A Geração de 70 - uma revolução cultural e literária

Embed Size (px)

Citation preview

Biblioteca BreveSRIE LITERATURA

A GERAO DE 70UMA REVOLUO CULTURAL E LITERRIA

COMISSO CONSULTIVA

JOS V. DE PINA MARTINS Prof. da Universidade de Lisboa JOO DE FREITAS BRANCO Historiador e crtico musical JOS-AUGUSTO FRANA Prof. da Universidade Nova de Lisboa JOS BLANC DE PORTUGAL Escritor e Cientista HUMBERTO BAQUERO MORENO Prof. da Universidade do Porto JUSTINO MENDES DE ALMEIDA Doutor em Filologia Clssica pela Univ. de LisboaDIRECTOR DA PUBLICAO

LVARO SALEMA

LVARO MANUEL MACHADO

A Gerao de 70 -uma revoluo cultural e literria

MINISTRIO DA EDUCAO

TtuloA Gerao de 70 Uma Revoluo Cultural e Literria

________________________________________ Biblioteca Breve / Volume 4 ________________________________________

1. edio 1977 2. edio 1981 3. edio 1986

________________________________________

Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Ministrio da EducaoDiviso de Publicaes

________________________________________

Instituto de Cultura e Lngua PortuguesaPraa do Prncipe Real, 141., 1200 Lisboa Direitos de traduo, reproduo e adaptao reservados para todos os pasesTiragem

________________________________________

3 500 exemplares Beja Madeira Lus Correia

________________________________________ Coordenao geral ________________________________________ Orientao grfica ________________________________________ Distribuio comercial

Livraria Bertrand, SARL Apartado 37, Amadora PortugalComposio e impresso

________________________________________

Oficinas Grficas da Minerva do Comrcio de Veiga & Antunes, Lda. Trav. da Oliveira Estrela, 10 - Lisboa Janeiro 1986

NDICE

Pg.

INTRODUO .......................................................................................... 6 Revoluo e Memria............................................................................ 6 Tragdia, Ironia, Stira ........................................................................ 11 Romantismo e Revoluo Cultural ................................................... 12 Gerao e lite ..................................................................................... 15 A GERAO de 70 E A BURGUESIA FIN-DE-SICLE ................................................................................... 17 Burguesia, Democracia, Revoluo de 1848 a 1871 ................. 22 Cultura romntica, ideais socialistas, republicanismo ................... 24 VIDAS E OBRAS...................................................................................... 33 Ramalho Ortigo ou o republicanismo pequeno-burgus ........... 34 Antero de Quental ou o mestre metafsico..................................... 43 Oliveira Martins ou o terico da decadncia .................................. 52 Ea de Queirs ou a arte da ironia ................................................... 62 Tefilo Braga, Guilherme de Azevedo, Gomes Leal, Guerra Junqueiro e alguns mais.................................................................. 74 CONCLUSO ........................................................................................... 79 O absoluto e o relativo em esttica e na histria ........................... 79 BIBLIOGRAFIA ....................................................................................... 83

INTRODUO

REVOLUO E MEMRIA A alguns de ns, portugueses de aps o 25 de Abril, a chamada Gerao de 70 poder parecer, antes de mais, uma estranha gerao de, digamos, revolucionrios falhados. Ou mesmo de revolucionrios antirevolucionrios. Ou mais simplesmente: de idealistas cpticos. Cpticos porque cultivaram, uns mais outros menos, o cepticismo fin-de-sicle e por vezes altamente blas do ps-romantismo europeu. Idealistas, no sentido mais rigoroso do termo (convico de que o poder absoluto das ideias transforma o mundo), porque, cultivando esse cepticismo, idealizavam ao mesmo tempo um Portugal que, de facto, nem existia na poca em que viveram fim de uma monarquia provinciana, colonizada social, econmica e culturalmente pelos ingleses e pelos franceses e princpio da formao de uma ideologia republicana positivista, pequeno-burguesa e diletante nem talvez tenha existido nunca. Mas, se reflectirmos bem, todo este paradoxal cepticismo-idealismo da Gerao de 70 tem a ver essencialmente com todo o grande drama do homem moderno, que o drama da obsesso revolucionria e das suas relaes com o tempo.

6

De facto, se analisarmos atentamente o comportamento poltico do homem moderno, ou, para ser mais exacto, do homem ocidental desde o princpio do nosso sculo (e a Gerao de 70 foi dele precursora em Portugal), somos levados a analisar o seu (essencialmente inconsciente ou subconsciente) comportamento perante o tempo. Tentado pela grande aventura ideolgica da revoluo total, universal, e no (pelo menos na aparncia) fundamentalmente nacionalista, o homem moderno, herdeiro directo do sculo XIX e sobretudo da Revoluo Francesa, parece querer esquecer o passado e com ele o tempo primordial dos grandes mitos das origens. Ou antes, pretende dominar este tempo primordial atravs de uma sistematizao de ideias revolucionrias que conduz ideia-base de um fim absoluto da histria, atitude que, afinal, sobretudo no que diz respeito ideologia revolucionria marxista, se enraza nos elementos propriamente judaicos do Cristianismo como esperana escatolgica. De certo modo, todo o acto revolucionrio um acto de esquecimento. Atravs dele, recorre-se ao instante de aparente convergncia total do passado, do presente e do futuro para esquecer o passado histrico de um pas no seu todo, bem como o de uma estruturao social e mesmo o passado privado de cada indivduo em si. Melhor ainda: esquece-se o passado no seu todo para o confundir com um futuro ainda inevitavelmente obscuro graas omnipotncia de um presente igualmente obscuro mas pleno de promessas mirficas, de valores utpicos. Mas at quando e at onde vai esse esquecimento? No tarda muito que esse esquecimento revolucionrio

7

fulgurante do passado colectivo e individual se torne teologia terrorista baseada numa falsa continuidade histrica, ideologicamente codificada e controlada (e contra isso que, profeticamente, se revolta um Dostoievski). Porqu? Por uma contradio fatal que est na base de toda a revoluo moderna, contradio que remonta aos grandes precursores do romantismo revolucionrio (a comear por Rousseau), os quais atacaram tudo o que era no-racionalista e, portanto, pregaram a revoluo total como soluo racionalista universal, para logo recusarem e at atacarem tudo o que na revoluo era sistemtico, dogmaticamente racionalista, origem de um terror revolucionrio incontrolvel, degradao tica, limitao burocrtica e fanaticamente partidria. O romantismo e o que se lhe seguiu consistiu, em suma, ao nvel histrico, nessa suprema contradio que foi a negao do Iluminismo, o qual esteve na sua origem e do qual dependeu inteiramente. O que, no plano das ideias e dos acontecimentos revolucionrios, se traduziu em conflitos dramticos que se arrastam desde a Revoluo Francesa de 1789 e desde comeos do sculo XIX nos pases que a tomaram como modelo. Assim, no que diz respeito nossa histria, em especial nossa histria cultural e poltica, a posio dos intelectuais portugueses da gerao de 1830, a de Alexandre Herculano, e a da gerao de 1870, a de Antero de Quental, relativamente teoria e prtica da revoluo difere, mantendo no entanto pontos comuns essenciais em que, para l da formao filosfica e poltica universalista que caracterizou ambas, se denotam elementos especficos da histria de Portugal.

8

De facto, para citar apenas Herculano e Antero, ambos participam activamente em movimentos revolucionrios com ideias e com aces e ambos acabam por se retirar totalmente do palco da histria, profundamente decepcionados. Ambos recorrem ao esquecimento, Herculano atravs do seu exlio voluntrio de Vale de Lobos, Antero atravs do exlio igualmente voluntrio e definitivo do suicdio. Ambos, embora a nveis muito diferentes de psiquismo pessoal, se recusam a aceitar a, digamos, memria artificial, mecnica, de uma revoluo que nunca chegou a s-lo inteiramente, a memria tornada praxis falsamente revolucionria. Ao Antero apolneo e hegeliano do Hino Razo ope-se o Antero nocturno e, afinal, sobretudo baudelairiano (apesar da influncia aparentemente predominante de Heine) das Primaveras romnticas e em especial destes versos: Este corao cansado! O que ele quer dormir ...O que ele quer deitar-se No leito do esquecimento. (Ao luar) No fundo, o que esquece Antero? Esquece a prpria memria e a sua funo historicamente mediadora. Esquece a prpria memria e nisto o seu esquecimento difere essencialmente do de Herculano, o qual, tentando esquecer a decepcionante realidade da evoluo poltica, social e econmica da Revoluo Liberal de 1820, que acabou no Fontismo, nem por isso renega o valor do movimento revolucionrio em si como recuperao de uma memria histrica que

9

sucedesse ao esquecimento momentneo do passado e viso utpica do futuro. Da a sua idealizao propriamente romntica do Portugal pr-constitucional at 1385. Antero, pelo contrrio, como autntico revolucionrio que foi da Gerao de 70 e, portanto, mentor de uma utopia revolucionria mais prxima do sculo XX, intimamente ligada ao niilismo, esquece a prpria memria, nega-a na medida em que nega o Estado como memria da nao, a Igreja como memria da alma, o partido como memria de classe. Este esquecimento, anarquista no sentido mais absoluto do termo, que no caso de Antero o de uma anarquia hegeliana do esprito, envolvido momentaneamente na acelerao da histria, no pode conduzir seno morte. Essa morte que est na raz de uma ilusria acelerao da histria. Como diz Octvio Paz 1: A acelerao do tempo histrico no passa de uma iluso. As mudanas e as convulses que, ora nos angustiam ora nos deslumbram, so talvez muito menos profundas e decisivas do que ns supomos. E, depois de citar a Unio Sovitica como exemplo tpico de uma apenas aparente ruptura entre passado e futuro, verificando-se actualmente a predominncia ntida de elementos tradicionais da antiga Rssia (um mundo burocrtico e um terror policial semelhantes ao do czarismo), Octvio Paz apresenta o exemplo da revoluo mexicana, que nos leva igualmente a duvidar da pretensa acelerao da histria, pois no Mxico actual estamos mais prximos da poca do Vice-Rei e mesmo do mundo pr-hispnico do que da poca da Revoluo 2.

