivo legal, consta o
campo de abrangência da lei, abarcando tanto a proteção da mulher no âmbito
doméstico, assim como no âmbito familiar, bem como em qualquer relação de
companheirismo, independentemente de coabitação.
Para a compreensão do âmbito de abrangência da Lei Maria
da Penha, forçoso apreciar cada modalidade de incidência, o que se passa a
efetuar, separadamente.
2.4.3 VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO ÂMBITO DA UNIDAD E
DOMÉSTICA
A Lei Maria da Penha, por seu artigo 5º, Inciso I, ao
expressar que o seu espectro de abrangência se dará na unidade doméstica,
definiu este local, como sendo o espaço de convívio permanente de pessoas. Daí
resulta a circunscrição do fenômeno da violência de gênero, ao âmbito do espaço
da unidade doméstica, porquanto é no lar que ocorrem as controvérsias
decorrentes do convívio conjugal, notadamente pela transformação do exercício
compartilhado do poder familiar e tratamento isonômico a todos os membros da
unidade familiar, valores jurídicos recentemente introjetados na consciência
jurídica e social brasileira, após séculos de perversas discriminações e
submissões impostas às mulheres, no seio do lar conjugal.
Importante destacar que a Lei Maria da Penha estende sua
teia de proteção, somente aos membros da unidade doméstica do sexo feminino,
protegendo, desta forma, a esposa, a companheira, a filha ou neta de um dos
membros ou de ambos os cônjuges, assim como a ascendente de qualquer um
deles, ou ainda, a mulher esporadicamente agregada, na expressão da lei, assim
entendida como a pessoa do sexo feminino que provisoriamente convive no
pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual”. LIMA FILHO, Altamiro de Araújo. Lei Maria da Penha comentada. Leme: Mundo Jurídico, 2007. p. 138.
55
núcleo doméstico, como a ocorrente na relação de emprego doméstico,
independentemente de esta pernoitar no seu local de trabalho ou não.
Releva destacar que ao se mencionar que a Lei Maria da
Penha restringe seu âmbito de abrangência ao membro da unidade doméstica do
sexo feminino, sem fazer sequer menção aos demais membros do lar, do sexo
masculino, principalmente crianças e idosos, não significa que estes entes
encontram-se desguarnecidos de proteção jurídica em relação ao fenômeno da
violência doméstica, porquanto em uma análise sistemática do direito vigente
pátrio, tem-se que há mecanismos constantes, tanto do Estatuto da Criança e do
Adolescente, quanto do Estatuto do Idoso, além da aplicação do princípio da
dignidade da pessoa humana, capazes de assegurar a proteção de todos os
membros da unidade doméstica, vítimas de violência intrafamiliar. Este ponto será
retomado adiante, quando da análise da constitucionalidade da Lei Maria da
Penha.
2.4.4 VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO ÂMBITO DA FAMÍL IA
Aqui, o objetivo da Lei Maria da Penha é a coibição do
fenômeno da violência doméstica, mesmo que, para tanto, seja necessário
ultrapassar os limites estreitos e tradicionais da unidade doméstica. Noutras
palavras, a lei estenderá sua proteção, mesmo nos casos de ocorrência de
violência doméstica, cometida fora dos limites do lar conjugal.
Entretanto, para a adequação do conceito de violência
doméstica contra a mulher à abrangência da Lei Maria da Penha, é necessário
que a ação seja direcionada à pessoa do sexo feminino que esteja ligada ao
agressor pelo vínculo de parentesco, seja este natural ou por afinidade, assim
compreendido aquele previsto nos artigos 1.591 a 1.595 do Código Civil58, ou
ainda os familiares decorrentes da vontade expressa dos entes familiares.
58 Assim dispõe o Código Civil brasileiro: Art. 1.591. São parentes em linha reta as pessoas que
estão umas para com as outras na relação de ascendentes e descendentes; Art. 1.592. São parentes em linha colateral ou transversal, até o quarto grau, as pessoas provenientes de um só tronco, sem descenderem uma da outra; Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem; Art. 1.594. Contam-se, na linha reta, os graus de parentesco pelo número de gerações, e, na colateral, também pelo número delas,
56
Desta forma, inclui-se, também, na abrangência da Lei Maria
da Penha as relações familiares decorrentes de uniões estáveis, monoparentais
ou ainda em uniões homoafetivas, ultrapassando, os clássicos conceitos de
família, advindos do diploma civilista vigente no Brasil, para definir como unidade
familiar, não somente aquelas pessoas em que lei disciplina, mas também os
agentes que se ligam pelo vínculo da voluntariedade.
Neste sentido, importante a lição de MOREIRA ALVES, para
quem:
[...] observa-se que a entidade familiar ultrapassa os limites da previsão jurídica (casamento, união estável e família monoparental) para agrupar todo e qualquer grupamento de pessoas em que permeie o elemento afeto affectio familiae. Em outras palavras, o ordenamento jurídico deverá sempre reconhecer como família todo e qualquer grupo no qual os seus membros vê uns aos outros como seu familiar.59
Portanto, a violência de gênero, mesmo praticada fora do
âmbito do lar conjugal ou da unidade doméstica, terá incidência dos mecanismos
protetivos da Lei Maria da Penha, se as agressões forem perpetradas pelos entes
familiares, numa perspectiva extensiva desta entidade.
2.4.5 VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER DECORRENTE DA RELAÇ ÃO ÍNTIMA
DE AFETO
Em consonância com o artigo 5º, inciso III, da Lei Maria da
Penha, tem-se que a rede de proteção insculpida por este diploma legal abarca
subindo de um dos parentes até ao ascendente comum, e descendo até encontrar o outro parente; Art. 1.595. Cada cônjuge ou companheiro é aliado aos parentes do outro pelo vínculo da afinidade. § 1o O parentesco por afinidade limita-se aos ascendentes, aos descendentes e aos irmãos do cônjuge ou companheiro. § 2o Na linha reta, a afinidade não se extingue com a dissolução do casamento ou da união estável. BRASIL. Código Civil brasileiro de 2002. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm. Acesso em 17/06/2009.
59 ALVES, Leonardo Barreto Moreira. A função social da família. O reconhecimento legal do conceito moderno de família: o art. 5º, II, parágrafo único, da Lei n.º 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) Revista Brasileira de Direito de Família. Ano VIII, n.º 39, dez-jan 2007. p. 132.
57
qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido
com a ofendida, independentemente de coabitação.
Aqui, vislumbra-se a utilização da expressão afeto como a
tônica à configuração da moderna concepção de núcleo familiar, refugindo do
conceito estreito de família avinda do casamento formal, para abarcar outras
formas de relações familiares, pautadas no vínculo afetivo, como se dá nos casos
de namoro ou noivado, independentemente da coabitação dos envolvidos, desde
que não se trate de relação afetiva transitória e passageira.
Neste sentido, é a percepção de DIAS:
Vínculos afetivos que refogem ao conceito de família e de entidade familiar nem por isso deixam de ser marcados pela violência. Assim, namorados e noivos, mesmo que não vivam sob o mesmo teto, mas resultando a situação de violência do relacionamento, faz com que a mulher mereça o abrigo da Lei Maria da Penha60.
Importante pontuar que para a incidência da Lei Maria da
Penha, a violência contra a vítima deverá estar jungida pelo nexo de causalidade
entre a ação lesiva e a causa afetiva que a propiciou.
Vale dizer, a relação íntima de afeto deve ser,
exclusivamente, a causa da violência praticada, afastando-se da incidência deste
Estatuto, as agressões decorrentes de relações estranhas ao vínculo afetivo, tais
como: as agressões oriundas de controvérsias laborativas, acadêmicas,
esportivas, profissionais, dentre outras.
2.5 MECANISMOS PROCESSUAIS QUE OBJETIVAM REPRIMIR A VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER
A violência doméstica contra a mulher é marcada pela
relação desigual entre os diferentes gêneros da unidade familiar, evidenciada pela
imposição da submissão da mulher aos interesses masculinos, fruto de uma
60 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de
combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: RT, 2007. p. 65.
58
sociedade desajustada culturalmente e que encontra raízes nas formas mais
perversas de dominação, inserida no sistema patriarcal, incompatível com a
evolução dos direitos humanos, especialmente os inerentes à condição de
mulher.
Diante desta realidade, a Lei Maria da Penha inovou no
ordenamento jurídico brasileiro diversos instrumentos processuais, de aplicação
tanto no âmbito penal quanto na seara cível, no intuito de disponibilizar ao
operador jurídico diversos mecanismos aptos a perfectibilizar a proteção da vítima
frente ao fenômeno da violência doméstica.
Uma das principais inovações previstas pela Lei Maria da
Penha foi a instituição dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a
Mulher.
Neste particular, Santa Catarina foi pioneiro no país, tendo
em 06 de setembro de 2006, o então Presidente do Tribunal de Justiça, Des.
Pedro Manoel Abreu, sensível à gravidade do fenômeno em análise, instalado as
três primeiras unidades jurisdicionais específicas para a proteção das mulheres
vítimas de violência doméstica no país, nas Comarcas da Capital, Chapecó e
Tubarão, as quais têm desempenhado importante papel na consecução dos
objetivos da Lei Maria da Penha61.
Sobre as principais inovações constantes da Lei Maria da
Penha, no que tange aos procedimentos policial e judicial dos feitos relacionados
à violência doméstica, destaca-se a vedação quanto à utilização da vítima na
entrega de notificação ou intimação ao agressor, emanadas pelos órgãos policiais
e judiciais, relacionadas à violência doméstica, notadamente quando do
deferimento de medidas protetivas em favor da vítima, como forma de preservar a
integridade física ou até mesmo a vida desta, diante da constatação de que neste
momento de tensão é que surgem novas e graves violências domésticas,
especialmente contra as mulheres.
61 A Instituição dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher nas Comarcas da
Capital, Chapecó e Tubarão foram implementadas pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa
59
Ademais, a Lei Maria da Penha determina que deve o juiz
adotar medidas protetivas em favor da vítima que façam cessar a violência
doméstica, tais como: o afastamento do agressor do lar conjugal; o impedimento
de que este se aproxime da unidade doméstica; a vedação do agressor em
manter contato com os familiares que convivam com a vítima; Também dever o
magistrado encaminhar a mulher e os filhos que se encontrem em situação de
risco, decorrente da agressão doméstica, a abrigos seguros, mantidos pelo Poder
Público.
A Lei n.º 11.340/2006 possibilita a manutenção do vínculo
trabalhista da vítima, nos casos em que esta esteja obrigada a afastar-se das
atividades laborativas, em decorrência da violência doméstica.
Além disso, pelo Estatuto protetivo da violência doméstica,
pode o Juiz decretar a separação de corpos do casal, fixar alimentos provisórios,
bem como adotar medidas diversas, de cunho preventivo a danos patrimoniais à
vítima, tais como: suspender procuração outorgada ao agressor e anular a venda
de bens comuns.
No campo processual penal, a autoridade policial tem a
incumbência investigatória, cabendo-lhe instalar o inquérito policial, afastando-se
a possibilidade de formulação de termo circunstanciado.
Pela Lei Maria da Penha, a vítima estará sempre
acompanhada de advogado, seja na fase policial ou na fase na judicial, sendo-lhe
garantido pelo Estado o acesso os serviços da Defensoria Pública e da
Assistência Judiciária Gratuita, como forma de propiciar que a dificuldade
econômica da vítima à contratação de advogado não seja óbice para a punição do
agressor.
Este Estatuto determina, também, que deve a vítima ser
pessoalmente cientificada, quando o agressor for preso ou liberado da prisão,
sem prejuízo da intimação de seu defensor.
Catarina, por meio da Resolução n.º 18/2006, lavrada em 06.09.2006 e publicada no diário da justiça eletrônico de Santa Catarina, n.º 51 pág. 03, do dia 12.09.2006.
60
Ressalte-se que, muito embora a Lei Maria da Penha tenha
introduzido mais um requisito para a decretação da prisão preventiva62, tem-se
que a adoção da medida extrema de segregação do suposto agressor,
provisoriamente, deve ser utilizada com bastante cautela e moderação, eis que
não se trata de condenação em sentença após a instrução regular do processo,
mas sim na forma de medida cautelar penal.
Assim, só se afigura aplicável a decretação da prisão
preventiva do agressor da violência doméstica, nos casos de comprovada
extrema necessidade e urgência da medida, sob pena de ser banalizado o
instrumento da prisão provisória, em prejuízo da legitimação ética deste
importante mecanismo de controle processual, inclusive no trato da violência
familiar.
Igualmente merece destaque a alteração promovida pela Lei
Maria da Penha, relativamente ao apenamento das lesões corporais de natureza
leve, decorrentes de violência familiar, conforme disposição do artigo 129, § 9º do
Código Penal, bem como a criação de uma nova causa de especial aumento da
pena, para o caso do crime de violência doméstica ser praticado contra pessoa
portadora de deficiência.
Neste particular, a Lei Maria da Penha, ao alterar o
apenamento do artigo 129, § 9º do Código Penal63, reduziu o patamar mínimo da
pena cominada, de 06 (seis) meses para 03 (três) meses de detenção. Embora
esta lei tenha aumentado a pena, no que tange ao patamar máximo,
62 Consta da redação do artigo 313 do Código de Processo Penal, por meio da alteração
promovida pela Lei Maria da Penha: “Art. 313. Em qualquer das circunstâncias, previstas no artigo anterior, será admitida a decretação da prisão preventiva nos crimes dolosos: [...] IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.” BRASIL. Código de Processo Penal de 1941. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm. Acesso em 17/06/2009.
63 O Código Penal em seu artigo 129, assim dispõe: “Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: [...] § 9º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.[...] § 11. Na hipótese do § 9o deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência.” BRASIL. Código
61
originalmente em 1 (um) ano, passando para 3 (três) anos, tem-se que é
consenso na literatura da dosimetria da pena que esta se inicia no patamar
mínimo legal, além do que, teoricamente, possui conseqüências quanto à
possibilidade de adoção de medidas desjudicializadoras, previstas na Lei n.º
9.099/95.
Os comandos normativos penais e processuais penais
constantes da Lei n.º 11.340/2006 mostram-se consentâneos com a política
criminal da severidade, extremamente repressora e evidenciam a incoerência
lógica de diretrizes teóricas incidentes neste Estatuto com a política jurídica do
Direito Penal mínimo, pautada na consensualidade, na desjudicialização de
delitos de menor potencialidade lesiva e outros mecanismos de abrandamento do
controle penal das relações sociais, que vem largamente sendo adotado no
Brasil, nos últimos anos.
Com efeito, a Lei Maria da Penha trouxe dispositivos que
vedam a aplicação dos procedimentos dos Juizados Especiais Criminais, nos
casos de crimes decorrentes de violência doméstica, preconizando a proibição da
aplicação de pena pecuniária, de multa ou, ainda, o fornecimento de cesta básica,
como medida alternativa à prisão, fatores que revelam a adoção da matriz teórica
do Direito Penal da severidade, que pela importância à pesquisa, serão
retomados no próximo Capítulo.
