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1 ATO 1 Parte do parque da propriedade de Sorine. uma larga aléia conduz, afastando- se da platéia para as profundidades do parque em direção ao lago, porém está interditada por um tablado provisório, erigido para um espetáculo de teatro amador, de modo que o lago não fica visível. À direita e à esquerda do tablado tufos de arbustos, algumas cadeiras, uma mesinha. O sol acaba de pôr-se. Jacov e outros trabalhadores estão trabalhando por trás da cortina; há ruídos de tosses e marteladas. Masha e Medvedenko entram à esquerda, voltando de um passeio. MEDVEDENKO — Por que é que você está sempre de preto? MASHA — Estou de luto por minha vida. Eu sou infeliz. MEDVEDENKO — Por que? (Refletindo) Não compreendo... Você tem boa saúde; seu pai não é rico, mas vive bem. A minha vida é muito mais dura do que a sua. Eu só ganho vinte e três rublos por mês, fora o desconto para aposentadoria, mas nem por isso ando de luto. (Sentam-se.) MASHA — Não é dinheiro o que importa. Um homem pobre pode ser feliz. MEDVEDENKO — Na teoria, mas não na prática: lá em casa somos, minha mãe, minhas duas irmãs, meu irmãozinho e eu, e eu só ganho vinte e três rublos. A gente tem de comer, não é? É preciso comprar chá e açúcar. E é preciso comprar tabaco. Experimente só para ver se é fácil. MASHA (Olhando o tablado atrás dela) — O espetáculo vai começar daqui a pouco. MEDVEDENKO — É. Com a Zaretchnaia numa peça de Constantin Gavrilovitch. Os dois estão apaixonados, e hoje suas almas vão se unir no desejo de produzir uma única imagem dramática. Enquanto a sua alma e a minha não tem nada em comum. Eu te amo, a saudade me arranca de casa, todo dia eu ando uma légua para chegar aqui e outra para voltar, e a única coisa que encontro em você é a indiferença. Eu compreendo, não tenho meios de subsistência e tenho uma família enorme... Quem haveria de querer se casar com quem não tem sequer dinheiro para comer? MASHA — Não é isso que importa. (Cheira uma pitada de rapé.) O seu amor me comove, mas eu não consigo corresponder; é só isso. (Oferece a ele a caixa de rapé.) Sirva- se. MEDVEDENKO — Não estou com vontade. (Pausa) MASHA — Está abafado, acho que ainda vai cair uma tempestade hoje. Você está sempre fazendo discursos filosóficos ou então falando de dinheiro. Para você não existe

A Gaivota

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Tchecov

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    ATO 1

    Parte do parque da propriedade de Sorine. uma larga alia conduz, afastando-se da platia para as profundidades do parque em direo ao lago, porm est interditada por um tablado provisrio, erigido para um espetculo de teatro amador, de modo que o lago no fica visvel. direita e esquerda do tablado tufos de arbustos, algumas cadeiras, uma mesinha.

    O sol acaba de pr-se. Jacov e outros trabalhadores esto trabalhando por trs

    da cortina; h rudos de tosses e marteladas. Masha e Medvedenko entram esquerda, voltando de um passeio.

    MEDVEDENKO Por que que voc est sempre de preto? MASHA Estou de luto por minha vida. Eu sou infeliz. MEDVEDENKO Por que? (Refletindo) No compreendo... Voc tem boa sade; seu pai

    no rico, mas vive bem. A minha vida muito mais dura do que a sua. Eu s ganho vinte e trs rublos por ms, fora o desconto para aposentadoria, mas nem por isso ando de luto. (Sentam-se.)

    MASHA No dinheiro o que importa. Um homem pobre pode ser feliz. MEDVEDENKO Na teoria, mas no na prtica: l em casa somos, minha me, minhas

    duas irms, meu irmozinho e eu, e eu s ganho vinte e trs rublos. A gente tem de comer, no ? preciso comprar ch e acar. E preciso comprar tabaco. Experimente s para ver se fcil.

    MASHA (Olhando o tablado atrs dela) O espetculo vai comear daqui a pouco. MEDVEDENKO . Com a Zaretchnaia numa pea de Constantin Gavrilovitch. Os dois

    esto apaixonados, e hoje suas almas vo se unir no desejo de produzir uma nica imagem dramtica. Enquanto a sua alma e a minha no tem nada em comum. Eu te amo, a saudade me arranca de casa, todo dia eu ando uma lgua para chegar aqui e outra para voltar, e a nica coisa que encontro em voc a indiferena. Eu compreendo, no tenho meios de subsistncia e tenho uma famlia enorme... Quem haveria de querer se casar com quem no tem sequer dinheiro para comer?

    MASHA No isso que importa. (Cheira uma pitada de rap.) O seu amor me comove,

    mas eu no consigo corresponder; s isso. (Oferece a ele a caixa de rap.) Sirva-se.

    MEDVEDENKO No estou com vontade. (Pausa) MASHA Est abafado, acho que ainda vai cair uma tempestade hoje. Voc est sempre

    fazendo discursos filosficos ou ento falando de dinheiro. Para voc no existe

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    maior infelicidade no mundo do que a pobreza, mas eu acho que melhor andar coberta de andrajos e pedindo esmolas do que... Mas voc no compreende.

    Pela direita entram Sorine e Treplev.

    SORINE (Apoiando-se em sua bengala) Fique sabendo, meu rapaz, que esta histria de

    viver no campo no combina comigo, e eu nunca hei de me habituar a isto aqui. Ontem eu me deitei s dez horas e hoje acordei s nove, com a impresso de que o crebro tinha grudado no crnio de tanto dormir, e assim por diante (Ri.) Depois do almoo, assim como quem no quer nada, tornei a adormecer, e agora estou descadeirado sentindo-me no meio de um pesadelo, enfim...

    TREPLEV ; voc foi feito mesmo para a cidade. (Vendo Masha e Medvedenko) Por que

    que vocs esto aqui? Quando estiver na hora eu mando chamar todo mundo. Por favor, vo embora.

    SORINE (A Masha) Maria Ilinitchna, quer me fazer o favor de dizer a seu pai que solte o

    co, para ele parar de uivar. Minha irm passou a noite em claro. MASHA Fale o senhor mesmo com ele, porque no vou dizer nada. Com licena (A

    Medvedenko). Vamos! MEDVEDENKO (A Treplev) Ento mande nos chamar quando for comear.

    Saem os dois. SORINE O co vai uivar a noite inteira de novo. muito engraado, mas no campo eu

    nunca consegui que as coisas fossem feitas a meu modo. Antigamente eu tinha frias de vinte e oito dias e vinha para c descansar, e coisas assim, imediatamente todos comeavam a me deixar exausto com ninharias das mais absurdas do modo que desde o primeiro dia eu s conseguia pensar numa coisa, fugir daqui. (Ri.) Eu sempre fui embora daqui com grande prazer... Mas agora, que afinal das contas me aposentei, no tenho mais para onde ir. Queira ou no queira, aqui que eu tenho de ficar...

    JACOV (A Treplev) Constantin Gavrilovitch, ns vamos tomar banho. TREPLEV Muito bem; mas estejam de volta dentro de dez minutos. (Olhando as horas)

    Daqui a pouco vai comear. JACOV Sim, senhor (Sai.) TREPLEV (Inspecionando o tablado com os olhos) A temos o nosso teatro. A cortina, o

    primeiro rompimento, o segundo, e ao fundo - um espao aberto. Nada de cenrio. vista abre diretamente para o lago e o horizonte. O pano vai subir exatamente s oito e meia quando a lua nasce.

    SORINE Perfeito.

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    TREPLEV Se Nina se atrasar estraga todo o efeito. Ela j devia ter chegado. O pai e a madrasta a controlam incessantemente, e to difcil ela sair de casa quanto fugir de uma priso. (Ele ajeita a gravata do tio.) Seu cabelo e sua barba esto todos arrepiados. Acho que precisava aparar um pouco, ou sei l o qu...

    SORINE (Alisando a barba) a tragdia da minha vida. At mesmo quando eu era

    moo sempre tive aspecto de alcolatra contumaz, e coisas assim. Sempre fui um fracasso com as mulheres. (Sentando-se) Por que que minha irm est de mau humor?

    TREPLEV Por que? Est entediada. (Senta-se perto de Sorine.) Est com cimes. J se

    botou contra mim, contra o espetculo e contra a pea, porque Zaretchnaia que trabalha, e no ela. Ela no conhece a minha pea, mas j detesta.

    SORINE (Rindo) Voc tem cada uma!... TREPLEV Ela j est irritada porque nesse palquinho a Nina quem vai fazer sucesso,

    e no ela. (Olha as horas.) Minha me uma curiosidade psicolgica. Eu sei que ela tem talento e inteligncia, que capaz de soluar lendo um livro, ou de se esvair em Necrassov decorado, ou de cuidar de um doente como um anjo; mas experimente elogiar a Duse na presena dela! O-ho! S se pode elogiar a ela, s se pode escrever a respeito com sua interpretao, extraordinria na Dama das Camlias ou em No Turbilho da Vida... Mas como aqui, no campo, est privada desse pio, ela fica entediada e mesquinha, e todos ns somos seus inimigos, e todos ns somos culpados. Alm disso, ela supersticiosa, tem medo de trs velas e de nmero treze. E avarenta. Eu sei que ela tem setenta mil rublos num banco em Odessa; sei mesmo. Mas experimente pedir algum dinheiro emprestado a ela para ver como ela comea logo a choramingar.

    SORINE Voc meteu na sua cabea que sua pea no agrada a sua me e j ficou todo

    perturbado com isso, e coisas assim. No se preocupe, sua me te adora. TREPLEV (Arrancando as ptalas de uma flor) Bem me quer, mal me quer, bem me

    quer, mal me quer... (Ri.) Viu, minha me mal me quer. Mas claro! Ela tem vontade de viver, de amar, de usar roupas jovens, e eu, que j tenho vinte e cinco anos, sou um lembrete de que ela no assim to jovem. Quando eu no estou por perto ela s tem trinta e dois anos, mas comigo tem quarenta e trs, e por isso que ela me detesta. Alm disso, ela sabe tambm que eu no acho teatro importante. Ela adora o teatro, pensa que est servindo a humanidade com sua arte sagrada enquanto que eu acho que o teatro contemporneo no passa de uma mediocridade e tradies empoeiradas. Quando se abre o pano vemos um crepsculo, de luz artificial, e trs paredes dentro das quais esses gnios, esses sacerdotes da arte sagrada mostram como as pessoas comem, bebem, amam, andam, e usam suas roupas; e quando em meio vulgaridade das imagens e do dilogo eles tentam pregar alguma moral, uma moralzinha pequena, fcil de compreender e indicada para consumo domestico; e quando o que me oferecem so milhares de variaes de exatamente a mesma, da mesmssima coisa - ento eu fujo, eu fujo do mesmo modo que Maupassant fugia da Torre Eiffel, que lhe destroava o crebro com sua vulgaridade.

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    SORINE Mas no se pode viver sem teatro. TREPLEV Precisamos de novas formas de expresso. Precisamos de formas novas, e se

    no pudermos t-las, melhor que no tenhamos nada. (Olha o relgio.) Eu amo minha me muito mesmo, mas ela leva uma vida sem p nem cabea, s pensa naquele tal escritor, seu nome est aparecendo sempre nos jornais e tudo isso me cansa. s vezes por puro egosmo, lamento que minha me seja uma atriz famosa, porque me parece que se ela fosse uma mulher comum, como qualquer outra, eu teria sido mais feliz. Meu tio, ser que pode haver alguma coisa mais desesperadora ou mais idiota do que minha posio entre os convidados da minha me, todos eles clebres, artistas, escritores, e s eu sem ser ningum? Vendo que s me aturam por que sou filho dela? Quem sou eu? Abandonei a universidade no final do terceiro ano, como se diz nos jornais por razes alheias nossa vontade; no tenho nenhum talento, no tenho um vintm, e, segundo meu passaporte, sou um pequeno burgus de Kiev, do mesmo modo que meu pai, que apesar de ter sido tambm ator conhecido, nem por isso deixou de ser pequeno burgus de Kiev. De modo que, quando, no salo da minha me, esses artistas e escritores se dignavam tomar conhecimento da minha existncia, sempre tive a impresso de que estavam, com os olhos, medindo a minha insignificncia eu lia os pensamentos deles e me sentia humilhado.

    SORINE Por falar nisso, que tipo de homem esse tal escritor? No sei o que pensa

    dele. No diz uma s palavra. TREPLEV um homem inteligente, simples, um pouco como direi melanclico.

    um homem honesto. Ainda no chegou aos quarenta e j clebre e est bem de dinheiro... Quanto ao que escreve... Bem... agradvel, no deixa de ter um certo talento... Mas... Depois de Tolstoi ou Zola no pode ter muita vontade de ler Trigorine.