10

TRAGDIA, IRONIA, STIRA Ora, a chamada Gerao de 70, a de Antero, que foi tambm a de Ea de Queirs, a de Oliveira Martins e, a um nvel culturalmente e esteticamente inferior, a de Ramalho Ortigo e alguns outros, sentiu-se atrada por essa pretensa acelerao, essa vertigem, esse totalitarismo da histria de que fala Octvio Paz. S que, como bvio, essa vertigem e esse totalitarismo se manifestaram de diferentes maneiras, consoante a formao cultural e o prprio temperamento criador de cada um. Assim, em Antero de Quental tudo tragdia. Tragdia estritamente pessoal (apesar das suas implicaes colectivas) que o conduziu ao suicdio como a um fim inevitvel, tornado inevitvel pela prpria lgica do mecanismo das ideias. Da mesma maneira, em Oliveira Martins o trgico predomina, um trgico inseparvel da sua ideia da decadncia histrica de Portugal. Inseparvel, paralelamente, do que no essencial a sua teoria da histria, resumida na frase, extremamente ambgua: um homem um momento. Em Ea de Queirs, pelo contrrio, tudo tomou a forma de jonglerie irnica. Lmina de dois gumes, a ironia no deixa, porm, em Ea como noutros (raros na literatura portuguesa), de ser comdia e tragdia ao mesmo tempo: ela desencadeia o riso para logo fazer dele um esgar. que, como diz Vladimir Jankelevitch, lironie regarde ailleurs 3, ela pertence ao domnio da conscincia inquieta e multiforme. J em Ramalho Ortigo, destitudo de grande capacidade criadora e com igualmente menor

11

capacidade de percepo do que no homem e do que do homem perante a histria mais complexo, tudo se tornou stira, mera caricatura. Tudo descambou nesse gargalhar a que muito frequentemente se reduz o pretenso esprito hiper-crtico do portugus. Mas o riso ramalhal no deixa de ter o seu lugar importante no conjunto da cultura portuguesa oitocentista. Como diz o prprio Ea que a bem dizer nunca ria mas, como j vimos, sorria ironicamente, fazendo-o com funda e finssima amargura -, nessa Lisboa fin-de-sicle o que ainda tornava a vida tolervel era de vez em quando uma boa risada. (...) S ns aqui, neste canto do mundo brbaro, conservamos ainda esse dom supremo, essa coisa bendita e consoladora a barrigada de riso! 4 ROMANTISMO E REVOLUO CULTURAL Seja como for, seja qual for o nvel da capacidade crtica e da capacidade inventiva pessoais, o certo que a chamada Gerao de 70 representa, em Portugal, uma profunda revoluo cultural. At ento, tinham-se criado hbitos de um romantismo demasiadamente limitado aos problemas (e tambm s obsesses) nacionais. Se, apesar das suas limitaes, que so justamente as que se ligam a um certo nacionalismo cultural excessivo, o nosso primeiro romantismo, o da Gerao de 1830, trouxe com Garret e Herculano qualquer coisa de novo e de perdurvel, a verdade que, por meados do sculo XIX, o que restava desse romantismo pouco era. parte o vulto tutelar de Camilo, que no entanto se fica por um balzaquismo regionalista lusitano, um balzaquismo sem Balzac, o

12

perodo que sucede ao primeiro romantismo portugus e que vai de cerca de 1850 a cerca de 1870, no frtil em criaes verdadeiramente originais. Sobretudo, rareiam os contactos com o estrangeiro a nvel das grandes criaes de ideias. A Regenerao do marechal Saldanha (1851) um perodo de modorra confortvel para esses escritores que sucedem a Garrett e a Herculano, esses escritores que, querendo escapar montona ordem burguesa conservadora que impera na Europa aps o fracasso das insurreies de 1848, se refugiam no mais fcil sentimentalismo buclico ou fatalista ou ento no mais provinciano culto, quer da literatura filosfica de importao, quer do panfleto literrio. Para evocar alguns exemplos, citem-se os dramalhes histricos ou os chamados dramas da actualidade de um Jos da Silva Mendes Leal (1818-1886), o lirismo vagamente la manire de Lamartine de um Bulho Pato (1829-1912) ou de um Antnio Augusto Soares de Passos (1826-1860). A Gerao de 70 veio arrancar dessa modorra de degenerescncia romntica no s a literatura portuguesa mas sobretudo, de uma maneira geral, a cultura portuguesa. Est talvez nesta preocupao, propriamente de revoluo cultural, a grande originalidade de um Antero de Quental (para l mesmo das suas visionrias preocupaes sociais e das suas igualmente visionrias inquietaes metafsicas), bem como a de um Ea de Queirs (para l mesmo das suas sucessivas e contraditrias experincias estticas, que vo do decadentismo, do dandismo e do pr-simbolismo baudelairianos ao naturalismo de Flaubert e ao realismo

13

total de Zola). Revoluo cultural no sentido de, esquematicamente: 1) a Gerao de 70 repensar e pr em questo toda a cultura portuguesa desde as suas origens, fixando-se no ponto mais elevado e tambm mais complexo da histria de Portugal, isto , o perodo das Descobertas; 2) a Gerao de 70 preparar, pelo menos numa fase inicial, activamente, uma profunda transformao na ideologia poltica e na estrutura social portuguesas, isto , a revoluo republicana de 1910, com tudo o que ela teve de culturalmente positivo e negativo, e isto apesar da ntida separao entre socialismo e republicanismo, verificada sobretudo a partir da polmica entre Antero e Tefilo Braga a propsito da Teoria da Histria da Literatura Portuguesa, publicada por Tefilo em 1872. Alis, ao falar de revoluo cultural, no nos esqueamos de que a palavra cultura derivada do particpio do verbo latino colere e que, portanto, est pela sua origem, primeiro: ligada aco, bem romana, de cultivar a terra (colere agros); depois, a partir de Ccero, cultura animi, ou seja, aco de modificar o esprito cultivando-o. O que significa que, por mais revolucionria que seja, a cultura tende sempre para uma estabilidade, que propriamente a forma slida, telrica, do saber, tanto individual como colectivo. A Gerao de 70 no escapa (nem, alis, tenta escapar) a esta regra geral. Bem pelo contrrio: uma gerao que, para revolucionar culturalmente, procura uma profunda e congregadora tradio cultural. Da que, estando sem dvida aberta, mais do que a Gerao de 1830, a todas as formas da cultura universal, tende a

14

fazer renascer uma cultura portuguesa, ou antes, uma ideia da cultura portuguesa. Por outro lado, se certo que na base de toda a forma de cultura est a linguagem como sistema de smbolos verbais indispensvel comunicao entre os homens, a Gerao de 70 criou a sua linguagem prpria, a qual anuncia nos seus momentos mais elevados a linguagem modernista de um Fernando Pessoa ou de um SCarneiro. Sobretudo Fernando Pessoa, criador de paradoxos enrazados nos paradoxos da histria de Portugal Fernando Pessoa que est finalmente mais prximo de um Ea de Queirs do que primeira vista se poder supor. Mas isso seria matria para outro livro. GERAO E LITE Por ltimo, haver a notar nesta introduo ao estudo da Gerao de 70 que o conceito, sempre to ambguo, de gerao aqui adoptado na sua acepo mais restrita de criao de ideias e de obras em que essas ideias se reflectem por um determinado nmero, inevitavelmente restrito, de grandes figuras da literatura portuguesa num determinado momento de confluncia de tendncias culturais. O sentido cronolgico do termo gerao s ser, portanto, muito parcialmente respeitado. Quer isto dizer que se evitar a mera enumerao enciclopdica, embora se tenha a preocupao de proporcionar uma breve viso cronolgica geral. Assim, sero considerados como pertencentes Gerao de 70 sobretudo os que a geraram no plano

15

das ideias e no os que a ela eventualmente aderiram, prolongando-a historicamente. Isto significa que Gerao de 70 pertencem, antes de mais, Antero de Quental, Ea de Queirs e Oliveira Martins. Nesta perspectiva, s secundariamente a ela pertencero Ramalho Ortigo e, ainda mais secundariamente, um Tefilo Braga, um Gomes Leal, um Guerra Junqueiro, um Jaime Batalha Reis, um Guilherme de Azevedo, um Alberto Sampaio ou ainda um Adolfo Coelho, pedagogo eminente, ou um Augusto Soromenho, professor do Curso Superior de Letras, os quais, no entanto, participaram nas primeiras conferncias do Casino. Em suma, haver uma escolha rigorosa em funo das obras criadas e das repercusses culturais dessas obras na sua poca e actualmente. Uma revoluo cultural , sem dvida, feita de mltiplas contribuies, mais ou menos perdurveis. Mas rarssimos sero, afinal, os seus verdadeiros mentores, aqueles que, formando uma lite como iniciadores, ficam para a posteridade, no s no confinado domnio da cultura portuguesa como, sobretudo, no mais vasto domnio do grande saber universal.

16

I / A GERAO DE 70 E A BURGUESIA FIN-DE-SICLEPara um homem, o ser vencido ou derrotado na vida depende, no da realidade aparente a que chegou mas do ideal ntimo a que aspirava.EA DE QUEIRS

(Cartas inditas de Fradique Mendes e mais pginas esquecidas)

Ao analisarmos o perodo da histria de Portugal em que nasceram, viveram, criaram as suas obras e morreram os representantes principais da chamada Gerao de 70, haver que evocar antes de mais os elementos histricos de base da Regenerao. Perodo que vai, grosso modo, de 1851, isto , da revolta militar que levou ao poder o marechal Saldanha, at proclamao da Repblica, em 1910, a Regenerao divide efectivamente o sculo XIX portugus em duas partes distintas. Ela separa o perodo de ideias revolucionrias do primeiro romantismo de Herculano e de Garrett, um perodo em que predomina a instabilidade poltica, social e econmica, do perodo que se caracterizou essencialmente por uma estabilidade ligada intimamente ao pr-industrialismo. O mentor desse pr-industrialismo no foi s Antnio Maria Fontes Pereira de Melo, esse poltico da industrializao que criou em 1852 o Ministrio das Obras Pblicas, do Comrcio e da Indstria, que mandou construir quatrocentos quilmetros de estradas, uma dezena de pontes e a primeira linha do caminho de ferro, entre

17

Lisboa e o Carregado (1856), e que deu igualmente um impulso decisivo ao ensino tcnico, agrcola e industrial. O mentor desse pr-industrialismo foi tambm o prprio rei D. Pedro V (1853-1861), o qual, apesar da sua breve existncia, soube como nenhum outro voltarse para o futuro, criticando com lucidez o presente, isto , o esprito retrgrado da sociedade portuguesa de ento. Prova-o, por exemplo, o que D. Pedro V diz sobre essa sociedade numa carta escrita em francs ao Prncipe Alberto 5: ...une socit profondment dmoralise par le souvenir cuisant de son ancienne grandeur et par la vue de sa dchance, vieillie par une enfance de plusieurs sicles, ayant perdu son temps et voulant le regagner tout dun coup, crase par sa chute envers le pass et envers lavenir. Opondo-se, pelas suas exigncias intelectuais e ticas, ao pragmatismo burgus, ao mercantilismo sem escrpulos de Fontes Pereira de Melo, D. Pedro V nem por isso acreditou menos do que ele no progresso. Ora, como se processou e quais foram as consequncias desse progresso em que se empenhou a burguesia pr-industrial portuguesa da Regenerao at ao final do sculo XIX? Antes de mais, notem-se os inconvenientes desse pretenso progresso, rigorosamente apontados por Antnio Srgio 6 isto : O regresso poltica do Transporte quando o necessrio, afinal, era reformar e reforar a actividade da Produo. O caminho de ferro, levando

18

subitamente s nossas aldeias a produo estrangeira mais barata, tinha como resultado prejudicar a nossa, j que lhe no davam, a esta, incentivos e aperfeioamentos que a habilitassem a superar os efeitos daquele progresso das comunicaes. O que significa que, pervertida a inteno revolucionria, anuladas as grandes reformas liberais de Mouzinho da Silveira, o pas foi dominado pelos vcios do parasitarismo econmico da burguesia capitalista, isto sem sequer se aproveitar da grande expanso da produo industrial que caracterizou a segunda metade do sculo XIX nos pases mais desenvolvidos da Europa. Por outro lado, que trazia esse progresso da burguesia pr-industrial portuguesa cultura? Haveria verdadeiro desenvolvimento do ensino, um aperfeioamento dos meios de comunicao social, uma abertura a outras culturas, uma viva curiosidade intelectual? No. Pelo contrrio: esse progresso, alis provinciano, da poca da Regenerao nada representou como desenvolvimento cultural. E, com o rodar dos anos, at ao fim do sculo e agonia da monarquia, mais e mais o ambiente cultural se foi degradando. E com ele o ambiente poltico e social. Assim, Ea de Queirs, num dos seus primeiros textos publicados e tambm dos mais caractersticos do seu estilo e do tat dme da sua gerao, evocava, em Outubro de 1867 7, uma Lisboa com meiguices primitivas de luz e de frescura que, ao contrrio das activas Paris, Londres, Nova Iorque, Berlim, no tem que semear: ressona ao sol; uma Lisboa que nem cria nem inicia: vai. Em suma: uma Lisboa que, imagem

