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A Guerra Fria Paulo G. Fagundes Vizentini Professor titular de História Contemporânea da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

A Guerra Fria

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A Guerra FriaPaulo G. Fagundes VizentiniProfessor titular de História Contemporânea da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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1. A PAX AMERICANA E O DESENCADEAMENTO DA GUERRA FRIA: A FASE EUROPÉIA (1945-1949)

JL Guerra Fria constitui um dos fenômenos mais importantes e polêmicos da História Contemporânea, marcado que foi, e ainda o é, pelo confronto ideo­lógico do século. Pior ainda, muitos estudiosos, inclusive, reduzem-na ao próprio conflito ideológico, enquanto outros a abordam como mera luta pe- ío p o der (^Tresupérpotêrrci as, visando à dominação mundial. Além disso, muitos estudos procuram, unicamente, estabelecer o “culpado” pelo seu de- sencadeamento, seja o “expansionismo^sõvle t ic o (de caráter político), seja o “imperialismo americano” (de viés econômico), dentro de uma visão de história acidental ou dependente da vontade pessoal dos estadistas. Geral­mente tais enfoques enfatizam uma dimensão militar-nuclear como eixo de análise, o que representa um distorção da realidade. Este breve ensaio procu­rar ápartir das cônSIções e necessidades objetivas dos dois grandes protago­nistas ao fim da Segunda Guerra Mundial, enfocando o contexto histórico mais amplo. Nesse sentido, a Guerra Fria adquire a dimensão de um confli­to multifacetado, racionalmente explicável à luz das enormes transformações que marcaram o século XX.

A Revolução Soviética, desde 1917, estabeleceu um corpo estranho den­tro do sistema internacional. Durante o período da Guerra Civil (1918-21), as potências capitalistas procuraram derrubá-la à força, intervindo militar- mente no país. Falhada esta estratégia, seguiu-se uma fase de bloqueio eco- nômico-diplomático internacional, o Cordon Sanitaire, estabelecido pelas potências européias. Durante a Segunda Guerra, novamente os meios milita­res foram empregados contra a URSS, desta vez pelo III Reich. Apesar da aliança com as potências anglo-saxônicas, a evolução do conflito mostrou que estas, apesar do apoio prestado a Moscou, deixavam espaço para que o país fosse profundamente desgastado. Contudo, a União Soviética sobrevi-

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veu, ocupou parte da Europa e gerou a necessidade de sua absorção nó siste­ma mundial. Problema complexo, porque a URSS era “diferente” e antagô­nica mas não poderia mais ser totalmente excluída. Por isso, deve-se partir da análise dos resultados da guerra.

Em 1945 os EUA detinham vantagens talvez nunca obtidas por outra po­tência no plano político-militar: dominavam os mares, possuíam bases aé­reas e navais, além de exércitos, em todos os continentes, bem como a bomba atômica e uma aviação estratégica capaz de atingir quase todas as áreas do planeta. No plano financeiro e comercial, o dólar impôs sua vontade ao con­junto do mundo capitalista através da Conferência de Bretton Woods (1944) e da criação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial. Desta forma, os EUA passavam a regular e dominar os investimentos e o in­tercâmbio de mercadorias em escala planetária. Além disso, o avanço tecno­lógico americano durante a guerra permitia ao país ampliar ainda mais sua vantagem no plano militar e econômico. Ao fim do conflito, os EUA pos­suíam também um quase-monopólio dos bens materiais — inclusive os esto­ques de alimento — necessários à reconstrução e à sobrevivência das popu­lações da Europa e da Ásia Oriental. A hegemonia americana consubstan- ciou-se também no plano diplomático, com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), como instrumento jurídico, político e ideológico do internacionalismo necessário à construção de um sistema mundial calcado no livre fluxo dé mercadorias e capitais. O “capitalismo internacionalista” americano opunha-se aos capitalismos aliados e rivais, que monopolizavam a exploração de impérios coloniais ou o domínio econômico sobre determi­nadas regiões.

As origens imediatas da Guerra Fria encontram-se, em grande parte, nas divergências entre os aliados ocidentais e os soviéticos acerca da ordem pós- guerra. Em Yalta (fevereiro de 1945), Churchill, Roosevelt e Staím promove­ram, concretamente, um acordo de que os países limítrofes com a URSS na Europa não deveriam possuir governos anti-soviéticos, como forma de ga­rantir suas fronteiras ocidentais. Fora através desses países, e com apoio de alguns deles, que os nazistas a haviam invadido. Os EUA, em contrapartida, obtiveram da URSS o compromisso de entrar em guerra contra o Japão na Manchúria, três meses após a rendição alemã. Tudo o mais foi decorrência da Guerra Fria. Certos políticos e historiadores afirmaram, posteriormente, que um Roosevelt “velho e doente” fora fraco nas negociações, introduzin­do Stalin na Europa Oriental e no Extremo Oriente. Isto, entretanto, não re­

presentava uma “concessão”, pois essas zonas haviam sido libertadas pelo Exército Vermelho e pelas guerrilhas comunistas nacionais, que controlavam efetivamente a região. Além disso, o reconhecimento da influência soviética na estreita faixa de países pobres da Europa Centro-Oriental, enquanto o resto do planeta permanecia sob domínio do capitalismo, evidencia o exage­ro da expressão “partilha do mundo”. Mesmo em termos de Europa, esta “partilha” não teria termo de comparação.

A Conferência de Potsdam (17 de julho a 2 de agosto de 1945), embora formalmente referendando as decisões de Yalta, foi bem diferente. Era Truman quem representava os EUA (Roosevelt falecera em abril) e defendia uma posi­ção bastante rígida em relação à URSS, informando a Stalin sobre a existência da bomba A, sem precisar o seu potencial. Tais atitudes deviam-se ao fato do grupo do bombardeio estratégico ter passado a dominar o Pentágono e a in­fluenciar o presidente americano, a partir do momento em que a bomba A en­trou em cena. O general Groves, responsável pelo Projeto Manhattan (produ­ção da bomba A), afirmara em 1942 — em plena vigência da aliança EUA- URSS — que esta seria uma importante arma contra a União Soviética! No mesmo ano, Churchill elaborou seu Memorandum Secreto, onde afirmou que, assim que o Eixo deixasse de constituir uma ameaça, os aliados anglo-saxões deveriam considerar que a URSS era o verdadeiro inimigo. Ora, em 1945 a derrota germano-japonesa era certa e a verdadeira política podia sair à luz do dia. Mas somente com o bombardeio nuclear de Hiroshima e Nagasaki, Stalin se daria conta da amplitude da mudança ocorrida.

As bombas atômicas lançadas sobre um Japão à beira da rendição eram militarmente desnecessárias. Foram, na verdade, uma demonstração de força diante dos soviéticos e dos movimentos de libertação nacional que amadure­ciam na China, Coréia e países do Sudeste Asiático, bem como uma intimi­dação à esquerda européia e à agitação no mundo colonial. Neste sentido, essa política visava limitar os acordos de Yalta no que se referia à Europa e impedir sua aplicação na Ásia. Ainda que enfrentando algumas resistências, os EUA eram os senhores da nova ordem mundial. A Guerra Fria permitirá a Washington consolidar sua posição de vantagem. A Pax Americana carac­terizou-se, neste sentido, e por longo tempo, como o monopólio dos EUA em termos de decisões estratégicas. A URSS, por seu turno, fez várias concessões para tentar salvar os acordos de Yalta, aos quais a administração Truman se opunha de forma cada vez mais resoluta. No dia da rendição alemã, o gover­no americano interrompeu sem comunicação prévia a ajuda fornecida, atra­

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vés da Lei de Empréstimos e Arrendamentos, à URSS, chamando de volta um comboio que se encontrava a meio caminho deste país. Washington também voltou atrás no tocante à cobrança de reparações de guerra na Alemanha por Moscou.

Truman exigiu então a retirada soviética do norte do Irã e, quando isto ocorreu, em 1946, os EUA aí se instalaram, a 11 mil quilômetros de seu ter­ritório e sobre a fronteira soviética. O impacto deste acontecimento para uma país que acabara de sofrer a terceira invasão em menos de três décadas foi profundo, criando o chamado efeito Irã. Este foi decisivo para o futuro da Europa Oriental, pois evidenciou para o Kremlin que qualquer recuo em sua área de influência representaria a presença de um inimigo potencial em suas fronteiras, um fenômeno a ser evitado nas Democracias Populares. No mesmo ano, Churchill, discursando numa universidade do interior dos EUA (tendo Truman na assistência), lançou seu famoso brado anti-soviético, se­gundo o qual uma cortina de ferro descera sobre metade da Europa (apro­priara-se da expressão e do argumento utilizados pelo ministro nazista da Propaganda, Goebbels, nos últimos dias de guerra). Este símbolo maior dos ventos da Guerra Fria, que começavam a soprar em 46, vinha acompanhado de outros eventos que atestavam a progressiva deterioração da situação in­ternacional: os americanos explodiram uma bomba atômica no atol de Bikini, no Oceano Pacífico; o Partido Republicano obteve a maioria no Congresso e, juntamente com a ala direita do Partido Democrata, empurra­va o governo Truman para uma política ainda mais dura; e a guerra civil rei­niciou na Grécia.