2.6 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA CONSTITUCIONALIDADE DA LEI MARIA
DA PENHA
No contexto do constitucionalismo moderno, tem-se que os
direitos fundamentais dos cidadãos, dentre os quais os de proteção dos
indivíduos contra toda a forma de violência doméstica, constituem-se em condição
de legitimação do Estado e fundamento de existência deste Estado. A
concretização dos valores fundamentais se mostra como função inarredável do
Estado Democrático e Social de Direito.
Penal de 1940. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm. Acesso em 17/06/2009.
62
Na percepção de SARLET:
Além da íntima vinculação entre noções de Estado de Direito, Constituição e direitos fundamentais, estes, sob o aspecto de concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como dos valores da igualdade, liberdade e justiça, constituem condição de existência e medida de legitimidade de um autêntico Estado Democrático e Social de Direito, tal qual como consagrado também em nosso direito constitucional positivo vigente.64
Consectário desta dimensão constitucional, tem-se que a
concretização dos valores constitucionais atinentes aos direitos fundamentais,
notadamente no que se referem aos direitos humanos das vítimas de violência
doméstica, constitui missão inarredável do Estado brasileiro, não só por força dos
tratados e convenções sobre o tema, ratificados pelo Brasil, já mencionados, mas
também por expressa previsão na ordem constitucional pátria, quanto ao combate
e eliminação desta triste patologia social.
Neste diapasão é que se encontra o debate acerca da
constitucionalidade ou não da Lei Maria da Penha, em face, principalmente, da
adequação ou não do princípio constitucional da igualdade, porquanto há nesta lei
manifesto tratamento diferenciado dos gêneros, com vistas à proteção do ser
humano do sexo feminino, em detrimento do masculino.
No âmbito da doutrina e jurisprudência brasileira,
inicialmente, formou-se entendimento pela condenação da Lei Maria da Penha à
inconstitucionalidade, em razão da criação, em seu bojo, de forma de
discriminação de gênero, porquanto este Estatuto prevê instrumentos jurídicos de
proteção à violência doméstica, apenas restritos à incidência em favor das
mulheres, o que contraria o ideal de igualdade, constitucionalmente positivado.
Por meio deste entendimento, Juízes e Tribunais têm
deixado de aplicar a Lei Maria da Penha, por entendê-la inconstitucional, em
64 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008. p. 72.
63
razão do tratamento privilegiado da lei em favor das mulheres, em detrimento dos
homens.
Nesse diapasão, o Tribunal de Justiça do Estado do Mato
Grosso do Sul, sob o argumento de ofensa ao princípio da igualdade entre
homens e mulheres, afastou a aplicabilidade da Lei Maria da Penha, declarando
sua inconstitucionalidade, formalmente65.
Outros órgãos jurisdicionais, no Brasil, acompanharam o
entendimento acerca da inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha, por ferir de
morte o princípio da igualdade entre mulheres e homens. Nestas decisões foi
permeado o entendimento de que este Estatuto possui intrinsecamente vício de
inconstitucionalidade, o qual irremediavelmente contaminou a integralidade, ou
quase todo o arcabouço de mecanismos protetivos à vítima e de combate ao
fenômeno da violência doméstica, deixando-se de aplicar todo o conteúdo da Lei
Maria da Penha.
De outro lado, surgiram inúmeros entendimentos
doutrinários e jurisprudenciais favoráveis à constitucionalidade da Lei Maria da
Penha, deduzindo, em síntese a inexistência de lesão ao princípio da igualdade,
tendo em conta a aplicação material de discriminação positiva, facultada pela
Carta Política, em face da diversidade havida na peculiar relação entre homens e
mulheres, na convivência familiar e de afeto, com a constatação,
majoritariamente, de imposição da submissão feminina aos interesses
masculinos, por meio de atos agressivos, configuradores de violência doméstica.
65 O acórdão mencionado, possui a seguinte ementa: “RECURSO EM SENTIDO ESTRITO –
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER – DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI N. 11.340/06 – RECURSO MINISTERIAL – PEDIDO DE MODIFICAÇÃO DA DECISÃO MONOCRÁTICA QUE DECLAROU A INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI N. 11.340/06 – VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE – VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E PROPORCIONALIDADE – DECISÃO MANTIDA – COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL – IMPROVIDO. A Lei n. 11.340/06 (Lei Maria da Penha) está contaminada por vício de inconstitucionalidade, visto que não atende a um dos objetivos da República Federativa do Brasil (art. 3º, IV, da CF), bem como por infringir os princípios da igualdade e da proporcionalidade (art. 5º, II e XLVI, 2ª parte, respectivamente). Assim, provê-se o recurso ministerial, a fim de manter a decisão que declarou a inconstitucionalidade da Lei n. 11.340/2006, determinando-se a competência do Juizado Especial Criminal para processar e julgar o feito. (TJMS, 2ª Turma Criminal, RE n.º 2007.023422-4/0000-00, Relator: Des. Romero Osme Dias Lopes. Decisão proferida em 26/09/2007. Disponível em: http://www.tj.ms.gov.br. Acesso em: 10/01/2008).
64
Com tais argumentos, diversos tribunais pátrios66
manifestaram-se favoravelmente à constitucionalidade da Lei Maria da Penha, o
que propiciou a aplicação do leque de mecanismos ali constantes para o combate
da violência familiar.
Diante da controvérsia acerca da constitucionalidade da Lei
Maria da Penha, no que se refere, principalmente, ao princípio constitucional da
igualdade, em 19 de dezembro de 2007, o Presidente da República do Brasil
ajuizou Ação Direta de Constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal
brasileiro, tombado sob o n.º ADC/19, com o objetivo de que seja declarada a
constitucionalidade dos dispositivos integrantes da Lei Maria da Penha e, por
conseqüência, seja determinada a suspensão dos efeitos às decisões
jurisdicionais que neguem vigência à Lei n.º 11.340/2006. Até o presente
momento não houve o julgamento do mérito da ação mencionada, sendo
aguardado o pronunciamento da Corte Suprema, acerca da constitucionalidade
da Lei Maria da Penha. 67
No âmbito do presente do trabalho, procurar-se-á
demonstrar a questão da constitucionalidade dos dispositivos integrantes da Lei
Maria da Penha, sob o prisma da política jurídica, especialmente, com enfoque
para a função dos Juízes e Tribunais, no que tange à responsabilidade estatal à
66 Neste sentido, colhe-se julgado do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, sob a
seguinte ementa: “PROCESSUAL PENAL - RECLAMAÇÃO - LEI MARIA DA PENHA - INAPLICABILIDADE DOS BENEFÍCIOS DOS JUIZADOS ESPECIAIS - CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 41 DA LEI 11.340/06 - RECURSO PROVIDO - PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. Havendo materialmente desequilíbrio nas relações domésticas, encontrando-se as mulheres, via de regra, em situação de inferioridade nos aspectos psicológico, físico e financeiro, tais desigualdades tem de ser compensadas pelo intérprete. A interpretação teleológica do princípio constitucional do item I, do artigo 5°, da Carta Política, atribuindo às mulheres nos casos de violência doméstica maiores garantias, é indispensável para assegurar o equilíbrio de direitos e obrigações nas relações familiares. A Lei Maria da Penha nada mais é do que o instrumento preconizado pelo artigo 226, parágrafo 8°, pelo que não se encontra em conflito com o item I, do artigo 5° da Constituição Federal, mas com ele tem de ser interpretado sistematicamente.” (TJSC. Primeira Câmara Criminal. Reclamação n.º 2008.055208-4, de Lages, Relator: Des. Amaral e Silva. Decisão proferida em 25/11/2008. Disponível em: http://www.tj.sc.gov.br. Acesso em 17/06/2009).
67 Acompanhamento processual da Ação Declaratória de Constitucionalidade n.º 19. Relator: Min. Marco Aurélio. Requerente: Presidente da República. Intimados: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Themis - Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, Ipê - Instituto para a Promoção da Eqüidade, Instituto Antígona. Andamentos: Em 06/03/2009, Conclusos ao(à) Relator. Disponível em: http://www.stf.jus.br, Acesso em 31 de maio de 2009.
65
efetivação dos direitos humanos, bem como ao combate da violência doméstica,
extensivo a todos os membros componentes da unidade familiar.
2.6.1 LEI MARIA DA PENHA E A ORDEM CONSTITUCIONAL B RASILEIRA
A gênese do combate à violência doméstica e familiar, no
Brasil, encontra-se na esfera de fundamento da República, porquanto este
fenômeno diz respeito à expressão do dever estatal de proteção à dignidade da
pessoa humana.68
A aparente vedação de discriminação de gênero encontra
respaldo no Inciso IV, do artigo 3º, da vigente Constituição do Brasil, ao
preconizar que constitui objetivo do Estado brasileiro, a promoção do bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação.69
Da mesma forma, o caput e inciso I, do artigo 5º, da
Constituição brasileira de 1988, estatui que:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.70
Especificamente, no que atine à proteção dos entes
familiares quanto ao fenômeno da violência doméstica, a Carta Política de 1988 é
assente em preconizar em seu artigo 226, § 8º, que o Estado assegurará a
68 Assim dispõe a atual Constituição: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela
união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana; [...]”. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm. Acesso em 17/06/2009.
69 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm. Acesso em 17/06/2009.
70 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm. Acesso em 17/06/2009.
66
assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando
mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações71.
Pois bem, relativamente ao entendimento de que a Lei Maria
da Penha é inconstitucional, em razão da discriminação72 promovida no bojo de
seu regramento, por efetivar tratamento diferenciado às mulheres, vítima de
violência doméstica, em detrimento dos homens na mesma situação, tem-se que
tal fundamento não resiste à análise do conteúdo material do princípio da
igualdade.
Ora, já na Grécia Antiga, ARISTÓTELES delineou os
primeiros contornos do conteúdo material do princípio da igualdade, insculpindo
sentido por demais conhecido, pelo qual a isonomia consiste em tratar igualmente
os iguais, na medida de suas igualdades e desigualmente os desiguais na
proporção de suas desigualdades.
Afirmou o filósofo grego:
Com efeito, uma realeza perpétua, firmada sobre cidadãos iguais, destrói a igualdade, e em geral todas as revoluções objetivam o resultado da igualdade. Duas espécies existem de igualdade: aquela em número e a proporcional. Denomino igualdade em número aquela que é semelhante e igual relativamente à grandeza e à quantidade; igualdade proporcional eu considero a semelhança de relação. [...] Ora, concordando os cidadãos em ter como justa a igualdade absoluta, não estão de acordo sobre a igualdade proporcional, como antes se disse; uns por serem iguais em alguma coisa, supõe que os são em todas as coisas; outros, porque têm alguma real vantagem, querem toda espécie de privilégios.73
71 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm. Acesso em 17/06/2009. 72 Para FERREIRA, Discriminar tem o seguinte sentido: “ato ou efeito de discriminar, faculdade de
distinguir ou discernir, discernimento; separação, apartação, segregação: discriminação racial”. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 3. ed. Curitiba: Positivo, 2004. p. 596.
73 ARISTÓTELES. Política. Tradução Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret. 2005, p. 231.
67
No contexto do constitucionalismo moderno, o princípio da
igualdade, em sua fase embrionária, foi cunhado no seio das revoluções
burguesas dos Séculos XVII e XVIII pela lógica liberal, segundo a qual todos são
iguais perante a lei, com vistas a insculpir um sentido negativo de proteção do
estado, ao rechaçar os privilégios sociais constantes do ancien régime, fundado
nos privilégios decorrentes de nascimento e classe, presentes nas nobrezas,
então combatidas.
Surge deste ideário uma concepção de igualdade em
contraposição aos privilégios, com vistas ao tratamento igualitário dos direitos
humanos. Resulta daí a obrigação do Estado de proteção dos direitos humanos,
no sentido negativo, pelo qual, deverá o Estado abster-se de criar regras anti-
isonômicas e dispor de mecanismos aptos a evitar o surgimento de privilégios, no
seio da sociedade de iguais, formalmente, transmudando-se, assim, a lógica de
privilégios para a lógica meritória, esta compreendida como o postulado, segundo
o qual as distribuições das riquezas e posições sociais, na hierarquia das
sociedades devem ser norteadas privativamente pelos critérios de aptidões
intelectuais e capacidade de cada indivíduo, como expressão da lógica liberal.
Ocorre que com a evolução do constitucionalismo
contemporâneo, principalmente, no Século XX, surgem novas diretrizes quanto à
função estatal na esfera de proteção dos direitos fundamentais, dentre os quais, o
direito à igualdade material, diante da insuficiência da filosofia liberal-burguesa
para a proteção dos direitos humanos, fundamentados essencialmente na lógica
da meritocracia, diante da complexidade que envolve toda a teia de estrutura nas
relações sociais, da sociedade atual.
Para SILVA JÚNIOR:
Não obstante a força persuasiva da utopia igualitarista liberal, o legado histórico e a experiência social explicitaram o problema da estrutura concreta da sociedade e das diversas mediações as quais estão sujeitas às trajetórias dos indivíduos, desmistificando o dogma meritocrático e atribuindo ao Estado a tarefa de
68
disciplinar e remover os obstáculos que se antepõem ao exercício uniforme dos direitos por parte da generalidade dos indivíduos.74
Com efeito, os dados auferidos no campo da realidade
mostram-se como pano de fundo para a delimitação da igualdade material,
servindo de fundamento dessacralizador da estrutura ideológica da meritocracia.
Nesta esteira, preciosa mostra-se a lição de RAWLS, para
quem cada pessoa se encontra ao nascer, numa posição particular dentro de
alguma sociedade específica, e a natureza dessa posição afeta substancialmente
suas perspectivas de vida.75
Desta forma, paralelamente à dimensão negativa ou
proibitiva de lesão aos direitos fundamentais pelo Estado, seja por abstenção de
ações desenvolvidas na esfera pública ou na coibição de atos praticados por
particulares que violem o conteúdo valorativo dos direitos humanos, passa-se,
doravante a compreender-se que o Estado possui obrigações de dimensão
positiva, por meio das quais, este mesmo Estado deve desenvolver um papel
ativo, com o fim de proteger de forma efetiva o exercício dos direitos
fundamentais.
Nesta acepção positiva de proteção dos direitos
fundamentais, SARLET preconiza que:
[...] a vinculação do legislador implica um dever de conformação de acordo com os parâmetros fornecidos pelas normas de direitos fundamentais e, neste sentido, também um dever de realização destes, salientando-se, ademais que, no âmbito de sua faceta jurídico-objetiva, os direitos fundamentais também assumem a função de princípios informadores de toda a ordem jurídica. É justamente com base na perspectiva objetiva dos direitos fundamentais que a doutrina alemã entendeu que o legislador possui deveres ativos de proteção, que englobam um dever de
74 SILVA JÚNIOR, Hédio. Direito de igualdade racial: aspectos constitucionais, civis e penais:
doutrina e jurisprudência. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. p. 102.
75 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 14.
