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1 Masarykova univerzita Filozofická fakulta Ústav románských jazyků a literatur Portugalský jazyk a literatura Kamila Koncová A CANÇÃO DO FADO UMA MÚSICA E VÁRIAS RAÍZES Bakalářská diplomová práce Vedoucí práce: Mgr. Maria de Fátima Néry – Plch 2011

A Historia Do Fado

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A Historia Do Fado

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1

Masarykova univerzita

Filozofická fakulta

Ústav románských jazyků a literatur

Portugalský jazyk a literatura

Kamila Koncová

A CANÇÃO DO FADO –

UMA MÚSICA E VÁRIAS RAÍZES

Bakalářská diplomová práce

Vedoucí práce: Mgr. Maria de Fátima Néry – Plch

2011

2

Prohlašuji, že jsem bakalářskou diplomovou práci vypracovala

samostatně s využitím uvedených pramenů a literatury.

3

Mé upřímné poděkování za věnovaný čas, cenné připomínky, vstřícnost a

velkou trpělivost při vedení mé bakalářské práce náleží Mgr. Marii de

Fátima Néry – Plch.

4

I. Introdução .............................................................................................................................. 6

II. Fado como expressão musical .............................................................................................. 8

2.1 As características gerais da canção do fado ..................................................................................... 8

2.2 O fado de Lisboa .......................................................................................................................... 11

2.3 O fado de Coimbra ....................................................................................................................... 12

2.4 O fado – canção propriamente portuguesa .................................................................................... 14

2.5 A canção do fado e os fadistas ...................................................................................................... 16

III. Origens da canção do fado ................................................................................................ 17

3.1 Introdução ao tema ....................................................................................................................... 17

3.1.1 O fado e o destino ...................................................................................................... 18

3.1.2 Os estudos da canção do Fado .................................................................................... 20

3.2.1 Tese provençal ........................................................................................................... 21

3.2.2 Tese marítima ............................................................................................................ 25

3.2.3 Tese árabe.................................................................................................................. 28

3.2.4 A tese afro-brasileirista .............................................................................................. 32

3.2.5 Outras hipóteses acerca da origem da canção do fado................................................. 38

IV. Os assuntos da canção do fado .......................................................................................... 41

4.1 Os temas comuns ......................................................................................................................... 41

4.1.1 O amor ...................................................................................................................... 41

4.1.2 A saudade .................................................................................................................. 42

4.1.3 O mar ........................................................................................................................ 43

4.1.4 O destino ................................................................................................................... 43

4.1.5 Outros temas .............................................................................................................. 43

4.2 Os temas da canção do fado lisboeta ............................................................................................. 44

5

4.2.1 Personagens populares ............................................................................................... 44

4.2.2 A tauromaquia ........................................................................................................... 44

4.2.3 A crítica social ........................................................................................................... 45

4.2.4 Os lugares .................................................................................................................. 46

4.3 Os temas da canção do fado coimbrão .......................................................................................... 46

V. Conclusão ............................................................................................................................ 47

VI. Bibliografia ........................................................................................................................ 48

6

I. Introdução

A canção do fado como expressão musical é qualificado como canção urbana popular de Lisboa.

No conhecimento geral este entrou como uma canção popular típicamente portuguesa.

No entanto, como canção urbana a canção do fado é conhecida só desde meados do século XIX, e

ganhou a sua fama internacional só desde os anos 50 do século XX.

Não há dúvida de que, antes de se estabelecer este valor nacional e mundial, esta canção teria que

passar por um processo de evolução, e isto é, desde as suas origens, pela sua forma de canção das

classes mais baixas, após o que entrou nos salões da aristocracia, antes de entrar nos grandes

palcos de teatro, nos cinemas e na televisão, tornando-se uma canção de fama nacional e

internacional.

Quanto à origem da canção do fado, é muito provável que esta remonte à épocas

anteriores à primeira metade do século XIX, passando por um processo evolutivo, antes de se

estabelecer a tal forma que é conhecida hoje.

Neste processo evolutivo, devido ao carácter cosmopolitano e heterogéneo da cidade de

Lisboa, teriam entrado muitos elementos culturais que, reunidos numa só comunidade, isto é, na

cidade de Lisboa, teriam dado origem à canção chamada Fado. Porém, por outro lado, esta

heterogeneidade dos elementos como que complica a situação aos investigadores e historiadores

na sua tentativa de revelar uma origem do fado que seja +única e verdadeira.