Apesar dos riscos políticos contidos na nova conjuntura, a URSS prosse­guiu a desmobilização militar, pois vira-se na contingência de reconstruir sua economia em bases autárquicas e os soldados eram necessários para suprir a carência de mão-de-obra. A falta de apoio externo levou o país a reeditar as ~ durezas do stalinismo dos anos 30, mas, apesar dos sacrifícios exigidos, a re­construção econômica foi sendo lograda com êxito. No Leste europeu, por sua vez, a democracia liberal funcionava plenamente numa Tchecoslováquia sem tropas de ocupação, e os nacionalistas de vários matizes ainda eram he­gemônicos dentro da coalizão no poder da Polônia. Nos Bálcãs, os comunis­tas iugoslavos, liderados por Tito, mantinham sua independência diante de Stalin e articulavam, com o prestigiado líder comunista búlgaro Dimitrov, a idéia da criação de uma confederação balcânica autônoma em relação a Moscou.

Enquanto isto, cresciam as dificuldades financeiras da Europa Ocidental, pois os países desta área haviam sofrido grande desgaste econômico com a guerra e tornaram-se importadores, sobretudo dos EUA, até a exaustão de suas reservas monetárias. Por outro lado, as tendências democratizantes dos movimentos antifascistas conferiram grande força a uma esquerda que, em sua maioria, opunha-se à penetração americana. Este fenômeno, aliado à existência de vias nacionais autônomas, tanto no Oeste como no Leste euro­peu, e o ápice do movimento operário dentro dos EUA (que lutava para não perder os privilégios obtidos durante a guerra, agora ameaçados pela recon­versão industrial), representavam a verdadeira ameaça, segundo a percepção de Washington. A partir deste momento, a administração Truman passou a trabalhar na estruturação de um mercado europeu rentável para as finanças e o comércio privados dos EUA, o que permitiria também lançar os funda­mentos materiais necessários ao desencadeamento da luta contra as tendên­cias políticas opostas aos seus interesses. A implementação desta política ocorreu em 1947, com a proclamação da Doutrina Truman (12/3) e o lança­mento do Plano Marshall (5/6).

A Doutrina Truman foi lançada através de um discurso do presidente americano, no qual defendia o auxílio dos EUA aos “povos livres” que fos­sem ameaçados pela agressão totalitária (mais um conceito extraído do fas­cismo, este teorizado pelo italiano Giovanni Gentile), tanto de procedência externa como por parte de “minorias armadas”. Esta política foi formaliza­da quando a Grã-Bretanha, falida e sem condições de manter seu convulsio- nado império, retirava-se da guerra civil grega e era substituída pelos Estados Unidos. A ajuda solicitada estendia-se também à Turquia, que não possuía qualquer ameaça externa ou interna. A Doutrina Truman foi proclamada durante a realização dos trabalhos da Conferência Econômica de Moscou, que tratava da concessão de ajuda americana para reconstrução européia, e reforçava a noção de divisão do mundoy expressa por Churchill no ano ante­rior, ao mesmo tempo em que lançava uma verdadeira cruzada do “mundo livre” contra seu inimigo.

O Plano Marshall, por seu turno, concedia empréstimos a juros baixos aos governos europeus, para que adquirissem mercadorias dos EUA. O custo político de sua aceitação era considerável, pois as nações beneficiárias deve­riam abrir suas economias aos investimentos americanos, o que, no caso das economias fracas (como as do Leste) ou devedoras (como a Europa Ociden­tal), representava o abandono de parte da soberania destes países. Além

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disso, o plano propunha o aprofundamento da divisão do trabalho entre uma Europa Ocidental industrial e o Leste agrário do continente. Obvia­mente a URSS e os governos sob sua influência recusaram-se a aceitar esta ajuda, percebida como uma invasão econômica, que os conduziria à perda do poder (a abertura da economia reforçaria as enfraquecidas burguesias do Leste europeu). A Doutrina Truman e o Plano Marshall materializaram a partilha da Europa, lançando as bases para a formação dos blocos político- militares. O problema é que ainda existia uma forte opinião pública mundial marcada pelo espírito de Yalta, pelo antifascismo e pelo pacifismo, e isto atrasava e perturbava a implementação da Guerra Fria. Era preciso lançar mão de poderosos mitos e imagens, que desarticulassem essa corrente e con­dicionassem a população a uma visão maniqueísta. A “ameaça soviética” e a “defesa do mundo livre” constituíram esses mitos mobilizadores e legitima- dores da nascente Guerra Fria.

Os Partidos Comunistas (PCs) da Europa Ocidental, em convergência com Moscou, lançaram greves desesperadas e infrutíferas em oposição ao Plano Marshall. Se a longo prazo esses países perdiam parte de sua autono­mia, no plano imediato a chegada de recursos satisfazia uma população can­sada pelos sofrimentos da guerra e privações materiais, que persistiam após dois anos de encerramento do conflito. A ajuda americana, já usada como instrumento de chantagem em eleições européias, foi condicionada à expul­são dos comunistas dos governos de coalizão ocidentais, sobretudo na França e Itália, onde estes constituíam os partidos mais fortes. Após as expulsões dos PCs ocidentais dos governos, os fatos se sucederam numa avalanche em 1947. O discurso do dirigente soviético Jdanov sobre o antagonismo irredu­tível entre socialismo e capitalismo teve forte impacto como réplica à Doutrina Truman e ao Plano Marshall, sendo este último rejeitado pela URSS e pelas Democracias Populares. Em seguida, os EUA criaram a CIA (Agência Central de Informação) para atuar no âmbito mundial, através da espiona­gem e organização de ações clandestinas. Na seqüência, os PCs no poder, bem como os da França e Itália, criaram o Kominform (Agência de Informação Comunista), visando à coordenação das ações dos PCs na Europa.

Na esteira deste processo, os acontecimentos políticos na Tchecos- lováquia em fevereiro de 1948 acabaram adquirindo uma projeção mundial. A recusa do Plano Marshall pelo governo de Praga deixou os partidos con­servadores numa situação difícil, com o PC e os social-democratas mobilizan­do uma impressionante massa de operários armados. O presidente Benes e os

conservadores tiveram então de se retirar do governo, enquanto a imprensa ocidental denunciava o “golpe de Praga”. Em junho, os aliados ocidentais realizaram uma reforma econômica nas zonas que controlavam na Alema­nha, visando integrá-la à Europa Ocidental, fazendo com que Berlim passas­se a constituir uma ameaça econômica à débil zona de ocupação soviética.

Stalin respondeu ao desafio decretando o bloqueio terrestre de Berlim Ocidental, na esperança de que os EUA recuassem em sua política na Alemanha. Durante essa primeira crise de Berlim, a cidade foi abastecida por uma ponte aérea durante quase um ano. Os soviéticos acabaram levantando o bloqueio, ante o seu fracasso. Junto com o “golpe de Praga”, o bloqueio de Berlim foi intensamente explorado pela propaganda americana. Nesse parti­cular, Truman foi bem-sucedido, pois o espectro de um comunismo agressi­vo representou um valioso instrumento para desmobilizar a opinião pública ocidental. A Escandinávia, que se encaminhava para uma política neutralis- ta, voltou-se para os EUA (Noruega, Dinamarca e Islândia ingressarão na OTAN). Apenas a Suécia manteve-se neutra, num sutil jogo diplomático aceito por Moscou, o qual sem dúvida evitou a inclusão da Finlândia no rol das Democracias Populares. A esquerda liberal em todo o Ocidente aliou-se à direita reacionária, tornando-se anticomunista e anti-soviética desde então.

Esta verdadeira marshallização da opinião ocidental permitiu eliminar a oposição à política de rearmamento maciço, que representaria a base de sus­tentação de homens como Dulles e Adenauer. Enquanto essa nova corrida ar- mamentista reativava setores ameaçados da economia americana, obrigava os soviéticos a mobilizar 1,5 milhão de soldados, reduzindo a rápida recons­trução da URSS e do leste europeu. Iniciava-se então nas Democracias Popu­lares a austeridade material e a construção de corte staliniano, que foram uma das bases das futuras crises em 1956. No plano estritamente político, Moscou enquadrou então esses países à sua estratégia, expulsou os conserva­dores dos governos de coalizão e, após o conflito com Tito, expurgou os co­munistas de tendência nacionalista. Esta ampla “revolução pelo alto” visava estreitar o controle político-econômico soviético sobre a região, com o obje­tivo de garantir a defesa da URSS. A Europa Oriental tornava-se o glacis da URSS, devido ao temor do efeito Irã, da bomba atômica, da aviação estraté­gica (com seus planos de ataque preventivo) e das bases militares inimigas es­tendidas em torno do país. A reação soviética, no plano interno, constituiu- se na elaboração de um acelerado programa atômico, desenvolvimento da aviação de caça, de um poder militar terrestre como forma de desencadear

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uma represália às posições americanas na Europa, e o segredo geográfico para cegar o Strategic Air Command (o segredo geográfico e a profundidade terrestre eram vitais para a defesa aérea na época). Ironicamente, a sovietiza- ção do Leste europeu foi apontada como uma expansão externa da ÜRSS, a qual, na verdade, ocorrera atrás de suas próprias linhas. Segundo Howard Smith, “quando a Rússia estende sua zona de segurança ao exterior, isto exige quase inevitavelmente uma agitação do status quo, que é capitalista, o que significa não pouco barulho e cenas vis. Se a América estende sua zona de influência ao exterior, pela mesma razão isto implica somente o sustento do status quo: nada de cena, nada de barulho” (citado em Horowitz, 1973, v. 1, p. 93).