69
aperfeiçoamento da legislação existente, no sentido de conformá-la às exigências das normas de direitos fundamentais.76
Quanto ao direito fundamental à igualdade material,
constante da Constituição brasileira, tem-se que é insuficiente para a sua
concretização reduzir sua potencialidade ao ideário meritocrático, incumbindo ao
Estado o dever de abster-se de discriminar.
No atual estágio de evolução do constitucionalismo, impõe-
se ao Estado, também, um papel ativo, capaz de assegurar a igualdade de
oportunidades a todos. Em outras palavras, constitui-se em inarredável obrigação
do Estado a promoção positiva da igualdade de todos os cidadãos, considerando-
se, a realidade fática de cada grupo social e promovendo ações tendentes à
remoção de barreiras que impeçam ou dificultam a realização da efetiva igualdade
material de todos.
2.6.2 LEI MARIA DA PENHA E AS AÇÕES AFIRMATIVAS
Inicialmente, impõe-se apresentar o conceito de ações
afirmativas, as quais podem ser compreendidas como o poder-dever estatal de
promover, no interior da sociedade, a igualdade fática, materialmente
concretizada, orientando-se, de tal maneira, para a nivelacão e para a gestão das
diferenças, através de um tratamento jurídico diferenciado, com vistas à
consolidação da igualdade material de oportunidades sociais e equivalência de
direitos entre os distintos membros da sociedade civil, faticamente distintos.
Neste contexto é que surge a Lei Maria da Penha, no Brasil,
com o objetivo de combater o fenômeno da violência doméstica, numa
perspectiva de busca da concretização do princípio material da igualdade, através
da técnica de conceber tratamento diferenciado em favor da mulher, justificado
diante dos dados auferidos no cotidiano e pelo reconhecimento de uma cultura
patriarcal impregnada na sociedade brasileira, na qual a tônica é a discriminação,
76 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008. p. 388.
70
a submissão e a coisificação da mulher, no âmbito das relações domésticas e
familiares.
O fenômeno da violência doméstica contra a mulher é tão
perverso, que sequer existiam até há pouco tempo, dados oficiais concretos,
levantamentos estatísticos confiáveis ou diagnósticos plausíveis sobre a
quantificação desta espécie de lesão aos direitos humanos, condenando-a à
invisibilidade.
Entretanto, ao longo dos últimos anos, impulsionado pelas
convenções internacionais que tratam da erradicação da violência doméstica e
diante da mobilização de diversos segmentos sociais em defesa dos direitos
femininos, o governo brasileiro passou a catalogar dados sobre este fenômeno.
Segundo GUIMARÃES:
Os levantamentos dos índices de violência doméstica contra a mulher, [no Brasil], são assombrosos. De acordo com a pesquisa realizada pelo IBGE, no final da década de 1980, foi constatado que 63% das agressões físicas contra as mulheres são praticadas no âmbito das relações domésticas. Em pesquisa realizada em 2001 pela Fundação Perseu Abramo, a projeção da taxa de espancamento de 11% para o universo investigado de 61,5 milhões indica que pelo menos 6,8 milhões, dentre as brasileiras vivas, já foram espancadas pelo menos uma vez. Considerando-se que entre as que admitiram ter sido espancadas, 31% declararam que a última vez em que isso ocorreu foi no período dos 12 meses anteriores, projeta-se cerca de, no mínimo, 2,1 milhões de mulheres espancadas por ano no país, o que permite concluir que no Brasil, 175 mil por mês, ou 5,8 mil por dia, ou 243 por hora ou 4 por minuto, chegando à incrível e perversa conclusão de que, em cada 15 segundos, uma mulher no Brasil é vítima de violência doméstica.77
Diante desta realidade, Juízes e Tribunais brasileiros vêm
desempenhando papel de extrema relevância ao país, eis que, enquanto órgãos
77 GUIMARÃES, Isaac Sabbá; MOREIRA, Rômulo de Andrade. A Lei Maria da Penha. Aspectos
criminológicos de política criminal e do procedimento penal. Salvador: Jus Podium, 2009. p. 25-26.
71
estatais incumbidos do controle da constitucionalidade, suas decisões encontram-
se inexoravelmente vinculados não só à Constituição, mas também aos direitos
fundamentais e, em especial, às ações afirmativas, ativas e positivas do Estado.
Essas ações afirmativas objetivam a concretização material
da igualdade nos diversos segmentos que compõem a sociedade civil brasileira,
por meio da aplicação, interpretação e integração das normas de natureza
inclusiva, com vistas à promoção da igualdade material e objetivando conceber
em tais diplomas a maior eficácia possível, na esfera do sistema jurídico
brasileiro, como se dá no caso específico da Lei Maria da Penha.
Portanto, a realidade fática permite concluir ser plenamente
possível o desenvolvimento de ações afirmativas no campo da violência
doméstica, por meio de tratamento diferenciado em benefício da mulher que se
encontrar em situação de violação de seus direitos humanos.
Desta forma, impõe-se o reconhecimento de que a Lei Maria
da Penha não ofende ao princípio constitucional da igualdade. Ao revés, coaduna-
se com este princípio, na medida em que propicia a adoção de mecanismos aptos
a equilibrar as condições, naturalmente desfavoráveis à mulher, na maioria das
situações concretas de violência doméstica apresentada.
2.6.3 A NECESSIDADE DA EXTENSÃO DA PROTEÇÃO CONTRA A
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ÀS CRIANÇAS, IDOSOS E ADULTOS
De outro vértice, não se mostra contraditório, ao contrário,
reforça o apoio ao sistema de proteção contra a violência doméstica, a defesa de
que, no âmbito do convívio familiar, os mecanismos protetivos, constantes da Lei
Maria da Penha possam ser aplicados, não somente em favor da mulher, mas
também para a defesa dos interesses de crianças, idosos e adultos.
Independentemente de pertencerem ao grupo do sexo masculino ou feminino,
desde que sejam vítimas de alguma das formas de violência doméstica e familiar,
todos são detentores dos atributos imanentes à dignidade da pessoa humana, os
quais se encontram protegidos pelo feixe de mecanismos atinentes à esfera dos
direitos fundamentais.
72
O comando constitucional brasileiro, do qual emana o
fundamento da Lei Maria da Penha, não restringe a proteção do fenômeno da
violência doméstica às mulheres. Ao revés, o artigo 226, § 8º, da Constituição da
República Federativa do Brasil, de 1988, assegura a proteção contra a violência
familiar a todos os integrantes do núcleo familiar, nos seguintes termos: o Estado
assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram,
criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.78
Como visto anteriormente, o Estado brasileiro optou pelo
disciplinamento protetivo, na seara das relações familiares e privadas, por meio
de edição de microssistemas separados, mas que se interligam, através do
comando constitucional, em análise. Assim, inicialmente, o Estatuto da Criança e
do Adolescente surgiu como instrumento, também, para a proteção dos membros
juvenis que integram o núcleo familiar. Posteriormente, o Estatuto dos Idosos
trouxe ao ordenamento jurídico pátrio mecanismos de proteção deste segmento
da sociedade, também, para a proteção contra as diversas formas de violência
doméstica. E, por fim, a Lei Maria da Penha encerra a edição de mecanismos
aptos à proteção do ser humano do sexo feminino, nas relações intrafamiliares.
De outro lado, há que se destacar que o fenômeno da
violência doméstica não pode ser atribuído exclusivamente à mulher, na situação
de vítima. Os repertórios de casos tramitantes na Justiça brasileira registram,
embora em número infinitamente menor, alguns casos de agressões domésticas
praticadas por mulheres contra homens, cuja situação concreta demonstrará se
se trata de parte vulnerável da relação, caso em que, este também merecerá a
proteção legal, na medida em que igualmente detém o direito fundamental ao
convívio familiar sem violência, não se afigurando legítima e constitucional a
adoção da doutrina da proteção unilateral, para a proteção somente da mulher,
em caso de violência doméstica.
Em análise a este aspecto da Lei Maria da Penha, LEAL
destaca que:
78 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm. Acesso em 17/06/2009.
73
Cremos que o mais grave está no olhar preconceituoso da Lei Maria da Penha, que somente enxerga a violência doméstica e familiar cometida pelo homem. Os autores (ou autoras) da lei não viram que os tempos mudaram. [...]. Não devemos esquecer que, também, são registrados casos de violência doméstica praticadas pela mulher. E a lei, em sua miopia resultante da adoção da doutrina da proteção unilateral, só protege a mulher, mesmo que esta – com toda a fragilidade e delicadeza própria de seu sexo – eventualmente possa estar do outro lado da relação de violência79.
Neste contexto, não restam dúvidas de que os mecanismos
protetivos constantes da Lei Maria da Penha, para guardar pertinência com o
dispositivo constante do artigo 226, § 8º, da Constituição da República Federativa
do Brasil, podem e devem ser estendidos a todos os membros integrantes da
unidade familiar, vítimas de violência doméstica. Assim, não somente a mulher
estará acobertada pelo manto protetivo da Lei Maria da Penha, mas também as
crianças os idosos e os adultos, independentemente do sexo, seja em
decorrência da proteção advir de outros sistemas normativos ou pela evidência
concreta da situação apresentada em juízo, demonstrar a vulnerabilidade de
qualquer um dos membros familiares, a merecer a proteção legal.
Relativamente à questão constitucional deste aspecto, tem-
se que se afigura plenamente possível a preservação da constitucionalidade da
Lei Maria da Penha, tão-somente com a extensão do seu feixe de proteção deste
Estatuto aos demais membros familiares, acima indicados, por meio da técnica da
interpretação conforme a constituição, sem redução de texto, também conhecida
por sentenças aditivas, que passa a ser objeto de análise, a seguir.
2.6.4 A POSSIBILIDADE DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCI ONALIDADE
DA LEI MARIA DA PENHA SEM REDUÇÃO DE TEXTO OU SENTE NÇAS
ADITIVAS
Para compatibilizar os dispositivos constantes da Lei Maria
da Penha com o comando constitucional previsto no artigo 226, § 8º da
79 LEAL, João José. Violência doméstica contra a mulher: breves comentários à Lei nº
11.340/2006. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n.º 1214, 28 out. 2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9096. Acesso em: 02 jun. 2009.
74
Constituição da República Federativa do Brasil, com o fim de preservar a
constitucionalidade da lei, é possível os órgãos do Poder Judiciário valerem-se da
técnica da interpretração da Lei Maria da Penha conforme a constituição, sem
redução de texto, também conhecida por sentenças aditivas.
No âmbito do constitucionalismo moderno, desde a segunda
metade do século passado, tem-se desenvolvido novas técnicas e métodos
interpretativos constitucionais, por meio dos quais se afigura possível aos Juízes
e Tribunais resolverem situações de inconstitucinalidade de atos normativos, com
vistas a preservar a ordem política e jurídica da Lei Maior. Uma dessas técnicas
se trata da interpretação conforme a constituição.
Na dicção de CANOTILHO:
[...] a interpretação conforme a constituição só é legítima quando existe um espaço de decisão (=espaço de interpretação) aberto a várias propostas interpretativas, umas em conformidade com a constituição e que devem ser preferidas, e outras em desconformidade com ela.80
A finalidade desse método hermenêutico é possibilitar que
as leis ou atos normativos, que de alguma forma estejam em descompasso com a
norma fundamental, sejam mantidos no ordenamento jurídico, declarando-se sua
constitucionalidade, porém, vinculada à interpretação proclamada pelo órgão
judicante que seja compatível com o texto constitucional.
Conforme MORAES:
Para que se obtenha uma interpretação conforme a Constituição o intérprete poderá declarar a inconstitucionalidade parcial do texto impugnado, no que se denomina interpretação conforme com redução de texto, ou ainda, conceder ou excluir da norma impugnada determinada interpretação, a fim de compatibilizá-la
80 CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra
ed, 1991. p. 136.
75
com o texto constitucional. Essa hipótese é denominada interpretação conforme sem redução de texto81.
No caso da Lei Maria da Penha, mostra-se plenamente
possível a adoção da técnica da interpretação constitucional conforme a
constituição, sem redução de texto, na medida em que os instrumentos desta lei
possam ser aplicados não somente em favor das mulheres, vítimas de violência
doméstica, mas também estendida a compreensão semântica da lei para
abranger crianças, idosos e adultos, independentemente do sexo, que se
encontrem em situação de vulnerabilidade, enquanto vítimas de violência
intrafamiliar, ampliando-se, desta forma, o alcance valorativo da expressão
“violência doméstica contra a mulher” para “violência doméstica contra as
pessoas”, para o fim de adequar o conteúdo da Lei Maria da Penha à previsão do
artigo 226, § 8º da Constituição da República Federativa do Brasil.
Em sede jurisprudencial, consta decisão prolatada pelo
Tribunal de Justiça de Minas Gerais, no sentido ora defendido neste trabalho, nos
seguintes termos:
“CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA - LEI MARIA DA PENHA (LEI 11.340/06) - JUIZADO ESPECIAL E JUSTIÇA COMUM - ART. 33 E ART. 41 DA LEI 11.340/06 - INCONSTITUCIONALIDADE - INEXISTÊNCIA - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. DISCRIMINAÇÃO INCONSTITUCIONAL - TUTELA LEGÍTIMA - APLICAÇÃO GERAL - SOLUÇÃO. Se a norma constitucional garante não apenas a igualdade de direitos entre homens e mulheres (art. 5º, I), mas cria a necessidade de o Estado coibir a violência no âmbito de relações familiares (art. 226, § 8º) e confere competência legislativa à União para legislar sobre direito penal e processual penal (no art. 22, I), não há dúvida de que a Lei Federal 11.340/06 deve ser interpretada afastando-se a discriminação criada e não negando vigência à norma por inconstitucionalidade que é facilmente superada pelo só afastamento da condição pessoal restritiva de sua aplicação às mulheres, estendendo-se os efeitos da norma em questão a quaisquer indivíduos que estejam em idêntica situação de violência familiar, ou doméstica, sejam eles homens, mulheres ou
81 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 44.
76
crianças. Competência do Juízo Suscitante. (TJMG, 1ª Câmara Criminal, Conflito Negativo de Jurisdição nº 1.0000.07.458416-0/000, Rel. Des. Judimar Biber, Acórdão publicado em 28/08/2007)82.
Portanto, no trato da questão da constitucionalidade da Lei
Maria da Penha, tem-se que, pelos delineamentos formulados, afigura-se
plenamente possível a adoção de medidas processuais diferenciadas, quanto à
discriminação com base no gênero, objetivando a proteção da mulher, vítima de
violência doméstica, por meio da adoção de ação afirmativa, no âmbito legislativo,
na busca da consecução da igualdade material do princípio da igualdade, tendo
em conta as peculiaridades e discriminações historicamente impostas às
mulheres.
De outro lado, no caso de entendimento de que a Lei Maria
da Penha afronta o princípio da igualdade, esta circunstância mostra-se possível
de ser superada, por meio da adoção da técnica de interpretação conforme a
constituição, sem redução de texto, para o fim de abarcar os demais membros
integrantes da unidade familiar, vítimas de violência doméstica, notadamente
crianças, adolescentes, idosos e adultos, independentemente do sexo, tendo em
conta o sistema de proteção específico para estes grupos sociais.