    SORINE Quanto a mim, meu rapaz, gosto muito dos homens de letras. Houve tempo

    em que desejei ardentemente duas coisas: casar-me e ser homem de letras, mas no consegui nem uma nem outra. ... Seja como for, muito agradvel ser at mesmo um homenzinho de letras.

    TREPLEV (De ouvido alerta) Estou escutando passos... (Abraa o tio) Eu no posso

    viver sem ela... At mesmo o rudo de seus passos me parece maravilhoso... Eu estou loucamente feliz! (ele vai rapidamente ao encontro de Nina Zaretchnaia, que entra.) Minha fada, meu sonho!...

    NINA (Emocionada) Eu no estou atrasada... Tenho certeza de que no estou... TREPLEV (Beijando-lhe as mos) No, no, no... NINA Eu passei o dia todo to nervosa, com tanto medo! Temia que meu pai no me

    deixasse vir... Mas ele saiu com minha madrasta. O cu est rubro, a lua nascendo e eu toquei meu cavalo o mais que pude. (Ela ri.) Mas estou muito feliz. (Aperta a mo de Sorine.)

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    SORINE (Rindo) Esses olhinhos, parece que andaram chorando... o que isso? Assim

    eu no gosto... NINA No foi nada... Veja como eu estou sem flego. Eu tenho de ir embora dentro de

    meia hora. Vamos nos apressar. Eu no posso, eu no posso, no me retenham aqui, pelo amor de Deus, meu pai no sabe que estou aqui.

    TREPLEV Est mesmo na hora de comear. Eu vou chamar todo mundo. SORINE Eu j vou correndo. (Sai pela direita, cantando.) Eu vi os dois grandes

    granadeiros... (Volta-se.) Certa vez eu comecei a cantar assim e um procurador geral me disse: Vossa Excelncia tem uma voz muito forte... Depois refletiu um pouco, e acrescentou, porm... desagradvel (Sai rindo.)

    NINA Meu pai e a mulher no querem que eu freqente a sua casa. Dizem que por

    aqui h muita boemia... Ficam com medo que, eu queira me tornar atriz... Mas eu me sinto atrada por esse lago como uma gaivota... Meu corao est cheio de voc. (Ela olha em volta de si).

    TREPLEV Estamos sozinhos. NINA Eu acho que ali em baixo... TREPLEV No h ningum. (Beijam-se.) NINA Que rvore essa. TREPLEV Um olmo. NINA Por que ele to sombrio? TREPLEV A noite est caindo e tudo est ficando sombrio. No v embora to cedo,

    por favor. NINA impossvel. TREPLEV E se eu fosse sua casa? Podia ficar a noite toda no jardim, olhando sua

    janela. NINA impossvel por causa do vigia. Alm disso Tesouro ainda no est acostumado

    com voc, e iria comear a latir sem parar. TREPLEV Eu te amo. NINA Shhhhhh... TREPLEV (Ouvindo passos) Quem est a? voc, Jacov?

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    JACOV (Atrs do tablado) s suas ordens. TREPLEV J preparou o lcool? E o enxofre? No momento em que apareceram os dois

    olhos vermelhos preciso que haja cheiro de enxofre. ( Nina) Vai, que est tudo pronto. Est nervosa?

    NINA Apavorada. Sua me ainda v l, no tenho medo dela mas Trigorine est a...

    Representar para ele me assusta, fico com medo... Um escritor famoso... Ele jovem?

    TREPLEV . NINA Como os contos dele so lindos! TREPLEV (Frio) impossvel, eu nunca os li. NINA Sua pea muito difcil de interpretar. Os personagens no so gente de

    verdade. TREPLEV Gente de verdade. No se deve representar a vida como ela nem como vai

    ser, e sim como ela aparece em nossos sonhos. NINA E quase que no h ao, so s falas e falas. E alm disso, eu acho que em toda

    a pea deve existir amor...

    Desaparecem ambos por trs do tablado. Entram Paulina Andreievna e Dorn. PAULINA Est ficando um pouco mido. No acha melhor voltar e enfiar as galochas? DORN Eu estou com calor. PAULINA Voc nunca se cuida. mdico e sabe muito bem que a umidade no lhe faz

    bem, mas faz questo de me fazer sofrer; ontem, ficou a noite inteira no terrao de propsito...

    DORN (Cantarolando) No venha dizer que a juventude se foi. PAULINA Voc estava to fascinado com a conversa de Irina Nikolaievna que nem

    sequer percebeu que estava fazendo frio. Confesse que ela o agrada... DORN Eu tenho cinqenta e cinco anos... PAULINA Cinqenta e cinco anos para um homem no nada. Voc est bem

    conservado, e ainda agrada muito s mulheres. DORN Mas, afinal, o que que voc quer? PAULINA Diante de uma atriz voc fica pronto a cair de joelhos. Todos ficam!

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    DORN (Cantarolando) Eu volto sempre a ti... Se gostamos dos artistas, e se em sociedade eles so tratados de um modo diverso de, digamos, negociantes, porque isso natural. uma questo de idealismo.

    PAULINA As mulheres sempre te adoraram e sempre se atiraram a seus ps. Isso

    tambm idealismo? DORN (Dando de ombros) E da? No que as mulheres sempre sentiram por mim houve

    muita coisa de bom. E o que amavam em mim eram, sobretudo, minhas excelentes qualidades de mdico. H dez ou quinze anos atrs, preciso que se lembre, eu era o nico parteiro de confiana de toda esta regio. E, alm disso, eu sempre fui um homem muito honesto.

    PAULINA (Tomando-lhe a mo) Meu querido! DORN Cuidado. Vem gente.

    Entram Arkadina de brao com Sorine, Trigorine, Chamraev, Medvedenko e Masha. CHAMRAEV Ela representou em 1873 em Poltava, durante a feira; era admirvel!

    Admirvel! Uma maravilha! Ela era admirvel! E ser que a prezada senhora no saberia informar-me que fim levou o cmico Pavel Semionovitch Tchadine? Ele era incomparvel no papel de Raspliouev; melhor que Sadovski, eu lhe garanto, prezada senhora. Por onde ele anda agora?

    ARKADINA O senhor passa o tempo todo a perguntar-me por figuras antidiluvianas.

    Como que eu havia de saber? (Senta-se.) CHAMRAEV (Com um suspiro) Pashka Tchadine! No existem mais artistas como ele! O

    teatro j no o que era. Irina Nikolaievna! Antigamente havia carvalhos frondosos hoje s restam tocos decepados.

    DORN verdade que hoje existem poucos talentos excepcionais, porm o nvel mdio

    dos atores se elevou muito. CHAMRAEV No sou dessa opinio. uma questo de gosto. De gustibus aut bene, aut

    nihil.

    De trs do tablado aparece Treplev. ARKADINA (A seu filho) Meu filho querido, ser que isso vai comear, finalmente? TREPLEV s um instante. ARKADINA (Citando Hamlet) Hamlet! Voltas os olhos meus para minhalma / E nela eu

    vejo tantos pontos negros / que nunca sairo.... TREPLEV (Citando Hamlet) E isso somente / Para viver num leito conspurcado / Em

    meio corrupo.

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    Soa uma trompa por trs do palco.

    TREPLEV Senhoras e senhores, vamos comear! Ateno por favor! (Pausa) Vou

    comear. (Bate com um basto e comea a declamar, com voz forte) Oh vs, velhas sombras venerveis que flutuais noite aps noite sobre esse lago, embalai-nos o sono, para que sonhemos com o que se passar daqui a duzentos mil anos!

    SORINE Daqui h duzentos mil anos no haver mais nada. TREPLEV Pois ento que nos seja mostrado esse nada. ARKADINA Pois que seja. Estamos dormindo.

    Levanta-se o pano; descortina-se a vista sobre o lago; a lua est no horizonte, sua luz reflete-se na gua; Nina, vestida de branco, est sentada sobre uma grande pedra.

    NINA Homens, lees, guias e perdizes, cervos galhados, peixes silenciosos, habitantes

    da gua, estrelas-do-mar, e todos aqueles que os olhos no percebem enfim, toda forma de vida, toda forma de vida, tendo completado seu ciclo de sofrimento, est extinta... H j milhares de sculos que a terra no carrega um nico ser vivo, e a pobre lua acende em vo sua lanterna: As cegonhas no gritam mais ao despertar no prado, no se ouvem mais os besouros de maio nas tlias. Est frio, frio, frio. Vazio, vazio, vazio. Terrvel, terrvel, terrvel. (Pausa) Os corpos das criaturas vivas desintegraram-se em poeira, e a matria eterna as transformou em pedras, em gua, em nuvens, enquanto suas almas se fundiram numa nica alma. Essa alma coletiva, universal, sou eu... eu... sou a alma de Alexandre o Grande, de Csar, de Shakespeare, de Napoleo e da ltima das sangues sugas. Em mim a conscincia do homem confundiu-se com o instinto animal e eu me lembro de tudo, tudo, e vivo de novo cada uma das vidas que existem em mim. (Aparecem fogos-ftuos.)

    ARKADINA (A meia voz) uma dessas coisas decadentes. TREPLEV (Suplicando, mas em tom de represso) Mame! NINA Estou s. Abro os lbios de cem em cem anos, falo e minha voz ecoa tristemente

    no vazio, sem que ningum me oua... Nem vs tampouco, chamas plidas, me ouvis... Na madrugada vs nasceis dos pntanos estagnados para danar at a aurora, sem pensamentos, sem vontade, sem um frmito de vida. Temendo que eu fizesse a vida tremular em vs, o diabo, pai da matria eterna, provoca um fluxo de tomos em vs, nas pedras e nas guas, para que vs transformeis incessantemente. Em todo o universo s o esprito permanece imutvel. (Pausa) Qual um prisioneiro atirando em poo profundo e vazio, no sei onde estou nem o que me espera. S uma coisa me dado conhecer: que na luta desesperada e cruel contra o demnio, fonte das foras materiais, serei vitoriosa. E ento matria e esprito ho de se confundir numa nica e admirvel harmonia, para que comece o reino da vontade csmica. Isso s acontecer muito lentamente, aps uma interminvel cadeia de milnios, quando a lua e a brilhante Srius e a Terra se

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    tiverem transformado em poeira... Mas at ento - o terror, o terror... (Pausa. Ao fundo do palco aparecem dois pontos rubros.) Eis que se aproxima meu poderoso inimigo, o Diabo. Vejo em seus olhos terrveis, que so rubros...

    ARKADINA Est cheirando a enxofre. de propsito? TREPLEV . ARKADINA (Rindo) Em matria de efeito, faz muito efeito!!! TREPLEV Mame! NINA Ele se entedia sem os homens... PAULINA (A Dorn) Voc tirou o chapu. Bote de novo, seno vai se resfriar. ARKADINA O doutor tirou o chapu ante o diabo, que o pai da matria universal. TREPLEV (Indignado, gritando) A pea acabou! Basta! Baixem o pano! ARKADINA Por que que voc se aborreceu? TREPLEV Chega! Cortina! Abaixem a cortina! (Batendo com o p) Cortina! (A cortina

    abaixa). Eu peo que me perdoem! Eu tinha esquecido que s permitido a uns pouqussimos eleitos escrever peas ou pisar num palco. Eu infringi o monoplio. Quanto a mim... eu... (Ele ainda quer alguma coisa, porm faz um gesto de mo e sai pela esquerda.)

    ARKADINA Mas o que que ele tem? SORINE Irina, como pode tratar assim o amor-prprio de um jovem? ARKADINA Mas o que foi que eu disse? SORINE Voc o magoou. ARKADINA Mas foi ele mesmo quem disse que a pea no passava de uma brincadeira,

    e eu a tomei como tal. SORINE Mas mesmo assim... ARKADINA E agora, de repente, temos que achar o que ele escreveu uma obra prima!

    Nem mais nem menos! E que ele organizou esse espetculo, e nos deixou todos cheirando a enxofre, no por brincadeira, mas como protesto! Ele quis nos dar uma lio, ensinar-nos como se deve escrever e como se deve representar. Pois para mim basta! Todos esses ataques permanentes contra mim, todas essas alfinetadas, os senhores ho de convir que eles acabam passando dos limites! Ele no passa de um moleque vaidoso e caprichoso!