Em 1949 a Guerra Fria intensificou-se. Em janeiro a URSS criou o Conselho de Assistência Mútua Econômica (CAME ou Comecon), integran­do os planos de desenvolvimento e lançando as bases de um mercado comum dos países socialistas, numa clara resposta ao Plano Marshall. Em abril a ini­ciativa coube aos EUA e seus aliados da Europa Ocidental, que criaram a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), a qual perpetuava, in­tensificava e legalizava a presença militar americana no continente europeu. A divisão da Europa agora era completa, repercutindo na questão alemã. A URSS punha fim ao bloqueio de Berlim em maio, e em setembro era criada a República Federal da Alemanha (RFA), com capital em Bonn, reunindo as zonas de ocupação americana, francesa e britânica, nas quais se encontra­vam a quase totalidade das indústrias alemãs. Konrad Adenauer, político arquiconservador protegido dos EUA, tornou-se o dirigente da Alemanha ca­pitalista (ocidental). No mês seguinte ocorria a fundação da República Popular Democrática Alemã (RDA) em Berlim-Leste.

Apesar de certas formas histéricas e maniqueístas da Guerra Fria desen­cadeada pelos EUA, esta possuía uma racionalidade cristalina, pois permitia a este país manter o controle político e a primazia econômica tanto sobre seus aliados industriais europeus, como sobre a periferia subdesenvolvida, diretamente na América Latina e Ásia Oriental, ou através dos aliados euro­peus na África e no Oriente Médio. Ao manipular a idéia de uma ameaça ex­terna, Washington obtinha a unidade do mundo capitalista e orientava-a contra a URSS e os movimentos de esquerda e nacionalistas, tanto metropo­litanos como coloniais, emergidos da Segunda Guerra Mundial. Por outro lado, a URSS era relativamente “domesticada” como ator internacional, cuja presença no sistema mundial como a outra superpotência legitimava um

novo desenho estratégico que rebaixava o status das potências médias euro­péias dentro da aliança transatlântica. Neste sentido, a Guerra Fria represen­tava tanto um conflito quanto um sistema. Finalmente, a permanente tensão permitia a hegemonia inconteste da formidável máquina militar americana, em pleno tempo de paz. A Guerra Fria constituiu-se, assim, numa verdadei­ra Pax Americana.

2. DOS CONFLITOS À COEXISTÊNCIA PACÍFICA: A GUERRA FRIA NA PERIFERIA (1950-1962)

A partir da divisão da Alemanha, a situação se altera e o eixo da Guerra Fria se desloca em direção à periferia terceiro-mundista contígua às duas super­potências. Enquanto os dólares do Plano Marshall começavam a chegar à Iugoslávia e a esquerda grega, sem auxílio soviético, era esmagada, a URSS detonava sua primeira bomba atômica e os comunistas chineses venciam a guerra civil e proclamavam em I o de outubro a República Popular da China, o país mais populoso do planeta. A Guerra Fria chegava a um impasse, e muitos líderes europeus, como Churchill, pediram então negociações para atenuar o conflito, já que apenas ameaças e pressões econômico-militares não haviam sido suficientes para derrotar o socialismo real. A resposta dos segmentos políticos de direita (sobretudo americanos) foi, entretanto, con­trária a este chamamento: a decisão de fabricar a bomba de hidrogênio e o desencadeamento da Guerra da Coréia. Era o coroamento do grito antico­munista do Grand Old Party (GOP, Partido Republicano), que no plano in­terno americano lançava a política de perseguição ideológica e de pensamen­to maniqueísta, os quais serviram de base ao macarthismo.

Neste quadro, a Guerra da Coréia constituiu o ponto de inflexão mais significativo da Guerra Fria. A ação da guerrilha esquerdista antijaponesa da Coréia fpi contida pelos americanos, que ocuparam o sul do país logo após a rendição japonesa e colocaram no poder Syngman Rhee (que vivera na América 37 do seus 60 anos). Em 1948 eclodiram revoltas nas províncias su­listas de Yosu e Cheju Do, enquanto líderes moderados pró-unificação eram assassinados. No norte manteve-se a República Popular, liderada pelo jovem comunista Kim II Sung, e foi implementada uma reforma agrária que conso­lidou o apoio ao regime, enquanto os soviéticos retiravam suas tropas no

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mesmo ano. Ao lado dos graves problemas internos, Rhee passou a enfren­tar uma ameaça externa ainda maior. Em janeiro de 1950 o secretário Dean Acheson declarou que o perímetro defensivo americano estendia-se das Aleutas (no Alasca) às Filipinas, passando pelo Japão, o que excluía Formosa e Coréia do Sul. Este surpreendente discurso visava a uma aproximação com a República Popular da China, pois a queda de Formosa era vista como imi­nente, bem como afastar Pequim de Moscou. A resposta da direita republi­cana e democrata foi imediata: MacArthur conseguiu o envio da esquadra para o estreito de Formosa. A “perda” da China representava para os repu­blicanos, que conferiam primazia à bacia do Pacífico, a falência da política de contenção dos democratas, excessivamente voltados para a Europa.

As provocações sul-coreanas na fronteira multiplicaram-se (assassinatos de emissários, incursões militares e discursos ameaçando invadir o norte) e Kim II Sung passou a preparar-se militarmente, sobre o que Dulles e MacArthur propositadamente silenciaram. Assim como em Pearl Harboi; um “ataque traiçoeiro” precipitaria uma guerra legitimada e representaria o início da escalada na Ásia. Em junho de 1950 as tropas norte-coreanas cru­zaram o paralelo 38, avançando rapidamente, e o Conselho de Segurança da ONU imediatamente condenou a invasão e decidiu o envio de tropas sob sua bandeira (composta majoritariamente por americanos). O desembarque dos marines em Inchon (ao lado de Seul) obrigou as forças comunistas a recua­rem, salvando as forças americanas e sul-coreanas cercadas em Pusan. Duas semanas depois (1/10) as tropas da ONU, comandadas por MacArthur, cru­zaram a fronteira, criando um fato consumado que extrapolava a decisão da ONU de retorno ao paralelo 38.

Até a invasão do norte o número de mortos era modesto, e só então foi dado o início ao massacre que custou 4 milhões de vidas. Os chineses adver­tiram que não tolerariam a destruição da Coréia do Norte. Em novembro, quando MacArthur aproximou-se do rio Yalu, que demarcava a fronteira e produzia a energia utilizada pelo principal núcleo industrial da República Popular da China, as tropas chinesas entraram na luta, empurrando as for­ças da ONU para o sul. Os americanos reagiram lançando a Operação Killer, numa política de terra arrasada. Um certo equilíbrio foi atingido no início de 1951, em torno do paralelo 38, estabelecendo-se um cessar-fogo e negocia­ções. Para que isso pudesse ocorrer, Truman teve de destituir o todo-podero- so MacArthur, por haver “envolvido os EUA numa má guerra, num mau mo­mento, contra um mau inimigo”, segundo argumentou. O presidente ameri­

cano desejara um conflito limitado e só conseguira, a um custo quatro vezes maior, conservar os mesmos resultados já obtidos quando fora atingido o pa­ralelo 38 em outubro. Ainda que alcançando ganhos importantes no plano político (rearmamento alemão e aumento do orçamento de defesa), o empa­te militar na guerra da Coréia constituiu um limite às pretensões belicistas da direita americana.

A primeira onda descolonizatória, por sua vez, também repercutiu na Guerra Fria. Em abril de 1955, reuniu-se em Bandung, Indonésia, uma con­ferência de 29 países afro-asiáticos, defendendo a emancipação total dos ter­ritórios ainda dependentes, repudiando a Guerra Fria e seus pactos de defe­sa coletiva patrocinados pelas grandes potências, enfatizando ainda a neces­sidade de apoio ao desenvolvimento econômico. Em 1961 reuniu-se em Belgrado, Iugoslávia, a I Conferência dos Países Não-Alinhados, na qual convergiram a política de Tito na busca de uma Terceira Via nas relações in­ternacionais, o neutralismo e o afro-asiatismo de Bandung. Assim, o desen- gajamento militar terrestre que se seguiu à Guerra da Coréia, a Conferência de Genebra — reduzindo a tensão na Indochina; a emergência do Terceiro Mundo nas relações internacionais; a consolidação e as transformações no campo socialista; e a obtenção de um relativo equilíbrio nuclear nos primei­ros cenários da Guerra Fria — agora estabilizados — e a recuperação econô­mica da Europa Ocidental e do Japão contribuíram para o estabelecimento de uma conjuntura de coexistência pacífica, a qual atenuou a bipolaridade existente na passagem dos anos 40 aos 50.