Com efeito, a aplicação sistemática do ordenamento jurídico
brasileiro permite concluir que o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto
dos Idosos e a Lei Maria da Penha constituem-se expressão do fenômeno da
judicialização das relações privadas, os quais se interligam para o fim de formar
uma teia de proteção a estes grupos sociais, com vistas a dar efetividade ao
princípio da dignidade humana e aos direitos fundamentais.
Nesta perspectiva, todos os componentes da unidade
familiar devem ter, não somente o direito ao convívio livre de violência, mas
também, o direito à convivência com os demais integrantes deste núcleo, de
82 TJMG, 1ª Câmara Criminal, Conflito Negativo de Jurisdição nº 1.0000.07.458416-0/000, Rel.
Des. Judimar Biber, Acórdão publicado em 28/08/2007. Disponível em: http://www.tjmg.gov.br. Acesso em 17/06/2009.
77
forma fraterna, afetiva e solidária, fortalecendo os vínculos do amor, da ética e da
moral, que devem permear as relações no âmbito da entidade familiar.
Com base na utilização da noção de cuidado como valor
jurídico, pode-se afirmar que o zelo no trato das complexas relações familiares
constitui-se em antídoto eficaz para a superação das crises domésticas,
porquanto desvenda possibilidades de solucionamentos internos, pelo próprio
grupo social envolvido, evitando-se a indevida intervenção penal em grande
número de casos, em que seja plenamente palpável a superação de eventual
trauma, por meio de mecanismos consensuais.
Analisadas as raízes da violência sob os aspectos históricos
e organizacionais da sociedade brasileira, bem como investigado o fenômeno da
violência doméstica contra a mulher, assim como os dispositivos da Lei Maria da
Penha, inclusive quanto à questão da constitucionalidade, impõe-se, doravante,
perquirir políticas jurídico-criminais adequadas para o tratamento processual dos
crimes relacionados à violência doméstica.
Neste sentido, a investigação acerca da possibilidade de
adoção de mecanismos consensuais do Direito Penal brasileiro, para o controle
criminal da violência doméstica, especialmente a utilização de institutos previstos
no microssistema dos Juizados Especiais Criminais, será objeto do próximo
capítulo.
78
CAPÍTULO 3
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS
3.1 NOTAS INTRODUTÓRIAS
No presente capítulo, passa-se a abordar a sistemática
processual instituída no Brasil, através da introdução no sistema legal, dos
Juizados Especiais Criminais, pelos quais foram adotados mecanismos jurídicos
específicos ao tratamento dos crimes de pequeno e médio potencial ofensivo.
Neste sentido, impõe-se efetuar uma análise do fenômeno
da violência doméstica e familiar na legislação processual brasileira, em que se
procura enfocar esta problemática por meio de uma visão sistêmica do
ordenamento jurídico e analisar os fundamentos dos institutos alternativos à
aplicação de penas privativas de liberdade, no Brasil.
A partir das observações destes institutos alternativos à
prisão, passa-se a formular investigações quanto à aplicabilidade ou não nos
procedimentos instaurados para a coibição da violência doméstica e familiar, no
Brasil, sob o enfoque da política jurídica do controle penal mínimo, com vistas a
apontar soluções que se mostrem adequadas no trato da política criminal, no
combate a estas espécies delituosas.
3.2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PENAL E PROCESSUA L PENAL
ANTECEDENTES DA LEI N.º 9.099/95.
O Direito Penal e Processual Penal, no mundo e no Brasil
não é diferente, ao longo dos tempos têm passado por inúmeras evoluções,
transformações e cotidianas adaptações, consentâneas com o aprimoramento
político e organizacional dos povos.
79
Durante o surgimento das incipientes sociedades primitivas,
que datam de aproximadamente 6.000 a.C., constata-se que estas organizações
eram regidas por singelos sistemas de normas penais restritas à função de
proteção às tradições, superstições e costumes em que os grupos misticamente
eram envolvido. Já neste período, percebe-se que as normas repressivas
possuíam nítido interesse coletivo, afastando-se da mera vingança privada, na
medida em que o interesse maior era a proteção dos valores grupais.
Posteriormente, com o aprimoramento das sociedades
primitivas, surgem dificuldades advindas complexidade social, quando se iniciam
os primeiros contornos de normas repressivas tendentes à proteção da vingança
privada, que pode ser conceituada como a reação do indivíduo ou seu grupo
contra membros de outros grupos porquanto as repressões são exercidas pelos
ofendidos como resposta ao ofensor. 83
A concepção de vingança privada das normas repressivas
perpassou a existência de inúmeras sociedades civilizatórias primitivas, nas quais
a idéia de castigo estava intimamente ligada à resposta ao ato praticado pelo
agressor na mesma medida da ofensa, representada por penas cruéis,
desumanas e irracionais.
No período clássico, a civilização grega passou de uma
concepção do Direito Penal repressor, baseado em razões religiosas e exercido
por sacerdotes, para um modelo de justiça criminal pautada em valores morais,
com ênfase na função preventiva da pena criminal, assentada na idéia de
expiação e retribuição da pena.
Já, no Império Romano, segundo GIORDANI:
[...] o Direito Penal passou por um período de caráter religioso, no qual havia uma preocupação em laicizar o sistema repressivo. Aqui, afigura-se importante a dicotomia havida, entre interesse público na persecução criminal, quando se puniam atos
83 LEAL, João José. Direito Penal geral. 3. ed. Florianópolis: OAB/SC, 2004. p. 65.
80
atentatórios à segurança do Estado Romano, cabendo, por isso, a repressão contra o delinqüente.84
De outro lado, havia o interesse privado na perquirição
delituosa, situação em que o agressor ficava sujeito à repressão do ofendido ou
de seus familiares, modalidade na qual era concedida às partes a faculdade da
conciliação, surgindo, assim, as raízes de uma justiça penal consensual, pautada
no respeito aos interesses da vítima, nos casos delituosos em que não afetavam
a segurança do Estado, mas sim era relativo à esfera privada do ofendido.
A queda do Império Romano deu lugar ao período da Idade
Média, no qual se instaurou o Direito Penal Medieval, a partir do ano de 476 d.C,
perdurando até o Século XVIII. Nesta época, o Direito Penal reassume uma
concepção punitiva, em que a pena detinha a função meramente retributiva,
baseada, sobremaneira, nos aspectos religiosos, mas em desprezo dos mais
elementares princípios cristãos. Caracterizou-se por um período de crueldade das
penas, brutalidade das punições, que se mostravam impiedosas e implacáveis
contra os pobres e oprimidos.
Pontuando sobre este período medieval, LEAL pondera que:
[...] no final desse período, o Direito Penal passa a ser expressão do Estado absolutista, autoritário e cruel, desumano e implacável com os infratores pertencentes às classes populares, mas assegurando os privilégios e protegendo os interesses da aristocracia e do clero”.85
Passado o período das trevas, na segunda metade do
século XVIII, floresceram os ideais humanistas no campo político-filosófico, com
sensíveis reflexos na seara criminal. Passou-se a repudiar o uso abusivo das
penas cruéis, dos castigos corporais, dos suplícios, questionando-se, inclusive, a
pena de morte.
84 GIORDANI, Mário Curtis. Direito Penal romano. Rio de Janeiro: Forense, 1982. p. 17.
85 LEAL, João José. Direito Penal geral. 3. ed. Florianópolis: OAB/SC, 2004. p. 75.
81
Destacam-se as idéias de BECCARIA, que sintetizam o
pensamento deste período, tendo já em 1.764 defendido que para que toda pena
não seja a violência de um ou de muitos contra o cidadão particular, devendo,
porém, ser essencialmente pública, rápida, necessária, a mínima dentre as
possíveis, em dadas circunstâncias, proporcional aos delitos e ditadas pelas
leis.86
Nota-se, portanto, a partir deste momento, introdução de
critérios norteadores da ciência penal, tais como: a legalidade, a
proporcionalidade entre o crime e a pena, bem como a rapidez na imposição da
reprimenda, os quais se constituíram em legitimação da justiça criminal e de
utilidade na aplicação da sanção penal, concedendo ao Direito Penal elementos
humanitários, consentâneos com os ideais da política liberal burguesa, presentes
nos sistemas penais atuais, vigentes no mundo ocidental.
Como se vê, a partir do período das grandes revoluções até
a introdução dos ideais do Estado Contemporâneo, as ciências penais
assentaram-se sobre os fundamentos da Escola Clássica, iluminados pelos
princípios jurídicos e ideológicos sedimentados pelo movimento político-filosófico
liberal burguês do século XVIII, dotando-as de um sofisticado sistema composto
de princípios e regras, que influenciaram as sociedades ocidentais, dentre as
quais o Brasil durante este período.
Nesta época, surgem as primeiras prisões, precursoras das
atuais penitenciárias: A Casa de Correção de Bridewell, criada em Londres, em
1552; A Casa do Trabalho de Amsterdam, em 1595; O Hospício de São Miguel,
em Roma, em 1.703; A Casa da Correção de Gand, na Bélgica, em 1.775. Estes
estabelecimentos punitivos ensejaram a formulação do modelo prisional
conhecido por penitenciarismo, que passou a se constituir no principal sistema
punitivo, nos séculos seguintes, alcançando os dias atuais.
Ressalte-se que no curso da evolução histórica do Direito
Penal e Processual Penal, as penas cruéis, de trabalho forçado, de banimento e
86 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de J. Cretella Jr e Agnes Cretella. 3. ed.
São Paulo: RT, 2006. p. 119.
82
de morte, paulatinamente passaram a dar lugar à pena de prisão, que tem
ocupado posição central nos modelos penitenciaristas de controle penal.
Entretanto, nas últimas décadas, as sociedades ocidentais
que adotam o controle penal calcado unicamente na pena prisional passaram a
ser questionadas. Estudos realizados nas diversas áreas do conhecimento,
especialmente nas Ciências Criminais, têm demonstrado relatos e experiências
que evidenciam a ineficácia do sistema penitenciário, cuja prisão ocupa posição
de destaque, como instrumento de reabilitação social e moral do delinqüente.
No Brasil, esta situação de ineficácia não difere, porquanto a
falência do sistema penitenciário como modelo de ressocialização do condenado
à pena prisional é fato notório na sociedade.
Neste sentido, LEAL assevera:
Não é preciso ser estudioso do assunto para verificar que a fotografia de nosso sistema penitenciário revela uma imagem verdadeiramente sinistra, profundamente trágica, formidavelmente dantesca: ociosidade, hiperlotação, fome, miséria, homossexualismo, traição, violência, maus tratos, castigos, doenças contagiosas, mortes e assassinatos em nome da lei e da ordem, aviltamento, despersonalização. Este é o triste e doloroso quadro das prisões brasileiras87.
Inexorável que frente à falência da prisão como modelo de
ressocialização no sistema de controle penal, atualmente é largamente defendida
a idéia da utilização da pena prisional, somente aos crimes excepcionais, como
medida de extrema necessidade e em situações de derradeiro recurso repressivo.
No lugar da pena prisional, como modelo sancionador dos
delitos de pequena e média lesividade, os quais não ofendem bens jurídicos
fundamentais, hodiernamente, está sedimentada a concepção da necessidade de
implementação de medidas alternativas à prisão, sejam elas de prestação de
87 LEAL, João José. Penitenciarismo brasileiro, sombra sinistra da sociedade desajustada em que
vivemos. Artigo publicado na Revista dos Tribunais n.º 706. São Paulo: RT, agosto de 1994. p. 433.
83
serviços à comunidade ou órgãos públicos, de perda de bens, de prestação
pecuniária, de limitação de direitos. Estas medidas podem ser impostas ao
agressor por meio de substituição da pena privativa de liberdade, por suspensão
condicional da pena ou, ainda, por meio de transação penal.
A humanização das penas criminais insere-se neste
contexto, na medida em que a noção de cidadania passou a ganhar maior relevo,
com o desenvolvimento dos ideais de valorização dos direitos humanos,
apresentando-se como um marco, a Declaração dos Direitos dos Homens e
Cidadãos, em 1789, a qual teve grande influência dos Diplomas advindos dos
Estados Unidos da América, representados pelas Declarações de Virgínia,
Filadélfia e a própria Declaração de Independência Norte Americana, bem como a
Declaração de Direitos da Inglaterra, conhecida por Bill of Rights, em 1.689.
Posteriormente, a Declaração dos Direitos Humanos,
aprovada pela Organização das Nações Unidas – ONU, em 1.948, consagrou o
princípio de que ninguém será submetido à tortura ou punições cruéis,
desumanas ou degradantes, inaugurando uma nova fase no tratamento do
controle penal, com a eliminação de penas atentatórias à dignidade do ser
humano.
No intuito de se buscar alternativas ao modelo
penitenciarista, a ONU passou a tratar do tema, ocasião em que se manifestou no
sentido da necessidade da redução da população carcerária, bem como da
imperiosidade na busca de soluções alternativas às penas prisionais, com vistas a
proporcionar a ressocialização do condenado.
Fruto destes trabalhos, foi a edição da Resolução n.º 45/110,
em 14/12/1.990, conhecida por Regras de Tóquio, que recomendou a adoção
pelos países signatários de elaboração de medidas não-privativas de liberdade,
como novo modelo de controle penal.
Como se vê, as medidas alternativas à prisão acabaram por
mitigar sobremaneira o modelo penitenciarista, então dominante, sendo
introduzidas, no Brasil, principalmente por meio da Reforma do Código Penal,
84
implementada pelas Leis n.º 7.209/84 e 9.714/98, bem como pela criação de um
microssistema próprio, destinado a regular o processamento dos delitos de menor
potencialidade lesiva, através da edição da Lei n.º 9.099/95, que instituiu os
Juizados Especiais Criminais, no Brasil, os quais se constituem em objeto de
estudo, a seguir.
3.3 MICROSSISTEMA DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS E CRIMINAIS NO
BRASIL
A Lei que instituiu os Juizados Especiais - Lei n.º 9.099, de
26 de setembro de 1.995, insere-se no contexto de mudança de rota no processo
de transição da democracia no Brasil, norteado pela introdução das exigências do
mercado globalizado neste País, como fator determinante à readeqüação da vida
em sociedade, com notórios reflexos na amplitude das demandas inerentes à
cidadania, junto ao Poder Judiciário.
Não é por outro motivo que, no contexto de sociedade de
economia globalizada, Antoine Garapon defende a idéia de que a justiça se
torna um lugar em que se exige a realização da democracia.88
Fruto de iniciativas pioneiras em alguns Estados da
Federação, com destaque para a instalação do Conselho de Conciliação no
Estado do Rio Grande do Sul, em 198289, que pelo sucesso obtido foram
replicados em alguns outros Estados, notadamente em Santa Catarina, o qual,
inclusive, foi o pioneiro na criação de Turma Recursal, em 199190, inaugurando-se
no Brasil o modelo de justiça consensual, em contraposição à justiça conflitiva,
então dominante neste país.