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    SORINE Ele queria te agradar. ARKADINA Ah, ? Ento por que razo no escolheu uma pea como qualquer outra,

    ao invs de nos obrigar a ouvir esse delrio decadente? Se se tratasse de uma brincadeira eu era capaz de aturar qualquer tipo de alucinao, mas acontece que no , que houve a pretenso de nos apresentar formas novas, de iniciar uma nova era. Pois na minha opinio no vi nessa coisa nem sombra de coisa nova, s vi um temperamento detestvel.

    TRIGORINE Cada um escreve o que quer, e como pode. ARKADINA Pois ento que ele escreva o que pode, mas que me deixe em paz. DORN Por Jpiter, mas que fria... ARKADINA Eu no sou Jpiter, sou uma mulher (Acende um cigarro.) E no estou

    furiosa. Acho apenas que muito triste ver um rapaz perder seu tempo com coisas assim to mrbidas. E no tive a menor inteno de mago-lo.

    MEDVEDENKO No h nenhuma razo para dissociar o esprito da matria, j que o

    prprio esprito pode ser um conjunto de tomos de matria. (Animado, a Trigorine) Por que algum no escreve uma pea a respeito da vida de um professor? Ser que no haveria ningum que a montasse? uma vida muito dura, muito dura mesmo!

    ARKADINA Sem dvida, mas no vamos mais falar nem de peas nem de tomos! A

    noite est to linda! Esto ouvindo? Esto cantando... (Ela escuta) Que beleza! PAULINA Vem do outro lado do lago. ARKADINA (Para Trigorine) Sente-se perto de mim. Faz dez ou quinze anos,

    praticamente toda noite se ouvia algum cantando no lago. H seis propriedades em torno das margens. Eu me lembro dos risos, do barulho, dos tiros, e de infindveis intrigas amorosas... O gal, o dolo de todas esta manses naquele tempo era... Vejam todos, que vou apresent-lo. (Faz um gesto com a cabea.) o doutor Evgueni Sergueievitch. claro que continua encantador, mas naquele tempo era irresistvel. Ora essa, estou comeando a sentir remorsos. O meu menino, eu o feri! J no me sinto tranqila. (Chama) Costia! Meu filho! Costia!

    MASHA (Saindo pela esquerda) Ei! Constantin Gavrilovitch! Hei! (Sai.) NINA (Vindo detrs do tablado) Creio que no vamos mais continuar e ento eu j

    posso aparecer. Boa noite. (Ela beija Arkadina e Paulina Andreievna.) SORINE Bravo! Bravo! ARKADINA Bravo! Bravo! Ns admiramos muito! Com esse fsico, com essa voz linda,

    no possvel, criminoso, ficar enterrada aqui no campo. Voc tem talento, sem menor dvida. Est me ouvindo? Tem de ir para o palco.

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    NINA o meu sonho! (Com um suspiro). Mas nunca vai se realizar. ARKADINA Quem sabe? Mas, deixe-me apresentar Boris Alexeievitch Trigorine. NINA Ah, que prazer... (Intimidada) Eu leio tudo o que o senhor escreve. ARKADINA (Fazendo-a sentar a seu lado) No precisa ficar encabulada, minha querida.

    Ele clebre, mas uma alma simples. Veja s ele tambm est encabulado. DORN Acho que agora podamos abrir essa cortina, que um pouco assustadora. CHAMRAEV (Gritando) Jacov, levanta essa cortina, meu velho! (A cortina aberta.) NINA uma pea estranha, no ? TRIGORINE Eu no compreendi nada. Mas mesmo assim gostei muito, voc

    representou com tanta sinceridade. E o cenrio maravilhoso. (Pausa) Deve haver muito peixe nesse lago.

    NINA H, sim. TRIGORINE Eu adoro pescar. No conheo maior prazer do que passar a noite

    encostado numa escarpa observando bia do anzol. NINA Eu acho que para quem j experimentou a alegria de criar no pode haver o

    prazer que se compare. ARKADINA (Rindo) No fale assim. Quando lhe dizem coisas bonitas, ele fica com

    vontade de sumir. CHAMRAEV Eu me lembro que uma noite, na pera em Moscou, o clebre baixo Silva

    conseguiu dar um perfeito d grave. Pois imaginem que justamente nesse dia estava nas torrinhas um baixo do coro da nossa igreja e, de repente, imagina s a surpresa geral que foi, ouvir-se l de cima Bravo, Silva exatamente uma oitava mais baixo!... A platia ficou literalmente paralisada. (Pausa).

    DORN Um anjo passou por aqui. NINA Eu tenho de ir. Boa noite. ARKADINA Como? Por que to cedo? Ns no vamos deixar. NINA Papai est me esperando. ARKADINA Ora, ora, esse seu pai... (Beijam-se) O que h de fazer. Mas uma pena

    voc ter de ir. NINA Se a senhora soubesse como difcil para mim, ter de ir!

  • 12

    ARKADINA Algum precisa acompanhar, minha filha. NINA (Assustada) Ah, no, no! SORINE (Suplicante) Fique! NINA No posso, Piotr Nikolaievitch. SORINE Fique s mais uma hora e coisa assim. S um pouquinho. NINA (Depois de haver pensado, quase chorando) No posso, no posso mesmo. (Ela

    lhe aperta a mo e sai rapidamente.) ARKADINA No fundo, essa menina muito infeliz. Dizem que a me deixou toda a

    fortuna, que era enorme, para o marido, tudo, at o ltimo vintm; e agora parece que menina ficou sem nada porque o pai j fez um testamento deixando tudo para a segunda mulher. revoltante.

    DORN , para lhe fazer justia preciso admitir que o papaizinho dela uma boa bisca. SORINE (Esfregando as mos para esquent-las) Como , que tal ns tambm

    entrarmos, que est fazendo frio. Minhas pernas esto me incomodando. ARKADINA Voc as arrasta como se fossem de pau. Vamos, vamos, meu pobre velho. CHAMRAEV (Oferecendo o brao mulher) Madame... SORINE Escutem s: o co j comeou a uivar. (A chamraev). Quer fazer o favor, Ilia

    Afanassievitch, de dar ordens para que ele seja solto. CHAMRAEV Impossvel, Piotr Nikolaievitch; tenho medo que entrem ladres no celeiro,

    que est abarrotado de trigo. (A Medvedenko que est caminhando a seu lado) Isso mesmo, uma oitava abaixo: Bravo, Silva! E no era nem cantor, s corista da igreja!

    MEDVEDENKO Quanto ganha um corista da igreja?

    Saem todos menos Dorn. DORN (Sozinho) No sei, pode ser que eu no entenda nada disso, ou que tenha ficado

    louco, mas gostei da pea. H qualquer coisa nela. Quando aquela menina comeou a falar da solido e, depois que apareceram os olhos do diabo, fiquei to excitado que minhas mos tremiam. novo e ingnuo... Acho que ele est voltando. Preciso dizer a ele como eu gostei.

    TREPLEV (Entrando) J se foram todos. DORN Eu ainda estou aqui.

  • 13

    TREPLEV Mashenka est me procurando por todo o parque. Que criatura insuportvel! DORN Constantin Gavrilovitch, sua pea me agradou profundamente. Ela tem qualquer

    coisa estranha, e no compreendi o final, mas mesmo assim me deixou uma tremenda impresso. Voc tem talento, precisa continuar. (Treplev aperta-lhe fortemente a mo e toma-o nos braos com entusiasmo.) O que isso? Como voc est perturbado? Com lgrimas nos olhos... O que que eu ia dizer? Voc buscou um tema abstrato. E isso que precisa ser feito, porque uma obra de arte deve expressar uma idia grande. S belo o que srio. Como voc est plido!

    TREPLEV Quer dizer que voc acha que devo insistir? DORN Acho... Mas que no retrate jamais nada que no seja importante e eterno. Vou

    dizer-lhe uma coisa: vivi minha vida plenamente, saboreei-a, e sinto-me satisfeito; mas se algum dia tiver experimentado a exaltao do artista quando cria, tenho a impresso de que teria desprezado todo o meu invlucro material, e tudo o que ele pertence, para me elevar muito acima de tudo o que terreno.

    TREPLEV Perdo, mas onde est Nina? DORN E tem mais. Uma obra deve expressar uma idia clara, precisa. Voc deve saber

    por que escreve, seno acaba enveredando por caminhos pitorescos, mas sem objetivo preciso, acaba se perdendo, e o seu talento que ser sua perda.

    TREPLEV (Impaciente) Onde est Zaretchnaia? DORN J foi para casa. TREPLEV (Desesperado) O que que vou fazer? Eu quero v-la. Eu preciso v-la...

    Eu vou at l... (Entra masha.) DORN (A Treplev) Acalme-se, amigo. TREPLEV Eu vou l de qualquer modo. Eu tenho de ir. MASHA Volte para dentro, Constantin Gavrilovitch. Sua mezinha o espera. Ela est

    inquieta. TREPLEV Diz a ela que eu sa. E por favor: me deixe em paz! No me siga por todo

    lado! DORN O que isso, o que isso meu velho... Chega... Assim no fica bem. TREPLEV (Quase chorando) Adeus, doutor. Muito obrigado. (Sai.) DORN (Suspirando) Ah, a mocidade! A mocidade!

  • 14

    MASHA Quando no sabe o que dizer diz-se: ah, a mocidade, a mocidade!... (Ela toma rap.)

    DORN (Arrancando-lhe a tabaqueira e atirando-a nos arbustos.) Que coisa repugnante! (Pausa) Parece que esto tocando msica l dentro. Vamos entrar.

    MASHA Um momento.

    DORN O que foi?

    MASHA Vou repetir-lhe tudo mais uma vez. Sinto vontade de falar... (Com emoo) No amo meu pai, porm meu corao confia no senhor. No sei bem por que, mas tenho a impresso, no fundo da alma que ns nos parecemos... Portanto, ajude-me. Ajude-me ou eu farei uma asneira, desgraarei minha vida, estragarei tudo... Eu no agento mais...

    DORN Mas como? Ajud-la em qu?

    MASHA Estou desesperada. Ningum sabe como eu estou desesperada. (Ela apia suavemente a cabea contra o peito do doutor) Eu amo Constantin.

    DORN Como todo mundo est nervoso! Como todo mundo est nervoso! E quanto amor... E o feitio do lago! (Ternamente) Mas o que que posso fazer por voc, minha filha? O que? O que?

    FIM DO PRIMEIRO ATO

  • 15

    ATO 2

    Campo de croquet. Ao fundo, direita, a casa com uma grande varanda:

    esquerda vemos o lago, no qual se reflete um sol fulgurante. Canteiros de flores. Meio dia. Calor. Perto do campo, sombra de uma velha tlia, sentados num banco, esto Arkadina, Dorn e Masha. H um livro sobre os joelhos de Dorn.

    ARKADINA (A MASHA) Levante-se. (Ambas levantam-se.) Fique em p bem aqui a meu

    lado. Voc tem vinte e dois anos, e eu quase o dobro. Evgueni Sergueievitch, qual de ns tem ar mais jovem?

    DORN Voc claro. ARKADINA A est... E por qu? Porque eu trabalho, vivo, estou sempre me agitando,

    enquanto que voc passa o tempo todo parada sem um mnimo de vida... Alm do que tenho por princpio jamais pensar na velhice nem na morte. O que tem de ser tem de ser e acabou-se.

    MASHA Pois eu sinto que j nasci h tanto tempo, h tanto tempo; arrasto minha vida

    como uma cauda interminvel... E muitas vezes no tenho a menor vontade de viver. (Senta-se) Mas isso no tem a menor importncia. Eu preciso me sacudir, me libertar.

    DORN (Cantarolando) Leva-lhe carinho, leva-lhe meu carinho... ARKADINA E mais ainda, sou to organizada quanto um ingls. Mantenho-me sempre,

    como se diz, em perfeita forma, sempre vestida e penteada comme il faut. Jamais me permiti sair de casa, nem que fosse s para chegar at o jardim, de peignoir, ou sem estar penteada. Sou bem conservada porque nunca fui desleixada, porque nunca me abandonei, como fazem tantas outras... (Com as mos nas ancas, d alguns passos pelo campo.) Apreciem s! Uma franguinha! Boa para fazer papis de meninas de quinze anos.

    DORN Bem, mas mesmo assim espero que permita que eu continue. (Toma o livro.)

    Ns paramos no dono do armazm e os ratos... ARKADINA E os ratos. Leia. (Senta-se.) Ou melhor, d o livro aqui que minha vez.

