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Fernando Evangelista • Revista Caros Amigos, edição nº 76 • Bagdá, Iraque • Reportagem sobre a vida dos civis iraquianos durante a guerra
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Nosso repórter Fernando Evangelista foi a Bagdá com o fotógrafo italiano Matt Cornerpara testemunhar o segundo ato da tragédia iraquiana
Bagdá, 20 de março de 2003: Primeiro dia da guerra. O engenheiro Salah Al Shekhli, 42
anos, sai de casa para saber notícias dos irmãos que moram num bairro vizinho. Ao voltar, al-
gumas horas depois, não acredita no que vê. Sua casa está destruída. Sua mulher Rakhia, de 37
anos, sua filha de 9 e seu filho de 16 estão lá, no meio dos escombros, feridos. Um avião ameri-
cano lançou uma bomba no jardim de sua casa.
Em junho, três meses depois, encontro Salah no hospital de campo da Cruz Vermelha Ita-
liana montado em Bagdá. Ele acompanha a mulher, na sua quinta operação. Rakhia perdeu a
mão esquerda, corre o risco de ficar cega e tem marcas de queimaduras por todo o corpo. Seu
filho está fora de perigo, mas ficou com o rosto desfigurado. A filha também sofreu queimadu-
ras graves e pode ficar cega, como a mãe.
O hospital da Cruz Vermelha Italiana recebe, em média, 150 pacientes por dia. A maioria dos
casos é de queimadura. No Iraque pós-Saddam falta gás e as famílias cozinham com gasolina.
As conseqüências são previsíveis. Chegam também muitos pacientes desnutridos porque fal-
tam alimentos e sobram desempregados. Com a queda do regime, 60 por cento da população
ativa ficou sem trabalho. Chegam ainda muitos feridos por armas de fogo, porque no “Iraque
da liberdade” é mais fácil comprar uma metralhadora que uma pasta de dente. O Iraque é um
país sem leis e sem sistema policial, sem governo e sem justiça. Caos.
Bagdá, 5 de junho de 2003: Um mês e quatro dias depois do anúncio oficial do término
da guerra. Amar Sadar, 14 anos, está brincando num parque com outras sete crianças, todas
iraquianas. Seu irmão caçula, mais distante do grupo, encontra um objeto no chão. Amar,
curioso, pega do irmão o “brinquedo”: observa, mexe, sacode daqui e dali e, de repente, dá-se
a explosão.
Ele segurava um pedaço de uma bomba de fragmentação, conhecida como CBU-87, jogada
por aviões dos Estados Unidos durante a invasão. Cada uma dessas engenhocas contém mais
de 200 minibombas em forma de cilindros do tamanho de uma garrafa de Coca-cola. Depois
do lançamento, esses cilindros se dispersam por uma área equivalente a até dois campos de fu-
tebol. Só que 10 por cento não explodem quando tocam o chão e ficam ali, transformados em
minas terrestres. Essas “flores metálicas, da infinita infâmia humana”, como definiu o drama-
turgo Moni Ovadia, matam uma pessoa a cada oito minutos ao redor do mundo. As minas ter-
restres foram consideradas pela ONU armas de destruição em massa de efeito lento e contínuo.
Amar teve sorte. Não morreu, como a maioria das vítimas dessas bombas. Talvez nunca
mais consiga mexer as mãos, que continuam lá, mesmo deformadas. Mas isso, para a função
que têm esses “brinquedos”, é uma dádiva. É a sorte grande.
Baladiat, 6 de junho de 2003: Ela tem o olhar de quem já viveu muitas guer-
ras e muitas mortes. Sua história confunde-se com o destino de um povo marca-
do pela desgraça e pelo martírio. Hamami Maumoud nasceu em Haifa, na Pales-
tina. Em 1948, ao ser criado o Estado de Israel, foi expulsa de sua terra. Exilou-se,
com a filha e o marido, no Iraque. “Vim morar neste país com a certeza de que re-
tornaria em breve para minha casa”, diz.
Em abril deste ano, depois de Saddam, depois de tudo, foi expulsa do aparta-
mento onde vivia em Bagdá. E, aos 100 anos, mora em Baladiat, campo de refugia-
dos palestino, nos arredores da capital iraquiana. Sua casa é uma tenda de menos
de 5 metros quadrados, com uma temperatura média de 50 graus. “Tenho espe-
rança de que possa voltar para casa. “Qual casa?” pergunto. Ela faz uma pausa e
responde: “Para a minha casa, a minha terra, na Palestina”.
