Outros Tempos

Volume 8, nmero 12, dezembro de 2011 Dossi Histria Atlntica e da Dispora Africana

269

LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeas: marinheiros, escravos, plebeus e a histria oculta do Atlntico Revolucionrio. So Paulo: Companhia das Letras, 2008. 440p. Sabrina Fernandes Melo Mestranda PPGH/UFSC Bolsista CAPES sabrina.fmelo@gmail.com

O livro A hidra de muitas cabeas, publicado pela Companhia das Letras em 2008, o resultado do trabalho em conjunto de dois historiadores: Peter Linebaugh e Marcus Rediker, ambos especialistas em estudos sobre o Atlntico colonial e histria do trabalho. Peter Linebaugh um historiador marxista especialista em Histria da Inglaterra com estudos direcionados ao Atlntico colonial e histria do trabalho. Lecionou nas Universidades de Harvard, Boston e Rochester, atualmente professor na Universidade de Toledo. Uma de suas obras de destaque Fatal Tree: Crime and Society in Eighteenth-Century England (1975). Marcus Rediker historiador, escritor e ativista americano. Assim como Peter, tambm inspirado pelo pensamento do historiador ingls Edward Palmer Thompson, o que culmina em sua deciso por aprofundar-se nos estudos da classe operria em Londres, inspirando-se tambm em Malcom-X1, tornando-o uma das chaves para o entendimento e estudo do panafricanismo radical. Rediker lecionou na Universidade de Georgetown e atualmente professor emrito de Histria do Atlntico e presidente do Departamento de Histria na Universidade de Pittisburg. O autor possui diversas obras sobre o Atlntico trabalhista e histria martima, dentre elas O navio negreiro: uma histria Humana (2011). Em A hidra de muitas cabeas, os autores analisam a histria oculta do Atlntico durante os sculos XVII e XVIII a partir de uma abordagem sobre a negligenciada histria dos trabalhadores, dos excludos, dos vencidos. A classe trabalhadora estudada no livro ampla e heterognea em muitos sentidos: localidade, lngua, etnia, condio social, diversidade cultural. Nela se incluem escravos, plebeus, piratas, marinheiros, ndios, dentre1

Al Hajj Malik, mais conhecido como Malcom X, liderou o movimento negro entre as dcadas de 1950 e 1960 nos Estados Unidos.

Outros Tempos

Volume 8, nmero 12, dezembro de 2011 Dossi Histria Atlntica e da Dispora Africana

270

outros. Segundo os autores, tais personagens foram essenciais no desenvolvimento do capitalismo europeu, alm de desempenharem importantes funes para o empreendimento colonial ingls. Em contrapartida, os autores apresentam os entremeios do empreendimento capitalista, seus atores, suas propostas, suas aes e principalmente sua violncia na implantao de um sistema baseado na explorao e no terror. O ponto de partida da obra o Radicalismo Ingls do sculo XVIII e suas primeiras aes para a organizao do sistema colonial e para a formao das instituies necessrias expanso desse empreendimento. O grande insight de Rediker e Linebaugh est na percepo de que o Atlntico no foi apenas um local de passagem, foi tambm um espao de lutas, de conexes e de resistncias, pois, em meio ao Atlntico, encontraram-se proletrios de diferentes origens, culturas, etnias e religies que compartilharam experincias e muitas vezes participaram dos mesmos movimentos de resistncia. Na tentativa de homogeneizar a massa proletria, os governantes associados ao empreendimento colonial ingls utilizaram-se do mito de Hrcules e da Hidra para simbolizar a dificuldade de impor um sistema de trabalho global a essa gama to diversificada de trabalhadores. Hrcules representava os dirigentes e os colonizadores, a Hidra de muitas cabeas representava os colonizados, os trabalhadores, os pobres, os menos favorecidos. partindo desse mito que Linebaugh e Rediker analisaro as origens, as caractersticas e as lutas dessas mltiplas cabeas da Hidra no Atlntico. Influenciados pelo pensamento de Thompson, os autores buscam fazer uma histria vista de baixo, isto , uma histria dos oprimidos, das minorias, das manifestaes populares como parte importante para o entendimento da histria. Na obra os autores fazem um resgate da multiplicidade de experincias de opresso, violncia e dominao em diferentes cenrios, geralmente em locais ou instituies de controle (instituies totais) como navios, prises, plantations, terras comunais, fbricas, espaos que tambm eram de sociabilizao e mobilizaes entre diferentes povos e culturas. A obra divide-se em nove captulos, sempre marcados por uma intensa conexo entre historiografia e poltica. No primeiro captulo, O naufrgio do Sea Venture, traado um paralelo entre o naufrgio do navio Sea Venture e a pea de Shakespeare, A Tempestade, de 1611, apresentando uma hiptese do possvel acesso de Shakespeare aos relatos de bordo de Willian Straky. O Sea Venture fazia parte de um comboio de oito navios recrutados pela Companhia da Virgnia que partiam da Inglaterra rumo Amrica; sua tripulao era formada pelas classes excludas da Inglaterra, aqueles que no possuam terras ou vnculos trabalhistas, ou seja, plebeus, operrios urbanos, soldados e marinheiros.