19

de todo o pas, tem um frio senso prtico, a preocupao exclusiva do til, uma seriedade enftica, e a adorao burguesa e serena da moeda; uma Lisboa que, como o resto do pas, no tem alma. O tdio invadia a capital e contaminava novos e velhos. O baixo nvel cultural era mascarado por uma imitao grotesca da vida nos grandes centros mundanos europeus imitao, antes de mais, de Paris, de que o Chiado uma ridcula amostra. Havia assim todo um demi-monde cuja vida, como diz Jos-Augusto Frana 8, animada por (...) grisettes e pelo esprito canalha das bailarinas de can-can dos cafsconcerto ou ainda por pobres lorettes nacionais, de que se procurava estabelecer uma fisiologia assaz inverosmil, era todavia bem srdida. O pretenso progresso, portanto, em nada servia nem a cultura nem, de uma maneira geral, o desenvolvimento social e a vitalidade poltica do pas. O progresso, alis, foi uma das coisas mais paradoxalmente atacadas por essa Gerao de 70, que contra este ambiente de modorra e de degradao se revolta em nome de uma dinmica da histria qual o progresso, com os seus lados positivos e os seus lados negativos, est inevitavelmente ligado. Teremos, mais adiante, oportunidade de analisar detidamente este tema, abordado pelos diferentes representantes da Gerao de 70. Mas note-se desde j o que sobre o progresso escreveu Oliveira Martins, referindo-se (e como este texto ainda actual!) aos seus malefcios, no s em Portugal mas tambm nos grandes pases de plena expanso industrial 9:

20

O triunfo quase insolente do progresso material, a apoteose quase cega da vida, o delrio do prazer, nessa pndega internacional, em que, do Norte e do Sul, do Nascente e do Poente, os povos todos do mundo se associam, atulhando comboios e vapores, precipitando-se por terra e por mar, despejando-se nas ruas, vasando os bolsos, extenuando-se, endividandose, parece-nos que, sem preocupaes de moral rabugenta, est indicando a quem o observa um estado de inconsistncia e desnorteamento neste fim de sculo. Talvez o homem tenha vencido em demasia. (...) As naes todas, e muito mais as democracias, procedem como elementos ou foras fsicas, obedecendo a leis que saem das correntes chamadas de opinio e que as mais das vezes so o contrrio de uma opinio, porque so uma vertigem o que os franceses dizem emballement. (...) E, por trezentos metros que tenha, como tem, a torre Eiffel, nem l do alto se pode ver o futuro: apenas se v o formigueiro de gente vida de prazer, cega de curiosidade, morta de canseira, revolvendo-se nas ruas, nos passeios e nos quiosques da grande Feira do ano de 1889. Mas 1889 uma data j adiantada no desencadeamento e desenvolvimento das ideias revolucionrias que formaram a Gerao de 70. uma data que marca j muita renncia no plano da aco poltica, social e mesmo cultural. Portanto, vejamos primeiro quais os factores histricos principais, referentes no s a Portugal mas tambm ao resto do mundo, que determinaram a

21

formao dessa gerao decisiva para a cultura portuguesa. BURGUESIA, DEMOCRACIA, REVOLUO DE 1848 A 1871 evidente que temos de utilizar com extrema prudncia o termo, j to gasto, de burguesia. necessrio constantemente especificar se se trata de grande, mdia ou pequena burguesia; de burguesia comercial, financeira ou industrial; financeira ou industrial; rural ou citadina; recente ou de antigas tradies, etc. No entanto, pode dizer-se, generalizando, que a burguesia a grande classe social que se afirma plenamente desde o princpio do sculo XIX na Europa. Uma classe social que, sendo formada por diversos estratos polticos, econmicos e sociais, assimilou todos os outros com o objectivo de conquistar a hegemonia da produo. Esta burguesia do sculo XIX, sobretudo a que gerou e por sua vez foi gerada pela Revoluo Francesa 10, renova-se incessantemente, atingindo assim uma conscincia de classe superior em que predomina o culto da tcnica. A renovao processa-se lenta mas seguramente, assimilando o prprio processo revolucionrio. Este processo revolucionrio, na Europa e mais precisamente em Frana, assinalado por duas datas decisivas: 1848 e 1871. 1848, entre 23 e 26 de Junho, a insurreio dos bairros operrios do Leste de Paris, insurreio esmagada pela represso, confiada a Cavaignac. 1871, entre Maro e Maio, a insurreio da

22

Comuna de Paris, esmagada durante a semana sangrenta de 22 a 27 de Maio pelos Versalheses. Quarante-huit, termo consagrado pela histria europeia do sculo XIX, marca antes de mais a ecloso de revolues liberais de carcter nacionalista em Itlia, na Alemanha, na ustria, na Hngria. De 1848, nasceu o sufrgio universal, igualitrio. O movimento de democratizao burguesa acelera-se. A democracia torna-se ento a base ideolgica da poltica europeia do sculo XIX. Mas que democracia? O termo tornou-se to viciado como o de burguesia. A verdade que, em suma, a democracia resultante da queda da Monarquia de Julho, a 28 de Fevereiro de 1848, e do triunfo da Repblica, em Frana, no passou de uma democracia, digamos, provisria. A chamada democracia, instituda pelo novo regime republicano francs e tornada como modelo por outros pases, inclusivamente por Portugal, torna-se de facto uma democracia meramente formal, mais poltica do que social. Da a insurreio operria de Junho de 1848. Da a formao da democracia comunalista que, em Paris, em 1871, atravs de um movimento abertamente revolucionrio, tenta impor essa doutrina. No o conseguiu, alm do mais pelas suas fatais contradies internas: a impossibilidade de conciliar a tradio jacobina de 1848, o mutualismo de Proudhon e o colectivismo da Primeira Internacional, o qual estava por sua vez dividido entre a tendncia marxista ortodoxa e a tendncia anarquista dos partidrios de Bakunine.

23

CULTURA ROMNTICA, IDEAIS SOCIALISTAS, REPUBLICANISMO Todas estas contradies se reflectem na cultura da poca, um pouco por toda a Europa. Os mais importantes iniciadores do romantismo as manifestam. Para s citar um exemplo, entre muitos no domnio da literatura universal, exemplo relativo a este perodo da segunda metade do sculo XIX, analise-se a atitude poltica do poeta alemo Heinrich Heine, o qual influenciou em parte Antero de Quental, sobretudo o Antero das Primaveras romnticas. Heine, que tanto exaltou os movimentos revolucionrios em Frana desde 1830; Heine que, gravemente doente, paraltico, exalta em carta a um amigo, Fanny Lewald, a 14 de Maro de 1848, a revoluo de Fevereiro de 1848 que determinou a queda da Monarquia de Julho, lamentando no ter podido participar nela fisicamente e intelectualmente esse mesmo Heine escreve, alguns meses antes da sua morte, ocorrida a 17 de Fevereiro de 1856, referindo-se possvel vitria futura do proletariado e, portanto, dos revolucionrios mais avanados de ento, os comunistas: Ce nest quavec horreur et effroi que je pense lpoque o ces sombres iconoclastes parviendront la domination; de leurs mains caleuses, ils briseront sans merci les statues de marbre de la beaut si chres mon coeur; ils fracasseront toutes ces babioles et fanfreluches fantastiques de lart quaimait tant le pote; ils dtruiront mes bois de lauriers et y planteront des pommes de terre (...) et, hlas! mon

24

Livre des chants servira lpicier pour en faire des cornets, o il verser du caf ou du tabac priser pour les vieilles femmes de lavenir. Hlas! je prvois cela et je suis saisi dune indicible tristesse en pensant la ruine dont le proltariat vainqueur menace mes vers, qui priront avec tout lancien monde romantique. Et pourtant, je lavoue avec franchise, ce mme communisme, si hostile tous mes intrts et mes penchants, exerce sur mon me un charme dont je ne puis me dfendre (...) quoi quil en soit, jen suis possd.11 Em ltima anlise, a essncia da cultura romntica, na Alemanha como noutros pases, inclusive Portugal, em si mesma o mais possvel contraditria. De tal maneira que, mesmo limitando-nos a esta fase de um, digamos, segundo romantismo, teremos de distinguir, grosso modo, duas formas de romantismo: o romantismo, propriamente terico e especulativo e o romantismo sentimental e moral (por vezes moralista). O primeiro est ligado a um esprito de revolta e polmica contra o academismo literrio e o idealismo intelectualista do sculo XVIII. O segundo seria, como muito rigorosamente nota Benedetto Croce 12, o romantismo como doena, ou seja, o chamado mal du sicle. Este segundo romantismo no , alis, forosamente uma degenerescncia do primeiro. Digamos que, embora as suas manifestaes sejam frequentemente secundrias do ponto de vista do valor cultural absoluto, intrnseco ou melhor, no plano da criao de ideias e de obras literrias de grande complexidade e de verdadeiro universalismo -, no entanto, o que o caracteriza , antes de mais, uma

25

desistncia perante o dinamismo da histria, o que propriamente o contrrio do, digamos, primeiro romantismo. Desistncia que implicava no s a renncia ao engagement poltico pessoal, aco, em suma, mas tambm, mais genericamente, negao da cultura como valor actuante numa determinada sociedade. Em Portugal, opem-se a este mal du sicle da burguesia da segunda metade do sculo XIX aqueles que proclamam um socialismo prximo do anunciado (e tantas vezes trado, em Frana como noutros pases) pela Revoluo de 48. Mas que socialismo? Um socialismo que anuncia a repblica em termos utpicos e frequentemente simplistas, diletantes no pior sentido do termo. Como diz Jos-Augusto Frana 13, a propsito da publicao clandestina de A Repblica, jornal do povo cujo primeiro nmero data de 25 de Abril de 1848 e cuja publicao dura dois meses -: a declarao de princpios de A Repblica mergulha-nos imediatamente num universo ideal, digno dos anjos, universo utpico que nenhuma estrutura ideolgica sustentava. Essencialmente, porqu? Porque a estrutura poltica portuguesa da primeira metade do sculo XIX era baseada num constitucionalismo (quando ele existiu, pelo menos teoricamente) sem partidos verdadeiramente organizados. De facto, s muito tarde, relativamente a outros pases da Europa, que comeou a vigorar em Portugal o sistema partidrio. Mesmo aps a vitria do marechal Saldanha e dos chamados Regeneradores, que formaram o primeiro partido organizado, o constitucionalismo europeu no se imps totalmente em Portugal. Como

26

assinala o historiador A. H. de Oliveira Marques 14: Antes das dcadas de 1860 e 1870, existiam correntes de opinio, grupos ideolgicos, foras polticas ou o que quer que lhes queiramos chamar, mas no partidos no sentido de organismos devidamente estruturados. Em todo o caso, essas correntes de opinio ou esses grupos ideolgicos manifestaram-se desde 1848 na Europa, como vimos, e a partir de ento no cessaram em Portugal, alguns deles, de propagandear o sistema republicano e de atacar a burguesia reinante. Esta burguesia encontrou momentaneamente a sua unidade, formando a diferentes nveis (alta, mdia e pequena burguesia) uma frente comum de expanso industrial que a Regenerao incentivou, tentando assim compensar a perda do Brasil. Chegara, como diz ainda Oliveira Marques, o dia da vitria do cepticismo antigo e do utilitarismo moderno. Alexandre Herculano, mentor da gerao revolucionria de 1830 e do chamado Primeiro Romantismo em Portugal, escreve desde o incio do perodo da Regenerao, no jornal O Pas 15, que ele prprio fundou com o marqus de Niza logo a seguir entrada de Rodrigo da Fonseca para o governo: A histria poltica uma srie de desconchavos, de torpezas, de inpcias, de incoerncias, ligadas por um pensamento constante o de se enriquecerem os chefes dos partidos. Ideias, no se encontram em toda essa histria, seno as que esses homens beberam nos livros franceses mais vulgares e banais. Hoje ach-loseis progressistas, amanh reaccionrios; hoje conservadores, amanh reformadores; olhai porm com ateno e encontr-los-eis sempre nulos.