O responsável da Red Crescint (Cruz Vermelha dos países árabes), Anwer Salim
Al Awawdeh, 44 anos, que é também um dos coordenadores desse campo de refugia-
dos, conta que todos os dias, de todas as partes do Iraque, chegam palestinos expul-
sos das casas e dos apartamentos onde moravam. “Isso aconteceu pela desordem
total em que o país mergulhou com a ocupação americana, com a ausência de uma
autoridade que controlasse os crimes e porque a sede dos registros imobilários foi
bombardeada, destruindo todos os documentos oficiais das propriedades.”
Em todo o Iraque vivem 35.000 palestinos. O governo de Saddam Hussein com-
prou, alugou ou cedeu apartamentos do Estado para esses refugiados. Mas mui-
tos iraquianos se sentiam ressentidos com tal tipo de apoio e tudo explodiu em
abril com a queda do regime. E agora os iraquianos, que se dizem proprietários
dos apartamentos, estão expulsando os palestinos, “os estrangeiros”. Em Baladiat
vivem, em tendas como a de Hamami, 1.310 pessoas.
Amar, Hamami, Salah, Rakhia e seus filhos são aquilo que em todas as guerras
aparece depois da “vitória e dos acordos de cessar-fogo”. É o inevitável e o oculto,
é o horror e a injustiça, tudo ao mesmo tempo, tudo acumulado. É aquilo que os
generais, os fabricantes de bombas e criminosos em geral chamam de “efeitos co-
laterais de pouca gravidade” porque, mesmo tendo perdido tudo, ainda têm a au-
dácia de sobreviver. Eles são as conseqüências, tão previsíveis como comuns, da
história recente do país: 24 anos de ditadura com Saddam, oito anos de guerra
com o Irã, uma invasão frustrada ao vizinho Kwait, duas guerras promovidas pela
maior potência militar do mundo, doze anos de embargo... Eles sobrevivem.
A GUERRA NÃO TERMINOU
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CAROS AMIGOSJ U L H O2 0 0 3 27
PROIBIDOS DE ENTRAR, DUAS VEZESSomos três no carro: Addul Munam Al-Fadili, motorista
iraquiano, Matt Corner, fotógrafo italiano, e eu. É começo
de junho, estamos em Al Karama, posto de fronteira entre a
Jordânia e o Iraque. Essa é a nossa terceira tentativa de che-
gar a Bagdá, depois de termos sido proibidos duas vezes pe-
los soldados americanos, nesse mesmo lugar. É final de tar-
de, o sol vai sumindo devagar no deserto. A temperatura
deve estar acima dos 40 graus.
Faltam apenas alguns carros, não mais que 30 metros
para chegarmos à guarita principal do posto da fronteira,
para termos, de um soldado qualquer, uma resposta: “Não,
vocês não podem passar”. Ou: “Sim, sigam viagem”. A fila,
como sempre nessas horas, não anda. O tempo não passa.
Tento manter a tranqüilidade. O motorista iraquiano
não sabe das nossas duas outras tentativas. Não sabe que
somos os únicos dois, de um grupo de 42 ativistas, a tentar,
uma vez mais, cruzar a fronteira. E nessa espera lembro as
coisas que aconteceram nos últimos dias. Lembro a chega-
da a Amã, capital da Jordânia, na madrugada de 30 de maio.
Estava acompanhando a associação Ya Basta, grupo de ati-
vistas italianos que, de Gênova a Ramallah, de Chiapas a
Porto Alegre, vem desobedecendo as leis internacionais da
resignação política e da indiferença coletiva.
“Na Palestina, como no Iraque, a paz com justiça e dig-
nidade passa através da autodeterminação e do protagonis-
mo direto dos cidadãos. Foi para reafirmar isso que organi-
zamos essa viagem”, dissera Vilma Mazza, porta-voz da as-
sociação Ya Basta. “Nossos objetivos: reafirmar uma diplo-
macia de baixo, fruto das relações horizontais entre as co-
munidades, rejeitar qualquer militarização da solidariedade
e criar projetos de cooperação.”
O motorista nos oferece um cigarro, tenta puxar conver-
sa, mas não consigo pensar em outra coisa. E continuo re-
capitulando. 31 de maio: Partimos de Amã, com os ativis-
tas, em direção a Bagdá. Depois de percorrer 400 quilôme-
tros pelo deserto, chegamos à fronteira com o Iraque. Os
soldados nos fazem esperar seis horas, para dizer com sor-
risos e metralhadoras nas mãos que o “alto comando das
forças da coalizão” não permitiu nossa entrada no Iraque. É
a primeira caravana impedida de passar desde a “conquista”
do país. Voltamos a Amã. Outros 400 quilômetros.