A Europa Ocidental, que iniciara sua reconstrução com o Plano Marshall, caminhou para formas de integração econômica, aceleradas com o revés diplomático de 1956 (crise de Suez), através da criação da Comunidade Econômica Européia (CEE) em 1957. Um traço fundamental da sociedade industrial dò Oeste europeu e americana foi o estabelecimento de um eleva­do padrão de consumo acessível à maior parte da população desses países. A opção pelo consumo em massa tinha alguns objetivos e implicações impor­tantes: prestigiava o modelo capitalista, identificado com a imagem do ame- rican way o f life; implicava o recuo da participação política, reduzida a ri­tuais eleitorais; produzia o declínio numérico da esquerda ou adoção de pos­turas cada vez mais moderadas; e, finalmente, aprofundava as relações eco­nômicas desiguais entre centro e periferia, em proveito das sociedades de consumo superdesenvolvidas. Esta política keynesiana evitava as periódicas crises de superprodução do capitalismo, ao que se somou a introdução de

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bens programados para um rápido sucateamento. A política de segurança so­cial (aposentadoria, saúde e ensino garantidos pelo Estado, salário-desem- prego etc.) atendia a reivindicações do movimento sindical, defendida ao longo de mais de um século, e dava uma resposta ao prestígio obtido pelo so­cialismo ao fim da Segunda Guerra Mundial. Assim ia sendo vencida a dis­puta ideológica.

O estabelecimento da coexistência pacífica e, posteriormente, o impacto da desestalinização produziram um relaxamento das relações entre as duas superpotências no Hemisfério Norte. Contudo, o rearmamento da RFA e sua integração à OTAN reviveram velhos temores dos soviéticos, que reagiram organizando, com a Polônia, Alemanha Oriental, Tchecoslováquia, Hun­gria, Romênia e Bulgária, o Pacto de Varsóvia em 1955, ou seja, seis anos após a criação da OTAN. Assim, ao contrário da versão corrente, esta alian­ça militar não foi uma resposta imediata ou tardia à aliança atlântica, mas à incorporação da Alemanha rearmada. Essa medida não afetou, entretanto, a política de coexistência pacífica com o Ocidente. Isto ficou ainda mais evi­dente com as conseqüências geradas pelo X X Congresso do PCUS (1956), que oficializou a desestalinização. A revolta ocorrida na Hungria no mesmo ano foi sufocada por uma intervenção soviética, que o Ocidente explorou como forma de propaganda anticomunista, aceitando-a, contudo, como um problema interno do bloco soviético. O desgaste político da intervenção na Hungria, entretanto, foi compensado pela atitude da diplomacia soviética na Crise de Suez, em apoio a Nasser, o que permitiu a Kruchev aumentar a in­fluência da URSS na região.

A URSS de Kruchev, ainda que marcada pelo desconcertante voluntaris- mo de seu líder, na segunda metade dos anos 50, passou realmente a desen­volver uma política de âmbito mundial. O país recuperara-se no plano eco­nômico e demográfico do baque sofrido na Segunda Guerra, atingira um re­lativo equilíbrio nuclear na Europa e ultrapassara os EUA na corrida espa­cial, ao lançar o primeiro satélite artificial (o Sputnik) em 1957 e ao colocar o primeiro homem em órbita (Yuri Gagarin). Moscou superara a fase em que a extrema vulnerabilidade do país reforçava ainda mais a postura reativa e defensiva de Stalin nas relações internacionais. Kruchev implementou, ainda que com muitas deficiências, uma diplomacia realmente mundial, com pro­gramas de ajuda ao nacionalismo do Terceiro Mundo (embora modestos). A URSS percebia-se como potência e, nos marcos da coexistência pacífica, pro­punha-se a ultrapassar economicamente os EUA em pouco tempo.

Em 1961 Kennedy assumiu a Casa Branca herdando um certo pessimis­mo americano quanto a essa situação, e em três meses sofreu o revés da Baía dos Porcos, em Cuba. Os oito anos de governo republicano de Eisenhower, apesar de sua atitude de confrontação com os soviéticos no Terceiro Mundo, assistiram ao relativo enfraquecimento da liderança americana. Urgia reagir, e o presidente autorizou a construção de vários porta-aviões nucleares, e o aumento do orçamento militar americano e do efetivo da OTAN. No plano diplomático, endureceu a posição americana quanto ao problema de Berlim. Em resposta, o Kremlin resolveu atender à velha reivindicação da RDA de controlar a fronteira de Berlim Ocidental, e em 13 de agosto de 1961 foi construído o Muro de Berlim. A questão de Berlim chegava, no plano diplo­mático, a um desfecho de fato, já que a situação jurídica achava-se num im­passe. Durante uma década o enclave de Berlim Ocidental recebera mais in­vestimentos públicos e ajuda americana que toda a América Latina, criando um contraste favorável ao capitalismo no confronto entre os dois sistemas existentes dentro da mesma cidade. A Alemanha Oriental conseguiu, desta forma, deter o êxodo da classe média especializada que abandonava o país desde o “milagre” alemão-ocidental. A RDA, então, logrou êxitos econômi- co-sociais surpreendentes.

Em seguida, entretanto, os EUA desmascaravam o blefe nuclear de Kruchev, descobrindo que a URSS não se encontrava em vantagem estratégi­ca (o Misstle Gap). Isto somou-se à proclamação de Cuba como Estado so­cialista e ao bloqueio americano, para estimular a decisão soviética de insta­lar mísseis na ilha caribenha em 1962, tornando a Revolução Cubana um elemento importante da Guerra Fria. A revolução popular liderada por Fidel Castro chegou ao poder em janeiro de 1959, e mesmo as reformas modera­das do novo governo receberam firme oposição dos EUA, que dominavam a maior parte da economia da ilha, e desencadearam fortes pressões econômi­cas e diplomáticas. Kennedy autorizou a operação montada pela CIA, mas o desembarque na Baía dos Porcos (16/4/1961) foi derrotado com certa facili­dade, frustrando as expectativas americanas de encontrar apoio popular para derrubar Castro. Este proclamou então a adoção do socialismo no país em I o de maio.

O estabelecimento de um regime de orientação marxista-leninista a cem milhas de seu território levou os EUA à escalada, com a ampliação do blo­queio econômico da ilha. A definição cubana pelo socialismo, por outro lado, deixou Kruchev numa situação delicada, pois o reconhecimento de tal

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status implicava estender a área de influência soviética a uma região impor­tante para Washington. Contudo, tal situação propiciava condições de rea­ção por parte do voluntarismo krucheviano, que havia sofrido forte revés quando satélites e aviões espiões americanos haviam descoberto que a URSS não possuía o potencial atômico que o líder soviético esgrimia em seus ble­fes. Era o Missile Gap , que devolvia a iniciativa a Kennedy e colocava Kruchev em desvantagem. Além do equilíbrio nuclear, também estava em jogo o prestígio de Moscou junto ao Terceiro Mundo.

Somente em abril de 1962 Moscou reconheceu Cuba como regime socia­lista, iniciando pouco depois a instalação secreta de mísseis de alcance médio na ilha, como forma de garantir sua defesa, e compensar o equilíbrio desfa­vorável aos soviéticos. Com isto Kruchev esperava criar um fato consumado para os EUA, mas, em 22 de outubro, poucos dias após detectar a presença dos mísseis, Kennedy decretou o bloqueio naval a Cuba e exigiu a retirada imediata deles. O impasse gerou uma tensão internacional extrema, temen­do-se o desencadeamento da Terceira Guerra Mundial, de caráter nuclear. Kruchev vacilou ante a determinação americana e, no dia 25, enviou mensa­gem aceitando retirar os mísseis, sob supervisão da ONU, em troca do com­promisso dos EUA em não invadir Cuba novamente. Dois dias depois fez uma exigência suplementar, a retirada dos mísseis americanos da Turquia, em troca do compromisso soviético de não invadir aquele país. Kennedy ig­norou a segunda proposta e aceitou a primeira. Sem alternativas, o Kremlin recuou e acatou os termos da Casa Branca, sofrendo uma humilhação, ape­sar da sobrevivência do regime cubano.

Os EUA recuperaram a iniciativa, ampliando o efetivo americano no Vietnã, aumentando o orçamento de defesa e os contingentes da OTAN, bem como criando uma frota de porta-aviões nucleares. Embora o affair tenha re­sultado numa derrota para o Kremlin, as duas superpotências estabeleceram contatos diretos e um modus vivendi que deu maior substância à coexistên­cia pacífica. Esta situação foi particularmente expressa em atos como a assi­natura do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, que institucionalizava a pri­mazia dos dois supergrandes, em detrimento das potências médias e emer­gentes. Os não-alinhados perderam momentaneamente parte de seu papel, enquanto a discussão do desarmamento passava a ser decidida diretamente por Washington e Moscou, à margem da ONU. É importante destacar que a Guerra Fria e a coexistência pacífica representavam mais um problema de ênfase quanto ao antagonismo entre conflito ou negociação, centro ou peri­

feria e ação ou pressão, do que uma alteração qualitativa na natureza do conflito. Além disso, faz-se necessário salientar que os conflitos no Terceiro Mundo, nesta fase como nas seguintes, não eram criados por Moscou e Washington, mas manipulados e enquadrados no grande jogo estratégico. Os países periféricos, por seu lado, possuíam certa autonomia, e também barganhavam seus interesses, e muitas vezes forçavam as ações das superpo­tências, como é o caso da relação entre Israel e Estados Unidos.