    (Toma o livro, procura o trecho com os olhos.) E os ratos... Est aqui... (L.) Na verdade, to perigoso para gente de sociedade festejar e atrair romancistas quanto seria para um dono de armazm criar ratos em armazm. E no entanto eles so sempre mimados. Assim, quando uma mulher lana os olhos para um escritor que deseja conquistar, ela se lana ao ataque por meio de elogios, de bajulaes, de favores... Pode ser que na Frana seja assim, mas aqui nunca acontece nada com essa premeditao. Aqui antes de conquistar um escritor, a mulher j est apaixonada por ele, envolvida at o pescoo. Sem ir muito longe, vejam Trigorine e

  • 16

    eu. (Entra Sorine, apoiado em sua bengala; a seu lado, Nina; atrs dos dois, Medvedenko, que empurra uma cadeira de rodas).

    SORINE (Em tom de quem fala como uma criana) Ento? Estamos contentes? At

    que enfim hoje estamos contentes! ( irm) Estamos felicssimos! Pai e madrasta foram para Tver, e temos trs dias inteiros de liberdade.

    NINA (Senta-se ao lado de Arkadina e passa os braos em volta dela.) Eu estou to

    feliz! Agora eu perteno a voc. SORINE (Sentando-se em sua cadeira) Olhem s como ela est bonita! ARKADINA Elegante, bonita... Que menina boazinha! (Beija Nina) melhor no falar

    muito, por causa do mau-olhado. Onde est Boris Alexeievitch? NINA Est pescando no lago. ARKADINA Mas ser que ele no se cansa nunca de pescar? (Prepara-se para

    continuar a leitura.) NINA O que que vocs esto lendo? ARKADINA Maupassant, minha querida, Sobre a gua. (Ela l algumas linhas para si

    mesma.) Bom, o que vem depois no muito interessante, e falso. (Fecha o livro.) Eu estou aflita. Ser que vocs podem me dizer o que que h com meu filho? Por que que ele anda to triste, to solene? Passa o dia inteiro no lago, e eu praticamente no vejo mais ele.

    MASHA Ele anda muito deprimido. ( Nina, timidamente.) Ser que voc no podia ler

    uns trechos da pea dele? NINA (Dando de ombros) Vocs querem? to sem graa! MASHA (Dominando sua indignao) Pois quando ele l, seu rosto empalidece. A voz

    fica linda e triste; seus gestos so de poeta.

    Ouve-se sorine roncando DORN Boa noite! ARKADINA Petrushka! SORINE Hein? ARKADINA Voc est dormindo? SORINE Eu, no! (Pausa) ARKADINA Voc no se cuida, meu irmo; faz muito mal.

  • 17

    DORN Se cuidar! Com sessenta anos! SORINE Com sessenta anos tambm se tem vontade de viver. DORN (Irritado) Pois ento toma umas gotinhas de valeriana. ARKADINA Eu acho que uma estao de guas ia fazer bem a ele. DORN E por que no? Eu tambm acho que is. Ou que no ia. ARKADINA Que brincadeira essa; charada? DORN Charada nenhuma; eu fui perfeitamente claro.(Pausa) MEDVEDENKO O que Piotr Nikolaievitch precisava era parar de fumar. SORINE Isso no tem menor importncia. DORN Claro que tem! O vinho e o tabaco destroem a personalidade. Depois de um

    charuto ou de um copo de vodka voc no mais Piotr Nikolaievitch, e sim Piotr Nikolaievitch, mas uma outra pessoa; o seu eu empalidece, e voc pensa em si mesmo na terceira pessoa como ele.

    SORINE Para voc muito fcil ficar falando. Voc viveu; e eu? Trabalhei vinte e oito

    anos no Ministrio da Justia, mas no vivi, no vi nada, no fiz nada, de modo que muito natural que continue ainda hoje com vontade danada de viver. Voc fala de barriga cheia, e por isso que pode ficar bancando o filsofo, enquanto eu... Eu tenho vontade de viver, e por isso que eu tomo o meu xerez, e fumo meus charutos, etc, etc...

    DORN A vida deve ser levada a srio, e, desculpe, mas ficar se cuidando aos sessenta

    anos, e ficar se lamentado de no ter gozado a vida na juventude, bobagem. MASHA (Se levantando) J deve ser hora do almoo. (Sai com passo arrastado, difcil)

    Minha perna est dormente. (Sai.) DORN L vai ela tomar seus bons goles antes do almoo. SORINE Coitada, ela no feliz. DORN Tolice, excelncia. SORINE Voc fala como um homem que teve tudo o que quis. ARKADINA O que que pode haver de mais aborrecedor do que a encantadora

    monotonia do campo! Faz calor, tudo calmo, ningum faz nada e todo mundo fala... Eu me sinto muito bem aqui, entre amigos, e gosto de ouvir o que dizem, mas... Bom mesmo ficar num quarto de hotel decorando um papel!

  • 18

    NINA (Exaltada) Ai que maravilhoso! Como eu compreendo! SORINE Claro que a cidade sempre melhor. Fica-se sentado no escritrio, o criado

    no deixa entrar ningum sem ser anunciado, h telefone... E na rua h carruagens por todo lado, etc, etc...

    DORN (Cantarolando) E eu s penso neles, s penso neles...

    Entra Chamraev seguida de Paulina Andreievna. CHAMRAEV Todo mundo aqui. Bom dia! (Beija a mo de Arkadina, depois Nina.) Fico

    muito contente em ver que esto todos com sade. ( Arkadina) Minha mulher disse que as duas esto pensando em ir cidade hoje. verdade?

    ARKADINA Estamos, sim. CHAMRAEV Hummm... Perfeito, mas com que meio de transporte estava contando,

    prezada senhora? Hoje dia de colheita, e todos os criados esto ocupados. E, se me permitir perguntar, que cavalos a senhora pretendia usar?

    ARKADINA Que cavalos? E como que eu vou saber de cavalos? SORINE Mas ns temos os cavalos de carruagem. CHAMRAEV (Agitado) Da carruagem! E atrelar com que? Onde que eu vou descobrir

    com que atrelar os tais cavalos? um fenmeno! incrvel! Prezadssima senhora! Peo mil desculpas, tenho venerao pelo seu talento, estou disposto a lhe dar dez anos da minha vida, mas no posso ceder os cavalos.

    ARKADINA Mas eu preciso ir cidade! muito engraado... CHAMRAEV Prezada senhora! A senhora, de agricultura no entende nada. ARKADINA (Estourando) sempre a mesma histria! Pois nesse caso eu volto para

    Moscou hoje mesmo. Faa o favor de mandar alugar cavalos na aldeia, seno eu irei a p mesmo para a estao!

    CHAMRAEV (Estourando) Pois nesse caso eu peo demisso! Tratem de arranjar outro

    administrador! (Sai.) ARKADINA Todo vero a mesma coisa, todo vero eu venho aqui para ser insultada!

    Nunca mais boto os ps nessa casa!

    Ela sai na direo da esquerda, onde se deve encontrar a cabana para banhos; um instante mais tarde vemo-la entrando na casa com Trigorine que caminha atrs dela carregando canios e uma balde de madeira.

  • 19

    SORINE (Estourando) Que insolncia! Como que ele se permite uma coisa dessas? Mas basta! Mandem atrelar todos os cavalos!

    NINA ( Paulina Andreievna) Recusar alguma coisa a Irina Nikolaievna, a uma atriz!

    Ser que qualquer desejo dela mesmo, que seja um capricho, no mais importante do que a agricultura dele? incrvel!

    PAULINA (Com desespero) E o que que eu posso fazer? Ponha-se no meu lugar: o

    que que eu posso fazer? SORINE ( Nina) Vamos l com a minha irm... Vamos pedir para ela no ir, no ?

    (Olhando na direo na qual Chamraev saiu) Ele insuportvel! Um tirano! NINA (Impedindo-o de levantar-se) Fique sentado, o que isso? Ns empurramos a

    sua cadeira... (Ela e Medvedenko empurram a cadeira.) Ai, foi tudo to desagradvel...

    SORINE Isso mesmo, foi horrvel... Mas ele no vai embora nada. Daqui a pouco eu falo

    com ele.

    Saem. Ficam ss Dorn e Paulina Andreievna. DORN Ai, como as pessoas so cansativas; esse seu marido devia ser posto na rua,

    mas no fim das contas vo ser os dois, o covardo do Piotr Nikolaievitch e a irm, que vo pedir perdo a ele... Voc vai ver!

    PAULINA Ele mandou os cavalos da carruagem para o campo. E todo dia eles se

    desentendem. Se voc soubesse como tudo isso me faz mal! Fico doente! Olhe, estou tremendo toda! Eu no suporto mais grosseria. (Suplicante) Evgueni, meu querido, meu amor, me leva embora daqui com voc... O tempo est passando, ns no somos mais moos, e se pelo menos no fim de nossas vidas pudssemos deixar de nos esconder, de mentir... (Pausa)

    DORN Eu estou com cinqenta e cinco anos; muito para mudar de vida. PAULINA Eu sei, voc no quer ir comigo porque ainda h outras mulheres na sua vida.

    E no pode levar todas para viver com voc. Eu compreendo. Desculpe, sei que est cansado de mim.

    Nina aparece perto da casa. Est colhendo flores.

    DORN No nada disso. PAULINA o cime que me tortura. Eu sei que voc mdico, e no pode evitar as

    mulheres. Eu compreendo... DORN ( Nina, que se aproxima) Como que esto indo as coisas por l?

  • 20

    NINA Irina Nikolaievna est chorando e Piotr Nikolaievitch est tendo um ataque de asma.

    DORN melhor eu ir l dar gotas de valeriana a todo mundo... NINA (Oferecendo-lhe as flores) Tome! DORN Merci bien! (Vai saindo em direo a casa) PAULINA (Caminhando a seu lado) Que flores bonitas. Me d aqui! D aqui! (Ele lhe

    d as flores, ela estraalha e as joga fora; ambos entram na casa.) NINA (S) Como esquisito ver uma artista clebre chorar e ainda mais por uma

    bobagem dessa! E no esquisito que um grande escritor, dolo de multides, de quem os jornais no param de falar, que tem retrato vendido em todo lugar, que traduzido para o estrangeiro, passe o dia inteiro pescando e fique delirando porque pegou dois peixes. Eu pensava que gente clebre fosse orgulhosa, inacessvel, que desprezasse o povo, e que se servisse de sua glria, da importncia do seu nome, para se vingar dos que acham que o nome e o dinheiro que ficam acima de tudo. Mas, quando agente v, eles choram, pescam, jogam cartas, riem e ficam zangados como todo mundo...

    Treplev entra, sem chapu, carregando um fuzil e uma gaivota morta.

    TREPLEV Voc est sozinha? NINA Estou. (Treplev deposita a gaivota a seus ps.) NINA O que que isso quer dizer? TREPLEV Hoje eu tive a baixeza de matar uma gaivota. Deposito-a a seus ps. NINA O que que voc tem? (Pega a gaivota e olha-a.) TREPLEV (Aps uma pausa) assim que eu vou me matar. No demora muito. NINA Voc mudou muito; agora eu mal o conheo. TREPLEV Eu sei; desde o dia em que eu mal a reconheci. Voc no mais a mesma

    comigo, seu olhar ficou frio, minha presena te incomoda. NINA Voc anda to irritado ultimamente. Diz as coisas de modo incompreensvel, por

    meio de smbolos. E provavelmente essa gaivota tambm um smbolo, mas desculpe, eu no o compreendo... (Ela pousa a gaivota no banco.) Eu sou muito simples para poder te compreender.

    TREPLEV Tudo comeou na noite em que minha pea fracassou de modo to estpido.

    As mulheres no perdoam o fracasso. Eu queimei tudo, at a ltima linha. Se voc soubesse como estou infeliz! O seu afastamento assustador, inacreditvel, assim

  • 21

    como se eu acordasse um dia e visse que o lago tinha secado, ou que toda gua tivesse desaparecido dentro da terra. Voc disse que ingnua demais para me compreender. Mas compreender o qu? Minha pea no agradou, voc faz pouco caso da minha inspirao, me considera uma mediocridade, uma nulidade, como tantas por a... (Batendo o p no cho) Eu compreendo muito bem! como se tivessem pregado um maldito de um prego no crebro, e com ele esse amor-prprio que suga o sangue, que me suga como uma serpente...(Percebendo Trigorine, que caminha lendo um livro) L vem ele, o gnio verdadeiro; repare s como ele entra, caminhando como Hamlet, segurando um livro como Hamlet. (Arremedando) Palavras, palavras, palavras... O sol mal se aproximou de voc, mas voc est sorrindo, seus olhos j se derretem ao impacto dos raios solares. No quero incomod-la. (Sai precipitadamente.)