No dia seguinte, depois de pressões diplomáticas atra-
vés da embaixada italiana na Jordânia, depois de termos
passado para o “alto comando” uma lista com os nossos
nomes e objetivos, conseguimos uma autorização assi-
nada por um tal de David Keefe. Com esse papel, não há
receio de uma nova expulsão. Dois dias depois, estamos
todos lá, outra vez. Os soldados da fronteira olham o do-
cumento, dizem que sentem muito, mas que ninguém
avisou nada e eles precisam de uma confirmação. “Não
vai demorar”, dizem. Passam uma, duas, três horas... Ou-
tra vez, 42 pessoas, no meio do deserto, esperando.
Depois de quase sete horas, vem a resposta, definitiva.
“Não, o grupo dos senhores, grupo antiglobalização, não
tem autorização”, diz o coronel Dantzler, completando a
frase, em tom muito civilizado: “Se em cinco minutos vo-
cês não tiverem sumido daqui, vamos disparar”. No mes-
mo instante, três jipes rodeiam os ativistas e apontam as
metralhadoras. Outros soldados, armados até os dentes, se
aproximam. O grupo decide fazer resistência passiva. “Se
vocês querem nos expulsar, terão de nos levar, à força.” E
assim foi. As 42 pessoas se sentaram à frente dos jipes. Os
soldados, atônitos, decidem carregar um por um dos ati-
vistas, segurando-os pelas pernas e pelos braços. Muitos
empurrões, alguns hematomas, mas nenhum ferido grave.
O grupo parte em direção aos territórios palestinos no
dia seguinte. Mas é impedido, dessa vez pelas autoridades
israelenses, de cruzar a fronteira. Matt e eu seremos os
únicos a tentar de novo entrar no Iraque. Em Amã, fomos
atrás de uma permissão de entrada através do governo jor-
daniano. Um dia inteiro de ministério em ministério, da
polícia militar à polícia secreta, do Ministério do Interior
ao da Informação, para termos uma “carteira azul” que va-
leria como visto de entrada. O medo era que os soldados
estadunidenses vissem a lista com os nomes dos ativistas
e proibissem nossa entrada pela terceira vez.
– Passaporte, por favor – pede o militar.
Levo um susto. Estou de novo naquele posto de fronteira.
Quando Matt entrega seu passaporte italiano, o soldado
chama um outro militar, aos berros:
– Sir, there is an italian here.
Imagino ter que pegar outra vez a estrada de volta. O sol-
dado vem em passos lentos.
– Vocês participam de alguma organização?
– Não, somos jornalistas.
– Para onde vão?
– Bagdá.
Mostramos a “carteira azul”, credencial do governo jor-
daniano. O soldado a examina com atenção. Antes de res-
ponder, encaro-o pela primeira vez. Parece um menino, não
deve ter mais de 20 anos. Ele olha de novo nossa creden-
cial, examina o interior do carro e fala:
– Tudo bem, podem passar, tenham uma boa viagem.
“MADE IN USA” Um monumento de 5 metros de altura, em azulejo, com
o desenho todo depredado de Saddam Hussein, decora o
posto de fronteira. Essa é a imagem para quem entra no Ira-
que. Mas, para quem sai do país, o verso desse painel está
intato. E lá está o ditador, sem arranhões. Não consegui des-
cobrir por que os militares conservaram esse lado.
Alguns metros depois da fronteira, vejo no acostamento
um mundaréu de gente, estão vendendo gasolina e diesel,
em pequenos recipientes. Addul, nosso motorista, explica:
“Está faltando combustível nos postos e, quando tem, for-
mam-se filas imensas. Então, essas pessoas compram e re-
vendem para aqueles que não querem pegar filas. São os
efeitos da guerra”.
A excelente qualidade das estradas é a primeira coisa
que se percebe ao entrar no Iraque. Quatro pistas para ir e
outras quatro para voltar. Uma diferença gritante em rela-
ção às estradas da vizinha Jordânia, de mão dupla, esbura-
cadas e mal sinalizadas. “Saddam não foi de todo ruim”, diz
Addul . “Estradas ele sabia fazer.”
Nosso motorista, de 28 anos, é um tipo simpático e inte-
ligente. Gosta de conversar: “Os Estados Unidos vieram
aqui por causa do petróleo, mas isso vai acabar sendo bom
para o país, porque nos livrou de Saddam, que é um crimi-
noso. Agora temos a possibilidade de ter um contato maior
com o mundo, com outras culturas. Com Saddam, tudo gi-
rava em torno de guerras e da luta do povo palestino. Ago-
ra vai ser diferente. Daqui a cinco anos, o Iraque será um
país melhor”. Para ele, “não deixa de ser um paradoxo o di-
tador ter caído pelas mãos dos Estados Unidos, as mesmas
mãos que o criaram. Todos os iraquianos sabem que Sad-
dam é made in USA”, afirma.
Pouco tempo depois paramos no estacionamento de
um restaurante, junto com outras centenas de pessoas.