Os Estados Unidos, por outro lado, sempre mantiveram a iniciativa e a vantagem na corrida armamentista (EUA e URSS, respectivamente): bomba atômica 1945/1949; bombardeiros intercontinentais 1948/1955; bomba de hidrogênio 1954/1955; mísseis balísticos intercontinentais 1957/1958; mís­seis balísticos em submarinos 1960/1968; mísseis de ogivas múltiplas 1970/1975; e submarinos nucleares anos 60/anos 70. Algumas armas só foram obtidas pelos EUA, como os mísseis cruzeiro de longo alcance (1982); bomba de nêutrons (1983) e porta-aviões nucleares (anos 60). Os soviéticos só tiveram primazia em alguns aspectos da corrida espacial, como satélites artificiais (1957/1958), sendo posteriormente ultrapassados, estação espacial (que os EUA não construíram) e mísseis antimísseis (1968/1972).

3. A DÉTENTE E O EQUILÍBRIO ESTRATÉGICO: A GUERRA FRIA MUNDIAL (1962-1979)

Na passagem dos anos 50 aos 60, a URSS encontrou problemas sérios no movimento comunista e em seu bloco, pois a desestalinização introduziu neles um clima de desmoralização. Os sucessores de Stalin eram figuras des­conhecidas ao lado de Mao Tsé-tung, que ampliou seu prestígio ao advertir Kruchev para os riscos que a desestalinização produziria na Europa Orien­tal. Além disso, a política de coexistência pacífica tendia a congelar a situa­ção mundial em parâmetros que condenavam a República Popular da China a permanecer uma potência de segunda ordem, além de enfraquecer o movi­mento revolucionário e o campo socialista. Ao voltar-se para o Terceiro Mundo neutralista e nacionalista, a URSS resolveu apoiar a índia, com a qual a China tinha sérios contenciosos regionais. Era o início do confronto aberto entre Moscou e Beijing.

A segunda metade da década de 1960 assistiu ao estabelecimento de uma

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détente (distensão) entre as superpotências, devido a diversos fatores. Em 1963 Kennedy era assassinado e um ano depois Kruchev era derrubado, e os sucessores de ambos procuravam recuperar a posição de seus países dentro das respectivas áreas de influência. Washington intensificava sua ofensiva na América Latina e no Vietnã, enquanto Moscou tentava restaurar sua lideran­ça no campo socialista, que Kruchev deixara em tremenda desorganização. Assim, os EUA aceitaram negociar vários acordos sobre limitação de arma­mentos — iniciados pela interdição parcial de explosões nucleares na atmos­fera e no mar — em troca da redução do envolvimento soviético no Terceiro Mundo (em apoio ao nacionalismo emergente).

Paralelamente, outros fatores atuaram para reforçar a tendência à multi- polarização das relações internacionais, que sustentava a détente. Na passa­gem da década de 1960 para a de 70, o equilíbrio nuclear-estratégico era atingido, pois a URSS também dotou-se de mísseis balísticos intercontinen­tais (ICBM), capazes de atingir o território americano a partir de bases de lançamento em solo soviético ou de submarinos. Até então, um eventual con­flito envolveria apenas os territórios da União Soviética e da Europa Ociden­tal, preservando os Estados Unidos, que eram inatingíveis. A emergência do Terceiro Mundo como força política no cenário mundial também se consoli­dou, expressando-se através do crescentemente prestigiado Movimento dos Países Não-Alinhados e da ONU, que abandonava paulatinamente o papel de mero suporte da política dos EUA. A presença dos jovens Estados poten- ciava a ONU, ao mesmo tempo em que a levava a incrementar a atuação de seus organismos especializados nas áreas econômica, cultural e sanitária, de vital importância para o Terceiro Mundo. A ONU adquiria uma dimensãorealmente planetária.

O grande boom econômico da CEE — cuja força motriz era a RFA — e do Japão, por sua vez, fazia emergir novos pólos capitalistas, cuja ascensão era facilitada por seus limitados gastos militares. Esses aliados dos EUA não tardariam em mover-lhe uma bem-sucedida concorrência comercial, finan­ceira e tecnológica. Também no plano político, o bloco americano começaria a apresentar fissuras. A distensão internacional não tardaria a estimular o nacionalismo francês, que se opunha às pressões americanas na CEE e às re­lações privilegiadas de Washington com a Alemanha Ocidental e a Grã- Bretanha. Assim, em 1966 De Gaulle retirou a França da OTAN, num gesto sem precedentes.

A situação não era melhor no bloco soviético. Em 1961 efetivava-se a

ruptura com a Albânia e em 1963 com a China. Esta, poucos dias após a des­tituição de Kruchev, explodiu sua primeira bomba A, aumentando suas pre­tensões políticas. A política externa chinesa privilegiara até então a seguran­ça do país, sendo indispensável para tanto a aliança com a URSS, mas a par­tir deste momento a ênfase passou a ser a independência e autonomia. Os problemas econômicos e as lutas pelo poder dentro do Partido Comunista Chinês levaram o país a exacerbar o nacionalismo e opor-se com mais inten­sidade à URSS, com fins de legitimação interna e projeção internacional. O desdobramento dessa política levou a China ao caos da Revolução Cultural e ao isolamento diplomático do país, bem como à perda de influência no mo­vimento comunista. A Romênia, por seu turno, recusara os planos do CAME para o estabelecimento de uma divisão internacional da produção entre paí­ses socialistas. A idéia, proposta por Kruchev para contrabalançar as tendên­cias centrífugas do campo socialista, condenaria a Romênia a um modesto nível de industrialização. As questões econômicas serviram para aglutinar a rebeldia dos comunistas romenos, que adotaram uma diplomacia relativa­mente autônoma em relação a Moscou. A recuperação parcial das posições soviéticas em seu campo, por Brejnev, contudo, baseava-se mais em compro­missos do que numa liderança inconteste, como na época de Stalin.

Em 1967-68 o PC tchecoslovaco iniciou o processo de liberalização po­lítica e descentralização econômica conhecido como Primavera de Praga. Embora o movimento tivesse, inicialmente, um caráter de mudança dentro do sistema, Brejnev sentiu-se ameaçado. Além da posição estratégica do país, a URSS encontrava-se envolvida em conflitos fronteiriços com a China e en­frentava a rebeldia romena. Assim, as tropas do Pacto de Varsóvia intervie­ram no país em agosto de 1968, sem encontrar resistência armada. Para jus­tificar a intervenção, Brejnev formulou a Doutrina da Soberania Limitada dos Países Socialistas, segundo a qual estes não poderiam adotar medidas ex­ternas ou internas que ameaçassem os demais membros do bloco.

O fim da Primavera de Praga, contudo, conduziu à normalização diplo­mática da Europa Central e ao aprofundamento da détente. Em 1969 os so- cial-democratas chegavam ao poder na RFA e Willy Brandt lançava sua Õstpolitik, estimulando a cooperação da CEE com o Leste europeu. Sem es­peranças de derrubar os regimes da Europa Oriental, o Ocidente negociou a normalização política. Entre 1970 e 1972 foram assinados diversos tratados envolvendo o reconhecimento diplomático e de fronteiras entre RFA, RDA, URSS, Polônia e Tchecoslováquia. Em 1973 as duas Alemanhas ingressavam

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na ONU. Assim, desde a construção do Muro de Berlim, iniciara-se um pro­cesso que, no fim da década de 1960, culminava com a institucionalização de uma cooperação sistemática entre a Europa Ocidental e a URSS. O equilíbrio do terror acabava, contraditoriamente, por assegurar uma paz estável na Europa, uma vez que qualquer conflito militar tornara-se impensável. Ao mesmo tempo, ambos os lados usufruíam vantagens econômicas e políticas em detrimento da influência dos Estados Unidos.

É interessante observar que a URSS, sob Brejnev, tornou-se finalmente uma superpotência de fato, e não apenas de direito. O país adquiriu a posi­ção de potência mundial apenas na passagenl dos anos 60 aos 70, com a ob­tenção do equilíbrio estratégico global, através da construção de uma esqua­dra capaz de operar no Oceano Mundial, do acesso a pontos de apoio no Terceiro Mundo, da efetivação de um arsenal nuclear capaz de atingir o ter­ritório americano e da aceitação na comunidade internacional como nação legitimada (e não mais como revolução). Além disso, os avanços econômi­cos, tecnológicos e sociais do país propiciaram bases internas para uma atua­ção internacional mais efetiva. Neste sentido, Brejnev optara por uma alter­nativa societária conservadora, comprando a passividade política da popula­ção através da ampliação do consumo individual.

Washington, nesse momento, encontrava-se atolada diplomática e mili- tarmente no Vietnã. O desgaste americano na Indochina refletiu-se nos preo­cupantes déficits orçamentários surgidos a partir do auge do conflito. Para enfrentar o problema, Nixon lançou uma série de medidas econômicas de al­cance internacional: decretou em 1971 a inconvertibilidade do dólar em re­lação ao ouro, a elevação progressiva do preço do petróleo e a adoção do protecionismo comercial nos EUA. As medidas, aparentemente técnicas, ti­nham como objetivo desencadear uma gigantesca reconversão da economia capitalista mundial, retomando o dinamismo e a primazia americana, em de­trimento da Europa, Japão, países socialistas e Terceiro Mundo. Esta políti­ca materializou-se na articulação de uma nova divisão do trabalho, na imple­mentação de uma revolução científico-tecnológica e na aceleração da compe­tição econômico-financeira internacional. Tais medidas atingirão, especial­mente, os países socialistas e em desenvolvimento, quando saírem do casulo sob a forma da “globalização”.