    TRIGORINE (Tomando notas num caderninho) Ela cheira rap e bebe vodka. Est

    sempre de preto. O professor est apaixonado por ela... NINA Bom dia, Boris Alexeievitch! TRIGORINE Bom dia. Uma srie de imprevistos nos obriga a partir hoje mesmo,

    parece. Provavelmente nunca mais vamos nos encontraremos. uma pena. No todo dia que conheo mocinhas jovens e curiosas. Eu j tinha esquecido; no consigo mais imaginar o que se sente com dezoito ou dezenove anos, em meus romances as mocinhas sempre soam falsas. Eu gostaria de poder ficar no seu lugar, ao menos por uma hora, para descobrir em que voc costuma pensar, do que voc feita.

    NINA Pois eu gostaria de estar no seu lugar. TRIGORINE Para qu? NINA Para descobrir o que sente um escritor clebre. Qual a sensao da glria? De

    que modo ser clebre o afeta? TRIGORINE De que modo? Acho que nenhum. Nunca pensei nisso. (Depois de refletir)

    Olha, das duas uma: ou voc est exagerando a minha celebridade, ou ento ela me afeta de modo algum.

    NINA E quando l tudo o que dizem a seu respeito nos jornais? TRIGORINE Quando falam bem agradvel; quando falam mal fico de mau humor uns

    dois dias. NINA O mundo maravilhoso! Se soubesse como eu o invejo! O destino dos homens

    varia tanto. Alguns sofrem arrastando suas vidas tristes e medocres; todos iguais, todos infelizes; outros como no seu caso tem a oportunidade de viver uma vida apaixonante, luminosa, cheia de sentido... O senhor feliz...

    TRIGORINE Eu (D de ombros) Hum... Sabe de uma coisa, voc fala de glria, de

    felicidade, de no sei o que de vida de luz e intensidade, e, para mim, tudo isso no

  • 22

    passa de palavras bonitas. Desculpe, mas como um doce lindo que no se pode comer nunca. Voc muito jovem e muito boa.

    NINA Mas sua vida maravilhosa. TRIGORINE Ento me diga o que ela tem de particularmente agradvel! (Olha o

    relgio.) Agora eu tenho de ir trabalhar, escrever. Peo que me desculpe, mas no tenho muito tempo... (Ri.) Voc pisou, como se diz, no meu calo de estimao, e eu estou comeando a ficar excitado e um pouquinho irritado. Mas, mesmo assim, vamos falar um pouco dessa minha vida maravilhosa e luminosa... Bem, por onde vamos comear? (Depois de pensar) Existem certas idias fixas, que fazem um homem passar dia e noite pensando numa coisa s, como a lua, por exemplo; e eu tenho a minha lua particular. Dia e noite, sem parar, eu sou possudo por uma nica idia: eu tenho de escrever, eu preciso escrever, preciso escrever... Mal acabo um romance, eu me sinto obrigado, sei l por que, a comear outro, e depois um terceiro, e um quarto... Eu escrevo sem parar, como se tivesse medo de quebrar o fio da meada; e no consigo fazer de outro modo. E ento eu pergunto o que h de maravilhoso ou luminoso nisso? uma vida absurda! Eu estou aqui com voc, estou perturbado e emocionado, mas nem assim consigo esquecer um segundo o romance que ainda no acabei. De repente eu vejo uma nuvem que parece um piano de cauda. Eu digo a mim mesmo: eu tenho de dizer em algum lugar que aquela nuvem parece um piano de cauda. Sinto o perfume de heliotrpio, e imediatamente tenho de aproveit-lo: um perfume adocicado, uma flor de viva, a ser utilizado na descrio de uma noite de vero. Eu presto ateno ao que voc diz, ao que eu digo, examino cada palavra que usamos, e me apresso em catalogar tudo no meu depsito literrio particular; quem sabe um dia no poderei aproveitar alguma coisa? Quando acabo de trabalhar, corro para o teatro ou vou pescar; chegou enfim o momento de descansar, de relaxar; mas, no uma espcie de bola de ferro, pesadssima, j comeou a rodar na minha cabea: um assunto novo. J me sinto de novo atrado para a mesa de trabalho, sinto que tenho de recomear a escrever, e a escrever, e a escrever, a toque de caixa. E sempre a mesma coisa, no dou a mim mesmo um momento de alvio. Sinto que estou devorando a minha prpria vida, e que para conseguir o mel que dou a no sei quem, que vive no sei onde, estou saqueando o plen das minhas melhores flores, arrancando as prprias flores, destruindo tudo da raiz. Ser que no estou louco? Ser que meus amigos e conhecidos me tratam como se trata algum so, normal? O que que est escrevendo agora? O que que est preparando para ns? Sempre a mesma coisa, a mesma coisa, e eu tenho a impresso que o cuidado que todos tm comigo, os elogios, a admirao, tudo no passa de uma farsa monumental, e que sou enganado como se engana um doente; j cheguei mesmo a ter medo que algum viesse me agarrar pelas costas para me levar (como Popristchine) para o hospcio. E antigamente, quando comecei a escrever, era um sofrimento ininterrupto. Um escritorzinho, particularmente quando no tem muita sorte, tem sempre a impresso de ser desastrado, canhestro, intil; e est sempre com os nervos tensos, flor da pele. Ele no consegue impedir de rondar todo o mundo que metido em literatura ou arte e, desconhecido e ignorado, tem medo de encarar as pessoas. como um jogador viciado que no tem dinheiro para jogar. Eu no conhecia o meu leitor, mas o imaginava, no sei por que, como um ser hostil e desconfiado. Tinha medo do pblico, ele me assustava, e quando estreado minha

  • 23

    primeira pea, tive a impresso que todos os morenos da platia me odiavam, e que todos os louros eram glacialmente indiferentes. Como era horrvel! Que sofrimento!

    NINA Mas o momento de inspirao, o prprio sucesso da criao no lhe trouxe

    momentos de intensa felicidade? TRIGORINE Trouxe. Enquanto escrevo me sinto feliz. E me sinto feliz quando leio

    provas, mas... a partir do dia em que o livro sai, no o suporto mais; vejo que no era nada daquilo, que foi tudo um engano, que no devia ter escrito uma s palavras, daquelas, fico revoltado, repugnado...(Rindo) E o pblico l e diz: ", agradvel, tem muito talento... encantador, mas fica longe de Tolstoi", ou " excelente, mas no to bom quanto Pais e Filhos de Turgenev...". E vai ser assim at eu morrer: tudo no vai passar nunca de agradvel, e talentoso, agradvel e talentoso - e pronto. Quando eu morrer, todo mundo que me conheceu, ao passar perto do meu tmulo, vai dizer: "Aqui jaz Trigorine. Bom escritor, mas no to bom quanto Turgenev".

    NINA Desculpe, no compreendo. Seu problema s estar estragado demais pelo

    sucesso. TRIGORINE Que sucesso? Isso um gosto que nunca senti. Eu no gosto de mim

    mesmo como escritor. E o pior que vivo como que em estado de embriagues, e muitas vezes no sei o que estou escrevendo... Eu amo essa gua, essas rvores, esse cu; eu sinto a natureza, que provoca em mim um desejo irresistvel de escrever. Mas eu no sou apenas um pintor de paisagens, sou tambm um cidado; amo minha ptria, meu povo, e sinto que, j que sou escritor, meu dever falar do povo, de seus sofrimentos, de seu futuro, falar da cincia, dos direitos do homem, assim por diante. Ento falo de tudo, sempre apressado, fustigado por todos os lados, atordoado. Saio correndo como uma raposa, perseguida por um bando de ces, vejo que a vida e a cincia avanam cada vez mais, e que eu vou ficando cada vez mais para trs, como um moleque que perde o trem. E, no final das contas, sinto que s sei mesmo descrever a paisagem e que fora disso, tudo o que escrevo total e absolutamente falso.

    NINA Voc trabalhou demais e no teve tempo nem vontade de tomar conscincia de

    seu valor. Voc pode estar insatisfeito consigo mesmo, mas para os outros, voc importante e maravilhoso! Se eu fosse um escritor como voc, eu dedicava minha vida inteira multido ignorante, mas teria conscincia de que no haver maior felicidade para ela do que se elevar at mim, e me puxar num carro triunfal.

    TRIGORINE Agora j tenho at carro triunfal... Lembre-se que ainda no sou bem

    Agamemnom! (Ambos sorriem.) NINA Pela felicidade de ser escritora, ou atriz, eu enfrentaria a hostilidade de minha

    famlia, a pobreza, as decepes; podia morar em qualquer lugar, comer po dormido, suportaria o descontentamento comigo mesma, consciente de minhas imperfeies, mas - em troco - exigiria a glria... A glria verdadeira, esplendorosa... (Cobre o rosto com as mos.) Eu fico at tonta... Ufff!

  • 24

    ARKADINA (Off, vindo da casa) Boris Alexeievitch! TRIGORINE Esto me chamando... Acho que tenho de ir fazer as malas. No tenho a

    menor vontade de sair daqui. (Olha o lago.) Que paraso!!... Aqui to bom! NINA Est vendo aquela casa com jardim na outra margem? TRIGORINE Estou. NINA a casa da minha me, que j morreu. Foi l que eu nasci. Passei minha vida

    inteira s margens do lago, e no h uma s ilha que eu no conhea. TRIGORINE Como a gente se sente bem aqui! (Nota a gaivota.) O que isso? NINA Uma gaivota. Foi Constantin Gavrilovitch quem matou. TRIGORINE Que bonita! Eu realmente estou sem a menor vontade de ir embora. Ser

    que voc no podia convencer Irina Nikolaievna para eu ficar? (Anota qualquer coisa no caderninho.)

    NINA O que que voc est escrevendo? TRIGORINE Nada. Tomando notas... Idias para um assunto... (Guarda o caderninho no

    bolso.) Para uma pequena novela: uma jovem vive desde a infncia perto de um lago, uma moa assim como voc; ela ama o lago como uma gaivota, feliz e livre como uma gaivota. Mas aparece um homem que a v, assim toa, s por falta do que fazer tira-lhe a vida, como se ela fosse uma gaivota.

    ARKADINA (Aparece em uma das janelas.) Boris Alexeievitch, onde que voc se

    meteu? TRIGORINE J vou! (Sai, voltando-se na direo de Nina. sob a janela, a arkadina) O

    que foi? ARKADINA Ns vamos ficar. (Trigorine entra na casa.) NINA (Desce at a ribalta. Aps um momento de devaneio) um sonho!

    FIM DO SEGUNDO ATO

  • 25

    ATO 3

    Sala de jantar da casa de Sorine. Portas direita e esquerda um buffet e um armrio com remdios. Ao centro uma mesa. Malas e pacotes; preparativos de partida. Trigorine almoa; Masha est de p junto mesa.

    MASHA Estou contando tudo isso a voc como escritor. Pode se servir. Estou dizendo a

    verdade: se ele tivesse se ferido seriamente eu no conseguia viver nem mais um segundo. Mas, apesar de tudo, sou corajosa, e tomei uma deciso irrevogvel: vou arrancar esse amor do meu corao pela raiz.

    TRIGORINE Como? MASHA Vou me casar com Medvedenko. TRIGORINE O professor? MASHA . TRIGORINE No vejo em que isso vai adiantar. MASHA Amar sem esperana, esperar anos a fio, esperar por qu? Se eu me casar vou

    ter mais em que pensar; e preocupaes diferentes acabam sufocando o passado. E, de qualquer modo, eu tambm hei de mudar. Vamos tomar mais um?

    TRIGORINE No pouco demais? MASHA O que isso? (Ela serve os dois copos.) No precisa me olhar assim. As

    mulheres bebem com muito mais freqncia do que se pensa. Umas poucas abertamente, como eu, e a maioria, escondida. E sempre vodka ou conhaque. (Bate seu copo no dele.) sua! Voc um homem sem complicaes; uma pena que esteja indo embora.

    TRIGORINE E eu no tenho a menor vontade de ir. MASHA Pea a ela para ficar. TRIGORINE No, agora ela no fica mais. O filho tem se comportada com uma falta de

    tato inacreditvel. Primeiro tentou se matar, e agora parece que est querendo me desafiar para um duelo. No sei para que tudo isso. Fica emburrado, prega formas novas. Mas h lugar para todo mundo, tanto para os novos quanto para os velhos, para que ficar emburrado?

    MASHA E no se esquea do cime. Mas isso no problema meu. (Pausa. Jacov

    atravessa a cena da esquerda para a direita com uma mala na mo; Nina entra e para perto da janela.) Meu professor no muito inteligente, mas bom e pobre, e me ama muito. Tenho pena dele. E da me dele, que muita velhinha. Bem, eu lhe desejo tudo de bom. No guarde lembranas de mim. (Aperta-lhe fortemente a

  • 26

    mo.) Muito obrigada por sua compreenso. Mande-me seus livros, sem o esquecer da dedicatria. Mas no diga "respeitosamente", por favor. Diga s "Maria, a rf que vive sem saber por que". Adeus (Sai.)