As origens da canção do fado é uma questão que sempre esteve no centro da discussão

dos investigadores do assunto devido à dificuldade de se chegar a uma definição certa e absoluta.

Sendo assim, costumam contentar-se com uma possível teoria, mais ou menos provável, que, em

geral, consta de uma síntese de alusões culturais, literárias e históricas.

São precisamente as origens do fado que vamos apresentar neste trabalho. Porém, em vez

de analisar as fontes históricas para dar uma nova e a mais verdadeira hipótese acerca das origens

da canção do fado, vamos apresentar as teorias já existentes, e isto é, as que se consideram mais

comuns, não esquecendo algumas das teorias menos reconhecidas que se consideram mais uma

contribuição ou fonte de influência do que uma teoria que explique a própria criação da canção

do fado. Ao descrever estas teorias ou alusões acerca do assunto, vamos basear-nos nos trabalhos

de investigação feitos, desde os primeiros estudos do princípio do século XX até os trabalhos de

autores contemporâneos.

7

Existem muitos estudos que têm como objectivo tentar descubrir as possíveis origens do fado:

há quem afirme que a canção de fado terá nascido a partir das cantigas dos marinheiros e que,

portanto, a canção do fado seja uma criação verdadeiramente portuguesa, representando uma

expressão da voz do povo lisboeta (ver mais o cap. 3.2.3).

Há outros investigadores que afirmam a canção do Fado ter evoluído a partir das cantigas

medievais e provençais (ver mais o cap. 3.2.1).

Outros são os que dizem que o fado gerou a partir dos dolentes cânticos do povo árabe,

residente na península desde o século VIII (ver mais o cap. 3.2.2).

Outras teorias apontam para a origem nascida sob a forma dos cantares de intermedio

entre as danças afro-brasileiras (ver mais o cap. 3.2.4).

O objectivo deste trabalho é, após uma breve apresentação do estilo musical da canção do

Fado, com a sua divisão básica que representa o tipo lisboeta e o coimbrão, descrever a

problemática associada às suas origens, após o que apresentamos os principais assuntos tratados

na canção do fado.

A primeira parte do trabalho, como já mencionámos, é dedicada à descrição da canção do

fado em termos das suas características gerais, musicais, temáticas e outras, descrevendo as suas

básicas variedades de Lisboa e de Coimbra, nomeando as principais diferenças entre si. Nos

seguintes sub-capítulos desta parte alude-se à importância da canção do fado para os portugueses

e para os próprios fadistas.

Como foi referido acima, a segunda parte, ou a parte principal do trabalho será dedicada à

apresentação das principais teorias sustentadas acerca das possíveis origens do fado, analisando

os principais estudos do assunto. Isto quer dizer que vai-se seguir uma história da canção do fado

desde a sua origem até o momento em que começou a ser considerada uma canção urbana,

entrando nas tabernas dos bairros de Lisboa.

Na primeira parte de cada capítulo dedicado a este tema será dada uma breve

apresentação de cada teoria, após o que se vão discutir os principais motivos que levaram os

defensores da respectiva «tese» a considerarem-na verdadeira, bem como se vão apresentar os

principais contra-argumentos, sustentados também por alguns investigadores deste assunto, que

reprovam as teses defendidas.

8

Para completar a descrição e a história primordial da canção do fado, apresentamos, de

maneira resumida, os principais assuntos tratados na canção do fado, tanto de Lisboa como de

Coimbra, com alusões a certas ligações de cada um deles com as teorias existentes apresentadas

anteriormente, tais como, por exemplo, a temática do amor e a tese provençal (ver mais os caps

3.2.1 e 4.1.1). A esta apresentação serão dedicada a última parte do trabalho.

Consideramos necessário notar que o objectivo principal do trabalho não é uma

enumeração de todas as teorias existentes sobre as possíveis origens do fado, nem uma resolução

da questão da única e verdadeira origem da canção do fado, mas sim uma apresentação e

descrição das principais teorias existentes ao longo da sua história, e isto com base nas teorias

representadas por tais historiadores e investigadores como, por exemplo, Alberto Pimentel, José

Ramos Tinhorão ou Rui Vieira Nery.