“Vamos passar a noite aqui porque ninguém dirige à noi-
te no Iraque. É muito perigoso. Por causa da guerra, uma
granada passou a custar apenas 1 dólar, todo mundo
anda armado e os assaltos na auto-estrada são freqüen-
tes”, explica Addul.
OS ESCOMBROS Chegamos às 10 horas da manhã em Bagdá. Addul segue
viagem até sua casa, em Karbala, cidade santa xiita. É lá que
está enterrado o imã Hussein, neto do profeta Mohammed,
assassinado em 680 d.C. No Iraque, mais de 70 por cento da
população são xiitas. De 20 a 30 por cento são sunitas e me-
nos de 5 por cento são cristãos. São quase 20 milhões de
árabes, mais de 4 milhões de curdos e 500.000 turcomanos,
divididos em 150 tribos.
Matt e eu ficamos no centro da capital, à procura de um
hotel. Uma rápida caminhada às margens do rio Tigre nos
dá uma noção do poder de destruição das bombas. Passa-
mos pelos ministérios da Informação, da Saúde, das Rela-
ções Exteriores, do Planejamento... tudo destruído. O único
edifício estatal que não foi atingido é o do Petróleo. O resto,
são escombros. Passamos em frente do Museu Arqueológi-
co e da Biblioteca Nacional, ambos saqueados pela popula-
ção, logo depois da tomada de Bagdá, com a cumplicidade
e o estímulo das forças americanas. Lembro a frase do res-
ponsável pelo Pentágono, durante os saques: “Mas quantos
vasos vocês pensam que possam existir em Bagdá?” E do
desprezo do secretário americano da Defesa, Donald Rums-
feld: “Tudo isso é um fenômeno temporário, devido a um
pouco de desordem”. E lá se foi um pouco da nossa história.
O trânsito em Bagdá se parece com carrinhos de choque
dos parques de diversão. Carros na contramão, buzinas, aci-
dentes. Não existem sinal nem guardas. Depois das 9 da
noite ninguém pode sair pelas ruas, por causa do toque de
recolher. Os crimes se multiplicam. A desordem continua. É
só o começo.
E diante do caos, impassíveis, por todas as esquinas, es-
tão os soldados do império. Os tanques Abrams se mistu-
ram aos velhos e caquéticos Passats made in Brazil. O som
dos helicópteros Apache é tão comum quanto os versos de
lamúria que ecoam das mesquitas. E a alegria de grande
parte da população, com a queda da ditadura, é proporcio-
nal ao desconforto pela presença das tropas estrangeiras.
HISTÓRIAS COMUNSPerto da praça Firdaws, famosa pela estátua de Saddam
arrancada no dia 9 de abril, encontramos Salima Jassin, ira-
quiana, de 48 anos. Ela veio nos pedir dinheiro, ritual co-
mum nas ruas de Bagdá, e nos contou a sua história.
Salima é mãe de cinco filhos. O mais velho foi assassinado
em 1999 pela Mukharat, polícia secreta. No ano seguinte foi
Salima Jassin, marido e filho mortos pela polícia secretade Saddam
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a vez do marido. Três homens do Baath (partido único, esta-
va no poder desde o golpe de Estado de 1968) entraram em
sua casa, seqüestraram o marido e durante um ano o tortu-
raram na cadeia... depois o mataram. “Quando o vi, pela úl-
tima vez, estava cheio de marcas de queimaduras de cigarro
no corpo. Já não parecia ele.” Salima, vestida toda de preto,
rosto semicoberto, fala sempre baixinho, como se tivesse
vergonha, como se não quisesse ser ouvida: “Por isso, por
tudo que passei, digo aos americanos: sejam bem-vindos”.
Depois de alguns dias no Iraque, essas histórias vão fi-
cando terrivelmente comuns.
Logo em seguida e também por acaso, encontramos Ab-
dul Magid Moahamed, engenheiro de aviação, pai de sete fi-
lhos. Ele também contou a sua história e essa foi a primeira
coisa que percebi a respeito do povo iraquiano: são disponí-
veis, gostam de conversar, são carinhosos. É um povo terno,
incapaz de dizer “agora não posso, não tenho tempo” e é,
como já imaginava, um povo apaixonado pelo Brasil. Quan-
do disse a Abdul que era brasileiro, ele respondeu, com os
braços abertos: “Um dos países mais lindos do mundo...
mas, escuta, você não tem medo de morar lá? O Rio de Ja-
neiro é muito violento, não é?”
Fiquei sem resposta. Não sabia o que dizer, dei um sorri-
so, retribuído com um abraço.