    NINA (Estendendo a mo fechada na direo de Trigorine sua mo fechada) Par ou

    mpar? TRIGORINE Par. NINA (Suspirando) No; s tenho um gro de ervilha na mo. Eu tinha apostado

    comigo: se ele acertar eu vou ser atriz... Se ao menos algum me aconselhasse. TRIGORINE Mas num caso desse ningum pode dar conselhos. (Pausa) NINA Ns vamos nos separar e... possvel que nunca mais nos encontremos. Quer

    fazer o favor de aceitar este pequeno medalho? Mandei gravar suas iniciais... e, no outro lado, o ttulo de um livro seu: Dias e Noites.

    TRIDORINE Mas lindo. (Beija o medalho.) Que presente encantador. NINA Lembre-se de mim, de vez em quando. TRIGORINE Vou lembrar. Vou lembrar como voc estava naquele dia lindo, lembra-se?

    Faz uma semana. Voc estava com um vestido claro... Ns conversamos... havia uma gaivota branca no banco.

    NINA (Sonhadora) , uma gaivota. (Pausa) No podemos continuar, j vem gente...

    Antes de partir, por favor, me de ao menos dois minutos... (Ela sai pela esquerda; ao mesmo tempo Arkadina entra pela direita, Sorine de sobrecasaca, com a estrela de alguma ordem, segue Jacov, preocupado com as malas.)

    ARKADINA melhor voc ficar em casa, meu velho...Com tudo esse reumatismo no

    vai me dizer que vai sair por a andando para cima e para baixo? (A Trigorine) Quem que saiu daqui? Foi Nina?

    TRIGORINE Foi. ARKADINA Pardon, no queria atrapalhar os dois... (Senta-se) Acho que as malas esto

    prontas. Eu no agento mais. TRIGORINE (Lendo a inscrio do medalho) Dias e Noites, pgina 121, linhas 11 e 12. JACOV (Desimpedindo a mesa) Os canios tambm so para empacotar? TRIGORINE Claro, eu sempre uso. Mas os anzis voc pode dar a quem quiser. JACOV Sim, senhor.

  • 27

    TRIGORINE (A si mesmo) Pgina 121, linhas 11 e 12. O que ser que h nessas linhas? ( Arkadina) Existem livros meus nesta casa?

    ARKADINA No escritrio do meu irmo, na estante do canto. TRIGORINE Pgina 121. (Sai.) ARKADINA Fora de brincadeira, Petrushka, era melhor voc ficar em casa. SORINE Voc vai embora; muito duro ficar aqui sem voc. ARKADINA E na cidade, o que que h de especial? SORINE Nada de especial, mas mesmo assim. (Ri.) Tem sempre um lanamento de

    pedra fundamental, etc... Quero sair desta vida estagnada, nem que seja por uma ou duas horas, seno vou comear a me sentir como uma piteira velha, esquecida numa prateleira empoeirada. Mandei atrelar os cavalos para a uma. De modo que partirmos juntos.

    ARKADINA (Aps uma pausa) Fique aqui, no se chateie muito, e no se resfrie. Tome

    conta de meu filho. Cuide dele. D-lhe uns conselhos. (Pausa) Eu vou embora e nunca vou saber que razo Constantin tentou se matar, eu acho que foi cime, de modo que, quanto mais depressa eu tirar Trigorine daqui, melhor.

    SORINE Sim e no. Havia outras razes tambm. compreensvel... Um rapaz jovem,

    inteligente, vivendo no campo, no meio do nada, sem dinheiro, sem posio, sem futuro. Sem ter o que fazer. Ele sente medo e vergonha de ser um desocupado. Eu gosto muito dele, e ele muito agarrado a mim, mas, no fundo, ele acha que demais na casa, que um parasita, s mais uma boca para comer. Compreende-se que seu amor prprio...

    ARKADINA Ah, que preocupao... (Sonhadora) E se ele entrasse para o servio

    pblico? SORINE (Assovia, depois diz timidamente.) Eu acho que o melhor era... Dar um pouco

    de dinheiro a ele. Para incio de conversa ele precisa se vestir de modo mais conveniente, etc, etc. Olha s para ele: h trs anos que usa o mesmo casaco, e nem sequer tem um sobretudo. Alm disso, o rapaz precisa arejar um pouco, o que no vai lhe fazer nenhum mal... Ir para o estrangeiro, por exemplo, no custa tanto assim.

    ARKADINA Agora tambm chega... Eu posso comprar uma roupa para ele, mas ir para

    o estrangeiro... No, no momento nem mesmo a roupa eu posso. (Decidida) Eu no tenho dinheiro! (Sorine ri.) No tenho!

    SORINE Est bem, est bem. Desculpe querida, no precisa ficar zangada. Eu

    acredito... Voc uma mulher nobre e generosa. ARKADINA (Em lgrimas) Eu no tenho dinheiro!

  • 28

    SORINE Se eu tivesse, eu mesmo dava, claro; mas eu no tenho nada, nem um

    vintm. (Ri.) O administrador pega toda a minha aposentadoria para investir em plantaes, e gado e abelhas, e o dinheiro some sem adiantar nada para ningum. As abelhas morrem, as vacas morrem, e eu nunca consigo que me deixem usar os cavalos...

    ARKADINA Eu tenho dinheiro, mas eu sou atriz, s em roupas eu tenho que gastar uma

    fortuna. SORINE Voc boa e gentil... Eu gosto muito de voc... , sim... Estou me sentindo

    mal... (Cambaleando). Estou tonto. (Agarra-se mesa) Estou me sentindo mal, etc., etc...

    ARKADINA (Assustada) Petrushka! (Tenta sustent-lo) Petrushka, meu querido! (Grita)

    Socorro! Socorro!... Me Ajudem! (Entram Treplev, com a cabea bandada, e Medvedenko.) Ele est passando mal!

    SORINE No nada... (Ele sorri e bebe gua.) J acabou, etc, etc... TREPLEV ( me) Acalme-se mame, no nada demais. Isso coisa muito freqente.

    (Ao tio) Voc devia se deitar um pouco, meu tio. SORINE Um pouco, est bem. Mas mesmo assim eu vou a cidade. Vou me deitar um

    pouco e depois saio... Estamos entendidos?... (Afasta-se, apoiando-se na bengala.) MEDVEDENKO (Ajudando-o a caminhar) O Senhor conhece a charada: de manh anda

    de quatro, ao meio-dia de duas, e de tarde de trs...? SORINE isso mesmo. E de noite de costas. Muito obrigado, mas eu posso muito bem

    andar sozinho... MEDVEDENKO Vamos, vamos, deixe de histria!... (Saem ambos.) ARKADINA Que susto eu levei! TREPLEV No faz bem ele morar no campo. Ele est murchando. Mame, se voc

    pudesse ter um acesso repentino de generosidade, e emprestasse a ele dez ou quinze mil rublos, ele podia passar um ano inteiro na cidade.

    ARKADINA Eu no tenho dinheiro. No sou banqueiro, sou atriz. (Pausa) TREPLEV Mame, voc no quer mudar o meu curativo? Voc muda melhor que os

    outros. ARKADINA (Pegando no armrio de remdios iodo e uma lata com gazes e ataduras) O

    Doutor est atrasado. TREPLEV Ele prometeu vir s dez, e j meio-dia.

  • 29

    ARKADINA Senta a. (Ela retira o curativo.) Parece at um turbante. Ontem no sei

    quem andou perguntando na cozinha a sua nacionalidade. Est quase cicatrizado. S falta um pedacinho toa. (Beija-o na cabea.) Voc no vai voltar a fazer bobagens enquanto eu estiver longe, vai?

    TREPLEV No, mame. Foi um momento de desespero, em que eu perdi o controle.

    No acontece mais. (Beija a mo dela.) Sua mo to leve. Eu me lembro, h muito tempo, quando voc ainda estava no Teatro do Estado eu ainda era muito pequeno houve uma briga enorme no quintal, e bateram muito numa lavadeira que morava l em casa. Lembra? Ela perdeu os sentidos... E voc ia ver ela todos os dias, levava remdios e dava banho nos filhos dela numa tina. No est se lembrando?

    ARKADINA No. (Ela coloca o novo curativo.) TREPLEV E de outra vez, duas bailarinas morando l em casa. Elas vinham sempre nos

    visitar e vocs tomavam caf juntas. ARKADINA Isso eu me lembro. TREPLEV Elas eram muito piedosas. (Pausa) Nestes ltimos dias eu te amei to

    completamente, to carinhosamente como quando eu era criana. No tenho ningum no mundo a no ser voc. Mas ento por que? Porque voc se deixa influenciar por esse homem?

    ARKADINA Voc no compreende, Constantin; ele muito nobre de carter... TREPLEV Mas nem por isso, quando soube que ia desafi-lo para um duelo, sua

    nobreza o impediu de ser covarde. Fugiu vergonhosamente. ARKADINA Que bobagem. Fui eu quem pedi a ele que sumisse. TREPLEV Muito nobre. Enquanto ns ficamos aqui quase nos engalfinhando por causa

    dele, ele deve estar em algum lugar, no salo, ou no jardim, se divertindo s nossas custas... E ajudando Nina a se encontrar, convencendo-a de uma vez por todas que um gnio.

    ARKADINA Voc adora me dizer coisas desagradveis. Eu respeito esse homem e no

    admito que falem mal dele na minha presena. TREPLEV Pois eu no o respeito nem um pouco. Voc quer que eu tambm ache ele

    genial, mas sinto muito, eu no sei mentir e os livros dele me embrulham o estmago!

    ARKADINA Isso cime. A nica coisa que resta gentinha pretensiosa e sem talento

    caluniar os verdadeiros talentos. Bonito consolo!

  • 30

    TREPLEV Verdadeiros talentos! (Furioso) Pois fique sabendo, que eu tenho mais talento que todos vocs juntos. (Arranca o curativo.) Vocs, os cabotinos, tomaram o poder nas artes e acham que s vocs tm o direito de viver, e que s o que vocs fazem valido, todo o mais vocs tratam de suprimir, de sufocar! Mas eu no reconheo o poder de vocs, nem o seu, nem o dele!

    ARKADINA Decadente! TREPLEV Vai para o seu teatro, vai representar a porcaria das suas pecinhas idiotas! ARKADINA Eu nunca representei peas idiotas! Voc incapaz de escrever um simples

    vaudeville, por mais medocre que seja! Pequeno burgus de Kiev! Parasita! TREPLEV Avarenta! ARKADINA Vagabundo! (Treplev senta-se e chora sozinho) Nulidade! (Ela anda de um

    lado para o outro, agitada.) No chore, pra de chorar... (Ela chora.) Pra de chorar... (Ela beija a cabea dele.) Meu filhinho querido, me perdoa... Perdoa sua me culpada. Perdoe, eu sou uma infeliz!

    TREPLEV (Tomando-a nos braos.) Se voc soubesse. Eu no tenho mais nada. Ela

    no me ama, agora nem sinto mais vontade de escrever. No tenho mais nenhuma esperana...

    ARKADINA No se desespere... Tudo se resolve. Ele vai embora, e ela vai te amar de

    novo. (Enxuga as lgrimas dele.) Basta, j fizemos as pazes. TREPLEV (Beijando-lhe as mos.) Eu sei, mame. ARKADINA (Ternamente) Faa as pazes com ele. Nada de duelo... Est bem? TREPLEV Est. S no quero encontrar com ele. Isso demais... acima das minhas

    foras. (Entra Trigorine.) A est... Eu vou embora... (Arruma apressadamente os remdios e as ataduras no armrio.) O Doutor faz o curativo.

    TRIGORINE (Procurando num livro) Pgina 121... linhas 11 e 12... Ah! Est aqui...

    (L.) "Se algum dia precisar de minha vida, venha e tome-a". (Treplev pega o curativo no cho e sai.)

    ARKADINA (Olhando as horas) Os cavalos j vm. TRIGORINE (Para si mesmo) "Se algum dia precisar de minha vida, venha e tome-a". ARKADINA Espero que suas malas estejam prontas. TRIGORINE (Impaciente) Claro... (Sonhador) Por que ser que h tanta tristeza no

    apelo dessa alma pura, por que ser que meu corao sente um aperto to doloroso... "Se algum dia precisar de minha vida, venha e tome-a". ( Arkadina) Vamos ficar mais um dia! (Arkadina faz no com a cabea.) Vamos ficar!

  • 31

    ARKADINA Meu querido, eu sei o que o prende aqui, mas voc precisa se controlar.