A reação americana ao desgaste de sua hegemonia, por outro lado, tam­bém se processou no plano estratégico. O presidente Richard Nixon e o se­cretário de Estado Henry Kissinger, preocupados em desengajar seu país do

atoleiro vietnamita, bem como reduzir os custos político-econômicos da lide­rança internacional dos EUA, num quadro internacional caracterizado pela détente, articulam a Doutrina Nixon, ou Doutrina de Guam: vietnamização do conflito, atribuição aos aliados regionais de um maior papel nas tarefas de segurança e, o mais importante, o estabelecimento de uma aliança estra­tégica com a República Popular da China. Esta nova orientação materiali­zou-se com a Diplomacia do Pingue-pongue, iniciada em 1971, a qual confi­gurou a estruturação do eixo Washington-Beijing e o ingresso da China Po­pular no Conselho de Segurança da ONU, no lugar de Taiwan. A aliança sino-americana, sem dúvida, alterou o equilíbrio estratégico mundial. No lugar de uma confrontação bipolar regulada, onde os demais países desem­penhavam um papel limitado, surgiu um cenário onde uma terceira potência, a China, já era capaz de alterar o jogo internacional, tornado mais comple­xo. Para evitar uma reação da URSS, os EUA procuraram manter a détente, através da aceitação de um acordo de limitação de armamentos em 1972, o Strategic Arms Limitations Treaty, condicionado à assinatura do Acordo de Helsinque em 1975, que, além da segurança européia, institucionalizou o tema dos direitos humanos. A Casa Branca fomentou, ainda, a participação da URSS na economia mundial, via exportação de gás e petróleo e importa­ção de tecnologia e bens de capital. A aceitação da institucionalização da questão dos direitos humanos e a vinculação parcial no mercado mundial di­namizado pela revolução tecnológica serão fatais para a URSS.

Apesar disso, a nova correlação internacional de forças então criada gerou um desequilíbrio estratégico claramente desfavorável a Moscou. Ante este quadro, os soviéticos buscaram acercar-se dos movimentos revolucioná­rios e nacionalistas do Terceiro Mundo, sobretudo através da cooperação com Cuba. Potenciando estes movimentos, o grupo brejneviano esperava conseguir um reequilíbrio estratégico, através da obtenção de pontos de apoio na periferia da área de influência americana. Este jogo, entretanto, ex­trapolou os limites habituais da confrontação EUA-URSS. O novo contexto mundial estava marcado pela multilateralização e pela propagação da crise pela periferia, o que propiciou um elevado potencial de mobilização social pelas forças esquerdistas e nacionalistas. Essa conjuntura foi aproveitada pelos movimentos revolucionários e de libertação nacional do Terceiro Mundo, que desencadearam uma verdadeira onda revolucionária nos anos 70, com apoio às vezes ostensivo do campo socialista. De Angola e Etiópia ao Vietnã em 1975, da Nicarágua ao Irã e Afeganistão em 1979, mais de

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uma dúzia de revoluções antiimperialistas, e mesmo socialistas, abalaram um cenário internacional já marcado pelo desgaste do império americano e da economia mundial. A estes eventos somou-se a queda dos regimes ditatoriais pró-americanos de Portugal, Espanha e Grécia no flanco sul da OTAN em 1974-75.

Nesse contexto, sem dúvida, a revolução indo-chinesa foi a mais impor­tante. O movimento liderado por Ho Chi Minh iniciara a luta contra a França de Vichy e os japoneses em 1939, e após efêmera independência, lu­tara contra a reconquista francesa entre 1945 e 1954, quando o país foi tem­porariamente dividido em função dos acordos de Genebra. O congelamento da divisão, configurado pela não-realização de eleições no sul do Vietnã, cujo regime era apoiado pelos EUA, levou ao reinicio da guerrilha em 1960. A derrocada iminente do governo de Saigon obrigou o Pentágono a desenca­dear a escalada militar em 1964. O Vietnã do Norte e os guerrilheiros do sul enfrentaram, em condições adversas, os 600 mil soldados ianques e a mais avançada tecnologia militar do mundo. Em 1968, quando os EUA começa­vam a enfrentar sérios problemas internos — em grande parte devido ao con­flito, a Frente de Libertação Nacional (FLN) do Vietnã (Vietcong) desenca­deou a ofensiva do Tet, provando a impossibilidade da vitória americana. Intensificou-se o uso de armas químicas, bombardeios maciços e massacres, enquanto Nixon buscava desenredar-se do labirinto indochinês. A guerra se­creta no Laos e a invasão do Camboja em 1970, onde instalaram o general direitista Lon Nol, apenas dificultaram ainda mais a situação de Washington.

Após longas negociações, os EUA assinaram os Acordos de Paris em 1973 e retiraram suas tropas, vietnamizando o conflito, enquanto fornecia armas, dinheiro e assessores ao governo de Saigon. Em abril de 1975 as tro­pas do Vietnã do Norte e os guerrilheiros do sul entravam em Saigon, reuni- ficando o país e vencendo a mais longa, sangrenta e complexa guerra do Terceiro Mundo. Três potências haviam sido derrotadas, inclusive a mais po­derosa nação no campo militar, econômico e tecnológico, por um pequeno país agrícola e periférico, embora com o apoio diplomático e armas dos paí­ses socialistas.

A Guerra do Vietnã não fora apenas um conflito militar entre exércitos nacionais mas uma profunda revolução social. Era um símbolo dos novos tempos, que evidenciava o desgaste do império americano e as potencialida­des da aliança das revoluções populares do Terceiro Mundo com as nações socialistas industrializadas. O fenômeno afetou toda a Indochina, pois simul­

taneamente ocorria o triunfo dos movimentos revolucionários do Laos e do Camboja, ao mesmo tempo em que se criava um novo poder regional, sob a liderança' vietnamita. É importante observar a atitude da China, que esfriou gradativamente suas relações com Hanói à medida que a vitória se avizinha­va, chegando mesmo a opor-se à reunificação. A partir de 1975 Beijing pas­sou a apoiar o regime do Khmer Vermelho no Camboja, como forma de evi­tar a supremacia do Vietnã sobre toda a Indochina, bem como a pressioná-lo.

A primeira derrota militar americana atingiu em cheio o país, gerando a Síndrome do Vietnã, que o retraiu parcial e temporariamente nas relações in­ternacionais. À crise econômica associava-se o sobressalto da derrota militar, da consciência pública dos crimes perpetrados e dos problemas sociais inter­nos, com os desajustados, drogados e mutilados gerados pela guerra. Além disso, os movimentos de direitos civis, pacifistas e minorias étnicas desafia­vam o status quo americano desde os anos 60. Estes problemas foram coroa­dos pela descrença na política oficial, gerada pelo escândalo Watergate, res­ponsável pela queda de Nixon. Para a opinião pública, os conflitos do Terceiro Mundo eram complicações em que os EUA não deveriam intervir, além do fato de considerarem que estes consumiam os recursos destinados ao bem-estar interno. Carter assumiu o poder em 1977, buscando rearticular a diplomacia americana através da política de defesa dos direitos humanos, bem como da não-interferência nos conflitos internos de outros países. Contudo, novos focos de tensão se levantavam na África e América Central, onde a amplitude dos conflitos acabou envolvendo as duas superpotências e seus aliados. Na África Portuguesa, após quinze anos de luta armada, a es­querda também triunfou. Em Moçambique, a guerrilha da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) já controlava parte do país, quando a Revolução dos Cravos em Portugal precipitou os acontecimentos. Com a fuga da maior parte da elite branca, Moçambique passou a ser governado por um movimento predominantemente negro, que se proclamava marxista- leninista, junto às fronteiras da Rodésia e da África do Sul, países ainda con­trolados por minorias brancas, onde se intensificava a luta armada.