Comecei a viagem com o pé direito. Mal acabara de che-
gar e já me sentia em casa. Abdul continuou a nos contar
o que aconteceu: “Eu trabalhava no aeroporto da capital,
fechado durante a guerra de 1991. Fiquei desempregado
até conseguir uma vaga de segurança no hotel Palestine
(onde estava hospedada a imprensa internacional durante
o conflito). Meus filhos já passaram fome, o que ganho nes-
se emprego não é suficiente para sustentar toda a família.
Mas agora, sem Saddam, com o aeroporto funcionando,
talvez eu volte a fazer o que sei, o que gosto”.
Ao ser questionado sobre a ocupação americana, Abdul
responde: “Os Estados Unidos vieram prometendo ao povo
liberdade, democracia e direitos humanos. Até agora são só
palavras. Prometeram trazer comida e remédios depois da
guerra, mas nada chegou. Vieram aqui por causa das armas
de destruição em massa. Mas onde estão essas armas?”
No dia 27 de maio, Donald Rumsfeld respondeu a
questão de Abdul: “É possível que os iraquianos tenham
decidido destruir as armas antes do conflito”. Na semana
seguinte foi a vez do general James Conway, o todo-pode-
roso líder dos marines: “Nós simplesmente nos engana-
mos”. A razão da guerra, como o mundo inteiro sabia, não
passou de uma das “maiores menti-
ras de Estado dos últimos anos”,
como definiu o jornal francês Le
Monde. Mesmo assim, os Estados
Unidos não se rendem: o Pentágono
enviou 3.000 homens ao Iraque para
procurar as tais armas de destruição
em massa, oferecendo uma recom-
pensa de 200.000 dólares para quem
as encontrar.
Nada disso importa agora. Tam-
bém não importam os 5.500 civis ira-
quianos mortos durante o conflito, se-
gundo relatório divulgado no dia 13
de junho, pela ONG Iraq Body Counts.
A questão é definir como as empresas
americanas farão a reconstrução e o
quanto isso tudo vai render. Ainda no
dia 26 de maio, o administrador do
Iraque, Paul Bremer (imposto pelos
EUA), disse: “O país está aberto aos
negócios”. E, afinal, é disso que se tra-
ta e o resto é paisagem.
Despedimo-nos de Adbul, com abraços e beijos, como se
fôssemos amigos de longa data. “Não se esqueça de dar um
abraço apertado no Brasil por mim.”
DENTRO DO PALÁCIO Depois dessa maratona, nos hospedamos no Al Fanar,
hotel ao lado do Palestine e em frente ao rio Tigre. Assim
que chegamos, a luz se foi. “Vai e volta sempre, mas temos
geradores”, disse o recepcionista. “O país está assim, mas já
esteve bem pior.”
No dia seguinte, assim que Matt e eu colocamos os pés
fora do hotel, fomos abordados por um tipo estranho. “Vo-
cês precisam de um táxi? Eu tenho. É o melhor preço de
Bagdá. No problem, it’s all free, american is good.” “Quanto
custa, pelo dia todo?”, perguntamos. E ele: “No problem, 10
dollars”. “Onde está o carro?” “É este aqui.”
O carro: metade do capô não existe mais, as portas do ca-
rona fazem a forma de um “U”, “por causa de um acidente
recente, em 1996”. O escapamento está caído, não existem
espelhos retrovisores, o vidro traseiro está rachado e os vi-
dros não abrem, não existem maçanetas... “E o freio, o freio
funciona?”, pergunto, entre a brincadeira e o pânico. Ele não
respondeu. Fomos.
Nosso primeiro destino: os arredores dos antigos palá-
cios de Saddam, hoje quartéis das tropas dos Estados Uni-
dos. Lá, quase todos os dias ocorrem manifestações pací-
ficas contra a ocupação estrangeira. “Nem Saddam, nem
Bush”, “Estamos cansados de guerra”, “Chega de violência,
queremos viver em Paz” eram algumas das mensagens es-
critas, em inglês e árabe, nas faixas e cartazes carregados
pelos manifestantes naquela manhã. Entre eles, parentes
de quinze oficiais da polícia iraquiana, presos no sábado
anterior. “A justificativa é que eles estavam participando
de uma reunião do Baath. Mas, se os americanos forem
prender todo mundo que era do partido, as ruas vão ficar
desertas”, argumenta Saher Abdul Wahir, de 40 anos. Sa-
her era policial, ficou sem emprego e agora está aqui, em
frente aos soldados, com seu documento de identidade
nas mãos: “O que vou fazer para sobreviver? Preciso com-
prar comida para os meus filhos”.
“Foram os americanos que criaram essa situação, são
eles que devem dar uma reposta, por isso estamos aqui”, fala
Abdwlah Rassoun. Ele ficou cego na guerra com o Irã, rece-
bia do governo uma indenização mensal que não existe
mais e por isso protesta, junto à multidão de desesperados.