    Voc est um pouquinho embriagado e precisa ficar sbrio TRIGORINE Ento seja lcida voc tambm, seja inteligente, razovel... (Toma-lhe a

    mo.) Voc capaz de sacrifcios. Seja minha amiga, e me deixe ficar livre de novo...

    ARKADINA (Perturbada) Mas voc est to envolvido assim? TRIGORINE Ela me atrai! Pode ser que seja isso que eu precise. ARKADINA O amor de uma mocinha provinciana? Como voc se conhece mal! TRIGORINE H gente que anda dormindo, e assim que eu estou te falando agora,

    enquanto durmo, eu a vejo em meus sonhos... So sonhos maravilhosos e doces... Deixe-me ficar livre de novo...

    ARKADINA (Tremendo) No, no... Eu no passo de uma mulher igual s outras, voc

    no pode me dizer essas coisas... No me torture, Boris... eu fico com medo... TRIGORINE Quando voc quer, sabe ser uma mulher diferente das outras. Um amor

    jovem, encantador, potico, que nos leva para um pas de sonhos o nico amor neste mundo capaz de nos fazer felizes! Eu nunca tive, at hoje, um amor como esse... Quando era moo, no tinha tempo, porque rondava as ante-salas das redaes, e lutava contra a misria... e agora, esse amor chegou, e me chama... Que sentido pode haver fugir dele?

    ARKADINA (Colrica) Voc perdeu a razo! TRIGORINE Tanto melhor. ARKADINE Parece que hoje vocs todos tiraram o dia para me martirizar! (Ela chora.) TRIGORINE (Com a cabea entre as mos) Ela no compreende! Ela no quer

    compreender! ARKADINA Ser que j estou velha e to feia que j se pode falar comigo de outras

    mulheres sem me irritar? (Ela abraa-o e beija-o.) Ah, voc est louco! Voc, o meu adorado, o meu divino... Voc, a ltima pgina da minha vida! (Ajoelha-se diante dele.) Minha alegria, meu orgulho, meu delrio... (Abraa-lhe os joelhos) Se voc me deixasse, nem que fosse por uma hora, eu morreria, eu ficaria louca, meu maravilhoso, meu magnfico, meu senhor...

    TRIGORINE Olha que pode entrar algum. (Ajuda-a a levantar-se.) ARKADINA Pois que entre, eu no me envergonho do meu amor por voc. (Ela beija a

    mo dele.) Meu tesouro, meu tresloucado, voc quer fazer bobagens, mas eu no quero que faa, e no vou deixar fazer... (Ri.) Voc meu... meu... esse rosto

  • 32

    meu, esses olhos so meus e esses cabelos sedosos tambm so meus... voc todo meu. Voc talentoso, inteligente, o maior de todos nossos escritores vivos, a nica esperana da Rssia... Voc tem sinceridade, simplicidade, frescor e um humor sadio. Voc sabe captar o essencial, o que caracteriza um homem ou uma paisagem, com uma nica pincelada; seus personagens so gente, gente que vive... No se pode ler seus livros sem xtase! O qu? Acha que eu estou querendo te agradar? Olhe bem nos meus olhos, olhe!... Ser que eu pareo mentirosa? Voc sabe que no h ningum no mundo, que saiba te apreciar tanto quanto eu; e que s eu, sou capaz de te dizer a verdade, meu querido, meu adorado. Voc vem comigo, no vem? Voc no vai me abandonar, no ?...

    TRIGORINE Eu no tenho vontade prpria... Nunca tive... Sou mole, fraco, sempre fui

    dcil, ser possvel que as mulheres gostam disso? Pois ento pode me pegar, me levar, mas preciso que no me deixe um instante longe dos seus olhos...

    ARKADINA (Para si mesma) Agora meu! (Muito vontade, como se no tivesse

    importncia) Mas se voc preferir, pode ficar. Eu vou e voc vem encontrar comigo mais tarde, digamos daqui a uma semana. Afinal, no h razo nenhuma para voc ter pressa.

    TRIGORINE No! J que vai ser assim, melhor irmos juntos. (Pausa. Trigorine anota

    qualquer coisa em seu caderninho.) ARKADINA O que que voc est anotando? TRIGORINE Hoje de manh eu ouvi uma expresso muito bonita: "A Floresta das

    Donzelas... Pode vir a servir. (Espreguia-se). Quer dizer que estamos de partida. Vai recomear tudo; os trens, as estaes, os restaurantes, as costeletas de vitela, as conversas...

    CHAMRAEV (Entrando) Tenho a honra de anunciar, com tristeza, que os cavalos esto

    esperando. Est na hora, prezada senhora, de partir para a estao; o trem chega s duas e cinco. No se esquea, Irina Nikolaievna, de ter a bondade informar-se a respeito do paradeiro do ator Souzdaltzev: ser que ainda est vivo? E como est? Houve tempo em que ns tomvamos nossos copinhos juntos... Ele era incomparvel em "O Ataque ao Correio... Eu me lembro que, naquele tempo, havia em Elisavetograd para trgico Ismailov, que tambm era extraordinrio... No se apresse, prezada senhora, ainda temos cinco minutos. Uma vez, num melodrama, os dois faziam papel de conspiradores, e na hora em que eram apanhados Ismailov, que tinha de dizer "Camos numa armadilha", disse "Armimos na camarilha... (Ri-se as gargalhadas.) Armi... Na cama... (Enquanto ele fala, Jacov est se ocupando das malas, a empregada traz Arkadina seu chapu, casaco, guarda-chuva e luvas; todos ajudam Arkadina a se preparar. Pela porta da esquerda aparece o cozinheiro, que acaba entrando, timidamente, entra Paulina andreievna e, logo depois, Sorine e Medvedenko.)

    PAULINA (Que carrega uma cestinha) Eu trouxe umas ameixas para a viagem... Esto

    muito doces. Vocs vo gostar.

  • 33

    ARKADINA Que bondade, Paulina Andreievna. PAULINA Adeus, minha querida. Se alguma coisa por aqui a desagradou, peo desculpa.

    (Chora.) ARKADINA Est tudo bem, tudo bem. Mas no preciso chorar, o que isso? PAULINA O tempo passa! ARKADINA O que que se pode fazer? SORINE (Com um, sobretudo com capa nos ombros, chapu e bengala, entra pela porta

    da esquerda, atravessa a cena.) Est na hora minha irm. Ns vamos acabar nos atrasando. Eu j vou subir na carruagem. (Sai.)

    MEDVEDENKO Eu vou a p at a estao. Fao questo de acompanh-los. Por isso j

    vou indo... (SAI) ARKADINA Adeus, meus amigos... Se ainda estivermos todos vivos e com boa sade,

    no vero vamos nos ver de novo... (A empregada, Jacov e o cozinheiro beijam-lhe a mo.) No se esqueam de mim. (D um rublo ao cozinheiro.) A est, um rublo para os trs.

    COZINHEIRO Ficamos muito gratos, madame. Boa viagem, madame! Muito obrigado! JACOV Que Deus a acompanhe! CHAMRAEV D-nos o prazer de mandar algumas linhas! Adeus Boris Alexeievitch! ARKADINA Onde est Constantin? Digam a ele que eu estou de sada. Ns temos que

    nos despedir. Vamos, no pensem muito mal de ns. (A Jacov) Eu dei um rublo para o cozinheiro, para os trs. (Saem todos pela direita, a cena fica vazia. No fundo houvesse o rudo de partida. A empregada entra correndo para pegar a cesta de ameixas e torna a sair.)

    TRIGORINE (Voltando) Esqueci minha bengala. Acho que est ali na varanda. (Vai

    saindo no sentido da porta da esquerda, e encontra Nina, que vem entrando.) voc? Ns estamos indo embora.

    NINA Mas eu sabia que ainda amos nos ver. (Agitada) Boris Alexeievitch, j resolvi.

    Vou me dedicar ao teatro. Vou embora amanh, vou deixar meu pai, deixar tudo para comear vida nova. Como vocs... Eu vou para Moscou. L nos veremos.

    TRIGORINE (Dando uma olhada para trs) V para o "Slavyansky Bazaar"... e no deixe

    de me avisar... meu endereo Molchanovka, Casa Grokholski... Eu tenho de ir correndo... (Pausa)

    NINA S mais um instante...

  • 34

    TRIGORINE (A meia voz) Voc to linda!... Que alegria pensar que daqui a pouco vamos nos ver de novo. (Ela encosta a cabea no peito dele.) Vou ver de novo esses olhos maravilhosos, esse sorriso to terno e to lindo, esses traos to doces, essa expresso angelical... Minha querida... (Beijam-se longamente.)

    CORTINA

    FIM DO TERCEIRO ATO

    (Entre o terceiro e o quarto ato, h um intervalo de dois anos.)

  • 35

    ATO 4

    Um dos sales da casa de sorine, que Treplev transformou em gabinete de trabalho. direita e esquerda portas que levam a ouros aposentos. Ao fundo, uma porta que d para a varanda. alm do mobilirio habitual de um salo, uma escrivaninha foi instalada no canto direito da pea e perto da porta esquerda, h um grande davam turco, uma estante e livros nos peitorais das janelas e sobre as cadeiras. noite. A pea s est iluminada por um nico lampio com abajur, semipenumbra. Ouve-se o barulho das rvores e o vento que assovia na chamin. Um guarda-noturno d batidas em madeira ao passar. Entram Medvedenko e Masha.

    MASHA (Chamando) Constantin Gavrilovitch! Constantin Gavrilovitch! (Olha por todo

    lado.) Ningum. O velho fica perguntando a toda hora, onde est Costia, onde est Costia... No pode viver sem ele.

    MEDVEDENKO Tem medo da solido. (De ouvidos alerta) Que tempo horrvel! E dois

    dias j! MASHA (Aumentando a luz da lmpada) H ondas imensas no lago. MEDVEDENKO O jardim est um breu. Era preciso desmontar aquele tablado. Fica ali

    todo descoberto, como um esqueleto, e o vento sacudindo a cortina. Ontem noite, quando eu passei por l, tive a impresso de que havia algum chorando.

    MASHA E essa agora... (Pausa) MEDVEDENKO Vamos, Masha; vamos para casa! MASHA (Sacudindo negativamente com a cabea) Eu vou dormir aqui. MEDVEDENKO (Suplicando) Vem Masha! O menino deve estar com fome. MASHA No comea. Matriona d comida a ele. (Pausa) MEDVEDENKO Fico com pena dele. H trs noites que no v a me. MASHA Ai, como voc cacete. Antigamente pelo menos voc gostava de filosofar,

    mas agora sempre a mesma coisa: o menino, vamos para casa, o menino, vamos para casa...

    MEDVEDENKO Vamos, Masha. MASHA Vai voc. MEDVEDENKO Seu pai no me d um cavalo. MASHA Mas claro que d. s pedir que ele d.

  • 36

    MEDVEDENKO Bom, vou tentar. Amanh voc vai? MASHA Amanh eu vou. No me amola.

    Entram Treplev e Paulina Andreievna. Treplev traz travesseiros e um cobertor, Paulina traz lenis. Depositam tudo no div, depois Treplev vai at sua escrivaninha e senta-se.

    MASHA Para que tudo isso, mame? PAULINA Piotr Nikolaievitch vai ficar aqui. MASHA Deixa que eu arrume. (Ela faz a cama.) PAULINA (Suspirando) Os velhos so como crianas... (Vai at a escrivaninha, apia-se

    nos cotovelos e examina o manuscrito; pausa.) MEDVEDENKO Bom, ento eu j vou indo. Adeus, Masha. (Beija a mo de sua

    mulher.) Adeus mame. (Prepara-se para beijar a mo da sogra.) PAULINA (Um pouco irritada) Vai com Deus, mas vai logo. MEDVEDENKO Adeus Constantin Gavrilovitch. (Treplev d-lhe a mo sem dizer nada.

    Medvedenko sai.) PAULINA (Examinando o manuscrito) Quem havia de dizer que voc ia acabar sendo

    um escritor de verdade, Costia. Mas agora, graas a Deus, as revistas j mandam at dinheiro pelo que voc escreve. (Passa a mo nos cabelos de Treplev.) E voc ficou to bonito... Costia, meu querido, voc to bom, seja ao menos um pouquinho gentil com a minha Masha!...

    MASHA (Fazendo a cama) Deixe ele em paz! PAULINA (A Treplev) Ela bem jeitosinha. (Pausa) Mulher, Costia, se contenta com

    olhar carinhoso. Eu sei por experincia prpria. (Treplev levanta-se e sai sem dizer uma palavra.)