27

E Herculano, que servir de modelo Gerao de 70, acabaria assim por retirar-se, em 1867, para Vale-deLobos, perto de Santarm, onde se entregou lavoura, tendo, segundo Fidelino de Figueiredo 16 estudado a srio alguns problemas da economia agrcola e fabricado o melhor azeite do seu tempo. Entretanto, a agitao ideolgica de inspirao socialista e utpica no cessa e dela nascer a Gerao de 70, com todas as suas tantas vezes dramticas contradies, que so as da poca e as dos prprios indivduos (no nos esqueamos, alis, de que o sculo XIX essencialmente o sculo do individualismo) que a compem. Assim, publicao do primeiro nmero do jornal A Repblica, em 1848, segue-se a de muitos outros jornais, revistas e folhetos cujo tom dominante tambm o de, polemicamente e por vezes ingenuamente, anunciar a revoluo republicana. Uma revoluo que, no princpio da segunda metade do sculo XIX, ainda muito vagamente concebida, mas que reflecte j, em todo o caso, uma tendncia a favor da pequena burguesia mais exactamente, essa pequena burguesia das cidades, sobretudo de Lisboa e do Porto, que, ligada a uma parte da mdia burguesia rural, ser efectivamente o pilar da Revoluo Republicana de 1910. Por outro lado, as primeiras ideias comunistas, ou mais propriamente, fourieristas, expandem-se. Que o comunismo?, folheto assinado por um tal Gurin de Vitry, surge ainda em 1848 e O Eco dos Operrios em Abril de 1850, em Lisboa 17. Deixa de se falar vagamente de povo, passando a falar-se de operrios ou de classe operria. A primeira greve, uma greve de tipgrafos,

28

data de 1852. Este movimento culmina em 1875, com a fundao do Partido Socialista. Note-se que em breve houve uma separao entre o socialismo e a ortodoxia republicana, a qual se foi tornando cada vez mais slida a partir de 1870 e, sobretudo, desde a fundao do Partido Republicano, em 1873, at ao fim do sculo. Isto significa que, na altura das Conferncias do Casino de Lisboa, em Maio e Junho de 1871, conferncias que manifestaram o que de essencialmente novo no domnio das ideias a Gerao de 70 veio trazer cultura portuguesa, a ideologia socialista era j minoritria. Este facto pode legitimamente levar-nos a pensar que, na Gerao de 70, a ideologia socialista se radicava numa cultura vinda do romantismo do princpio do sculo. O que significa que, se ela reagiu desde as Conferncias do Casino contra o romantismo como mal du sicle, recusou por outro lado a cultura pequenoburguesa do republicanismo em formao. Veremos mais adiante que esta oposio socialismorepublicanismo far com que a prpria Gerao de 70, no sentido propriamente histrico do termo, se divida: por um lado, os socialistas utpicos como Antero e, de certo modo, Ea de Queirs; por outro lado, os partidrios do republicanismo pequeno-burgus, como Tefilo Braga, Guerra Junqueiro e o prprio Ramalho Ortigo, que, alis, de esprito utpico nunca nada teve. A diferena entre as duas tendncias polticas dominantes marca tambm, afinal, uma diferena de valores culturais, os primeiros sendo sem dvida mais complexos e mais universais do que os segundos. Quanto a Oliveira Martins, ocupa, como veremos, um lugar parte, situando-se mais prximo dos socialistas

29

utpicos (Antero sobretudo), embora acabasse por renunciar ideia de revoluo e a ela preferisse um reformismo cesarista. O certo que, em ltima anlise, relativamente ao ambiente histrico da burguesia da segunda metade do sculo XIX e evoluo dos ideais polticos sintetizados pela oposio socialismo-republicanismo, a Gerao de 70 se dividiu, passando por duas fases principais. H, assim, a primeira fase, a de uma linha ideolgica nitidamente evolutiva, que vai do perodo polmico, antes da dcada de 70, do Bom senso e bom gosto polmica de Antero, ainda ao lado de Tefilo Braga, em Coimbra, contra o provincianismo cultural da degenerescncia romntica dominada por Antnio Feliciano de Castilho (que, alis, era um clssico, defensor da clart francesa, ou mais exactamente cartesiana, contra o abstraccionismo metafsico dos alemes, entusiasta de Molire contra Goethe) ao perodo propriamente ideolgico, em Lisboa, do Cenculo e das Conferncias do Casino de 1871, ano, no nos esqueamos, da Comuna de Paris. A segunda fase, que a fase final e que corresponde exactamente ao fim do sculo, a fase do grupo dos Vencidos da Vida. a fase em que Ea (como, alis, Antero e Oliveira Martins) renuncia aco poltica e ideolgica imediata. Surge ento a idealizao vaga de uma aristocracia iluminada, contraponto do socialismo utpico. Prova-o, por exemplo, o elogio que Ea faz do rei D. Carlos I numa Nota do ms publicada na Revista de Portugal, sob o pseudnimo de Joo Gomes, e consagrada morte de D. Lus I, igualmente exaltado pelo escritor 18:

30

Talvez o povo, renovando um costume sentencioso das idades passadas, lhe venha a dar o nome de Lus-o-Bom. Hoje, nas sociedades democratizadas, no h j possibilidade histrica de que um Rei conquiste o cognome de Grande. (...) Um prncipe moderno, brilhante, cultivado, requintado, de aptides complexas e fortes, de inteligncia largamente absorvente, de vida excelentemente pura, sobe por seu turno ao trono sete vezes secular. Comea este reinado no momento em que, pela dispersa hesitao das inteligncias, pelo incurvel enfraquecimento das vontades, pela desorganizao dos Partidos, pela inrcia das Classes, o Rei surge como a nica fora que no Pas ainda vive e opera. por isso mesmo que a autoridade vital, que desde 1820 se escoara do trono e se espalhara pelas instituies democrticas e pelos corpos que as encarnam, parece refluir ao Trono para nele se condensar de novo. a fase tambm da suprema ironia queirosiana. Do mesmo ano de 1889, note-se outro texto de Ea, publicado anonimamente no n. 29 de Maro do jornal O Tempo, em resposta a um comentrio que, na vspera, Pinheiro Chagas fizera, no Correio da Manh, designao de Vencidos da Vida 19. O escritor comea por caricaturar, referindo-se ao grupo jantante que todas as semanas se reunia no Hotel Bragana: Homens que assim se renem poderiam logo, neste nosso bem amado pas, ser suspeitados de constituir um sindicato, uma filarmnica ou um partido. Tais suposies seriam desagradveis a quem

31

se honra de costumes comedidos; o respeito prprio obriga-os a especificar bem claramente, em locais, que, se em certo dia se congregam, apenas para destapar a terrina da sopa e trocar algumas consideraes amargas sobre o Colares. Logo adiante, o tom mais dramtico, definindo bem o esprito da Gerao de 70 nesta sua fase final do grupo dos Vencidos da Vida: ... para um homem, o ser vencido ou derrotado na vida depende, no da realidade aparente a que chegou mas do ideal ntimo a que aspirava. Que este ideal ntimo, a que os mais importantes representantes da Gerao de 70 aspiravam, no foi historicamente atingido prova-o ainda o suicdio de Antero, em 1891. Entretanto, a burguesia fin-de-sicle, indiferente s aspiraes dos Vencidos da Vida, prepara-se para uma nova fase da sua histria, a da instaurao da Repblica, uma repblica que nasceu da pequena burguesia e que foi, como disse Antnio Srgio 20, meramente formal, sem ideias, sada de uma romntica dramatizao da poltica e sem nada melhorar no que estrutural e bsico. Restam as grandes obras literrias dos maiores da Gerao de 70. Essas, ainda que obrigatoriamente ligadas e mesmo momentaneamente dependentes de condies histricas e sociais especficas, no podem ser julgadas pelas mesmas leis de transformao e, eventualmente, de progresso.

32

II /VIDAS E OBRAS

Dificilmente se poder estabelecer um paralelo entre as vidas dos principais componentes da Gerao de 70. Se as suas origens sociais foram diferentes, (da fidalguia aoriana de Antero de Quental mdia burguesia lisboeta de Oliveira Martins, passando pela mdia burguesia portuense, culturalmente mais fechada, de Ramalho Ortigo e pela alta-burguesia ainda com restos de aristocracia de Ea de Queirs, as suas carreiras profissionais e as suas tomadas de posio polticas foram por vezes opostas. Da mesma maneira, embora momentaneamente os seus interesses culturais coincidissem, as suas formaes filosficas, literrias e mesmo polticas foram bem diversas. Mas houve essa convergncia momentnea, esse ponto de encontro histrico decisivo, esse sbito partilhar de ideias, em suma, essa vontade comum de redescobrir Portugal no seu todo. E isso bastou para que a dinmica da gerao se desencadeasse. A data oficial deste desencadear de ideias a de Maio-Junho de 1871, ou seja, a data das Conferncias do Casino, em Lisboa. Mas antes e depois, atravs dos

33

seus pontos em comum, para l mesmo do que os separa, a Gerao de 70 acaba por afirmar-se como uma gerao cultural das mais homogneas. Analismos j, embora sumariamente, os elementos histricos, sociais e polticos que marcaram a Gerao de 70 desde a sua origem. Vejamos agora a formao e a evoluo de cada um dos seus principais componentes e das suas respectivas obras literrias. Para isso, adoptaremos um critrio meramente cronolgico, comeando, portanto, pelo mais velho dos principais componentes da Gerao de 70 at chegar ao mais novo. A vida e a obra de outros elementos culturalmente menos importantes, menos decisivos, da Gerao de 70 sero resumidas numa breve anotao final. RAMALHO ORTIGO OU O REPUBLICANISMO PEQUENO-BURGUS Do fundo tenebroso da Idade Mdia tinham sado os trs factos fundamentais da civilizao moderna a bssola, a imprensa e a plvora. Esta citao de Ramalho Ortigo, que abre um prefcio da edio de Os Lusadas feita pelo Gabinete Portugus de Leitura, do Rio de Janeiro, para comemorar o terceiro centenrio de Cames, texto que data de 19 de Maro de 1880 21, pode, de certo modo, resumir toda a atitude cultural deste componente da Gerao de 70. Ou seja: a sua condenao de tudo o que irracional ou supra-racional, tudo o que, segundo Ramalho, vem do fundo tenebroso da Idade Mdia, e

34

a sua sobrevalorizao da civilizao moderna, que significa para ele tudo o que racional. Note-se ainda, neste texto pouco conhecido, o elogio que Ramalho faz da Imprensa, a qual: ... soltando as ideias como um enxame luminoso e alado, preenche o mundo com uma claridade nova, e a esse fiat lux dissipam-se para sempre as trevas da razo encarcerada na dialctica sacerdotal. O racionalismo para Ramalho seria, portanto, antes de mais, manifestado atravs da actividade da Imprensa e teria como consequncia o fim da dialctica sacerdotal. O racionalismo fora a grande vitria da Renascena: Da plenitude gloriosa que vem ao esprito humano dessa trplice conquista, procede esta enorme festa a Renascena. Nestes breves excertos; esto j patentes as limitaes culturais de Ramalho Ortigo: uma viso histrica extremamente superficial, baseada em preconceitos de um racionalismo rgido. Ope totalmente Idade Mdia e Renascena, resumindo a primeira ao obscurantismo sacerdotal, como se a Idade Mdia no tivesse a sua luminosidade intelectual prpria, no viciada pela Escolstica, e como se a Renascena no fosse feita de tanta sombra irracionalista! Mas o mais importante destas citaes, confirmado por tantos textos anteriores e posteriores de Ramalho Ortigo, , sem dvida, o elogio incondicional da Imprensa. De facto, para Jos Duarte Ramalho Ortigo (1836-1915), a misso histrica da palavra impressa e,