Karim, nosso motorista, sugeriu que fôssemos aos palá-
cios, “para fazer fotos”. “Não é possível, não temos permis-
são”, tentamos explicar. E ele: “No problem, it’s all free, ame-
rican is good”. O cerco em torno dos antigos palácios é os-
tensivo. Mesmo assim, por insistência, resolvemos arriscar.
Na primeira barreira mostramos nossa “carteira azul” para o
militar e ele, surpreendentemente, autorizou-nos a entrada.
Dentro desse grande complexo, apenas alguns jipes milita-
res que vão e voltam. Quase todos os edifícios estão reduzi-
dos a escombros. Parece tudo abandonado. Na segunda bar-
reira, quase às portas do palácio principal, fizemos a mesma
coisa e tivemos a mesma resposta. O militar olhou nossa
“carteira” e disse: “Tudo bem, podem seguir”.
Uma placa improvisada, à entrada, indica que estamos
dentro da “assassin base”. “Assassin base! O mau gosto não
tem limite”, comenta Matt, enquanto faz as fotos. Minutos
depois, por causa de nosso motorista, estávamos na porta
principal da “base”. Subimos uma pequena escada e entra-
mos no palácio. Lá dentro, uns dez militares, todos jovens,
com roupa esporte, sentados numa mesa oval, discutindo.
Durante alguns minutos ficamos observando, sem que
ninguém nos perguntasse nada. Até a chegada de um jipe
do exército com um enfurecido militar que, a passos lar-
gos, veio em nossa direção: “Quem são vocês? Quem auto-
rizou a entrada? O que estão fazendo aqui?” Ao perceber
que não tínhamos autorização, que tínhamos entrado por
acaso e por engano, o militar chamou pelo rádio o respon-
sável da primeira guarita e o insultou numa seqüência de
palavrões incompreensíveis. Depois, fez a mesma coisa
com o responsável pela segunda guarita. Por fim, com a
mesma “delicadeza”, nos disse, aos berros: “Go away imme-
diately and take your fuckin’ pictures outside”. “Saiam ime-
diatamente daqui”, em tradução amena.
Nosso motorista tentou explicar alguma coisa ao militar
e obteve apenas uma sonora ameaça de prisão se não desa-
parecesse do local. “No problem, it’s all free, american is
good”, foi a resposta. E fomos embora.
ESCORPIÃO NO DESERTO Na tarde desse mesmo dia, encontramo-nos com a equi-
pe do Al-Muajaha, primeiro jornal editado em inglês e ára-
be no país, nascido logo depois da queda do regime, produ-
zido por estudantes. A sede do jornal é no segundo andar
de um prédio abandonado no centro de Bagdá. Pelo chão:
mochilas, meias, sapatos, um teclado de computador, gar-
rafas de água vazia, dois colchonetes, jornais velhos...
“Esta é a nossa sede. Sejam bem-vindos”, nos recebe, com
sorriso largo, o iraquiano Salam Onibi,
28 anos, um dos fundadores do Al-Mu-
ajaha. Ele está desenvolvendo uma de-
talhada pesquisa sobre o que pensa e
sente a população no pós-Saddam. “A
grande maioria dos entrevistados se
diz feliz com a queda da ditadura. As
pessoas, depois de décadas vivendo
amordaçadas, têm a esperança de que
suas vidas melhorem. Ao mesmo tem-
po, 99 por cento dizem que agora é
hora de as forças estrangeiras deixa-
rem o país e esse sentimento vem au-
mentando porque os americanos estão
prendendo muita gente, estão blo-
queando estradas sem motivo, estão
dificultando a vida das pessoas.”
O americano Ramsi Kisya, membro
da organização Voices in The Wilder-
ness e também um dos fundadores do
Al-Muajaha, argumenta: “Os america-
nos, depois da guerra, ficaram respon-
sáveis pela eletricidade, higiene, segu-Manifestação pacífica contra a ocupação do país, cena cada vez mais freqüente
Evangelista - 76 28.06.03 4:55 PM Page 28
rança etc., mas não sabem como gerir
esses serviços, não têm uma idéia clara
do que fazer e isso cria o caos”. Ramsi
chegou no Iraque em novembro do ano
passado e, durante a guerra, o governo
o expulsou sob a acusação de espiona-
gem. Agora está de volta, trabalhando
dia e noite no jornal. Ele continua:
“Quanto mais tempo os militares es-
trangeiros ficarem aqui, mais proble-
mas vão criar, mais resistência vão ter
de enfrentar e a situação pode ficar in-
sustentável”.
As afirmações de Ramsi fazem eco
ao que disse, em entrevista à BBC, o
brasileiro Sérgio Vieira de Mello, repre-
sentante da ONU para o Iraque: “Falta
clareza por parte dos Estados Unidos
sobre qual é a melhor forma de enca-
minhar o processo político”. Ao aceitar
o cargo, Mello afirmou que sua grande
missão, nos quatro meses em que esta-
rá no país, será garantir a segurança da
população, “porque sem segurança não há possibilidade de
qualquer transformação política”.