O principal motivo que nos levou à escolha de tal tema foi uma admiração para com esta

maravilhosa música portuguesa. Além disso surgiu a partir da constatação da falta de um trabalho

sintético acerca das origens desta canção onde se apresentassem, de maneira resumida, as

principais ideias sobre o assunto, baseiadas nos estudos existentes,um trabalho que talvez possa

ajudar a outros interessados na música do fado, sejam eles estudantes-investigadores ou

amadores do fado, na sua eventual investigação ou pesquisa das informações sobre o género.

Em conclusão deixa-se expressa a esperança que o trabalho que se segue cumpra, seja por

parte ou totalmente, o seu objectivo proposto.

II. Fado como expressão musical

2.1 As características gerais da canção do fado

A canção do fado é um estilo musical que se diz ser propriamente português. É

considerado canção popular urbana, uma vez que a prática sistemática do fado surgiu entre o

povo e diz-se ter tido a sua origem na cidade de Lisboa.

No que diz respeito às suas características gerais, o fado costuma ser cantado por uma só

pessoa, seja homem ou mulher, chamados «fadistas», e costuma ser acompanhado por duas

guitarras: a guitarra clássica, pelos fadistas chamada viola, e a guitarra portuguesa.

9

A canção do fado, na sua atmósfera, em maioria, entrou no conhecimento geral como uma

canção melancólica, dramática, caracterizada por uma certa doçura dolorida que se pode notar

bem na voz do fadista o qual, ao cantar o seu fado, passa por mais diversos sentimentos. Esta

natureza, segundo Alberto Pimentel, tem a sua explicação «na exagerada sensibilidade dos

portuguezes, no seu immenão sentimentalismo, que encontra um meio propício à inspiração nas

circumstancias precárias e por vezes dolorosas do paiz.»1. Esta sensibilidade portuguesa será

comentada mais detalhadamente em 2.5.

No que diz respeito às suas características musicais, o género musical de fado passou, ao

longo da sua história, por inúmeras mudanças evolutivas. Os primeiros fados, dos anos 40 do

século XIX, tanto letra como música, eram improvisados, o que exigia um acompanhamento

harmónico simples e fácil de predizer para que o cantor pudesse desenvolver os seus versos e

melodias. Como afirma o fadista Hélder Moutinho, no fim do século XIX foram se estabelecendo

algumas estruturas musicais que criaram um repertório de umas centenas de canções tradicionais,

das quais «primeiro foram os fados clássicos, que se dividem em mouraría, menor e corrido, e

que não têm melodia. Mais tarde, os tradicionais, que são variações melódicas a partir dos

clássicos. E logo apareceram Amália e Armandinho con os seus fados abstractos, e o fado vadio

(golfo), o fado da rua, desapareceu pouco a pouco»2.

Na produção da canção do fado há uma liberdade formal, por isso é habitual existirem

mais letras com a mesma base musical.

Ao fado chamado tradicional são associadas várias características estilísticas especiais,

tais como a maneira dos fadistas se vestirem (as fadistas, por exemplo, cumprem a tradição de

usar saia e xaile), o facto de o fado ser cantado à noite e à meia-luz, os lugares típicos onde o fado

costuma ser cantado, as tabernas nos bairros populares de Lisboa ou, mais tarde, as chamadas

casas de fado, e o silêncio durante o espectáculo que é uma condição necessária para que o fado

possa começar.

1 Pimentel, Alberto: «A triste canção do sul (subsídios para a história do fado)», Livraria central de Gomes de

Carvalho, editor, Lisboa, 1904, página desconhecida por motivo de erro na copia digitalizada

2 mais informação em: GONZÁLEZ LÓPEZ, Gabriela; TEJEDOR, Mariano: «Características musicales del fado de

Lisboa», Revista Luciérnaga [online]. 2007, n.o 10, [cit. 2011-08-19]. Accesível em:

http://www.luzdelagrima.com.ar/Características%20musicales%20del%20fado.pdf

10

Quanto à sua característica temática, o fado conta diversas histórias da vida humana e dos

seus aspectos, porém, em certas ocasiões e em certas épocas foi usado como veículo de expressão

da crítica social ou da propaganda do estado (ver mais o cap. 4).

Mesmo que os primórdios do fado estivessem ligados à cidade de Lisboa, com o passar do

tempo o fado começou a ser considerado, por um grande número da população, uma canção

nacional, e além disso, típicamente portuguesa (ver mais o cap. 2.4). Portanto, a produção e a

prática do fado não se limitou só aos bairros populares da cidade de Lisboa para um público

menor, senão, ao longo da sua história, ganhou a sua popularidade entre um público mais

abrangente, sendo praticado em grandes salas de concerto e em teatros de todo o mundo, pode ser

ouvido na rádio, televisão e em inúmeras gravações tendo começado com uma das maiores

representantes do fado do século XX, Amália Rodriguês, e continuando até hoje com uma oferta

de discos cada vez maior.