35

mais exactamente, da palavra socialmente mais eficaz, ou seja, a palavra jornalstica, foi sempre determinante. Como diz Antnio Jos Saraiva, Ramalho Ortigo formou-se na escola do folhetim literrio 22. Nascido no Porto, a comeou a sua carreira de jornalista, no Jornal do Porto. Camilo e o Porto, naquilo que um e outro tinham de provinciano, de relapso a todas as formas de vanguarda cultural e esttica, influenciaram-no decisivamente. Prova-o, por exemplo, o texto que Ramalho consagrou a Camilo 23 e em que descreve o Porto da sua infncia e da sua adolescncia com paixo: Em 1850, o Porto parecia-se mais com o estreito e cavo burgo medieval que Garret descreve no Arco de SantAna, do que com a cidade comercial, civilizadamente cosmopolita, incaracterstica e banal, que hoje . Neste texto, Ramalho manifesta tambm o seu sentido agudo do descritivo minucioso e o seu gosto do tpico: Algumas ruas tinham o aspecto mais interessantemente arqueolgico ou mais vivamente pitoresco. A antiga Banharia era ainda a esse tempo quase exclusivamente habitada por latoeiros. Tinha toda ela um tom doirado produzido pela refraco de luz nas bacias, nos tachos, nos candeeiros de trs bicos, em cobre polido, pendurados s portas: e o permanente martelar dos arames aviventava-a com o mesmo rudo laborioso e alegre do tempo em que a Aninhas morava ali perto, ao bendito arco da Senhora

36

SantAna. (...) Durante o Vero, o folguedo predilecto das famlias abonadas eram as merendas e os jantares pelo rio acima, a Quebrantes, ao Freixo, Pedra Salgada, quinta da China. (...) A famlia toda o marido, de calas de ganga e chapu de sol, a mulher, os filhos, a criada com roupinhas minhotas, e os dois maranos, em chinelas de bezerro compradas nas Congostas, camisa de linho caseiro, niza de briche e chapu bragus de copa alta e aguda tomavam metodicamente assento r, sob o tolde branco, rusticamente armado em varas de pinho, como um parreiral suspenso. Mas o Porto e o sentido do pitoresco no foram os nicos elementos determinantes da formao de Ramalho. H um outro, talvez afinal ainda mais importante, que o da conscincia de degradao da vida poltica portuguesa por volta de 1870. Prova-o, entre outros, este texto de 1874, extrado de As Farpas 24, texto em que Ramalho se refere sobretudo falta de representatividade do Parlamento: A representao nacional h muito que est sendo em Portugal uma farsa ridcula para a cincia e uma vergonha pblica para o patriotismo. A cmara de uma ignorncia enciclopdica. Erra e insulta, e no se esclarece nem se desafronta, o que prova que no tem cincia e que parece no ter carcter. (...) Faltam cmara as ideias polticas e faltam-lhe os princpios morais. Daqui resulta uma perturbao insanvel, um mal sem cura. a corrupo, a gangrena, a paralisao senil afectando o jogo de todo o maquinismo constitucional. Temos o sossego interior

37

e temos a paz no estrangeiro; gozamos da liberdade poltica e da liberdade individual; e, no obstante, no pas todo h um surdo descontentamento geral. (...) Em Portugal, os partidos acabaram h muitos anos. No existem divergncias de opinio sobre qualquer princpio capital que interesse o pas inteiro. Como o interesse do pas desapareceu, a urna fica entregue ao arbtrio da autoridade, e os crculos eleitorais convertem-se em burgos podres. Os regeneradores com os cabos de polcia elegem a maioria, os grandes proprietrios com os seus caseiros e os seus amigos votam nas oposies. A vontade popular muda e passiva, o que quer dizer que as fontes ntimas da vida nacional esto obstrudas ou secas. (...) O pas inteiro vive numa misria baixa, numa pobreza degradante, sem a altivez, sem o brio dos pobres valentes, que nunca dobram a espinha nem estendem a mo. Na altura em que escreveu este texto, j Ramalho deixara o Porto e, em Lisboa, entrara para o grupo do Cenculo, ao qual pertenciam tambm Ea de Queirs, Oliveira Martins, Antero de Quental, Guilherme de Azevedo, Guerra Junqueiro, Jaime Batalha Reis. Este grupo, de que o principal mentor era Antero de Quental, no discute s literatura, mas prope-se tambm organizar um plano de aco ideolgica, plano de que resultaram as Conferncias do Casino, em que se atacam as instituies da poca. A colaborao entre Ramalho Ortigo e Ea de Queirs, que data do perodo do Cenculo, e que se concretiza com a publicao no Dirio de Notcias (24 de Julho a 27 de Setembro de 1870) de um escrito singular, O mistrio da estrada de Sintra, e do primeiro

38

nmero de As Farpas (Maio de 1871), interrompe-se com a partida de Ea (9 de Novembro de 1872) para Cuba, onde vai exercer o cargo de cnsul. mais precisamente na segunda fase de As Farpas que se revela o republicanismo pequeno-burgus de Ramalho, tornado um discpulo do futuro presidente da Primeira Repblica portuguesa, Tefilo Braga, e do seu positivismo comtiano extremamente limitado. Ramalho ento, mais do que nunca, um propagandista da ideologia republicana e permaneceu como tal, ainda que na ltima fase da sua vida se volte para a monarquia mais tradicionalista. Este republicanismo pequeno-burgus manifesta-se, sobretudo, atravs do seu anti-clericalismo, de que nos d exemplos abundantes nas Farpas 25: A raa portuguesa foi lentamente e surdamente corrompida pelo antigo despotismo monrquico, pela soberba intrpida e bulhenta dos fidalgos, pelo ouro das conquistas e principalmente pelo monasticismo. Fizemo-nos ociosos, vaidosos, pusilnimes, supersticiosos e fanticos. A religio mais clerical que divina penetrando-nos completamente, dandonos uma lei infalvel para a conscincia, proibindo-nos de pensar (...) lanou-nos na inrcia passiva a respeito do problema dos nossos destinos mais elevados. Ensinaram-nos a explicar a culpa pela tentao do demnio e a considerarmo-nos inocentes pela absolvio dos confessores. Com semelhante teoria, o dever e a responsabilidade desaparecem. A conscincia cai na imobilidade.

39

Por vezes, a este anti-clericalismo vem juntar-se um outro tema caracterstico dos ataques da propaganda republicanista ao regime monrquico decadente. Esse tema o do sistema colonial portugus. Ramalho pe em relevo, sobretudo, a sua pouca eficcia como sistema de civilizao. Veja-se, por exemplo, este texto das Farpas que data de Maio de 1879 e que aborda a questo africana 26: Desde o sculo XVI at hoje os padres tm sido o nico instrumento da civilizao empregado pelo governo portugus no regime colonial. No sculo XV as nossas relaes comerciais com a frica achavam-se organizadas. (...) Depois de D. Joo II a decadncia da frica principia pelo desvio das atenes para a sia e para o Brasil e pelas guerras dos holandeses, e continua at aos tempos modernos mantida progressivamente pelo trfico ruinoso e dissolvente da escravatura. (...) Na trajectria do nosso destino houve uma soluo de continuidade entre o sculo XVI e a idade moderna. O despotismo monrquico e o despotismo teolgico despedaaram a cadeia das nossas tradies. O regime liberal, por falta de critrio cientfico, no soube ainda ligar o fio da nossa actividade presente ao forte impulso da antiga civilizao, violentamente truncada durante mais de trs sculos pelos agentes mais perturbadores do movimento progressivo de uma sociedade. A este anti-clericalismo e a este ataque, de uma maneira geral, ao regime monrquico, acrescentam-se um moralismo e um didactismo de origem sociolgica

40

(sem, no entanto, terem nada a ver com o socialismo utpico de Antero) que reforam, em vrias passagens das Farpas, a ideia de republicanismo pequeno-burgus. So exemplos desse aspecto, entre muitos, as passagens sobre A alimentao e seus efeitos nas ideias, nos sentidos e nos aspectos da sociedade (As Farpas de Fevereiro de 1876) em que Ramalho confunde a (pouca) eficcia da estatstica no que diz respeito alimentao nacional com a necessidade (extra-nacional e extra-temporal) da metafsica 27: Porque que a Estatstica nos no disse h mais tempo o que sabia? Ter-nos-ia tirado o trabalho de procurar para tantos fenmenos as suas causas metafsicas. Uma ltima fase da obra de Ramalho Ortigo foi a das divagaes folclricas, em que Ramalho evoca sobretudo a vida provincial, com saudosismo (provinciano, contrariamente ao de Antnio Nobre) mas tambm, por vezes, com um sentido muito pessoal da festa e da magia da luz e das sombras, no Porto 28: Tamanho era o dia como a romaria. De sorte que s noite fechada se voltava para casa. E os que tinham ficado na cidade, depois de terem ido ao Senhor Exposto, a Santo Antnio das Taipas ou a S. Joo Novo, viam do paredo das Fontanhas deslizar em baixo, no espelho negro do rio angustiado e tmido, as lentas barcas iluminadas de lanternas. Ou em Lisboa (passagem que nos faz pensar em Cesrio Verde) 29:

41

Saio de Lisboa de manh cedo... Uma destas belas manhs criadoras, em que as abboras e os meles abeberados na raz pela rega da vspera se dilatam regaladamente a um sol de rachar. Alis, Ramalho deu-nos o melhor de si mesmo na evocao de viagens, como se prova pelo seu livro A Holanda (1883), em que nostalgicamente (e neste sentido o livro no s um livro de viagens ele bem caracterstico de toda a Gerao de 70) evoca uma burguesia cosmopolita (no pequena e no republicana), verdadeiramente civilizada, que, para nossa grande desgraa, nunca chegou a existir em Portugal: 30 Na posse plena do seu destino, toda a Holanda pacificada respira largamente a glria, a felicidade, a alegria. Esse pequeno e humilde povo fleumtico, trabalhador, econmico, inventivo, modesto, provocado pelas mais arrogantes e poderosas naes do mundo, batera e derrotara toda a Espanha, a Inglaterra e a Frana. A guerra, que arruinara os inimigos, enriquecera a Holanda pelo comrcio do mundo. Enquanto combatia no mar, edificava em terra. Levantara diques, abrira canais, dissecara pntanos, saneara cidades, construra pontes, armara estaleiros, fundara escolas, igrejas, palcios municipais, recolhimentos de velhos e de invlidos, hospcios de rfos, sedes de assembleias comerciais, de sociedades literrias e cientficas, de associaes de operrios, de irmandades de artistas, de companhias de arcabuzeiros. Tinham-se reacendido os seus lares, agora mais recolhidos e mais meigos; tinham-se