Mas os fatos comprovam que, até agora, a resistência e
a violência vêm aumentando, deixando a população cada
vez mais vulnerável. Desde o dia 1o de maio, quando Bush
anunciou “o fim das hostilidades”, até as primeiras sema-
nas de junho, mais de cinqüenta militares americanos
morreram. Diversas fontes, porém, apontam para um nú-
mero de mortes muito mais elevado. Os soldados, por sua
vez, nesse mesmo período, assassinaram mais de cem ira-
quianos e prenderam outros quatrocentos, na chamada
operação Escorpião no Deserto. As cidades onde se con-
centram essas ações, além da capital, são Tikrit, cidade na-
tal de Saddam, Kirkuk, cidade no norte do Iraque, rica em
petróleo, e Falluja, a 70 quilômetros de Bagdá, o símbolo da
resistência contra a ocupação estrangeira.
Para ter uma idéia, só no dia 24 de junho, mais de 25 ata-
ques contra as forças de ocupação foram registrados, provo-
cando a morte de três soldados americanos, seis soldados
ingleses e cinco iraquianos. Tudo isso, acompanhado de um
blecaute de 24 horas em Bagdá. E foi só um dia.
O general David Mckiernanm, comandante das tropas
de terra dos Estados Unidos, justifica a violência da opera-
ção como sendo a condição necessária para “erradicar as
forças subversivas fiéis ao antigo regime”, mas reconhece
que “com 150.000 homens não se pode controlar um país as-
sim, do tamanho da Califórnia” .
Um desses 150.000 soldados chama-se Adriano Jesus
Santana e tem 20 anos. Ele está há um mês em Bagdá e vai
ficar, em princípio, mais seis. Adriano é simpático, jeito
simples, sorriso fácil. Filho de mãe argentina e pai cubano,
nasceu em Buenos Aires e com 5 anos foi morar em Miami.
“Vim para o Iraque para conhecer um pouco mais do mun-
do e ter um pouco de ação”, confessa. “Estou representan-
do os Estados Unidos, mas meu coração é sul-americano.”
Enquanto conversamos mostra o brasão desenhado na far-
da. “É a espada e o canhão, em cruz. A espada quer dizer
precisão, disciplina, e o canhão, força, coragem. Esse é o
brasão do primeiro Batalhão de Infantaria, o mais impor-
tante do exército”, revela, orgulhoso.
O NOVO IRAQUE... PARA POUCOS Durante a noite é comum ouvir os ecos dos combates:
tiros de metralhadora, gritos, carros e ambulâncias em alta
velocidade. De manhã, a conversa é sempre a mesma: hoje
foi abatido um F-16, um oleoduto explodiu, um tanque foi
atacado, prenderam centenas em Kirkuk, mataram tantos
em Balad. É a rotina iraquiana. Rotina de guerra.
Mas nem tudo se resume a essas estatísticas de morte.
Depois da queda de Saddam e seu regime, de seus símbolos
e estátuas, agora mudam também os nomes das ruas, ave-
nidas, pontes e bairros que homenageavam o todo-podero-
so. E mudam também os hábitos. Uma dessas “transforma-
ções” está na infinidade de lojas instaladas, de uma hora
para outra, vendendo um novo e cobiçado produto: antenas
parabólicas.
Durante a ditadura existiam apenas três canais, todos
do Estado. As parabólicas eram proibidas e a pena para
quem fosse descoberto com uma era de seis meses de pri-
são. Ali Al-Shabibi, 35 anos, é proprietário de uma dessas
lojas, no centro de Bagdá. “Essa é a grande novidade do
país. Estamos vendendo de quinze a vinte parabólicas por
dia”, conta. Seu filho, Mohamed, 11 anos, vestido com o
uniforme completo da seleção brasileira de futebol, acres-
centa: “Esse é o novo Iraque”. Mas é novo para quem tinha
algum dinheiro guardado, para quem não dependia das
estruturas do Estado, para quem sempre esteve bem. O
novo Iraque ainda é para uma minoria.
Ao lado da loja de Ali e suas parabólicas fica um discre-
to estúdio fotográfico que, logo depois do fim da ditadura,
entrou em reforma. A fachada e os cartões comerciais es-
tão sendo modificados. O proprietário, Aziz Amin, 65
anos, é caloroso e solícito, bem-humorado e atencioso,
como a maioria dos iraquianos. E, como todos nesse perío-
do pós-ditadura, tem necessidade de compartilhar o que
passou. “Este estúdio se chamava Ritz”, explica, “mas o go-
verno disse que tinha de ser um nome árabe, por isso fui
obrigado a trocar. Agora, mais de duas décadas depois, vol-
ta a ter o nome que tinha, o seu nome verdadeiro.” Nas pa-
redes, fotos em preto-e-branco de Londres. “Eu ia sempre
à Inglaterra, sempre gostei muito de viajar, mas com a di-
tadura eu não podia. Agora, quem sabe eu possa voltar e
fazer outras fotos, ainda mais bonitas.”