Tal como costuma ser em todos os géneros musicais, nem o fado pode ser considerado um

estilo musical homogéneo. Ao longo da sua história iam-se desenvolvendo mais categorias no

próprio fado. São três os chamados primitivos ou originais, e isto é «fado corrido», «fado

menor», e «fado mouraria», porém testemunha-se a existência de cerca de 140 outros tipos de

fados, tais como «Franklin», «Bailado», «fado marchal» (representado pelo reconhecido fadista

Alfredo Marceneiro), ou «fado experimental» (representado por Yolanda Soares ou Mísia)3. No

entanto, no conhecimento popular fora de Portugal distinguem-se meramente dois tipos básicos

de fado – o fado de Lisboa (ver mais o cap. 2.2) e o fado de Coimbra (ver mais o cap. 2.3).

Além disso, no que diz respeito ao fado, entre os fadistas costuma-se distinguir o

chamado «fado tradicional», descrito neste capítulo, do fado contemporâneo que apareceu desde

os anos 90 e persiste até à actualidade.

Os musicólogos e investigadores concordam no facto de que nos últimos anos temos assistido a

uma ruptura do fado tradicional: o fado tem sido cantado cada vez mais em espaços comerciais, o

acompanhamento tem-se mudado das duas únicas guitarras para os mais diversos instrumentos

incluindo mesmo o acompanhamento por toda uma orquestra, o fado costuma ser misturado com

outros estilos musicais etc. É, portanto, difícil de distinguir se este fado contemporâneo ainda é

ou já não é fado.

3 «A história do fado» [online]. 2009 [cit. 2011-08-19]. Tipos de Fados. Dostupné z WWW:

<http://ofado.no.sapo.pt/entrada.htm>

11

Entretanto, a existência das mudanças pelas quais o fado tem passado não deixa

desaparecer por completo o fado tradicional. Este ainda existe, paralelamente com o fado

contemporâneo, nas tabernas populares de Lisboa, e goza de grande popularidade entre os

amadores locais tanto como entre os turistas.

2.2 O fado de Lisboa

Como foi referido acima, a canção do fado é considerada canção urbana pelo facto de as

primeiras canções de fado terem aparecido na cidade de Lisboa e nos seus arredores. Foi a partir

desta cidade que o fado se teria divulgado para Coimbra e para as restantes regiões portugueses.

No que diz respeito às suas características, o fado tradicional de Lisboa, à diferença do

fado de Coimbra, de letras mais literárias (ver mais o cap. 2.3), é considerado mais castiço, sendo

assim, talvez, por este ser associado aos fadistas, os quais, em Lisboa, eram representantes de

camadas de mais baixa condição, de uma vida aventureira e de simples conduta, o que se reflectia

na qualidade das letras cantadas.

Uma outra característica do fado tradicional de Lisboa é que este, era cantado em maioria

por mulheres e, como afirma Rui Vieira Nery, eram precisamente as representantes femininas do

fado que o aperfeiçoaram e que lhe deram uma fama nacional: «no seu período inicial figuram as

representantes como Maria Severa Onofriana. Trata-se sobretudo de companheiras da própria

Severa no circuito da prostituiçao lisboeta, algumas suas contemporâneas, outras suas

sucessoras imediatas»4.

No que diz respeito às suas características temáticas, o fado de Lisboa, à diferença do fado

de Coimbra, além dos seus temas comuns que são o amor, o desamor e a saudade (ver mais o cap.

4.1), trata temas que talvez possamos generalizar como de situação social.

As letras do fado tradicional de Lisboa, no seu período inicial, tinha as suas regras, como

afirma Alberto Pimentel: «a letra é talhada nos moldes arcadicos do mote em quadras e da glosa

em decimas»5, enquanto que hoje em dia se usam formas estróficas dos mais diversos tipos.