42

enchido de flores os seus jardins; tinham-se coberto de vacas e de ovelhas os seus prados. De resto, se a partir de 1880 fez parte do grupo dos Vencidos da Vida e se nas ltimas Farpas renega o republicanismo e manifesta a sua nostalgia de uma monarquia castia, antiga, Ramalho Ortigo, com todas as suas limitaes, fica na histria da cultura portuguesa como um representante daquilo que, na Gerao de 70, foi por vezes mais testemunho de uma poca do que profunda anlise e verdadeira transformao dela. ANTERO DE QUENTAL OU O MESTRE METAFSICO A literatura, como toda a arte, uma confisso de que a vida no basta. Esta frase de Fernando Pessoa 31 define exemplarmente, ao mesmo tempo, a vida e a obra de Antero de Quental, to admirado por Pessoa. Mas o grande drama do poeta que, se para ele a vida no bastava, a literatura ainda menos. Da a impossibilidade para Antero de a literatura ser apenas uma forma de confisso (como o foi para Antnio Nobre, por exemplo) e, portanto, de total compensao do irrealizvel na vida. Longe de ser confisso, a literatura foi para Antero, atravs das vrias fases da sua obra, antes de mais uma forma de revolta e de exigncia absoluta do pensamento para l do relativismo do sentimento. Como diz Oliveira Martins no prefcio aos Sonetos: Antero um poeta que sente, mas um raciocnio que pensa. Pensa o que sente; sente o que

43

pensa. Como diria mais tarde Fernando Pessoa de si mesmo: O que em mim sente, est pensando. Mas a Antero faltava a ironia niilista de Pessoa para dar a este drama pensamento-sentimento uma feio essencialmente ldica. Para Antero, pensar e sentir deveriam conjugar-se para um mesmo fim: agir. E agir como um condutor de povos, como um iluminado. Se no chegou a ser um condutor de povos, Antero foi, no entanto, o mestre incontestado e incontestvel da Gerao de 70, o seu supremo inspirador, o seu trgico smbolo. E foi-o desde o momento em que, tendo deixado a famlia fidalga e letrada de proprietrios rurais da cidade de Ponta Delgada, ilha de S. Miguel, onde nasceu a 18 de Abril de 1842, partiu para Coimbra e a comeou a impor-se no meio estudantil. O melhor testemunho que temos deste primeiro perodo da influncia intelectual de Antero na gerao estudantil coimbr dos anos 60, talvez o de Ea de Queirs, num texto evocativo do poeta e publicado em 1896 32: Em Coimbra, uma noite, noite macia de Abril ou Maio, atravessando lentamente com as minhas sebentas na algibeira o Largo da Feira, avistei sobre as escadarias da S Nova, romanticamente batidas da lua, que nesses tempos ainda era romntica, um homem, de p, que improvisava. A sua face, a grenha densa e loura com lampejos fulvos, a barba de um ruivo mais escuro, frisada e aguda, maneira srica, reluziam, aureoladas. (...) Parei, seduzido, com a impresso de que no era aquele um repentista picaresco ou amavioso, como os vates do antiqussimo sculo XVIII mas um Bardo,

44

um Bardo dos tempos novos, despertando almas, anunciando verdades. O homem, com efeito, cantava o Cu, o Infinito, os mundos que rolam carregados de humanidade, a luz suprema habitada pela ideia pura, e ... os transcendentes recantos Aonde o bom Deus se mete, Sem fazer caso dos Santos, A conversar com Garrett! Deslumbrado, toquei o cotovelo de um camarada, que murmurou, por entre os lbios abertos de gosto e pasmo: o Antero!... E, mais adiante, Ea evoca o primeiro encontro a ss com Antero, dando-nos dele, com invulgar sentido psicolgico, uma imagem verdadeiramente nietzschiana: Intimidade, porm, com aquele que eu depois chamava Santo Antero, s verdadeiramente comeou na manh em que o visitei, com muita curiosidade e muita timidez, na sua casa do Largo de S. Joo. (...) Fascinado, surdi do vo da janela onde me refugiara, e parando borda da mesa: - Oh Antero, quanta ordem voc tem na destruio! Ele dardejou sobre mim dois olhares devoradores. Depois, considerou, ainda enrugado, a pilha acertada de papis cortados e, um sorriso, aquele sorriso de Antero que era como um sol nascente, iluminou, fez toda clara e rsea a sua boa face onde havia um no sei qu de filsofo de Alexandria e de piloto do Bltico:

45

- O ritmo, murmurou, necessrio mesmo no delrio. Isto passou-se, como diz ainda Ea, na Coimbra de to lavados e doces ares, em 1862 ou 1863, essa Coimbra que vivia num grande tumulto mental com a chegada por caminho de ferro, vindos da Frana e da Alemanha, de torrentes de coisas novas, ideias, sistemas, estticas, formas, sentimentos, interesses humanitrios... Ou seja, ple-mle, leituras de Michelet, Hugo, Taine, Vico, Hegel, Proudhon, Heine, Baudelaire e Darwin. Ea descobre mesmo, com deslumbramento, a Bblia! Mas o que Ea descobre, sobretudo, como o fizera j Antero, a Humanidade. A gerao de Antero e de Ea comea a amar a Humanidade, como h pouco, no ultra-romantismo, se amara Elvira, vestida de cassa branca ao luar. Na altura em que Ea encontra Antero, j este tinha publicado os primeiros Sonetos (1861) e Batrice (1863), mais tarde inclusos nos Sonetos Completos 33. Mas com as Odes Modernas, livro publicado em 1865 (um ano depois da Viso dos Tempos de Tefilo Braga) que Antero inicia um novo perodo na literatura portuguesa, perodo a que Antnio Srgio, muito justamente, chamou terceiro romantismo. De facto, se as Odes Modernas se separam radicalmente do romantismo de Castilho, designado pelo mesmo Antnio Srgio o segundo romantismo, elas retomam os grandes temas do primeiro romantismo de Herculano, isto , as supremas preocupaes humanistas, universalistas (em Herculano, mais nacionalistas do que universalistas) e, sobretudo, sociais que j Herculano anunciara e que provinham em linha

46

recta dos primeiros romnticos alemes, mais do que dos romnticos franceses, embora Vtor Hugo influenciasse nitidamente Antero nesta primeira fase. Romantismo, portanto, predominantemente filosfico, o mesmo que marcou a poesia de Novalis, de Hoelderlin, de Heine, como se pode ver por este soneto das Odes Modernas intitulado Tese e anttese, datado de 1870 e depois includo nos Sonetos Completos (edio citada, p. 53): J no sei o que vale a nova ideia, Quando a vejo nas ruas desgrenhada, Torva no aspecto, luz da barricada, Como bacante aps lbrica ceia! Sanguinolento o olhar se lhe incendeia... Respira fumo e fogo embriagada... A deusa de alma vasta e sossegada Ei-la presa das frias de Medeia! Um sculo irritado e truculento Chama epilepsia pensamento, Verbo ao estampido de petouro e obus... Mas a ideia num mundo inaltervel, Num cristalino cu que vive estvel... Tu, pensamento, no s fogo, s luz! Ou ainda neste soneto, datado de 1872 e igualmente inserido posteriormente nos Sonetos Completos. O ttulo, Mais luz!, sendo uma referncia evidente s ltimas palavras que se supe ter pronunciado Goethe antes de

47

morrer, confirma a influncia predominante da cultura romntica alem em Antero (edio citada, p. 54/5): Amem a noite os magros crapulosos, E os que sonham com virgens impossveis, E os que se inclinam, mudos e impassveis, borda dos abismos silenciosos... Tu, Lua, com teus raios vaporosos, Cobre-os, tapa-os e torna-os insensveis, Tanto aos vcios cruis e inextinguveis, Como aos longos cuidados dolorosos! Eu amarei a santa madrugada, E o meio-dia, em vida refervendo, E a tarde rumorosa e repousada. Viva e trabalhe em plena luz: depois, Seja-me dado ainda ver, morrendo, O claro Sol, amigo dos heris! Esta forma de romantismo em especial a influncia de Heine e uma outra que se lhe sobrepe em alguns poemas, a de Baudelaire vai notar-se ainda mais nas Primaveras romnticas (1872), da mesma maneira que as teorias filosficas bsicas de Hegel, j evidentes em textos como Tese e anttese, se manifestam ao longo de todo o volume dos Sonetos Completos, publicado em 1885. Entretanto, esta poesia moderna que para Antero a voz da Revoluo, sendo essa voz no s a mais alta mas tambm a mais potica 34, fere os sentidos poticos do pontfice mximo das letras da Coimbra de ento, Antnio Feliciano de Castilho, mentor dos

48

ultra-romnticos. Tendo Castilho condenado formalmente os livros de Tefilo Braga e de Antero, o poeta das Odes Modernas lana-se numa polmica que ficou famosa com a publicao do opsculo Bom senso e bom gosto, em 1865. Para citar ainda Ea a propsito de Antero 35, o protesto do poeta aoriano foi moral, no literrio, um desforo da Conscincia e da Liberdade, contra o dspota do purismo e do lxicon. Pouco depois da publicao do folheto Bom senso e bom gosto, tendo-se formado em Direito, Antero, nada feito para estas polmicas meramente literrias, deixa Coimbra. Andava ento ansiosamente procurando um emprego para a sua grande alma 36. E julgou encontrlo numa aprendizagem da vida de operrio, num contacto directo com a realidade social, tendo primeiro trabalhado alguns meses nas oficinas da Imprensa Nacional e partindo depois, em fins de 1866, para Paris. Segundo Antnio Srgio 37, Antero escrevia a um amigo na vspera de partir: eu, por mim, vou mais com o nimo sossegado de quem cumpre um dever do que com o corao alegre de quem segue uma esperana. Cumprir um dever foi para Antero, em Paris, trabalhar como tipgrafo e contactar directamente com um clima revolucionrio em que as ideias se punham em prtica, preparando a Comuna. Mas, porque as ideias em Antero sempre suplantaram a prtica, e porque o exlio, ainda que voluntrio, no era nada propcio ao seu temperamento nevrtico, a experincia de Paris e da vida dura do operrio annimo no durou mais que alguns meses. Em Agosto de 1867, Antero regressou a Lisboa e de Lisboa partiu para os Aores.