Quanto ao conceito de justiça conflitiva e consensual,
importante a lição de ASSIS, para quem:
88 GARAPON, Antoine. Le gardien de promesses. Paris: Odile Jacob, 1.996. p. 45.
89 GIACOMOLLI, Nereu José. Juizados Especiais Crimiais. Lei n. 9.099/95. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 23.
90 ABREU, Pedro Manoel. Acesso à Justiça e Juizados Especiais. o desafio histórico da consolidação de uma justiça cidadã no Brasil. Florianópolis: Fundação Boitex, 2004, p. 27.
85
Entende-se por justiça conflitiva o modelo de justiça marcado pela contrariedade e antagonismo, pela persecução rigorosa de todos os delitos e pela aplicação exemplar das penas, tendo por objetivo a prevenção e a repressão da criminalidade. Já, justiça Consensual consiste na resolução dos litígios penais mediante a autonomia da vontade manifestada pelo autor da infração e do titular do direito de ação que, nos termos da lei, resolvem transigir, sob vigilância judiciária, com relação aos direitos que detêm na relação jurídica decorrente da prática de um ilícito penal de menor ou de médio potencial ofensivo.91
Embora incipiente, estas iniciativas chamaram a atenção do
Governo Federal que, por meio do então Ministro Interino da Desburocratização,
João Geraldo Piquet Carneiro, acompanhado pelo Desembargador do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo, Kazuo Watanabe, passaram a empreender
estudos acerca da Justiça Penal Consensuada, sendo um marco importante, a
visita empreendida na Small Claims Court de Nova Iorque, nos Estados Unidos da
América, em 1980.92
Constatou-se uma grande experiência internacional de
renovação do sistema de prestação jurisdicional, servindo de inspiração para os
Juizados Especiais brasileiros, porquanto vislumbrou-se nesta experiência
características importantes que mais tarde passariam a integrar o sistema de
Justiça Consensual no Brasil, tais como a faculdade para escolha do
procedimento, pelo postulante, entre o Juizado de Pequenas Causas e a Corte
Civil Comum; a proibição ao acesso de pessoas jurídicas como demandantes; a
não obrigatoriedade de representação por advogados; o caráter irrevogável da
arbitragem, além da informalidade e da oralidade como princípios do rito
processual.
Em decorrência destes estudos e experiências nas praxis
judiciárias brasileira, em 1984, foi aprovada pelo Congresso Nacional a Lei n.º
7.244, instituindo-se os chamados Juizados de Pequenas Causas, cuja
91 ASSIS, João Francisco de. Juizados Especiais Criminais. Justiça penal consensual e medidas
despenalizadoras. Curitiba: Juruá, 2006. p. 15.
92 Dados extraídos, a partir da consulta à obra: VIANNA, Luiz Werneck, et alii. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 172-173.
86
competência restringia-se aos julgamentos no âmbito cível e em demandas
limitadas a vinte salários mínimos, cujo procedimento direcionava sobremaneira à
conciliação entre as partes.
O movimento em defesa da justiça consensual, embora
solidificado em diversos países, notadamente na Europa e na América do Norte,
desde os anos 1970, no Brasil, somente na década de 1980, é que o movimento
ganha relevo, culminando, inclusive, com os debates havidos, quando da
elaboração da atual Constituição Federal, promulgada em 05 de outubro de 1988.
Assim, os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, como
expressão máxima da política jurídica de implantação de um modelo de justiça
consensual, calcado em meios conciliatórios de resolução de conflitos, foi erigido
em nível constitucional, na forma do artigo 98, Inciso I, da Constituição Federal de
1.98893.
Com a constitucionalização dos Juizados Especiais Cíveis e
Criminais, no Brasil, ampliaram-se os debates em torno da implantação de uma
justiça penal consensual, porquanto no contexto de inflação legislativa,
notadamente na área penal, com a crescente judicialização das relações sociais,
especialmente as decorrentes das relações privadas, como se dá no caso de
violência doméstica e familiar contra a mulher, focalizou-se a atenção para três
técnicas distintas, tratadas no plano internacional, a saber: a desjudicialização, a
despenalização e a descriminação.
Para tais conceitos, importante a lição de Luiz Werneck
Vianna:
A desjudicialização passa a valorizar a técnica de mediação, seja para produzir a reparação do dano, seja como forma de
93 Assim dispõe o artigo 98 da Constituição: “A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os
Estados criarão: I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau”. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm. Acesso em 19/06/2009.
87
conciliação, evitando, assim, o isolamento e a estigmatização do desviante. Se a desjudicialização ainda não pôde manter bem demarcado o caráter infracional da ação, a despenalização retiraria determinados fatos do campo penal tradicional, sem excluir, contudo, a idéia de sanção. Já, à descriminação, a crítica à “inflação penal” introduz conseqüências ainda mais radicais, uma vez que declara lícitos alguns comportamentos tidos, tradicionalmente, como desviantes, não prevendo para estes nenhum tipo de sanção. Seu domínio, todavia, tem-se mantido restrito a condutas freqüentemente reprimidas.94
No caso brasileiro, os trabalhos operados no processo
legislativo culminaram com a criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais,
por meio da aprovação da Lei n.º 9.099/95, trazendo em seu bojo diversos
institutos jurídicos inovadores na seara penal, intimamente ligados à idéia de
desjudicialização e descriminação de condutas de pequena e média ofensividade
aos bens jurídico-penais, que o sistema pretende dar proteção.
Iluminados pelos princípios da oralidade, simplicidade,
informalidade, economia processual e celeridade, almejando sempre a
possibilidade de conciliação ou transação penal, os Juizados Especiais Criminais
constituem-se em um microssistema próprio dentro do ordenamento jurídico, cujo
procedimento peculiar preconizado na Lei n.º 9.099/95, em síntese é a que segue.
A autoridade policial, com a ciência da prática de uma
contravenção penal ou crime de menor potencial ofensivo, lavrará termo
circunstanciado e o encaminhará incontinenti ao Juizado Criminal, juntamente
com o autor do fato e a vítima, os quais participarão de uma audiência preliminar
com o juiz de direito que, por sua vez, os encaminhará à conciliação.
Tratando-se de crime de ação penal pública condicionada à
representação, como se dá nos casos de ameaça e lesões corporais leves ou
culposas, dentre outros ou de crime de ação penal privada, a exemplo do crime
de dano e exercício arbitrário das próprias razões, a composição cível é possível
94 VIANNA, Luiz Werneck, et alii. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio
de Janeiro: Ed. Revan, 1999. p. 178-179.
88
desde que haja a renúncia da vítima, declarando o juiz, nesse caso, extinta a
punibilidade e terminado o feito.
Caso a composição não seja possível ou caso sejam crimes
de ação penal pública incondicionada o feito passará à segunda fase, a
transação penal. Nela, o promotor de Justiça proporá ao autor do fato a aplicação
de pena mais leve, alternativa, restritiva de direitos ou pecuniária; e à defesa, a
aceitação da proposta, com o encerramento do processo. Caso o réu aceite, o juiz
poderá homologar o acordo, fixando a pena alternativa. Sendo frustrada essa via,
passa-se, então, à audiência de instrução e julgamento.
O acordo entre as partes é possível a qualquer momento, já
que é inerente ao espírito da lei a conciliação entre a acusação e a defesa.
Portanto, há três tipos de decisão final: a sentença homologatória da composição
dos danos civis; a sentença homologatória da proposta da aplicação imediata de
pena alternativa; e a sentença proferida na ação penal propriamente dita.
A comunidade jurídica brasileira recebeu com entusiasmo a
criação dos Juizados Especiais Criminais, porquanto se iniciou, neste país a
implementação de um novo paradigma de justiça, representado pela justiça
consensual, com maior legitimação social, possibilitando o acesso ao Poder
Judiciário de uma camada da população que, até então, distanciava-se dos
serviços do Estado, ante a impossibilidade de a justiça tradicional, com seu
aparato disposto a atender demandas com nítido caráter conflitivo, evidenciando,
uma litigiosidade contida.
O então deputado Federal Plínio Salgado de Arruda, ao
pronunciar-se sobre a necessidade da criação dos Juizados Especiais anotou
que:
Temos no Brasil uma série de litígios que não chegam a juízo, dada a impossibilidade de essas pessoas, apesar de sofrerem lesões no seu direito, recorrerem à Justiça, dada a dificuldade de colocar em ação a máquina do Judiciário. O que se pretende é aproximar o Judiciário do povo, porque essa litigiosidade contida,
89
que não aparece no juízo, aparece, depois, na violência, na contravenção, na criminalidade, na dificuldade da vida urbana.95
De fato, esta litigiosidade contida mencionada pelo
parlamentar, refere-se às ofensas a bem jurídicos penais de menor gravidade,
bem como lesões a direitos na seara cível, em geral sofridos pelas camadas
economicamente menos favorecidas da população brasileira, que sequer
chegavam ao conhecimento do Poder Judiciário, ante os vetustos mecanismos
procedimentais que impediam a apreciação das demandas desta natureza.
Este mesmo fenômeno pode ser observado na violência
doméstica e familiar contra as mulheres, eis que, por se tratarem de ofensas a
direitos cometidos, ordinariamente, na esfera da relação privada, o Estado sequer
tinha conhecimento da dimensão deste mal, dificultando, sobremaneira, a
formulação de políticas públicas, notadamente, no âmbito do Poder Judiciário
para atender tais demandas.
Neste particular, afigura-se fundamental à implementação da
Lei Maria da Penha, a adoção de política jurídica, no âmbito do Poder Judiciário,
objetivando a respeitar o juízo de conveniência da vítima, em situação de
violência doméstica, no que tange ao processamento ou não de seu agressor,
afigurando-se esta, talvez uma das maiores medidas de proteção à mulher nesta
situação, embora não haja regramento expresso neste sentido.
O risco de se afastar por completo todos os instrumentos
integrantes do sistema dos Juizados Especiais Criminais, especialmente a
exigência da representação da vítima, nos casos de crimes de lesões corporais
leves ou culposas decorrentes de violência doméstica, é o de ser conivente com o
desproporcional agigantamento do Estado frente ao indivíduo, arvorando-se no
direito de processar criminalmente o agressor, independentemente do interesse
da vítima.
Este proceder, além de se constituir num evidente excesso
de judicialização social, com a desnecessária intervenção do Estado na esfera
95 BRASIL. Diário da Assembléia Nacional Constituinte, abril de 1988, p. 9008.
90
privada, representa notório retrocesso do ponto de vista da legitimação social do
Poder Judiciário, na medida em que propicia que cada vez mais as vítimas optem
pelo silêncio e deixem de levar ao conhecimento das autoridades públicas o triste
fenômeno da violência doméstica, em face da certeza do processamento criminal
do agressor, quando a vítima não mais tem interesse na persecução criminal, seja
pelo restabelecimento da paz no seio do lar conjugal, seja pelo rompimento
harmonioso desta sociedade.
Comentando os trâmites dos Juizados Especiais Criminais,
VIANNA salienta que:
[...] está em jogo, necessariamente, um prejuízo moral a um indivíduo, a um grupo ou à coletividade, que precisa ser reparado. Como lidam com delitos de menor ofensividade, chegam ali os desdobramentos da violência cotidiana, fruto de uma sociabilidade esgarçada, que expõe a conflitos vizinhos, amigos, conhecidos, cônjuges e parentes. Vendo-se desse ângulo, nos Juizados Criminais tem-se uma intervenção direta sobre a sociabilidade, interpondo-se o juiz nos conflitos entre as partes, podendo ser uma presença apazi-guadora, empenhada em uma engenharia bem mais orientada para o plano da recomposição ético-moral do que para o da punição96.
Para o objetivo que se presta a presente pesquisa, impõe-se
ressaltar a importância do sistema dos Juizados Especiais Criminais, para a
legitimação do Poder Judiciário, especialmente ante a capilaridade social que este
sistema atinge, alçando o Juiz à função de fomentador da realização da paz
social, principalmente nos lares, fim último do Direito.
3.4 O CRIME DE LESÕES CORPORAIS LEVES E CULPOSAS NO CONTEXTO
DA LEI MARIA DA PENHA
O tópico presente refere-se ao ponto central da política
jurídica a ser implementada no âmbito da Lei Maria da Penha, porquanto se
afigura enorme descompasso entre algumas decisões judiciais e entendimentos
96 VIANNA, Luiz Werneck, et alii. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio
de Janeiro: Revan, 1999. p. 255.
91
doutrinários, com os objetivos de promover os direitos humanos da mulher, por
meio de valorização dos seus interesses, os quais motivaram a criação da Lei
Maria da Penha.
Passa-se a abordar, doravante, as controvérsias acerca da
natureza da ação penal aos crimes de lesões corporais, de natureza leves e
culposas cometidos no âmbito de incidência da Lei Maria da Penha.
3.4.1 NATUREZA DA AÇÃO PENAL
Com o advento da Lei n.º 11.340/2006, conhecida por Lei
Maria da Penha, tanto os autores de obras sobre o tema, quanto Juízes e
Tribunais brasileiros passaram a discutir acerca da natureza da ação penal, em
crimes de lesão corporal, praticados no âmbito das relações domésticas e
familiares, havendo enormes divergências no trato da ação penal no crime em
análise, tendo alguns defendido que se trata de ação penal pública
incondicionada e outros apresentado argumentos em favor de que se trata de
ação penal pública condicionada à representação da vítima.
O ponto nevrálgico da discussão reside na determinação de
que, em regra, a ação penal é pública incondicionada, reservando-se os casos de
ação penal privada ou pública condicionada à representação, somente quando a
lei expressamente determinar.97
No crime de lesões corporais, tipificado no artigo 129 do
Código Penal98, é assente que ação penal era pública incondicionada, ante a
inexistência de ressalva legal, quanto à natureza da ação penal, havendo
unanimidade quanto a esta conclusão.
97 Neste sentido é a disposição do artigo 100 do Código Penal: “A ação penal é pública, salvo
quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido. § 1º - A ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça”. BRASIL. Código Penal de 1940. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm. Acesso em 17/06/2009.
98 Assim dispõe o artigo 129 do Código Penal: “Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem”. BRASIL. Código Penal de 1940. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm. Acesso em 17/06/2009.
92
Ocorre que a Lei n.º 9.099/95, que implementou os Juizados
Especiais no Brasil, ao tratar da natureza da ação penal no crime de lesões
corporais leves e culposas, estabeleceu para tais casos, que a ação penal é
pública condicionada à representação99, exigindo, portanto, a manifestação da
vítima como condição de procedibilidade para a instauração da ação penal
tendente à imposição de pena para os casos de prática do crime de lesões
corporais leves ou culposas.
Portanto, com o advento da Lei dos Juizados Especiais
Criminais não restou dúvida de que o crime de lesões corporais leves ou culposas
passou a ser processado mediante ação penal pública condicionada à
representação, não havendo discordância, a este particular.