    MASHA Viu? Agora ele ficou aborrecido. preciso no irrit-lo PAULINA Eu tenho tanta pena de voc, Masha. MASHA No preciso da pena de ningum. PAULINA Meu corao sofre por voc. No se iluda. Eu vejo tudo e compreendo tudo. MASHA No diga asneiras. Amores desgraados s existem em romances, s questo

    da gente se acostumar, no ficar sempre espera de alguma coisa... Quando o amor entra pelo corao, preciso p-lo para fora. Prometeram transferir meu

  • 37

    marido para outra regio. A ns nos mudamos e eu esqueo tudo... arranco tudo do meu corao pela raiz!

    De um aposento distante, chega o som de uma valsa melanclica.

    PAULINA Costia que est tocando. Isso quer dizer que ele est triste. MASHA (Dando dois ou trs giros de valsa, silenciosamente) O essencial, mame,

    no t-lo diante dos olhos. Desde que transfiram o meu Semion, pode ficar certa que eu o esqueo em dois tempos. No to srio assim.

    A porta abre-se, Dorn e Medvedenko entram.

    MEDVEDENKO Agora ns somos seis, l em casa. E a farinha a setenta copeques a

    libra. DORN Hoje em dia a gente tem que ser mgico! MEDVEDENKO O senhor pode se rir, porque sempre nadou em dinheiro. DORN Eu? Meu amigo, depois de trinta anos de clnica, de uma vida agitadssima

    durante a qual no era senhor de mim nem de dia nem de noite, consegui botar de lado dois mil rublos, que acabo de liquidar com essa viagem que fiz ao estrangeiro. No tenho absolutamente nada.

    MASHA (Ao marido) Mas voc ainda no foi embora? MEDVEDENKO (Sentindo-se culpado) O que que voc quer? No h jeito de me

    darem um cavalo! MASHA (Com amarga irritao, a meia voz) Ai, mas eu no suporto nem te ver!

    A cadeira finalmente fica parada na parte esquerda da pea; Paulina, Masha e Dorn sentam-se em torno; Medvedenko vai ficar mais ao fundo.

    DORN Quanta mudana aqui! Voc transformou o salo em gabinete de trabalho. MASHA Constantin Gavrilovitch trabalha melhor aqui. Quando d vontade, vai pensar

    no jardim.

    Novas batidas do vigia noturno SORINE Onde est minha irm? DORN Foi at a estao buscar Trigorine, volta j. SORINE Se voc mandar buscar a minha irm, porque eu devo estar muito mal. (Aps

    um momento) muito engraado, eu estou muito mal, mas ningum me d remdio nenhum.

  • 38

    DORN Que remdio? Gotas valerianas? Bicarbonato? Quinino? SORINE L vem de novo a sua filosofia. Que calamidade! (Indica o div com a

    cabea.) Aquela cama para mim? PAULINA , Piotr Nikolaievitch. SORINE Muito obrigado. DORN (Cantarolando) "A lua flutua no cu da meia noite... SORINE Quero dar a Costia o assunto para um romance. O ttulo : L'homme qui

    voulu. Antigamente, quando eu era moo, eu queria ser escritor mas no fui. Eu queria saber falar bem e meu modo de falar at assusta: (Imitando a si mesmo) "e coisas assim, etc., etc., para no dizer... E cada vez que eu queria resumir as coisas, falava mais e me enrolava mais at suar em bicas, eu queria me casar mas no me casei, eu queria viver sempre na cidade e aqui estou eu, acabando meus dias no campo.

    DORN E queria ser conselheiro do Estado e foi. SORINE Isso nunca fez parte dos meus planos; aconteceu sozinho. DORN Convenhamos que se queixar da vida aos sessenta e dois anos um pouco de

    falta de elegncia. SORINE Nunca vi homem to cabeudo! Ser que voc no entende que eu quero

    viver? DORN Isso j brincadeira! Pelas leis da natureza, toda vida tem um fim. SORINE Voc fala de barriga cheia. Est satisfeito, e por isso que fala da vida com

    indiferena. Mas nem por isso voc vai deixar de ter medo da morte. DORN O medo da morte no passa de um medo animal... preciso sufoc-lo. S os

    crentes, assustados com seus pecados, que tem medo consciente da morte. Mas no seu caso, por um lado nunca foi crente, por outro, quais podem ter sido os seu pecados? Foi funcionrio do Ministrio da Justia durante vinte e cinco anos e mais nada.

    SORINE (Rindo) Vinte e oito...

    Treplev entra e senta-se em um banquinho aos ps de Sorine. Masha no tira os olhos dele.

    DORN Ns estamos impedindo Constantin Gavrilovitch de trabalhar. TREPLEV O que isso? Por favor... (Pausa)

  • 39

    MEDVEDENKO Permita que eu lhe faa uma pergunta, Doutor: qual foi a cidade no

    estrangeiro que o senhor mais gostou? DORN Gnova. TREPLEV Por que Gnova? DORN O povo que se v nas ruas excepcional. De noite, quando se sai do hotel, as

    ruas esto coalhadas de gente. Pode-se andar no meio da multido, sem objetivo, de cima para baixo, de c pra l. A gente vive com ela, se confunde com ela psiquicamente, e comea a crer que existe apenas uma alma universal; semelhante quela que Zaretchnaia representou na sua pea. E por falar nisso, onde anda ela? Que fim levou? O que que est fazendo?

    TREPLEV Suponho que esteja com sade. DORN Ouvi dizer que estava levando uma vida muito estranha. O que que houve? TREPLEV uma histria muito comprida doutor. DORN Pois conte o resumo. (Pausa) TREPLEV Ela fugiu de casa por causa de Trigorine. O senhor no sabia?

    DORN Sabia. TREPLEV E teve um filho. A criana morreu. Trigorine cansou-se dela e voltou aos

    antigos amores, como era de se prever. Para falar a verdade, ele nunca havia abandonado, ficou sempre rastejando as escondidas entre um e outro. Na medida em que me foi possvel obter informaes, a vida particular de Nina foi um fracasso.

    DORN E o Teatro? TREPLEV Acho que ainda foi pior. Ela estreou numa temporada de vero, nos arredores

    de Moscou, depois disso foi para as provncias. Naquele tempo eu no largava ela, ia a todo lugar que ela ia, sempre fazendo papis importantes, mas sempre representando mal, com mau gosto, gritando e gesticulando demais. De repente ela dava um grito no qual se percebia o seu talento, ou ento morria maravilhosamente, mas era s um momento, aqui e ali.

    DORN Mas quer dizer que talento ela tem mesmo? TREPLEV Difcil dizer. De ter. Eu a via, mas ela nunca queria me ver, jamais me deixou

    ir v-la no quarto do hotel. Compreendia como ela se sentia, e nunca insisti. (Pausa) O que que eu hei de dizer mais? Quando desisti, voltei para casa, ela comeou a me escrever. Cartas inteligentes, calorosas, interessantes; nunca se queixava, mas dava para sentir que era profundamente infeliz. Cada linha deixava mostra um nervo ferido, tenso. E a imaginao completamente descontrolada.

  • 40

    Assinava-se A gaivota. Como na "Sereia" de Pushkin o moleiro dizia que era um corvo, ela repetia sem cessar em suas cartas que era uma gaivota. Ela est aqui agora.

    DORN Aqui, onde? TREPLEV Na hospedaria da aldeia. H mais ou menos cinco dias alugou um quarto. J

    tentei ir v-la, e Maria Ilinitchna tambm, mas ela no recebe ningum. Semionovitch diz que ontem de tarde a viu num campo a meia lgua daqui.

    MEDVEDENKO ; eu a encontrei. Ia na direo da aldeia. Eu a cumprimentei e

    perguntei por que no vinha nos ver. Ela disse que vinha. TREPLEV No vem no. (Pausa) O pai e a madrasta recusam-se reconhec-la.

    Puseram guardas por toda a propriedade, para impedir que ela passe por perto. (Vai com o mdico para perto da escrivaninha.) Como fcil filosofar no papel doutor; mas, a realidade...

    SORINE Era uma moa encantadora. DORN Perdo? SORINE Estou lhe dizendo que era uma moa encantadora. Sorine, o Conselheiro do

    Estado, chegou mesmo a ficar apaixonado por ela durante algum tempo. DORN Mas, conquistador nessa idade? (Ouve-se o riso de chamraev.) PAULINA Acho que j esto todos chegando da estao... TREPLEV , acho que estou ouvindo a voz de mame.

    Entram Arkadina, Trigorine e, atrs deles, Chamraev. CHAMRAEV (Entrando) Todos ns envelhecemos e nos deterioramos com a ao dos

    elementos, menos a senhora, prezada senhora, que fica sempre jovem... A roupa clara... A vivacidade... A graa...

    ARKADINA Como o senhor cacete. Isso traz mau-olhado! TRIGORINE (A Sorine) Bom-dia, Piotr Nikolaievitch! Ainda est doente? Assim no

    pode ser! (Vendo Masha. Muito satisfeito.) Maria Ilinitchna! MASHA Lembra-se de mim? (Aperta-lhe a mo.) TRIGORINE Como , casou-se? MASHA H muito tempo.

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    TRIGORINE E est feliz? (Cumprimenta Dorn e Medvedenko, depois se aproxima hesitante de Treplev.) Irina Nikolaievna disse que voc esqueceu o passado e no est mais zangado. (Treplev estende-lhe a mo.)

    ARKADINA (Ao filho) Boris Alexeievitch trouxe a revista que traz seu ltimo conto. TREPLEV (Tomando a revista das mos de Trigorine) Muito obrigado. Foi uma gentileza

    sua. (Sentam-se.) TRIGORINE Seus admiradores mandam cumprimentos... Esto todos muito interessados

    por seu trabalho tanto em Moscou quanto em Petersburgo, e esto sempre me perguntando como voc , que idade tem, se louro ou moreno. No sei porque, todos acham que voc no jovem. E ningum sabe o seu nome, s conhecem o pseudnimo. Voc to misterioso quanto o Mascara de Ferro.

    TREPLEV Voc pretende ficar aqui por algum tempo? TRIGORINE No, devo ir amanh para Moscou. Tenho de voltar logo. H um romance

    que eu tenho de acabar muito rpido, e prometi uma colaborao a uma revista. Enfim, sempre a mesma coisa.

    Enquanto eles falam, Arkadina e Paulina armam no centro da sala uma mesa de jogos. Chamraev acende as velas e arruma as cadeiras, tira do armrio um jogo de vspora.

    TRIGORINE O tempo est contra mim. Est ventando muito. Amanh de manh, se

    estiver melhor, vou pescar no lago. Vou aproveitar para dar uma olhada no jardim, e naquele lugar onde levaram sua pea, lembra-se? Tive uma idia para um enredo, mas preciso dar uma olhada no local onde se desenrola a ao, para refrescar a memria.

    MASHA (A seu paI) Papai, d um cavalo ao meu marido! Ele tem ir para casa! CHAMRAEV (Imitando-a) Um cavalo... ele precisa ir para casa... (Severo) Voc mesma

    viu que os cavalos acabam de chegar da estao e que no posso mand-los sair de novo.

    MASHA Mas h outros cavalos... (Vendo que o pai no quer responder) Com voc no

    adianta falar... MEDVDENKO Eu vou a p Masha; pode deixar... PAULINA (Com um suspiro) A p, com um tempo desses... (Sentam-se frente mesa

    de jogo.) Venham... MEDVDENKO s uma lgua... Adeus... (Beija a mo de sua mulher.) Adeus, mame.

    (A sogra lhe d a mo como que contra gosto, e ele a beija.) Eu no teria incomodado ningum, se no fosse o menino... (Sada a todos.) J vou indo... (Sai. Age como um homem que se sente culpado.)

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    CHAMRAEV Uma lgua a p vai fazer bem a ele. Ele no nenhum general. PAULINA (Batendo na mesa) Por favor. No vamos perder mais tempo; daqui a pouco

    vo chamar para o jantar.

    Chamraev, Masha e Dorn colocam-se em torno da mesa. ARKADINA (A Trigorine) Ns sempre jogamos vsporas aqui no outono, quando o

    crepsculo longo. Esse ainda o mesmo jogo que ns jogvamos com minha me, quando ramos crianas. Quer jogar uma partida antes do jantar? (Ela e Trigorine instalam-se na mesa.) um joguinho cacete, mas a gente se acostuma. (D trs cartes a cada um.)

    TREPLEV (Folheando a revista) O conto dele, leu, releu; mas, do meu, nem sequer

    abriu as pginas. (Deposita a revista sobre a escrivaninha, depois se dirige porta da esquerda. Ao passar junto me, d-lhe um beijo na cabea.)