Em Angola, país com maiores potencialidades econômicas, ocorreu uma guerra civil entre os três grupos que lutavam pela independência, quando da derrocada do fascismo português. A Frente Nacional de Libertação de Angola (vinculada aos EUA) e as tropas do Zaire avançaram do norte para atacar a capital, Luanda, onde o Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA, de orientação marxista) era dominante. No sul, a União

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Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) e o exército sul- africano desencadearam um guerra relâmpago contra o MPLA. Em face da situação desesperadora, iniciou-se uma ponte aérea entre Havana e Luanda, com o envio de armas e 20 mil soldados cubanos. No centro do país as tro­pas cubanas (a maioria descendente de ex-escravos) e do MPLA derrotaram o exército sul-africano, um dos melhores do mundo. Assim o MPLA procla­mou uma República Popular de inspiração marxista-leninista. A África do Sul ocupou uma faixa do sul de Angola para manter viva a UNITA e deses- tabilizar o governo do MPLA, enquanto os cubanos permaneciam um pouco ao norte para impedir a invasão ao centro do país,

Também no Chifre da África, as revoluções locais transformaram-se em conflitos regionais da Guerra Fria. Na miserável Etiópia, o velho imperador pró-americano Hailé Selassié foi derrubado em 1974 por um golpe militar com apoio popular. A junta militar (DERG) exprimia um populismo pouco definido, enquanto as oposições, o caos e as tendências centrífugas ameaça­vam a existência do novo regime. Em 1977, este evoluiu para a esquerda, de­sencadeou ampla reforma agrária, rompeu com os EUA e atacou os separa­tistas e a oposição. A vizinha Somália então invádiu a Etiópia, numa átitude claramente encorajada pela Arábia Saudita, Egito e EUA. Neste contexto, URSS e Cuba atenderam ao pedido de auxílio da Direção Militar Revolucio­nária Etíope, a DERG. Fidel Castro visitara os dois países em litígio, tentan­do mediar o conflito através da proposta de formação de uma confederação, mas esbarrou com a negativa somali, que expulsou todos os assessores sovié­ticos do país. Nesse momento, Moscou montou uma ponte aérea, enviando armas, assessores soviéticos e alemães-orientais, além de 10 mil soldados cu­banos. A guerra do Chifre da África encerrou-se com a vitória da Etiópia, que consolidava seus laços com o campo socialista, enquanto a Somália alia- va-se aos EUA e as guerrilhas prosseguiam.

Enquanto os EUA encontravam-se afetados pela Síndrome do Vietnã e mantinham-se relativamente retraídos nas relações internacionais, a conjun­tura revolucionária no Terceiro Mundo aprofundava-se, atingindo seu zêni- te — e seu termo. Na Indochina, o fim da guerra não trouxera um alívio das tensões regionais, pois a pressão sobre a revolução vietnamita adquirira novas formas. O Khmer Vermelho no Camboja, enquanto promovia sua ne­fasta política interna, externamente provocava o Vietnã, por meio de inci­dentes fronteiriços, com apoio chinês. A resposta de Hanói não tardou, e em fins de 1978 invadiu o Camboja, com apoio dos refugiados deste país, der­

A G U E R R A F R I A

rubando o Khmer Vermelho e implantando um regime aliado no início de 1979. Um mês depois, 600 mil soldados chineses cruzavam a fronteira para, segundo Deng Xiaoping, “dar uma lição ao Vietnã”. Após um mês de luta, os chineses retiraram-se com pesadas baixas. A China, neste episódio, defen­deu também os interesses dos EUA na grande diplomacia.

4. O FIM DA DÉTENTE E A SEGUNDA GUERRA FRIA (1979-1985)

A principal conseqüência desta evolução foi que, durante o governo Carter, a détente começou a ser abandonada, dando lugar a uma nova Guerra Fria. Tratava-se de um verdadeiro contra-ataque dos centros capitalistas, iniciado anteriormente com a estratégia de recuperação hegemônica de Kissinger- Nixon-Ford, continuada pela Comissão Trilateral com Carter, e culminando com o neoliberalismo conservador de Reagan-Bush. Assim, durante os anos 80, a estratégia conservadora desencadeou o que Reagan definiu no Docu­mento Santa Fé como uma Terceira Guerra Mundial, cuja peça-chave era o projeto “Guerra nas Estrelas”, que acabou produzindo a derrocada da URSS.

A região cuja instabilidade mais preocupou Washington foi a que o as­sessor americano Zbigniew Brzezinski denominou de Arco das Crises, que se estendia do Chifre da África ao Paquistão, passando pela Península Arábica. Em função do petróleo do Golfo Pérsico, da proximidade da URSS e do Oceano Índico, a região era considerada vital para os EUA. A guerra do Chi­fre da África tivera como resultado o alinhamento da Somália com Washing­ton e da Etiópia com Moscou. Apesar da revolução etíope ainda enfrentar movimentos de guerrilhas, especialmente a Eritréia, Carter percebia os resul­tados como favoráveis ao campo socialista. Do outro lado do estreito de Bab-el-Mandeb, a revolução sul-iemenita, em reação à pressão saudita, radi­calizou-se e aproximou-se ainda mais do Kremlin em 1979. Mais sério, con­tudo, foi o triunfo da Revolução Iraniana no início de 1979, a qual desarti­culou o sistema defensivo americano na estratégica região petrolífera do Golfo Pérsico. Mas é preciso lembrar que esta revolução constituiu uma ameaça maior ainda para a União Soviética, pois o novo regime islâmico era vizinho das repúblicas soviéticas muçulmanas da Ásia Central. Isto teve, no plano regional, profunda repercussão em relação ao Afeganistão. Além disso, o agravamento da crise polonesa, com intromissão direta de Washing­

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ton e do Vaticano do arquiconservador João Paulo II pesaram na decisão de Moscou de intervir no Afeganistão.

Esta ação soviética constituiu o pretexto para a grande virada das rela­ções internacionais que enterrou a détente. País feudal e tribal, o Afeganistão sempre manteve excelentes relações com a URSS, sendo o primeiro Estado a reconhecê-la (1919) e mantendo acordos de cooperação econômica e militar desde 1924. Em 1973, em mais um dos golpes de Estado no país — formal­mente contra a corrupção generalizada, o príncipe Daud depunha seu primo do trono e proclamava a República, apoiando-se numa ampla frente, tam­bém integrada por grupos comunistas. O governo Daud, em face da crescen­te desagregação econômica e da progressiva influência dos comunistas no governo, começou a aceitar a ajuda econômica do xá do Irã, que desejava criar sua própria área de influência. Desde 1974, Daud permitiu a atuação da Savak (polícia política iraniana) dentro do governo afegão, para eliminar a esquerda do aparelho estatal. A situação agravou-se quando Cabul resol­veu reorientar sua diplomacia, aproximando-se também da China, EUA e Paquistão. Como reação às prisões em massa e assassinatos de líderes comu­nistas, estes organizaram manifestações e em 1978 desfecharam um golpe de Estado, que os conduziu ao poder.

O novo governo iniciou programas de alfabetização, reforma agrária, emancipação dos jovens e das mulheres e nacionalização de alguns setores da economia. Mas a luta interna entre facções comunistas prosseguia, enquan­to acelerava-se perigosamente a “revolução pelo alto”, desencadeando uma revolta rural contra as reformas desde maio de 1979. A família patriarcal re­cusava-se a abrir mão do controle sobre as mulheres e jovens, enquanto o clero mobilizava-se contra a reforma agrária. Logo a revolta tribal passava a receber apoio externo via Paquistão, escapando ao controle do governo. Os soviéticos, já preocupados com os primeiros ventos da nova Guerra Fria, re­solveram então agir, apoiando sem sucesso a facção moderada. Moscou não poderia recuar no país, pois o conflito adquirira nova dimensão com o triun­fo da Revolução Iraniana e o grande fluxo de armas e dinheiro para a guer­rilha conservadora afegã oriundo dos EUA, China, Paquistão, Egito e Arábia Saudita. Assim, a URSS resolveu apoiar um golpe para derrubar Amin, a ser complementado com a intervenção militar maciça em apoio a um novo go­verno, o que veio a ocorrer em 27 de dezembro de 1979. O governo promo­veu uma abertura política, moderou o ritmo das reformas e buscou uma aproximação com os líderes religiosos e chefes tribais, enquanto os soviéti­

cos tentavam reerguer o Estado e o exército afegãos, e suas tropas procura­vam controlar os pontos vitais do país. Mas era tarde, pois as bases guerri­lheiras encontravam-se instaladas no Paquistão, e era impossível controlar a infiltração pelas altas montanhas.

A tensão social resultante simultaneamente da crise econômica e da rees­truturação do capitalismo, combinada com as sucessivas derrotas dos inte­resses e posições ocidentais (particularmente americanos) em áreas estratégi­cas da periferia, lançaram os meios conservadores numa grande incerteza. Ante a percepção de graves ameaças aos fundamentos do sistema, a nova di­reita preparou então uma vigorosa contra-ofensiva. A reação conservadora iniciou-se na segunda metade do governo Carter, quando assessores como Brzezinski e Brown começaram a atacar a détentè defendida pelos também assessores Vance e Young. Em 1978 a direita americana conseguia recuperar- se do baque sofrido no Vietnã e restaurava seu domínio no Congresso, obri­gando o governo democrata a mudar sua política. Antes mesmo da interven­ção soviética no Afeganistão em dezembro de 1979, foi aprovado o aumen­to do orçamento militar, a fabricação da bomba de nêutrons, o apoio à guer­rilha afegã, a criação da Força de Deslocamento Rápido, a instalação dos mísseis Cruise e Pershing 2 na Europa, o reequipamento da OTAN e, logo após, a não-ratificação dos Acordos SALT II sobre limitação de armas nu­cleares. Quase uma década de vacilação americana chegava ao fim, situação que a eleição de Ronald Reagan em 1980 apenas veio reforçar. A ascensão da conservadora Margaret Thatcher na Grã-Bretanha, por sua vez, dava início à emergência da direita na Europa.