A celeuma efetivamente se instalou quando, por ocasião da
edição da Lei Maria da Penha, restou afastada a aplicação da Lei dos Juizados
Especiais, nos casos de crimes praticados no âmbito da violência doméstica e
familiar contra a mulher, independentemente da cominação da pena ao crime
cometido.100
Como se vê, nem a Lei dos Juizados Especiais Criminais
tampouco a Lei Maria da Penha procederam à alteração legislativa no bojo do
Código Penal, quanto à natureza da ação penal nos casos de apuração de crime
de lesões corporais, seja leve ou culposa, residindo aí, as raízes da polêmica
sobre o tema, a qual se mostra longe do consenso, seja no âmbito doutrinário,
seja no limite dos entendimentos proferidos nos mais diversos órgãos do Poder
Judiciário brasileiro.
99 O artigo 88 assim positiva: “Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial,
dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas”. BRASIL. Lei n.º 9.099/95. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9099.htm. acesso em 17/06/2009.
100 Nestes termos é o artigo 41 da Lei n.º 11.340/2006. “Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995”. LIMA FILHO, Altamiro de Araújo. Lei Maria da Penha comentada. Leme: Mundo Jurídico, 2007. p. 149.
93
3.4.2 ENTENDIMENTOS FAVORÁVEIS À AÇÃO PENAL PÚBLICA
INCONDICIONADA
Na doutrina, surgiram defensores de que a ação penal voltou
a ser pública incondicionada, nos casos de crimes de lesões corporais leves ou
culposas, praticadas contra a mulher, em situação de violência doméstica.
Neste sentido, é posição defendida por GONÇALVES e
LIMA, ao assim estatuírem:
A Lei não fez expressamente qualquer menção à natureza da ação penal nas infrações de que trata, no entanto, a interpretação sistemática do ordenamento jurídico, observando-se os princípios que regem a matéria, e os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, induz à conclusão de que tais crimes não mais dependem da vontade das vítimas para seu processamento. Significa dizer que os crimes de lesão corporal leve cometidos contra mulher na violência doméstica não dependem de representação, ou seja, voltaram a ser considerados de ação penal pública incondicionada101.
Neste mesmo sentido, BASTOS defende que a ação penal
nos crimes de lesões corporais leves e culposas regidas pelo âmbito de aplicação
da Lei Maria da Penha voltou a ser pública incondicionada.102
Idêntico posicionamento é defendido por GOMES e
BIANCHINI, fazendo ressalva, entretanto, aos limites de aplicação da ação penal
pública incondicionada, restringindo-a apenas aos crimes de lesões corporais
leves dolosas, praticadas sob a égide da Lei Maria da Penha, excluindo, assim, os
casos de lesões corporais culposas, pelos seguintes fundamentos:
101 GONÇALVES, Ana Paula Schwelm; LIMA, Fausto Rodrigues de. A lesão corporal na violência
doméstica: nova construção jurídica. Jus Navigandi. Teresina, ano 10, n. 1169, 13 set. 2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8912. Acesso em: 28 mar. 2009.
102 BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher – Lei “Maria da Penha”: alguns comentários. ADV Advocacia Dinâmica. Seleções Jurídicas, n.º 37. Rio de Janeiro: dez. 2006. p. 1-9.
94
A ação penal nos crimes de lesão corporal dolosa simples contra a mulher nas condições previstas na Lei 11.340/2006 passou a ser pública incondicionada (note-se que a mudança na natureza da ação só tem pertinência nos crimes dolosos, porque nestes tem relevância a situação da mulher como vítima; parece não ter nenhum sentido qualquer alteração nos crimes culposos, que não justificam o afastamento da exigência de representação).103
No âmbito do Poder Judiciário, diversos Juízes e Tribunais,
inicialmente, defenderam posicionamento idêntico ao acima aduzido, no sentido
de ser pública incondicionada a ação penal tendente a apurar a responsabilidade
penal em crime de lesões corporais leves ou culposas, praticado por meio de
violência doméstica ou familiar.
O Superior Tribunal de Justiça, ao exercer sua função de
guardião das leis federais no Brasil, destacando-se dentre suas competências, a
busca por uniformizações de entendimentos oriundos dos diversos tribunais
estaduais e federais pátrios, com vistas a formular um posicionamento unívoco no
trato de matérias relacionadas com leis federais, inclusive no que atine aos
dispositivos da Lei Federal n.º 11.340/2006, conhecida por Lei Maria da Penha, ao
se pronunciar sobre a matéria, em 12/08/2008, por ocasião do julgamento do
Habeas Corpus n.º 96.992, do Distrito Federal, relatado pela Ministra Jane Silva,
entendeu que a ação penal para o crime de lesões corporais leves, qualificada por
se tratar de violência doméstica, é pública incondicionada.104
103 GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Lei da violência contra a mulher: inaplicabilidade da lei
dos Juizados Criminais. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1192, 6 out. 2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9009. Acesso em: 28 mar. 2009.
104 O acórdão está possui a seguinte ementa: “LEI MARIA DA PENHA. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA.Trata-se de habeas corpus impetrado contra acórdão que deu provimento ao recurso em sentido estrito interposto pelo MP, determinando que a denúncia, anteriormente rejeitada pelo juiz de 1º grau, fosse recebida contra o paciente pela conduta de lesões corporais leves contra sua companheira, mesmo tendo ela se negado a representá-lo em audiência especialmente designada para tal finalidade, na presença do juiz, do representante do Parquet e de seu advogado. Com isso, a discussão foi no sentido de definir qual é a espécie de ação penal (pública incondicionada ou pública condicionada à representação) deverá ser manejada no caso de crime de lesão corporal leve qualificada, relacionada à violência doméstica, após o advento da Lei n. 11.340/2006. A Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, denegou a ordem, por entender que se trata de ação penal pública incondicionada, com apoio nos seguintes argumentos, dentre outros: 1) o art. 88 da Lei n. 9.099/1995 foi derrogado em relação à Lei Maria da Penha, em razão de o art. 41 deste diploma legal ter expressamente afastado a aplicação, por inteiro, daquela lei ao tipo
95
Posteriormente, em 03/02/2009, a mesma Sexta Turma do
Superior Tribunal de Justiça voltou a apreciar a matéria, quando da análise do
Habeas Corpus n.º 106.805-MS, também relatado pela Ministra Jane Silva,
confirmou o entendimento anterior, concluindo pelo afastamento da necessidade
de representação da vítima, em processo de crime de lesões corporais leves ou
culposas, em situação de violência doméstica105.
Como se percebe, os defensores da regência da ação penal
pública incondicionada aos crimes de lesões corporais leves, cometidos sob a
égide da Lei Maria da Penha, preconizam a dispensa da representação da vítima
para a atuação estatal, com embasamento legal no artigo 41 deste Estatuto,
aduzindo que esta Lei, ao tratar da representação e renúncia ao direito da vítima,
restringe-se aos casos envolvendo crimes de iniciativa da vítima para a
descrito no art. 129, § 9º, CP; 2) isso se deve ao fato de que as referidas leis possuem escopos diametralmente opostos. Enquanto a Lei dos Juizados Especiais busca evitar o início do processo penal, que poderá culminar em imposição de sanção ao agente, a Lei Maria da Penha procura punir com maior rigor o agressor que age às escondidas nos lares, pondo em risco a saúde de sua família; 3) a Lei n. 11.340/2006 procurou criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra as mulheres nos termos do § 8º do art. 226 e art. 227, ambos da CF/1988, daí não se poder falar em representação quando a lesão corporal culposa ou dolosa simples atingir a mulher, em casos de violência doméstica, familiar ou íntima; 4) ademais, até a nova redação do § 9º do art. 129 do CP, dada pelo art. 44 da Lei n. 11.340/2006, impondo pena máxima de três anos à lesão corporal leve qualificada praticada no âmbito familiar, corrobora a proibição da utilização do procedimento dos Juizados Especiais, afastando assim a exigência de representação da vítima. Ressalte-se que a divergência entendeu que a mesma Lei n. 11.340/2006, nos termos do art. 16, admite representação, bem como sua renúncia perante o juiz, em audiência especialmente designada para esse fim, antes do recebimento da denúncia, ouvido o Ministério Público”. (Superior Tribunal de Justiça – Sexta Turma - HC 96.992-DF, Rel. Min. Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ-MG, julgado em 12/8/2008. Disponível em http://www.stj.gov.br. Acesso em 17/06/2009).
105 “LEI MARIA DA PENHA. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. A Turma, por maioria, denegou a ordem, reafirmando que, em se tratando de lesões corporais leves e culposas praticadas no âmbito familiar contra a mulher, a ação é, necessariamente, pública incondicionada. Explicou a Min. Relatora que, em nome da proteção à família, preconizada pela CF/1988, e frente ao disposto no art. 88 da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), que afasta expressamente a aplicação da Lei n. 9.099/1995, os institutos despenalizadores e as medidas mais benéficas previstos nesta última lei não se aplicam aos casos de violência doméstica e independem de representação da vítima para a propositura da ação penal pelo MP nos casos de lesão corporal leve ou culposa. Ademais, a nova redação do § 9º do art. 129 do CP, feita pelo art. 44 da Lei n. 11.340/2006, impondo a pena máxima de três anos à lesão corporal qualificada praticada no âmbito familiar, proíbe a utilização do procedimento dos juizados especiais e, por mais um motivo, afasta a exigência de representação da vítima. Conclui que, nessas condições de procedibilidade da ação, compete ao MP, titular da ação penal, promovê-la. Sendo assim, despicienda, também, qualquer discussão da necessidade de designação de audiência para ratificação da representação, conforme pleiteava o paciente.” (Superior Tribunal de Justiça. Sexta Turma. HC 106.805-MS, Rel. Min. Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ-MG), julgado em 3/2/2009. Disponível em http://www.stj.gov.br. Acesso em 17/06/2009).
96
instauração da ação penal, previstos no Código Penal, tais como os crimes contra
a liberdade sexual, crimes contra a honra e o crime de ameaça, não incluindo
neste rol o crime de lesões corporais leves, na medida em que este não encontra
fundamento legal no Código Penal, mas sim na Lei dos Juizados Especiais,
quanto à exigibilidade da representação da vítima, a qual restou afastada por obra
do artigo 41, da Lei Maria da Penha.
3.4.3 ENTENDIMENTOS FAVORÁVEIS À AÇÃO PENAL PÚBLICA
CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA
De outro lado, defendendo posicionamento diametralmente
oposto na jurisprudência, recentemente, em 05/03/2009, o assunto voltou a ser
objeto de apreciação pelo Superior Tribunal de Justiça, o qual, por meio da Sexta
Turma, ao julgar o Habeas Corpus n.º 113.608-MG, relatado pelo Ministro Og
Fernandes, concluiu que, para o processamento do crime de lesão corporal leve,
praticado no âmbito da Lei Maria da Penha, a ação penal é pública condicionada
à representação, sendo imprescindível a manifestação favorável da vítima para a
persecução criminal, ficando assentado no julgado que a dispensa da
representação significa que a ação penal teria prosseguimento e impediria a
reconciliação de muitos casais.106
A decisão mais recente do Superior Tribunal de Justiça,
prolatada nos autos do HC 113.608-MG, não se encontra isolada do
entendimento doutrinário. Ao contrário, várias vozes no campo doutrinário
sustentam a posição defendida neste julgamento, com os argumentos que se
passa a delinear.
DIAS, ao abordar o assunto em foco, defende a
disponibilidade da ação penal pelas vítimas de agressões domésticas, mesmo em
106 “LEI MARIA DA PENHA. REPRESENTAÇÃO. A Turma, ao prosseguir o julgamento, por
maioria, concedeu a ordem de habeas corpus, mudando o entendimento quanto à representação prevista no art. 16 da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). Considerou que, se a vítima só pode retratar-se da representação perante o juiz, a ação penal é condicionada. Ademais, a dispensa de representação significa que a ação penal teria prosseguimento e impediria a reconciliação de muitos casais”. (Superior Tribunal de Justiça. Sexta Turma - HC 113.608-MG, Rel. originário Min. Og Fernandes, Rel. para acórdão Min. Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP), julgado em 5/3/2009. Disponível em http://www.stj.gov.br. Acesso em 17/06/2009).
97
condutas que resultem em lesões corporais leves ou culposas, as quais podem
não representar, quando ainda não ajuizada a ação penal, bem como
renunciarem ou desistirem da demanda, quando estão em trâmite.
Sustenta a Desembargadora gaúcha que:
Refoge à finalidade da lei manter a ação penal quando acertadas todas as questões envolvendo agressor e vítima. Cabe figurar a hipótese de o magistrado designar audiência por ocasião do pedido de medidas protetivas quando as partes são cônjuges ou companheiros. Certamente as chances de um acertamento do conflito entre as partes são muito maiores se a vítima tiver a faculdade de fazer uso, como instrumento de negociação, do direito de livrar o agressor do processo criminal. Esta arma, que pode ser utilizada para exercer pressão psicológica, assegura o equilíbrio das partes. Literalmente a sorte do varão está nas mãos da mulher. Invertem-se os papéis. Assim, com mais facilidade o juiz poderá obter sucesso e conseguir que as partes façam acordo e acertem a separação, alimentos, visitas e partilha de bens. 107
E assim arremata, DIAS:
De todo descabido que, solvidas todas as controvérsias que mantinham o casal em situação de conflito, ainda assim, instaure-se a ação penal. Às claras que a vítima não tem mais interesse em das seguimentos à representação levada a efeito. Certamente ela em nada contribuirá para a apuração do delito. O resultado da investigação criminal ninguém duvida qual seja. O inquérito não será remetido a juízo pela autoridade policial ou o Ministério Público não oferecerá denúncia. Ainda que venha a ser instaurada a ação penal, o juiz acabará absolvendo o réu por falta de provas. Portanto, havendo composição e solvendo-se a situação de conflito entre as partes, é justificável admitir a possibilidade de a vítima obstar o prosseguimento da demanda penal. Ainda assim deve o juiz ouvir a vítima em audiência especialmente designada
107 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de
combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: RT, 2007. p. 119-120.
98
para tal fim. Homologada a desistência é comunicada a autoridade policial para que proceda ao arquivamento do inquérito.108
O próximo item do presente estudo fará uma apreciação a
respeito da ação penal pública condicionada à representação da vítima de crimes
de lesões corporais leves ou culposas, cometidos no âmbito de incidência da Lei
Maria da Penha, de cunho favorável aos interesses da vítima, no intuito de
prestigiar seu discernimento, no trato das complexas relações familiares.
3.4.4 RAZÕES DE POLÍTICA JURÍDICA EM FAVOR DA AÇÃO PENAL
PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA
Diante da polêmica travada quanto à natureza da ação penal
no tratamento do crime de lesões corporais leves, praticado em situação de
violência doméstica, impõe-se um posicionamento favorável à disponibilidade da
ação penal, por parte da vítima, na circunstância de violência familiar, numa
perspectiva de política jurídica, atinente à finalidade da Lei Maria da Penha.
Em que pese a Lei Maria da Penha tenha galgado
significativos avanços, conforme demonstrado no decorrer desta pesquisa,
entretanto, no particular tratamento dispensado à natureza da ação penal quanto
aos crimes de lesões corporais leves ou culposas sob sua égide, no entender
deste pesquisador, mostra-se um retrocesso, eis que a aplicação do artigo 41 da
Lei n.º 11.340/2006 distancia-se de uma apreciação sistêmica, voltada a prestigiar
os interesses das vítimas de violência doméstica.