Outros Tempos

Volume 8, nmero 12, dezembro de 2011 Dossi Histria Atlntica e da Dispora Africana

271

No caminho, o navio se desvia do comboio e naufraga no arquiplago das Bermudas, sua tripulao fica por trs meses ilhada e parte dela se rebela formando quilombos - neste caso, o conceito de quilombo remete a um assentamento diversificado, misto, heterogneo, multicultural, mesmo porque tal termo no est vinculado apenas questo racial e tnica. Muitos tripulantes se rebelaram e formaram quilombos devido abundncia de gua, comida, frutas, terra para todos, alm da possibilidade do cio, o trabalho no era necessrio, situao que seria muito diferente na Virgnia. Muitos dos tripulantes haviam escutado relatos da fome, do excesso de trabalho e da explorao em que viviam os colonos na Amrica. A situao era to crtica que muitos colonos optavam pela fuga, abandonavam suas terras e se juntavam aos ndios. Por isso, devido abundncia de comida e gua, diviso de terras e do trabalho compartilhada nesta ilha, muitos tripulantes associavam o arquiplago ao Paraso, alm de fazerem analogias s terras comunais das quais muitos deles foram expropriados na Europa. Ainda em relao ao primeiro captulo, o naufrgio ali descrito utilizado para consolidar quatro temas presentes nas origens e no desenvolvimento do capitalismo do sculo XVIII: a) a expropriao a partir do desenvolvimento capitalista e da competio imperialista, a Companhia da Virgnia foi uma das instituies responsveis pelas expropriaes e pelo translado da populao campesina; b) as lutas por modos alternativos de vida busca pelo retorno das tradies das terras comunais, aspecto de um modo de vida que muitos marinheiros levaram para territrio americano; c) os padres de cooperao e resistncia unio de diferentes classes em busca de objetivos comuns; d) por fim, a imposio de disciplina de classe os dirigentes da Companhia da Virgnia implantam a fora e o terror no intuito de alcanar disciplina de trabalho. Para a construo desse captulo so utilizados relatos de viajantes, documentos administrativos da Companhia da Virgnia e obras literrias como A Tempestade, de Shakespeare. No segundo captulo, Rachadores de lenha e tiradores de gua, so retomados argumentos de importantes intelectuais ingleses do sculo XVIII como Francis Bacon e Walter Raleigh. So apresentadas as interpretaes desses intelectuais sobre o mito da hidra nas quais Bacon associa Hrcules ao intelecto, mente e considerava que o homem estava no centro do mundo. Alm disso, Bacon desenvolveu a teoria da monstruosidade, na qual comparava alguns grupos de pessoas a enxames ou cardumes. Para sustentar sua teoria, recorre antiguidade clssica e bblia, denominando estes sete grupos como candidatos ao extermnio: antilhanos, cananeus, piratas, salteadores, assassinos, amazonas e anabatistas. Embora os dois primeiros captulos se relacionem com o incio da investida colonial, o segundo mais descritivo no que tange s funes dos cortadores de lenha e tiradores de

Outros Tempos

Volume 8, nmero 12, dezembro de 2011 Dossi Histria Atlntica e da Dispora Africana