49

Segue-se um perodo de funda depresso a que no ser estranha a conscincia de no poder conciliar pensamento e aco. Antero viaja at Amrica e, em fins de 1868, novamente em Lisboa, recomea as tentativas de aco doutrinria. Ainda segundo Ea, tendo desembarcado em Lisboa como um apstolo do Socialismo, Antero apareceu no Cenculo da Travessa do Guarda-Mor numa fria manh e foi aclamado. Assim nasceram no Cenculo e sob a influncia de Antero, que levava Ea e os seus companheiros a estudar Proudhon noite fora as clebres Conferncias do Casino, momento culminante da revoluo cultural da Gerao de 70. Alm da preparao das Conferncias, Antero lanava-se numa actividade poltica intensa: em colaborao com Jos Fontana, funda a Associao Fraternidade Operria, que representa em Portugal a I Internacional Operria; funda e dirige o jornal O Pensamento Social; luta pela separao socialistas-republicanos. Mas, a par de tudo isto, deve notar-se a publicao de textos dessa poca que nada tm a ver com o militantismo, e que reflectem bem as contradies de Antero ao longo de toda a sua vida. Refiro-me s pouco conhecidas poesias de Carlos Fradique Mendes, pseudnimo (ou melhor, verdadeiro heternimo prpessoano) inventado por Antero e Ea. A primeira dessas poesias foi publicada no folhetim de A Revoluo de Setembro de 29 de Agosto de 1869 e, como j foi provado 38, sem dvida da autoria de Antero. Note-se sobretudo o primeiro dos quatro Poemas do Macadam, atribuido por Antero a Fradique Mendes, dedicado a Baudelaire e publicado no Primeiro de Janeiro de 5 de Dezembro de 1869 (depois incluso na edio de 1943

50

das Primaveras Romnticas). Eis como apresentando-o, define o satanismo 39:

Antero,

O satanismo pode dizer-se que o realismo no mundo da poesia. a conscincia moderna (a turva e agitada conscincia do homem contemporneo!) revendo-se no espectculo das suas prprias misrias e abaixamentos, e extraindo dessa observao uma psicologia sinistra, toda de mal, contradio e frio desespero. o corao do homem torturado e desmoralizado, erigindo o seu estado em lei do Universo... Antero evoca ento Baudelaire como smbolo de um sculo fantasma, to sbio que ateu. Estava, assim, a condenar o conhecimento. No entanto, em nome do conhecimento, e do conhecimento activo, aberto ao maior nmero, que Antero profere, a 22 de Maio de 1871, a conferncia inaugural das Conferncias do Casino e ainda, a 27, outra sobre as Causas da Decadncia dos Povos Peninsulares. Esta fase activa de Antero prolonga-se at 1873, ano da morte do pai. Antero, que passara j por uma fase de depresso aps a queda da Comuna de Paris e a consolidao em Portugal da corrente republicana contra a corrente socialista, regressa aos Aores. A partir de ento, cessa o seu militantismo, parte uma breve e decepcionante adeso Liga Patritica do Norte, fundada aps o Ultimatum ingls de 1890. Recorramos ainda a Ea para melhor compreender esta ltima fase da vida de Antero 40:

51

O artista, o fidalgo, o filsofo, que em Antero coexistiam, no se entenderam bem com a plebe operria. Sempre sincero, lavou as suas mos e proclamou que s os Proletrios eram competentes para exprimir o pensamento e reivindicar o direito dos Proletrios. E, amando ainda os homens, mas desistindo de os conduzir a Cana subiu com passos desafogados para a sua alta torre bem-amada, a torre da Metafsica. O mestre da Gerao de 70 torna-se ento, definitivamente, um mestre metafsico. E tambm um grande mestre do soneto, forma que, sendo estrita, to plenamente acompanha o tumulto ntimo da derradeira fase da vida do poeta. Nesses sonetos, Antero concentrou no s as contradies da sua obra (acrescentada ainda pelo ensaio Tendncias gerais da filosofia na segunda metade do sculo XIX 1890) mas tambm as da sua vida, qual, aps um isolamento voluntrio em Vila do Conde, ps termo, com um tiro de pistola, num banco de jardim de Ponta Delgada, numa noite sombria, a 11 de Setembro de 1891. OLIVEIRA MARTINS OU O TERICO DA DECADNCIA Se h gerao cultural portuguesa para a qual a histria representou um absoluto, e precisamente um absoluto antes de mais cultural, foi a Gerao de 70. Dela teria, portanto, de nascer um historiador. Esse historiador foi Oliveira Martins, ainda que ele nada tenha, como veremos, de historiador de formao

52

cientfica no sentido moderno do termo. E, no entanto, como veremos tambm, a sua actualidade incontestvel. mesmo, talvez, maior do que a do seu mestre, Alexandre Herculano, de longe mais sistemtico do que Oliveira Martins. Autodidacta, Oliveira Martins, nascido em Lisboa (1845) de uma famlia burguesa intelectualizada, no teve como Antero e Ea uma vida de bomia universitria nem a sua obra partiu de uma revolta contra as instituies em que tivesse sido educado. Ainda muito novo, com quinze anos, aps a morte do pai, Oliveira Martins teve de comear a trabalhar como empregado do comrcio. A sua primeira obra, Phebus Moniz, data de 1876 e nitidamente influenciada pelo primeiro romantismo, em especial pelo estilo romance histrico la manire de Herculano. E digo la manire porque s mais tarde Oliveira Martins assimilou esse romantismo histrico de Herculano em profundidade, fundindo-o com outras tendncias culturais e libertando-se da mera imitao dramtica. Para esta evoluo da sua obra contribuiu de uma maneira decisiva o contacto que Oliveira Martins teve com o grupo do Cenculo. Ao princpio, interessase mais por Tefilo Braga e pelas suas teorias comtianas, publicando um opsculo que lhe consagrado: Tefilo Braga e o Cancioneiro (1869). Mas acaba por se ligar intimamente a Antero de Quental, quer como amigo quer como investigador da histria, optando assim por uma tendncia ideolgica socialista contra o jacobinismo. Um texto de 1870, A Teoria do Mosarabismo 41 revelanos bem esta viragem. Criticando a Histria da Literatura

53

Portuguesa de Tefilo Braga, Oliveira Martins escreve, atacando, como Nietzsche, o esprito germanfiloprussiano, mas, afinal, defendendo aquilo que na Alemanha de Goethe permanece essencial para toda a Europa do sculo XIX: Entre os moos espritos que o germanismo conquistou est o Sr. Tefilo Braga. Teutmano, tomou para si o papel de representar entre ns principalmente os defeitos da Alemanha contempornea. Como publicista as suas ideias resultam da impresso vaga e nebulosa da demagogia acadmica do smbolo de Hambach: acabar com a monarquia e com o fisco (!) eis a revoluo poltica; como filsofo e como historiador, as concluses deste ensaio so a sua condenao; como crtico e como moralista talvez ainda um dia pegue na pena para o estudar; como erudito, finalmente, todos os seus trabalhos esto profundamente viciados por esse grande defeito que, segundo nos diz Renan, ataca a cincia alem, a febre de anunciar descobertas, de ir alm e contra os mestres, e por isso se reduzem a um dilvio de teses temerrias e paradoxais. A colaborao ntima com Antero de Quental manifesta-se ainda na organizao do movimento socialista em Portugal e na redaco dos jornais O Pensamento Social e A Repblica (1870-1873). So da mesma altura e do mesmo teor doutrinrio os livros: Teoria do Socialismo evoluo poltica e econmica das sociedades na Europa e Portugal e o Socialismo, ambos de 1873.

54

Nestes textos, sobretudo em Teoria do Socialismo, a definio que Oliveira Martins nos d do seu ideal socialista bem clara: para ele, optando por Proudhon contra Marx, socialismo , antes de mais, evoluo conjugada com liberdade, dado que o nico organizador da sociedade ela prpria 42. A poltica socialista , portanto, a cincia da liberdade como dizia Proudhon. O governo do homem pelo homem, seja qual for o nome com que se disfarce, opresso 43. A atitude ideolgica do Oliveira Martins de ento, quanto oposio Proudhon-Marx, ainda mais evidente num texto em que, analisando os conceitos de socialismo e de democracia, Oliveira Martins acaba por condenar formalmente tanto o jacobinismo como o comunismo 44: Falo democracia popular, aos partidos liberais, a quem um sentimento de repulso instintiva, nascida dos desvarios da demagogia comunista, afasta do Socialismo. Venham, e vejam, e julguem, qual de ns se engana. Tambm ns somos democratas, democratas-socialistas; tambm queremos: Liberdade em todas as suas manifestaes, mas exigimos que nos dem ao mesmo tempo: Igualdade em todas as suas manifestaes. Liberdade e igualdade, absolutas em princpio, mas correspondentes na legislao s condies positivas da sociedade portuguesa. No lcito j, nem aos liberais pretenderem ressuscitar RousseauRobespierre, nem aos socialistas Mably-Babeuf. As conquistas colossais do esprito cientfico contemporneo so indispensveis construo do

55

edifcio filosfico; e so elas quem refutam o jacobinismo e o comunismo como perigosas utopias. No ano em que publica este texto, 1874, Oliveira Martins, que estivera em Espanha como administrador das Minas de Santa Eufmia, na Serra Morena, fixa-se no Porto, a exercendo as funes de funcionrio da Companhia dos Caminhos de Ferro, passando depois a administrador e a director tcnico. Dirige igualmente os jornais A Provncia, no Porto, que depois se transformou em O Reprter, em Lisboa, para onde Oliveira Martins volta em 1888. Entretanto, prossegue o aprofundamento da doutrina socialista atravs dos livros que vai publicando, alguns de carcter mais, digamos, tcnico, no domnio da economia poltica: A Reorganizao do Banco de Portugal (1877), O Helenismo e a Civilizao Crist (1878) e, sobretudo, a Biblioteca das Cincias Sociais, conjunto de livros em que, comeando por uma anlise antropolgica, Oliveira Martins estuda a evoluo das instituies sociais, dos primrdios ao Estado moderno. Citem-se: Elementos de Antropologia (1880), As Raas Humanas e a Civilizao Primitiva (1881), O Sistema dos Mitos Religiosos (1882), Quadro das Instituies Primitivas (1883), O Regime das Riquezas (1883), Tbuas de Cronologia (1884) e Histria da Repblica Romana (1885). Paralelamente, integrando-o na Biblioteca, Oliveira Martins empreende o estudo da histria de Portugal nos volumes intitulados: Histria da Civilizao Ibrica e Histria de Portugal (1879), prosseguindo esta ltima com o Portugal Contemporneo e O Brasil e as Colnias Portuguesas (1881).

56

Esta fase importantssima no conjunto da obra de Oliveira Martins, no tanto porque o autor nela aprofunde conceitos, inclusivamente o do socialismo, mas sobretudo porque a Biblioteca das Cincias Sociais representa a extraordinria modernidade do historiador. Ou seja, o conceber a Histria como um todo em que se fundem as diferentes cincias humanas: antropologia, mitos religiosos, lingustica, economia, etc. O conceber a Histria, afinal, a um nvel superior de comparativismo. Assim, note-se a importncia que Oliveira Martins d ao estudo (no folclrico) dos povos ditos primitivos e s civilizaes extra-europeias. Apesar das limitaes metodolgicas, tanto bastaria para que Oliveira Martins no fosse considerado, como por vezes ainda o , um historiador reaccionrio. Mas debater essa questo levar-nos-ia longe. Prosseguindo, dever notar-se que esta fase decisiva da obra de Oliveira Martins interrompida em 1885, ano em que o escritor foi eleito deputado do Partido Progressista, o qual fazia parte da oposio. O seu programa de aco poltica, extremamente vasto e preciso, exposto no volume Poltica e Economia Nacional (1885) e no Projecto de Lei de Fomento Rural (1887), apresentado ao Parlamento. Oliveira Martins preconiza uma aco reformista no domnio da economia mais do que no domnio social. Quando o Partido Progressista triunfa, em 1887, Oliveira Martins habilmente afastado pelos seus inimigos polticos e ter de contentar-se com o lugar de administrador da Rgie dos Tabacos. A partir de ento, na fase final da sua obra, Oliveira Martins elabora uma dramtica, por vezes confusa mas sempre esteticamente brilhante teoria da decadncia dos

57

povos peninsulares. Alis, esta teoria j anunciada por vrios textos anteriores, como por exemplo este, que data de 1875 e em que Oliveira Martins evoca as Descobertas dos portugueses e dos espanhis 45: A necessidade de aco: eis a a causa primria, fundamental, das Descobertas. O duro e forte brao do soldado peninsular, o esprito ardente do religionrio, exigiam combates e propagandas: combater com os mouros ou com os mares que importa? combater sempre, viver. Historicamente, a causa determinativa das Descobertas reside no desenvolvimento dado fsica e geografia de um lado, do outro nas tradies que as viagens dos cruzados tinham espalhado por toda a Europa. Se as causas histricas das Descobertas so estas, as causas psicolgico-colectivas primeiro indicadas so o motivo por que Pennsula coube o desempenhar o papel colossal de duplicar o mundo. (...) Vo com o peito abrindo as ondas espumosas, com o peito de ao, bem mais elevado e forte do que o das nereidas virgilianas. Vo e voltam com os pores cheios de ouro, e a cabea a tontear de espantos. Tristemente, a Espanha nada j na lagoa sombria do imperialismo cesreo, e o ouro das ndias serve-lhe para pagar ao duque de Alba os morticnios da Itlia, da Flandres. Mais afortunados, ns, os portugueses, pudemos ainda, aos ltimos raios do sol poente, tecer a trama luminosa da nossa nau pica, de Belm!... Tambm j em 1878 Oliveira Martins escrevia, a propsito de Mouzinho da Silveira: Um homem um instante 46. Porm, s mais tarde, partindo do conceito