Com efeito, na medida em que a Lei Maria da Penha, por
meio do seu artigo 41, propõe-se a afastar completamente a incidência da Lei n.º
9.099/95, Lei dos Juizados Especiais Criminais, do âmbito de abrangência dos
procedimentos decorrentes de violência doméstica, por via reflexa, acaba
abolindo a possibilidade de conciliação entre as partes envolvidas, especialmente
nos casos de agressões resultantes em lesões corporais leves ou culposas.
108 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de
combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: RT, 2007. p. 119-120.
99
Desta forma, retira da vítima de violência doméstica, a
função de protagonista desta relação familiar, porquanto diante da complexidade
da relação afetiva, aborta a possibilidade de esta sopesar as desvantagens de
prosseguir com a ação penal, em detrimento da continuidade na relação afetiva,
acaso a vítima demonstre interesse em reatar esta relação conjugal.
Ao proceder assim, o Estado, por meio do Juiz, distancia-se,
sobremaneira, do caráter protetivo que a Lei Maria da Penha busca conceder à
vítima de violência doméstica, não só no aspecto penal, como também na seara
das relações familiares a afetivas.
Neste sentido, se a vítima optar em não representar
criminalmente seu agressor, por certo, as chances de um acertamento do conflito
familiar entre as partes serão muito maiores, o que evidencia que o direito à
representação ou não constitui-se em instrumento de negociação poderoso em
favor da vítima de violência doméstica, que pode ser utilizado para exercer
pressão psicológica, necessária para equilibrar a relação de submissão que vinha
sendo submetida.
De outro lado, em renunciando ao direito de representação
criminal de seu agressor, a vítima de violência familiar acabará dispensando o uso
dos instrumentos de proteção constantes da Lei Maria da Penha. Esta situação
deverá ser sopesada pela vítima e advertida pelo Juiz, durante a audiência
específica para essa finalidade, de que trata o artigo 16 da Lei n.º 11.340/2006.109
Com efeito, afigura-se compatível a operacionalidade da
ação penal pública condicionada à representação, mesmo em casos de lesão
corporal leve ou culposa, com a inibição de coação à vítima de violência
doméstica, pelo agressor, na medida em que a própria Lei Maria da Penha prevê
a realização de audiência para oitiva da vítima perante o Juiz, sendo o ato
acompanhado pelo Ministério Público, com a finalidade específica de cercar o ato
109 Art. 16. da Lei Maria da Penha: “Nas ações penais públicas condicionadas à representação da
ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público” LIMA FILHO, Altamiro de Araújo. Lei Maria da Penha comentada. Leme: Mundo Jurídico, 2007. p. 143.
100
com as garantias necessárias para que a vítima, espontaneamente e sem
nenhuma ameaça de coação possa expressar sua vontade de renunciar o direito
à representação ou prosseguir na persecução penal.
Na hipótese de a vítima manifestar a intenção de renunciar à
ação penal ou desistir, acaso já tenha sido intentada, cumpre à Autoridade
Juriscidional homologar a desistência e comunicar à autoridade policial para que
proceda ao arquivamento do inquérito, ou prolatar sentença extinguindo a
punibilidade do agente, caso a ação esteja em trâmite.
Como se vê, a utilização do artigo 41, da Lei Maria da
Penha, que trata do afastamento da Lei dos Juizados Especiais aos delitos
cometidos sob a égide da violência doméstica, se aplicado de forma divorciada do
sistema jurídico penal e processual penal, por certo fomentará o acirramento dos
litígios entre entes familiares.
Portanto, a adoção de uma excessiva severidade penal, bem
como o enrijecimento do processamento no trato da violência doméstica não se
mostram ferramentas adequadas e eficazes ao solucionamento das complexas
relações íntimas e de afetos vivenciados no ambiente doméstico e familiar,
preconizadas pela Lei Maria da Penha, ocasionando, inclusive, ofensa aos
direitos humanos das vítimas, por ceifar-lhes o direito à liberdade de expressar
sua manifestação consciente.
Na mesma esteira, é o entendimento de JESUS ao defender
que:
É contraditório afirmar, em face do art. 41 da Lei Maria da Penha, que a ação penal é incondicionada, e, ao mesmo tempo, defender, perante o art. 16, que não se pode interpretar a expressão renúncia no sentido de desistência da representação. Adotada a tese da ação penal pública incondicionada, como falar em renúncia ou retração da representação? Não pretendeu a lei transformar em pública incondicionada a ação penal por crime de lesão corporal cometido contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, o que contrariaria a tendência brasileira da admissão de um Direito Penal de Intervenção Mínima e dela retiraria meios de
101
restaurar a paz do lar. Considerar a ação penal por vias de fato e lesão corporal comum pública incondicionada, consistiria em retrocesso legislativo inaceitável.110
Nesse mesmo diapasão, é lição de PORTO:
Parece mais lógico reconhecer que o legislador não quis, com a redação do art. 41, tornar o delito de lesões corporais leves novamente um crime de ação penal pública incondicionada. Essa conclusão melhor se harmoniza com a nova lei, tanto conciliando seus próprios dispositivos que parecem privilegiar a representação da vítima, como conectando as novas regras com todo o sistema jurídico penal preexistente.111
De fato, do ponto de vista da política do direito, afigura-se
consentâneo com uma interpretação teleológica e sistêmica reputar a ação penal
por crimes de lesões corporais leves ou culposas, como pública condicionada à
representação, na medida em que propicia uma construção normativa pelo
operador jurídico, com vistas a valorizar a vítima em situação de violência
doméstica, concebendo-lhe a autodeterminação no que atine ao encaminhamento
do aspecto penal do litígio familiar, com vistas a projetar sua decisão num âmbito
mais abrangente, inserindo-se aí a complexa teia de circunstâncias que envolvem
as diversidades nas relações íntimas e de afeto.
Este entendimento coaduna-se com o reconhecimento de
que o Estado Punitivo, por meio dos sistemas de Direito Penal e Processual
Penal, só deverá interferir na esfera da intimidade da vítima, na medida em que
sua beneficiária maior, a mulher em situação de violência doméstica, aceitar tal
intervenção no âmbito privado, sob pena de inversão da lógica de proteção
110 JESUS, Damásio de. Da exigência da representação da ação penal pública por crime de lesão
corporal resultante de violência doméstica e familiar contra a mulher (Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006). Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, n.º 13, ano III, p. 87-89, Porto Alegre: Magister, ago-set.2006. p. 88.
111 PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Anotações preliminares à Lei nº 11.340/06 e suas repercussões em face dos Juizados Especiais Criminais. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1169, 13 set. 2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8917. Acesso em: 17 jun. 2009.
102
constante da Lei Maria da Penha, aniquilando a autonomia de vontade da vítima,
ceifando-lhe a liberdade no que atine à condução de sua vida privada.
Ao discorrer sobre o aspecto atinente à liberdade da vítima
em situação de violência doméstica, quanto ao processamento do agressor por
crime de lesões corporais leves, KARAM estatui que:
“Quando se insiste em acusar da prática de um crime e ameaçar com uma pena o parceiro da mulher, contra sua vontade, está se subtraindo dela, formalmente dita ofendida, seu direito e seu anseio a livremente se relacionar com aquele parceiro por ela escolhido. Isso significa negar-lhe o direito à liberdade de que é titular, para tratá-la como se coisa fosse, submetida à vontade de agentes do Estado que, inferiorizando-a e vitimizando-a, pretendem saber o que seria melhor para ela, pretendendo punir o homem com quem ela que se relacionar - e sua escolha há de ser respeitada, pouco importando se o escolhido é ou não um “agressor” – ou que, pelo menos, não deseja que seja punido”112.
De fato, no âmbito cível, manifesta-se evidente contradição,
bem como refoge às finalidades da Lei Maria da Penha, pretender que, depois de
havida a reconciliação do casal, no âmbito conjugal, prossiga a ação penal por
crime de lesões leves, culminando com tormentoso processamento penal, o qual
poderá redundar em condenação criminal, tempos depois, momento em que o
casal, não raras vezes, já se encontra em harmonia conjugal, havendo superado
o momento de crise, que ensejou a intervenção estatal na seara criminal.
Da mesma forma, continua incompatível com os objetivos da
Lei Maria da Penha, o processamento do agressor na esfera penal sem o
consentimento da vítima, em crime de lesão leve, se a relação familiar houver
consensualmente sido resolvida pela via da separação judicial, se casados ou da
dissolução da sociedade de fato, para o caso de relação de convivência.
Ora, mostra-se ofensivo ao sistema normativo a continuação
do processo penal, com sua natureza litigiosa no momento em que, no campo
112 KARAM, Maria Lúcia. Violência de gênero: o paradoxal entusiasmo pelo rigor penal. Boletim do
IBCCRIM, n.º 168, nov. 2006. p. 6.
103
cível, o magistrado vem empreendendo esforço redobrado para a homologação
da separação judicial ou se já dissolvida a relação de convivência do casal, de
forma consensual, de maneira que restem estipuladas as condições da dissolução
do relacionamento, por meio das deliberações amigáveis entre as partes,
atinentes à prestação alimentícia, divisão de bens e guarda de filhos, condições
de visitação aos filhos e nome dos separandos.
Neste diapasão, importa ressaltar que a possibilidade de
trancamento do inquérito policial ou renúncia à ação penal por crime de lesões
leves, qualificada pela violência doméstica, em muito auxiliará na composição dos
litígios, envolvendo os diversos aspectos de Direito de Família, em que as partes
estão submetidas, questões estas que se mostram de maior relevância para as
partes, notadamente a vítima, quando comparada à imposição de uma pena
criminal ao agressor, com a manifesta ausência de interesse da vítima na
persecução penal.
Como bem asseveram CUNHA e PINTO:
Legislações muito rígidas desestimulam as mulheres agredidas a denunciarem seus agressores e registrarem suas queixas. Sempre que o companheiro ou esposo é o único provedor da família, o medo de sua prisão e condenação a uma pena privativa de liberdade acaba por contribuir para a impunidade.113
Instaurar ou manter o processamento penal do agressor de
violência doméstica, em crimes de lesões leves ou culposas, com a expressa
discordância da vítima colide com os objetivos da Lei Maria da Penha, na medida
em que a vítima, ao saber que após comunicar o fato à Autoridade Policial
perderá completamente a disponibilidade da ação, porquanto aquele será
necessariamente processado, independentemente da vontade da vítima.
Diante desta realidade, é crível constatar que inúmeras
mulheres vítimas de violência doméstica manterão o silêncio da agressão, não
113 Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, Violência Doméstica. Lei Maria da Penha (Lei
11.340/2006) Comentário artigo por artigo. São Paulo: RT, 2007. p. 130.
104
levando os fatos agressivos ao conhecimento das autoridades, o que acabará por
afrontar um dos maiores objetivos da Lei 11.340/2006, que é justamente o de
propiciar que vítimas de violência doméstica registrem as agressões, para que o
Estado possa, primeiro, mensurar o grau desta patologia social e; segundo,
aprimorar os mecanismos aptos à coibição da violência familiar.
3.4.5 RAZÕES DECORRENTES DO PROCESSO LEGISLATIVO DE CRIAÇÃO
DA LEI MARIA DA PENHA
Ademais, existe um outro argumento em favor da ação penal
pública condicionada à representação em crimes de lesões corporais leves e
culposas, decorrentes de violência doméstica, de natureza da política jurídica,
com raízes no processo legislativo do qual originou a Lei n.º 11.340/2006, a Lei
Maria da Penha114.
Trata-se do Projeto de Lei n.º 4.559/2004, cujo texto original,
ao tratar do procedimento na fase policial e do processo judicial, de delitos
perpetrados no âmbito da violência doméstica, constava expressamente que a
ação penal é pública condicionada à representação nos casos de crimes
cometidos no âmbito de incidência da Lei Maria da Penha.
O referido Projeto de Lei foi resultado de longo processo de
discussão, advindo de diversos segmentos representativos da Sociedade Civil,
tendo como ponto de partida, propostas elaboradas por um consórcio de
Organizações Não-Governamentais – ONGs, representando diversos organismos
sociais, dentre os quais se pode citar: ADVOCAVY, AGENDE, CEPIA, CFEMEA,
CLADEM/IPÊ e THÊMIS.115
114 “O art. 30 do Projeto de Lei n.º 4.559/2004, assim dispunha: “Nos casos de violência doméstica
e familiar contra a mulher, a ação penal será pública condicionada à representação”. Disponível em http://www.camara.gov.br/sileg/integras/361747.pdf. Acesso em 17/06/2009.
115 Estes dados foram obtidos da seguinte publicação: SOARES, Bárbara M. Enfrentando a Violência contra a Mulher: orientações práticas para profissionais e voluntários (as). Elaborado para utilização pela Rede de Atendimento às Mulheres em situação de violência. Aponta formas práticas e humanizadas de tratamento para as usuárias desses serviços. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Brasília: 2005. Publicado em http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sepm/publicacoes/index_html/30, acesso em 21/04/2009.
105
Esta proposta inicial foi, posteriormente, posta em discussão
por um grupo de trabalho composto por membros de diversos Ministérios
integrantes da estrutura do Governo Federal, sendo os trabalhos coordenados
pela Secretaria Especial de Política para as Mulheres.
Ao longo do ano de 2005, foram realizadas diversas
audiências públicas, notadamente em Assembléias Legislativas das cinco regiões
do Brasil, nas quais houve profícua intervenção de diversos segmentos da
Sociedade Civil.
Destas discussões, nasceu o Projeto de Lei n.º 4.559/2004,
fruto de acordo formulado entre a Relatoria do Projeto, o Consórcio de ONGs e o
Governo Federal do Brasil.
Submetido à apreciação perante a Câmara dos Deputados,
o Projeto de Lei tramitou com a indicação de que a ação penal por crimes
resultantes de violência doméstica é pública condicionada à representação.
Após as discussões, no âmbito da Câmara dos Deputados, o
Projeto de Lei n.º 4.559/2004 foi aprovado e, no que pertine à natureza da ação
penal, restou vencedora a proposição inicial e ficou consignado no artigo 30, que,
nos crimes de lesões corporais leves ou culposas, resultantes de violência
doméstica, o feito era regido por ação penal pública condicionada à
representação, entendendo-se ser esta a opção legislativa que melhor atendia
aos interesses das mulheres, vítimas de violência familiar, em razão da
disponibilidade destas quanto ao manejo do processamento ou não de seus
agressores, perante os Juizados Especializados de Combate à Violência
Doméstica.
Ocorre que, ao tramitar no Senado, o Projeto de Lei n.º
4.559/2004 sofreu grandes alterações, notadamente com a retirada do
procedimento detalhado para o processamento dos crimes decorrentes de
violência doméstica, tendo, em algumas situações, desfigurado sobremaneira a
versão originária do projeto.
106
Dentre estas modificações operadas no Senado, foi excluído
o artigo 30, do Projeto de Lei n.º 4.559/2004, o qual poria um fim à polêmica
acerca da natureza da ação penal, nos casos de crimes de lesões corporais leves
ou culposas resultantes de violência doméstica, tendo em conta que este
dispositivo preconizava expressamente que, nestes casos, a ação penal era
disponível pela vítima, eis que se tratava de ação penal pública condicionada à
representação.