Quais as razões desta virada espetacular? Por um lado, encontra-se a ten­dência social e ideológica conservadora fomentada pela crise econômica, analisada adiante. Por outro lado, a reação à desestruturação do sistema in­ternacional: “a nova Guerra Fria é principalmente o produto de uma deses- tabilização gigantesca e relativamente sincronizada do capitalismo periférico e semi-industrial na onda da crise econômica mundial” (Davis, Mike, in Thompson, 1985, p. 80). Revoluções selvagens e imprevisíveis ocorreram nos bolsões mais pobres do mundo, e somaram-se a um populismo religioso atávico no mundo árabe, onde a pauperização absoluta alimenta o renasci­mento islâmico na esteira do colapso das sociedades tradicionais. As revolu­ções antes descritas possuem um potencial de desestabilização em nível regional, conferindo certa lógica à “teoria do dominó” invocada por Washington.

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A América, marcada pelos fracassos da década anterior, pela crise econô­mica, e com o orçamento ainda limitado pelo programa social dos democra­tas, viu no republicano Ronald Reagan o homem capaz de recolocá-la de pé, e o elegeu em fins de 1980. A era Reagan deu forma institucional à reação conservadora e sua nova Guerra Fria, aprofundando as tendências já existen­tes na metade final do governo Carter. A estratégia da nova direita era opos­ta a qualquer multilateralização das relações internacionais e contrária ao diálogo Norte-Sul, buscando restaurar uma estrita bipolaridade com vanta­gem estratégica para os EUA. Intensificaram-se a corrida armamentista e a política de confrontação, que, em conjunto com a instalação dos novos mís­seis na Europa, enterraram a détente. Essa nova Guerra Fria consistiu esque- maticamente no seguinte: os Estados Unidos moveram uma vigorosa corrida armamentista convencional e estratégica — cujo ponto máximo era a milita- rização do espaço pela Iniciativa de Defesa Estratégica (IDE), ou projeto “Guerra nas Estrelas”, que os colocam em superioridade estratégica sobre a URSS, abalando paralelamente a economia deste país, já enfraquecida pelo aumento dos gastos militares e pelo embargo comercial dos EUA e aliados.

O Kremlin, debilitado, viu-se constrangido a limitar seu apoio às nações revolucionárias do Terceiro Mundo, como forma de negociar a redução da pressão militar americana. Nessas condições, os EUA e seus aliados mais mi- litarizados (África do Sul, Paquistão e Israel, entre outros) poderiam esmagar os movimentos e regimes revolucionários surgidos na década anterior en­quanto, paralelamente, os americanos logravam restabelecer boa parte de sua ascendência sobre seus aliados economicamente bem-sucedidos (Europa Ocidental e Japão), dividindo ainda com eles o fardo da despesa de armas e afastando-os da vantajosa cooperação econômica com a URSS e a Europa oriental (daí a luta contra a construção do gasoduto Sibéria-Europa e a venda de tecnologia avançada aos países socialistas);-finalmente, os EÜA ten­tariam abrir os países socialistas à penetração econômica ocidental, que au­mentaria o controle sobre a política do “bloco” soviético, fornecendo alter­nativas financeiras e comerciais para a superação da estagnação do sistema capitalista.

No que tange especificamente ao Terceiro Mundo, Washington desen­volveu a estratégia dos conflitos de baixa intensidade, que seriam travados em teatros limitados (com a possibilidade de empregar armas nucleares táti­cas), visando enfraquecer e/ou derrubar os regimes revolucionários no poder. Neste sentido, sustentaram os contras na Nicarágua, a UNITA em Angola, a

Renamo em Moçambique, as guerrilhas muçulmanas no Afeganistão, os so- malis e eritreus na Etiópia, além de outros, enquanto Granada foi invadida e diretamente ocupada em outubro de 1983. Simultaneamente, os EUA refor­çavam os governos conservadores ameaçados internamente, visando evitar o triunfo de guerrilhas esquerdistas ou movimentos democratizantes de massa, como no caso de El Salvador, Guatemala, Namíbia, Filipinas e Coréia do Sul, entre outros.

Essa verdadeira contra-revolução no Terceiro Mundo sangrou os frágeis regimes revolucionários até a exaustão, bloqueando qualquer possibilidade concreta de transição social. O fenômeno adquiria contornos desesperadores para esses regimes, pois também os países socialistas foram paralisados devi­do à ofensiva belicista, ao embargo comercial e tecnológico, e às pressões di­plomáticas ocidentais. Literalmente acuada durante a primeira metade da década de 80, a URSS buscou posteriormente adaptar-se aos novos tempos com a Perestroika, oferecendo facilidades econômicas e o abandono de seus aliados terceiro-mundistas, em troca de acordos de desarmamento e coope­ração comercial e financeira.

No plano político-ideológico, a nova direita substituiu a bandeira dos di­reitos humanos pela da defesa da democracia, e do combate ao narcotráfico e ao terrorismo. A democracia, num contexto de crise, deveria ser salvaguar­dada “sem adjetivos” (a “democracia como valor universal”), isto é, sem qualificações como popular, social ou participativa. Assim, a democracia li­beral adotava um conteúdo ainda mais empobrecido, conservando e legiti­mando a desmobilização político-social dos regimes autoritários que esta- vam sendo substituídos. A democracia como valor universal era também uma arma ideológica contra os países socialistas e os jovens Estados revolu­cionários do Terceiro Mundo. Estes, além de “antidemocráticos”, também eram acusados de práticas terroristas, mácula que atingia igualmente os mo­vimentos revolucionários e/ou de libertação nacional. O antiterrorismo per­mitia, assim, criar-se um clima de histeria para a manipulação da opinião pú­blica. Desta forma, legitimavam-se previamente as agressões e pressões dos EUA a países antiamericanos do Terceiro Mundo, tais como Líbia e Irã, en­quanto o combate ao narcotráfico validava as interferências no Panamá e nos países andinos.

Durante a era Brejnev, a crescente presença internacional da URSS e o aumento do nível de vida da população haviam exigido um esforço adicional da economia soviética. Na segunda metade dos anos 70 o “crescimento ex­

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tensivo” alcançara seu limite, quando também iniciava-se a nova Guerra Fria e aprofundava-se a reestruturação das economias capitalistas avançadas, em relação às quais a União Soviética estabelecera vínculos de cooperação. A corrida armamentista e os embargos comerciais e tecnológicos afetaram se­riamente a União Soviética, na qual a envelhecida liderança do grupo brejne- viano carecia do necessário dinamismo para enfrentar os novos desafios. A crise polonesa somou-se ao peso do envolvimento nos conflitos regionais como do Afeganistão, Camboja, América Central, África Austral e Chifre da África. As reformas do sucessor Iuri Andropov em 1983 não tiveram tempo de frutificar, e o imobilismo do interregno Tchernenko apenas contribuiu para abortá-las. Em 1985 Mikhail Gorbachev, jovem aliado de Andropov, assumiu o poder no Kremlin, lançando as políticas reformistas da Glasnost (transparência) e da Perestroika (reestruturação), bem como uma ofensiva diplomática pacifista. Desta vez, porém, o preço pago foi a própria capitula­ção e convergência ante o adversário capitalista.

O chamado novo pensamento de Gorbachev levou, em menos de três anos, ao fim da Guerra Fria e, em seguida, à desintegração da própria URSS. Este desfecho insólito evidenciou alguns fenômenos que possibilitam uma melhor compreensão do grande confronto da segunda metade do século. Num sentido amplo, a Guerra Fria começou em novembro de 1917 com o estabelecimento do primeiro regime socialista; conheceu períodos “quentes” e amainou durante as fases da détente, pois o conflito e a coexistência sem­pre foram oartes de um mesmo processo, com ênfase ora num, ora noutro as­pecto. O seculo XX, neste contexto, representa uma era de transição longa e violenta marcada pelo conflito de formações sociais e políticas opostas, cujo centro de gravidade tem sido o Terceiro Mundo, desde os anos 50. A razão disso é que a expansão planetária do capitalismo destrói continuamente as estruturas tradicionais na periferia, produzindo novos “elos frágeis” em seu sistema e internacionalizando as forças de revolta contra ele.

A Guerra Fria, neste sentido, não pode ser reduzida à sua aparência de conflito entre EUA e URSS. Esta imagem é apenas parte do processo e diz respeito ao imediato pós-guerra, quando o capitalismo foi reestruturado sob hegemonia americana, o que anulou momentaneamente as rivalidades inter- capitalistas e permitiu a atuação conjunta do sistema contra a URSS. A Revolução Soviética criara uma base industrial autônoma, capaz de permitir- lhe independência de ação e de fornecer recursos econômicos e militares às revoluções e ao nacionalismo na periferia. Daí a necessidade de conter não

uma inexistente “exportação da revolução”, mas o apoio da URSS às revo­luções e rivalidades espontaneamente surgidas no Terceiro Mundo, quando isto convinha a Moscou. Pode-se dizer, nesse sentido, que a corrida arma­mentista — nuclear ou não — representou o regulador de um sistema inter­nacional em transição e convulsionado por rupturas revolucionárias, regula­dor este imposto pela economia dominante. O desenvolvimento nuclear, que constitui apenas um dos resultados da corrida armamentista, serviu para dar coesão aos “blocos” e regular o conflito entre eles. Assim, o fim da Guerra Fria tornou o mundo mais instável, conflitivo e imprevisível, mas ao mesmo tempo descongelou a História mundial.

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