272

gua, profisses que eram consideradas menores, desprezveis e, como se isso no bastasse, eram vistas como maldio ou castigo pelos prprios trabalhadores. Os rachadores de lenha eram responsveis pela construo de portos e navios, executavam trabalhos de expropriao, drenagem dos pntanos e recuperao de brejos. Os tiradores de gua eram responsveis por manter diariamente as casas e abastec-las com gua. Essa funo era, na grande maioria das vezes, exercida por mulheres. Este captulo faz uma retomada da histria e das lutas de trabalhadores que atuaram em perodos importantes do empreendimento colonial, mas que em muitos momentos suas aes passaram despercebidas pela historiografia. Mais uma vez utilizado o mito da hidra, em que Oliver Crownel e a burguesia revolucionria so os responsveis pela transformao da hidra de muitas cabeas em tiradores de gua ou rachadores de lenha, ou seja, a analogia da Hidra aplicada a esses trabalhadores, que tambm eram partes das muitas cabeas da Hidra. J os captulos trs e quatro, Uma criada negra chamada Francis e A ramificao dos debates de Putney, respectivamente, podem ser enquadrados em uma segunda fase do processo de colonizao no Atlntico datado entre 1640 e 1680, onde ocorreu o aparecimento das primeiras colnias centrais e os calorosos debates entre soldados e oficiais do exrcito de Oliver Cromwell e a populao civil sobre a constituio, o sufrgio universal e o futuro da Inglaterra. O captulo trs, que tem como personagem principal uma criada negra chamada Francis, participante ativa dos debates realizados em sua igreja, representa a populao civil, parcela significativa nas discusses sobre direito e cidadania. Neste captulo, os autores partem de um nico documento escrito por Edward Terril - presbtero de uma Igreja em Broadmead - sobre a criada Francis em direo a diversas questes de cunho estrutural e tambm conjectural. A partir dessa fonte eles traam um perfil social da poca, abordando questes de raa, gnero, religiosidade, classe e dinmica social no contexto da Revoluo Puritana Inglesa. J o captulo quatro aborda a questo dos soldados rebeldes que para defender uma maior democracia assumiam os postos dos generais como forma de protesto. Linebaugh e Rediker mostram como a hidra levantou suas diversas cabeas em diferentes contextos, inclusive em debates polticos como foi o caso do ocorrido entre Oliver Cromwell, chefe dos oficiais do exrcito, e Tomas Rainborough, agitador de um grupo de soldados que lutavam por questes referentes s terras comunais e ao fim da escravido. O incio de uma nova etapa ocorre no captulo Hidrarquia: marinheiros, piratas e Estado martimo, marcando a guinada do sistema financeiro construdo para abarcar mercados atlnticos, alm da consolidao do capitalismo atravs da mediao dos Estados Nacionais, compreendendo o perodo de 1680 a 1760. O processo de Hidrarquia consiste na

Outros Tempos

Volume 8, nmero 12, dezembro de 2011 Dossi Histria Atlntica e da Dispora Africana

273

participao das organizaes de marinheiros na criao do Estado Martimo, onde a mo-deobra utilizada vinculava-se s seguintes atividades: a agricultura comercial, a produo artesanal, a produo de produtos manufaturados e a manuteno do barco, que funcionava como espao de sociabilizao e circulao de pessoas, sendo por muito tempo, segundo os autores, um dos principais motores do capitalismo. O captulo A horda heterognea na Revoluo Americana trata dos movimentos revolucionrios multitnicos, onde marinheiros, escravos e trabalhadores urbanos se agrupavam em lutas comuns relacionadas melhoria das condies de trabalho. Os dois ltimos captulos intitulados A conspirao de Edward e Catherine Despard e Robert Wedderburn e o Jubileu Atlntico abordam uma srie de revolues ocorridas a partir de 1790, alm de tratarem do rearranjo ocorrido nesses movimentos, que de locais passam a possuir carter universal, alm do relato da histria de um filho de uma escrava com um proprietrio de terras e a partir deste caso especfico os autores abordam questes sobre a abolio da escravido e a universalidade dos direitos humanos, no que tange questo da cidadania universal. Em suma, o livro transita entre os duzentos anos de histria do processo de fundao do capitalismo no mundo Atlntico e para tanto os autores utilizam conceitos, analogias, mtodos que servem para costurar todas essas histrias que culminam na elaborao de uma histria global, porm as abordagens no se fecham nesse espao onde conexes so elaboradas entre os dois lados do Atlntico. Para desenvolverem essa tese e sustentarem as argumentaes, Rediker e Linebaugh generalizam, ampliam e expandem questes que, muito possivelmente, seriam tratadas de maneira diferente por especialistas regionais e, talvez, com diferentes posturas metodolgicas e tericas. Nesse contexto, a obra se torna bastante polmica no campo historiogrfico, porque em diversos momentos do livro os autores utilizam conceitos considerados anacrnicos como, por exemplo, a formao de quilombos no mar, ou seja, nos navios e tambm em algumas ilhas como o j citado arquiplago, alm da definio do navio como motor do capitalismo. Nesse momento, a fora de trabalho humana desaparece. Na tentativa de sustentar a tese do Atlntico enquanto lugar de passagem, os autores generalizam, fazem uma histria total que busca enquadrar as diferentes lutas do perodo colonial na dicotomia oprimido e opressor, governantes e governados, Hidra e Hrcules. Portanto, o livro abre margens para um intenso debate na forma de escrita da histria, sobre a possibilidade da escrita de uma histria total, sobre o uso de conceitos ditos anacrnicos, sobre a imparcialidade do historiador na tentativa

Outros Tempos

Volume 8, nmero 12, dezembro de 2011 Dossi Histria Atlntica e da Dispora Africana

274

de defender uma tese e sobre as diferentes posturas metodolgicas, tericas e tambm polticas dos historiadores.