Embora a aprovação do Projeto de Lei n.º 4.559/2004 e sua
conseqüente transformação na Lei n.º 11.340/2006 tenha sido operada com a
supressão do antigo artigo 30, contudo, por medida de política jurídica tendente a
reafirmar os propósitos da lei, especialmente no que respeita à autonomia de
vontade de a vítima optar em processar ou não seu agressor, considerando as
complexidades de circunstâncias que envolvem o relacionamento afetivo, é
medida que se impõe reputar a ação penal como condicionada à representação
nos casos de lesões leves ou culposas cometidas sob a égide da Lei Maria da
Penha.
Ora, não se afigura razoável que a alteração no projeto de
lei originário, operada no âmbito do Senado, dissociada de uma visão sistêmica,
excluindo dispositivo fundamental para dar guarida à preservação dos interesses
das vítimas de violência doméstica, quanto à disponibilidade da ação penal nos
casos em foco, possa suplantar a possibilidade de o operador jurídico
implementar uma hermenêutica sistematizada e afinada aos objetivos maiores da
Lei Maria da Penha, concedendo à vítima de agressões domésticas o direito de
optar por renunciar ao direito de representação do agressor, após restabelecida a
sociedade conjugal, com superação do trauma inicial, apresentando-se medida de
respeito à vontade da vítima.
Não se pode olvidar a advertência de DIAS, no sentido de
que:
Ainda que a linguagem do desafeto se instale no momento em que ocorreu a violência contra a mulher, não pode a lei abandonar a vítima e perseguir o agressor, o que, certamente, não contribuirá
107
em nada para apaziguar os vínculos familiares que precisam continuar harmônicos mesmo depois de cessado o vínculo de convívio. Esta é a razão da própria Lei Maria da Penha116.
Ademais, nos casos em que a vítima manifesta-se
expressamente perante a Autoridade Jurisdicional, cercada das cautelas à
preservação de sua vontade, isenta de coação, na forma do artigo 16, da Lei
Maria da Penha, de maneira contrária ao prosseguimento da ação penal contra o
seu agressor, nos casos de crime de lesões leves ou culposas, a continuidade do
feito criminal mostra-se como excesso de intervenção estatal na esfera privada
das partes envolvidas.
Assim, o Processo Penal não mais possui a legitimação
necessária para prosseguir, porquanto despreza por completo os interesses da
vítima, aviltando-a no seu último refúgio, representado no seu lar conjugal, no seio
de sua família, local em que, ninguém mais do que a própria vítima é
conhecedora das razões que levam a prosseguir com ação penal contra seu
agressor ou superadas as divergências conjugais, consolidar um convívio
harmônico com os membros familiares.
Portanto, em se tratando de crimes que admitem a
representação da vítima, dentre os quais se incluem o delito de lesões corporais
leves ou culposas, abrangidos pela Lei Maria da Penha, evidencia-se que a
autonomia da vontade da vítima deve prevalecer para justificar os objetivos
perquiridos por este Estatuto.
Por outro enfoque, tem-se que o sistema legal pátrio propicia
a adoção de mecanismos jurídicos consensuais e alternativos à imposição de
pena prisional aos crimes relacionados à violência doméstica, de menor e média
ofensividade lesiva, como forma adequada de conciliar a política jurídica de
proteção dos direitos humanos das mulheres com a política criminal do Direito
Penal mínimo, sedimentada no Brasil.
116 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de
combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: RT, 2007. P. 126.
108
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A título de considerações finais, neste espaço, serão
trazidas as principais ponderações firmadas no curso da investigação que dá
sustentação ao presente trabalho, de forma sintética e sem a pretensão de
esgotar o conteúdo, acerca do fenômeno da violência doméstica e familiar.
Os objetivos específicos da investigação foram alcançados,
na medida em que se possibilitou a análise da história dos direitos humanos e
fundamentais das mulheres, ao longo da história da humanidade, tendo ficado
evidenciado, que as causas da submissão imposta às mulheres remontam há
séculos.
Também, foi importante delimitação do conceito e do âmbito
de abrangência dos institutos protetivos, previstos na Lei Maria da Penha. Neste
sentido, a pesquisa pautou-se sobre a gênese desta lei, com enfoque movimento
mundial pela erradicação da violência doméstica, por meio de tratados e
convenções internacionais.
As hipóteses levantadas no limiar da pesquisa restaram
confirmadas.
Quanto à primeira hipótese, relativa à questão da
constitucionalidade da Lei Maria da Penha, embora tenha sido apresentadas
sustentações no sentido da inconstitucionalidade desta lei, porém as
investigações apontaram para a possibilidade de preservação da
constitucionalidade deste Estatuto, seja por meio da compreensão de que se trata
de ação afirmativa, em que se procura imprimir a igualdade material às mulheres,
ou seja pela utilização da técnica de interpretação constitucional sem redução de
texto, ou sentenças aditivas, para o fim de incluir na rede de proteção prevista na
Lei Maria da Penha, não só os benefícios às mulheres, mas também, às crianças,
aos adolescentes, aos idosos e aos adultos, enfim, a todos os componentes da
relação familiar, que sejam vítimas de violência doméstica.
109
Nesta perspectiva, tem-se que a segunda hipótese
suscitada, também, restou confirmada, eis que os estudos evidenciaram a
imprescindibilidade da representação da vítima para o fim do processamento
penal do agressor, pela prática do crime de lesões corporais leves ou culposas,
cometidas no âmbito de incidência da Lei Maria da Penha. Constatou-se que,
nestes delitos, a natureza da ação penal há de ser pública condicionada, como
medida de política jurídica voltada à valorização da autonomia da vontade da
vítima.
Nesta perspectiva, igualmente, restou confirmada a última
hipótese levantada, haja vista que a adoção de política jurídica voltada para o
solucionamento de litígios familiares pautada no modelo de Justiça consensual
mostra-se adequada, na medida em que se reconhece a complexidade das
relações afetivas, bem como a inadequação do Direito Penal da severidade como
instrumento de política criminal apta ao controle penal da violência doméstica no
Brasil.
Diante deste panorama, desempenha especial destaque a
função dos órgãos do Poder Judiciário no tratamento desta patologia social, por
meio da concretização dos direitos fundamentais dos cidadãos integrantes do
núcleo familiar, com objetivo de assegurar a máxima efetividade ao princípio da
dignidade da pessoa humana.
Tem-se na conceituação dos direitos humanos e direitos
fundamentais a dificuldade da delimitação da esfera de proteção dos direitos
imanentes à pessoa humana. Adota-se a concepção de direitos humanos,
àqueles que dizem respeito à condição humana, mas que estejam previstos nos
diplomas e instrumentos internacionais, enquanto que direitos fundamentais estão
ligados à idéia de positivação dos direitos humanos no plano constitucional de
determinado Estado, como se dá no Brasil, por meio do elenco de direitos
humanos planificados ao longo da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988.
Dentre os direitos fundamentais que permeiam o presente
trabalho, destaca-se o direito à igualdade de gêneros na ordem constitucional
110
brasileira, sob o enfoque do direito à igualdade das mulheres, sob o ponto de
vista material. As diferenciações existentes no tratamento das mulheres,
relegadas à cultura patriarcal, submetidas a inúmeras formas de discriminação,
opressão e submissão, ao longo dos séculos, marcaram o percurso de tentativa
de equiparação dos direitos femininos, no mundo e no Brasil.
Neste contexto, afigura-se compatível com o texto
constitucional brasileiro, a formulação de políticas, legislações e ações
governamentais afirmativas, no sentido de privilegiar as mulheres com tratamento
diferenciado, para o fim de equiparar, no campo da concretude, as mulheres aos
homens, com vistas a efetivar materialmente o direito à igualdade, formalmente
declarado no sistema nacional, mas que encontra grandes óbices na sua
implementação.
Com o foco na promoção dos direitos das mulheres, a partir
da década de 1970, começaram a surgir os primeiros movimentos femininos
organizados, os quais propiciaram, no plano internacional, os limiares debates em
torno de formulações diferenciadas de gênero. Estas discussões avançaram para
as formalizações de instrumentos, por meio de convenções internacionais, que
reconheciam a necessidade de promoção diferenciada dos direitos das mulheres.
Dentre estas convenções, destacam-se as realizadas no
México, em 1975, tendo suas conclusões sido aprovadas pela ONU, em 1979.
Também, a mobilização em torno da implementação de políticas protetivas às
mulheres realizada em Viena, no ano de 1993, afigura-se como importante marco
legal. Posteriormente, a Declaração de Pequim, formulada em 1995, significou
expressivos avanços no âmbito da igualdade material dos gêneros.
Especificamente, no Brasil, um marco importante na busca da concretização dos
direitos das mulheres, foi a realização Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida como Convenção de
Belém do Pará, ocorrida em 1994.
É neste ambiente que surge a Lei Maria da Penha, no Brasil,
por meio da edição da Lei n.º 11.340. Este instrumento legal objetiva a criação de
111
mecanismos aptos a coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher neste
país.
Foi necessária a exposição trágica da cidadã brasileira Maria
da Penha, que sofreu violentas agressões à integridade física por parte de seu
então marido, as quais a deixaram definitivamente paraplégica, em 1983. A ação
judicial só foi julgada após longo período, o que propiciou, diante da omissão
brasileira duas conseqüências: a condenação pela Organização dos Estados
Americanos – OEA, contra o Estado brasileiro à indenização à Maria da Penha e
à formalização de políticas públicas e legislativas tendentes a evitar a tolerância
do Estado com o fenômeno da violência doméstica. Tal fato tornou a cidadã Maria
da Penha, o símbolo da luta de todas as mulheres brasileiras na implementação
de instrumentos adequados à coibição da violência doméstica neste país.
Em análise aos mecanismos de proteção constantes da Lei
Maria da Penha, afigura-se adequada a concepção legal, tocante a ampliada
conceituação da violência intrafamiliar, abarcando, como tal, qualquer ação ou
omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual
ou psicológico e dano moral ou patrimonial.
Também, cunhou-se de forma ampliativa o espectro de
abrangência do fenômeno da violência intrafamiliar, na Lei Maria da Penha,
estendendo a teia de proteção legal, não somente para os casos de violência
perpetrada no âmbito das relações domésticas, mas também incluindo a violência
praticada contra a mulher por familiares, independentemente do local do dano, em
alargada concepção de parentesco, assim como atingindo a ocorrência da
violência decorrente da relação íntima de afeto, independentemente da condição
de estado civil das partes envolvidas, mas desde que presente nexo causal entre
a violência perpetrada e a relação de afeto permeada entre os participantes desta
relação.
Com o objetivo de conferir efetiva aplicação dos
mecanismos de proteção constantes da Lei Maria da Penha, fez-se a análise da
constitucionalidade deste Estatuto, ponderando-se acerca da sua compatibilidade
com a ordem constitucional brasileira, na medida que o tratamento diferenciado
112
prestigia as mulheres, na relação familiar e possui razões fáticas que demonstram
a pertinência do tratamento desigual, com vistas a promover a igualdade material
entre os gêneros.
De outro lado, para o caso de se reputar a Lei Maria da
Penha inconstitucional, fornece-se mecanismo de interpretação constitucional
sem redução de texto ou sentenças aditivas, no qual se afigura plenamente
possível a superação desta mácula, por meio da extensão da teia de proteção
legal a todos os componentes do núcleo familiar, em consonância com o
comando disciplinado no artigo 226, § 8º, da Constituição da República Federativa
do Brasil.
Destaca-se que a Lei Maria da Penha insere-se no contexto
brasileiro de judicialização das relações sociais, cuja proteção dos entes
familiares, na esfera da privacidade, se dá por meio de instituições de
microssistemas separados, mas que se interligam entre si para propiciar a
proteção dos indivíduos sob diversos prismas. Com efeito, o Estatuto da Criança
e do Adolescente, o Estatuto do Idoso e agora, a Lei Maria da Penha são os
instrumentos legais pátrios que compõem o fenômeno de judicialização das
relações privadas e de afeto.
Por isso se impõe uma interpretação extensiva, para ampliar
a aplicação dos instrumentos de proteção contra a violência doméstica a todos os
integrantes da unidade familiar, independentemente do sexo, como forma de dar
unidade ao ordenamento jurídico, por meio de interpretação sistemática, tanto das
regras dispostas nos diversos Diplomas legais mencionados, quanto pela eficácia
imanente do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como ao direito de
todos os membros do núcleo familiar viverem em ambiente livre de quaisquer
formas de violência doméstica.
No contexto de reconstrução da norma jurídica, além dos
fatos, como método interpretativo, numa concepção dworkiana em que, conceber
o direito apenas à atividade do legislador é narrar apenas uma parte da história,
tem-se como imprescindível, na atividade jurisdicional atinente à resolução dos
113
conflitos decorrentes da violência doméstica, a aplicação de alguns institutos
procedimentais constantes na Lei dos Juizados Especiais Criminais.
Assim, no caso de lesões corporais leves ou culposas,
decorrentes de violência doméstica e familiar afigura-se imprescindível a oitiva da
vítima, para fins de verificar o seu interesse no processamento judicial do
agressor, em espaço propício para que a vítima sinta-se livre de coerção e apta a
manifestar sua vontade, espontaneamente, tal qual regrado na Lei Maria da
Penha.
No crime em análise, reputar a ação penal pública
condicionada à representação, embora não encontre ressonância em
interpretação literal da Lei Maria da Penha, é medida que se coaduna com os
objetivos legais e perpassa a idéia de valorização dos interesses da vítima,
notadamente a mulher, não a reduzindo a um ser incapaz de expressar sua
vontade e valorizando o seu poder de escolha quanto às diretrizes familiares, no
âmbito privado.
Esta postura jurisdicional transborda a técnica interpretativa
literal da Lei Maria da Penha para, em aplicação sistemática com o artigo 88, da
Lei dos Juizados Especiais Criminais, propiciar que a mulher ou qualquer outro
membro familiar capaz, possa manifestar-se acerca do interesse no
prosseguimento de ação penal contra seu agressor ou, em caso contrário,
escolher superar o trauma decorrente da violência, em uma nova relação pautada
no respeito, afeto, carinho, permeada pelo cuidado, como valor jurídico,
concebendo à vítima de violência doméstica o direito de escolha quanto aos
encaminhamentos dos assuntos que lhe dizem respeito.
Pensar em contrário, é admitir uma indevida e totalitária
interferência do Estado nas relações privadas, em prejuízo da vontade do ente
vulnerável da relação de violência doméstica, geralmente a mulher, quanto ao seu
poder de escolha em reconstituir a vida privada com o seu ente afetivo ou, de
modo contrário, de processá-lo criminalmente, medida que, à toda evidência,
repercutirá sobremaneira na esfera da relação familiar. A escolha cabe à vítima
114
de violência doméstica, a quem a Lei Maria da Penha objetiva proteger e não
violentar, de forma institucionalizada.
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