58

hegeliano de Ideia-Nao, Oliveira Martins chega defesa da monarquia e a um certo sebastianismo, manifestos nas biografias dos grandes vultos da dinastia de Aviz: Os Filhos de D. Joo I (1891) e A Vida de Nunlvares (1893). O conceito hegeliano de Ideia-Nao exprime-se em vrias passagens de Os Filhos de D. Joo I, como, por exemplo, nesta em que Oliveira Martins define o apogeu histrico de uma nao, que quando ela se encarna nos seus heris 47: Quando as naes, depois de uma lenta e longa elaborao, atingem esse momento culminante em que todas as foras do organismo colectivo se acham equilibradas e todos os homens compenetrados de um pensamento a que se pode e deve chamar alma nacional porque o mesmo carcter tem nos indivduos aquilo a que chamamos alma -, ento que, por um misterioso gnesis, se d um fenmeno a que tambm chamaremos sntese da energia colectiva. A Nao aparece como um ser, no j apenas mecnico, quais so as primeiras agregaes, no somente biolgico nas pocas de mais complexa e adiantada organizao, mas sim humano , alm de vivo, animado por uma ideia. Nestes momentos sublimes em que a rvore nacional rebenta em frutos, o gnio colectivo, j definido nas conscincias, realiza esse mistrio que as religies simbolizaram na encarnao de Deus. (...) Tudo era annimo: tudo agora pessoal, e na tragdia histrica, preludiada por coros numerosos, ouvem-se j os heris.

59

Por outro lado, Nunlvares um retrato de heri nacional sobrecarregado de psicologia e de pormenores excessivamente dramatizados. Como diz Ea de Queirs que no entanto admirava profundamente Oliveira Martins mas que sobrepunha sua admirao uma rara e necessria lucidez crtica 48: No me agradam muito certas minudncias de detalhe plstico, como a notao dos gestos, etc. Como os sabes tu? Que documentos tens para dizeres que a Rainha, num certo momento, cobriu de beijos o Andeiro, ou que o Mestre passou pensativamente a mo pela face? Estavas l? Viste? Esses traos, penso eu, no do mais intensidade de vida, e criam uma vaga desconfiana. (...) Enquanto ao Condestvel, que era o teu objecto, haveria a discutir se no lhe meteste na alma muita coisa que s do nosso sculo, quase s destes ltimos cinquenta ou sessenta anos. (...) Valverde uma grande pgina e talvez a prefira a Aljubarrota, admirvel tambm, mas onde eu desejaria menos abundncia e tumulto. (...) h talvez muito requinte psicolgico no estudo que tu fazes de uma alma que, no fundo, era simples. A situao catastrfica do pas aps o Ultimatum ingls de 11 de Janeiro de 1890 e a crise financeira e poltica que se agravou a partir de ento, culminando na revolta republicana, no Porto, em 31 de Janeiro de 1891, levaram Oliveira Martins a intervir novamente na cena poltica, integrando-se num governo no partidrio de salvao nacional, em que ocupou a pasta de ministro da Fazenda. Mas, a 27 de Abril de 1892, quatro meses aps a sua nomeao, foi forado a demitir-se, procurando a

60

evaso numa viagem a Inglaterra, de que resultou o livro A Inglaterra de Hoje (1893). Nestes ltimos anos de vida, Oliveira Martins, como alis Ea, Antero e, mais tarde, Ramalho, opta declaradamente pela monarquia contra a revoluo republicana. Prova-o esta exortao ao rei D. Carlos I publicada na Semana de Lisboa, em Novembro de 1892 49: Em sociedades que chegaram dissoluo da nossa, e que em tal estado se vem a braos com a economia em crise, as revolues, para serem fecundas e no serem mortais, tm de partir de cima. isto o que me sugere o aspecto desse rei, moo e infeliz, mas que da prpria mocidade tem de tirar a fora para salvar o reino dos seus avs, salvando-se a si prprio com a memria deles. Ou ainda este texto do mesmo ano, tido por indito e escrito em francs, texto no qual Oliveira Martins acrescenta defesa da monarquia a defesa do cesarismo ditatorial 50: Ce quil faudrait au Portugal, cest la dictature dun roi servi par des hommes capables: si cette hypothse ne se ralise pas, ce nest pas difficile prvoir que, par les concours des motifs politiques et conomiques, ltat tombera rapidement en dcomposition. Se esta forma monrquica e cesarista veio a encarnarse, alis muito fugazmente, no ditador Joo Franco, no era decerto a essa ditadura que Oliveira Martins aspirava, da mesma maneira que ele nada tem a ver com

61

um sebastianismo maurrasiano de que Antnio Sardinha foi a verso oficial e provinciana, to ao gosto desse ditador provinciano sem ideologia definida que foi Salazar. Oliveira Martins soube, at sua morte, ocorrida em 1894, manter-se muito acima de todos os provincianismos culturais e polticos. Mesmo o seu, digamos, sebastianismo mais do que uma forma estrita de nacionalismo uma ideia universal, sem dvida demasiadamente abstracta, dos ciclos da histria, sujeitos a uma lei pretensamente fatal, de apogeu e decadncia sucessivos. Que a decadncia na histria de Portugal e o sebastianismo como prova pstuma da nacionalidade 51 tenham sido a sua grande preocupao, digamos mesmo a sua obsesso, e a sua tese final isso no invalida uma viso geral da histria portuguesa que, seguindo-se de Herculano, dela se diferencia pela maior importncia dada s contradies mais secretas (ia a dizer freudianas) do homem que, fazendo a histria, por ela miticamente moldado e dela se torna escravo. EA DE QUEIRS OU A ARTE DA IRONIA Nascido no mesmo ano que Oliveira Martins, 1845, a 25 de Novembro, na Pvoa de Varzim, filho de um magistrado e homem de letras, Jos Maria de Ea de Queirs marcado desde nascena por um pequeno escndalo burgus abafado: s quatro anos aps o seu nascimento que o pai casa com a mulher que o dera luz secretamente. Porqu? Com preciso, nada se apurou. Mas o certo que o facto de ter nascido

62

bastardo e ainda de, mesmo aps o casamento dos pais, ser posto de parte, considerado que era uma testemunha incmoda de pecadilhos juvenis e, por isso, metido num colgio interno do Porto, onde os pais passam a viver com os seus outros trs filhos legtimos tudo isso influiu, sem dvida, na sensibilidade de Ea. E a ironia, arte que to subtilmente cultivou, foi seguramente para Ea, desde muito novo, uma arma de defesa contra, por um lado, essa falta de afecto que veio da infncia e, por outro lado, a pesada ordem burguesa em que foi criado. Embora, claro, nem o freudianismo nem a sociologia possam explicar o mistrio essencial da criao esttica. Os primeiros contactos literrios de Ea esto ligados a esta situao anormal, dado que foi longe do lar paterno, num colgio interno do Porto, o Colgio da Lapa, dirigido por Joaquim da Costa Ramalho, pai de Ramalho Ortigo, que Ea descobriu a literatura atravs deste seu futuro companheiro de gerao, mais velho nove anos. Ora, sabe-se que para Ramalho, Garrett foi, como ele prprio diz, comparando-o a Ea 52, o primeiro que, opondo-se corrente do convencionalismo, meteu debaixo do joelho o monstro da nfase atvica, da hereditariedade retrica, que por mais de dois sculos resfolegara apopleticamente no fundo de toda a nossa produo artstica. Consequentemente, muito provvel que as primeiras leituras entusisticas de Ea, orientadas por Ramalho, fossem as de Garrett, sobretudo as do Garrett das Viagens na Minha Terra. No entanto, no meio universitrio de Coimbra, para onde parte em 1861 e onde, a 12 de Julho de 1866, se forma em Direito, que Ea desenvolve a sua vocao literria e se torna consciente de pertencer a uma

63

gerao de intelectuais que vai revolucionar a cultura portuguesa. J vimos, ao evocar a vida e a obra de Antero, como para Ea foi importante o encontro com o poeta das Odes Modernas. J evocmos igualmente o ambiente cultural da Coimbra dessa poca. Ser til analisar agora certos aspectos menos conhecidos, como, por exemplo, o da crtica que Ea faz Universidade da sua poca 53: ...o seu autoritarismo, anulando toda a liberdade e resistncia moral; o seu favoritismo, deprimindo, acostumando o homem a temer, a disfarar, a vergar a espinha; o seu literatismo, representado na horrenda sebenta, na exigncia do ipsis verbis, para quem toda a criao intelectual daninha; o seu foro, to anacrnico como as velhas alabardas dos verdeais que o mantinham; a sua negra torre, donde partiam, ressuscitando o precetto da Roma jesutica do sculo XVIII, as badaladas da cabra por entre o voo dos morcegos; a sua chamada, espalhando nos espritos o terror disciplinar de quartel; os seus lentes crassos e crzios, os seus Britos e os seus Neivas, o praxismo poeirento dos seus Pais Novos e a rija penedia dos seus Penedos! A Universidade, que em todas as naes para os estudantes uma Alma Mater, a me criadora, por quem sempre se conserva atravs da vida um amor filial, era para ns uma madrasta amarga, carrancuda, rabujenta, de quem todo o esprito digno se desejava libertar, rapidamente, desde que lhe tivesse arrancado pela astcia, pela empenhoca, pela sujeio sebenta, esse grau que o Estado, seu cmplice, tornava a chave das carreiras. (...) No meio de tal Universidade, gerao como a

64

nossa s podia ter uma atitude a de permanente rebelio. As leituras de Ea neste perodo de Coimbra, revelouas o escritor numa carta ao seu amigo Carlos Mayer, que data de Novembro de 1867. A notar que, para Ea, o romantismo era antes de mais a descoberta de Shakespeare, embora leia tambm Heine, Vitor Hugo, Michelet, Grard de Nerval e Baudelaire 54: Naqueles tempos, segundo a frmula do Evangelho, o romantismo estava nas nossas almas. Fazamos devotadamente orao diante do busto de Shakespeare. Shakespeare , alis, para Ea, no um simples pretexto romntico mas sim, pelo contrrio, a descoberta do que se ope grandiloquncia sentimental romntica, pouco espiritual. Da, por exemplo, esta sua condenao, que data de Outubro de 1866, da pera de Verdi, Macbeth, baseada na pea de Shakespeare 55: O luminoso Verdi no compreendeu aquelas trevas que Shakespeare derramou na alma de Macbeth. (...) Verdi tem um talento vigoroso, apaixonado mesmo, mas falta-lhe o lume santo, o desvairamento ideal, o deus, aquele sopro de que fala a Bblia. A sua msica profundamente materialista: uma melopeia enrgica e estridente; uma melopeia colorida e pesada; h mesmo o que quer que seja de rgido e de metlico naquela sonoridade sensual.

65

Igualmente na carta a Carlos Mayer (e j que estamos a falar de msica), Ea confessa-nos que adorava Mozart em segredo, o que explica que recusasse tambm o romantismo fcil, os misticismos artificiais do Gounod do Fausto, considerando-o na verso da pera francesa um velho tpido e no a figura complexa de Goethe. Isto significa que, se Ea, de