Em seguida, Matt e eu fomos a Salman Park, a 22 quilô-
metros de Bagdá, onde dias antes foram encontrados seis
corpos de desaparecidos políticos. Lá encontramos Karim
Hamid, de 70 anos. Em novembro de 1980, seus dois únicos
filhos saíram de casa juntos. O mais velho, engenheiro, esta-
va indo ao trabalho. O mais novo, à universidade. Nunca
mais foram vistos. Eles, como o marido de Salima Jassin, ne-
garam-se a entrar para o Baath. “Em 1991, soube que os
meus filhos estavam presos na sede da polícia secreta, mas
não obtive nenhuma confirmação”,
conta. O pior da guerra é a falta de res-
postas.
Agora Karim está aqui, com familia-
res de outros desaparecidos, à espera
das escavadeiras. Entre a população
corre o boato de que existe uma vala
comum com mais de quatrocentos
corpos. O velho Iraque.
A CATÁSTROFE SILENCIADA O pior da guerra é o depois. Depois,
quando não há mais gritos, nem pâni-
co, nem medo, nem nada. Quando
tudo se foi e a única coisa que fica, o
resto que fica, é a espera da reconstru-
ção, a espera de uma ajuda que não
veio nem virá. O pior da guerra é aqui-
lo que não se soube, aquilo que não foi
visto.
A história de Mohamed Kadun, de
30 anos, não foi vista. Ninguém sou-
be. Ele mora em Al Wardhia, 40 qui-
lômetros ao sul de Bagdá. Em abril passado, logo depois
da queda do regime, Kadun e outras pessoas saquearam
a fábrica que ocupa mais da metade do seu vilarejo. Eles
entraram num depósito e encontraram quarenta barris,
todos cheios de um “pó estranho”. Esses barris, na terra
onde tudo falta, para uma população que faz de qualquer
objeto uma coisa útil para sobrevivência, serviria para os
afazeres domésticos: depositar a água para o banho das
crianças, cozinhar, guardar objetos etc. E assim foi.
Eles despejaram o pó no chão e carregaram os barris para
suas casas. Kadun lembra que era um dia atípico: “Ventava
muito”. Duas semanas depois, soldados americanos ofere-
ciam 3 dólares por cada barril. No dia seguinte, um grupo de
médicos, também americanos, estava no local, “fazendo
perguntas e nos examinando. Os médicos disseram que vol-
tariam em breve, mas nunca mais aparecerem”, conta. To-
dos os avisos de perigo sobre aquele material, tudo naquele
depósito estava escrito em inglês. De modo que Kadun e
seus amigos foram os últimos a saber que aquele pó era um
yellow cake (bolo amarelo), uma espécie de urânio, material
altamente radiativo.
O urânio estava no Centro de Pesquisa Nuclear, um dos
departamentos dessa fábrica que, na verdade, era a sede da
Organização de Energia Atômica Iraquiana. E foi ali que Ka-
dun e outras pessoas entraram. E ali, segundo especialistas,
existiam toneladas de yellow cake guardadas em barris,
além de uma grande quantidade de urânio oxidado. Desde
1991, esse material estava sob vigilância da Agência Interna-
cional de Energia Atômica. Mas, desde março de 2003, por
causa da guerra, não se soube mais nada a respeito dele. Tra-
balhavam nesse centro de pesquisa mais de 3.500 pessoas.
Ninguém sabe o que acontecerá com Kadun e seus fi-
lhos. Um dos mais graves efeitos da contaminação radiativa
é o dano genético, condenando gerações futuras. Mas quem
se importa? Os grandes jornais ignoraram o ocorrido.
O pior da guerra é quando o inimigo se foi, quando as te-
levisões se foram, quando se foram os ativistas pela paz, as
ajudas humanitárias, quando não existem mais políticos a
discursar, povo a aplaudir, quando não existem mais os de-
bates nem jogos diplomáticos, nem analistas de plantão,
nem intelectuais de gabinete. O silêncio. Como se tudo
aquilo tivesse terminado. Mas o pior da guerra, o pior mes-
mo, é que ela não acaba, não acaba nunca.
Fernando Evangelista é jornalista.
E-mail: [email protected]
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Mohamed, 11 anos, fã absoluto do futebol brasileiro, posa diante da loja do pai
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