O fado de Lisboa tradicional costumava ser cantado em espaços fechados, tais como as

tabernas populares, para um público menor. Mesmo que a sua produção se tenha alargado às

4 Nery, Rui Vieira: «Para uma história do fado», Público: Corda Seca, Lisboa, 2004, pág. 70

5 Pimentel, Alberto: «A triste canção do sul (subsídios para a história do fado)», Livraria central de Gomes de

Carvalho, editor, Lisboa, 1904, página desconhecida por motivo de erro na copia digitalizada

12

grandes salas de concerto e aos espaços abertos, a tradição do fado nas tascas populares tem-se

mantido até hoje tendo os seus grandes amadores, tanto entre os locais como entre os turistas

estrangeiros.

O fado de Lisboa, em geral, é aquele que hoje é conhecido mundialmente sob a simples

denominação de «fado».

2.3 O fado de Coimbra

O fado por vezes chamado «canção de Coimbra» costuma ser ligado às tradições da

respectiva universidade. Como afirma Ernesto Vieira no seu «diccionario musical»6, este, mais

provavelmente, teria aparecido em Coimbra nos fins do século XIX, tendo sido trazido por

estudantes de Lisboa. Desde então começou-se a desenvolver a tradição de uma canção

vulgarmente chamada por «fado» com características diferentes da original. Esta música encobre

vários elementos da música popular Portuguesa trazida de várias regiões do país, tais como as

canções de trabalho, os cânticos de embalar, as serenatas7 e outras representações etnomusicais

O fado de Coimbra, à diferença do de Lisboa, é exclusivamente cantado por homens e

«tanto os cantores como os músicos usam o traje académico: calças e batina pretas, cobertas

por capa de fazenda de lã igualmente preta»8.

Esta canção do fado, tal como a original, costuma ser cantada à noite, mas à diferença do

fado de Lisboa cantado em tabernas ou casas de fado, este é cantado em espaços exteriores, ou

seja, praças ou ruas da cidade, tais como a praça em frente à Igreja de Santa Cruz e do Mosteiro

da Sé Velha.

6 VIEIRA, Ernesto: «Diccionario musical contendo todos os termos technicos», 2ª ed., Lambertini, imp., Lisboa,

1899, página desconhecida por motivo de erro na copia digitalizada

7 Mais informação em: CRAVO, Jorge: «Canção de Coimbra : Um canto de rua», In História do Fado de Coimbra

[online]. [s.l.] : [s.n.], 2002, 2003-08-23 [cit. 2011-08-15]. acessível em:

http://www.capasnegras.com/historia_fado.html

8 LUNA, Maria: «Fado», Luna e amigos [online]. 2009 [cit. 2011-08-19]. Fado. Accesível em:

<http://www.lunaeamigos.com.br/cultura/fado.htm>

13

O fado de Coimbra é acompanhado igualmente por uma guitarra portuguesa e uma

guitarra clássica (também aqui chamada «viola»). No entanto, a afinação e a sonoridade das

guitarras são, em Coimbra, diferentes das do fado de Lisboa, na medida em que as cordas são

afinadas um tom abaixo, e a técnica de execução é diferente por forma a projectar o som do

instrumento nos espaços exteriores.

Um outro aspecto típico deste fado é a incontestável matiz estudantil que se pode notar

especialmente na forma das suas letras. Enquanto as letras dos primeiros fados de Lisboa eram os

cantares castiços do povo de baixa condição, nas letras do fado de Coimbra prevalece «uma

expressão acentuadamente literária»9, sendo os seus compositores, em maioria dos casos, os

estudantes universitários, ou digamos, a população mais instruida.

Os temas mais glosados do fado de Coimbra são os amores estudantis, o amor pela

cidade, e outros temas relacionados com a condição humana (ver mais o cap. 4.3), porém

«prevalece integral no Fado de Coimbra a mesma feição psychica de soffrimento e angustia com

que nasceu o Fado de Lisboa»10

.

A natureza erudita do fado tradicional de Coimbra reflecte-se nas suas formas estróficas

que desde o seu período inicial, eram mais literárias, sendo as mais usadas as chamadas quadras

que, «antes de se adoptarem as formas estróficas mais modernas, começaram a ser usadas

também nos fados literários de Lisboa»11

.

Como foi referido acima, as divergências em termos de características musicais entre o

«fado de Lisboa» e o chamado «fado de Coimbra» levam os historiadores tanto como os músicos

a considerar imprecisa e errada a denominação desta síntese musical como «fado». Preferem,

pois, a denominação «canção de Coimbra». Como afirma Jorge Cravo, músico e letrista do Grupo

Académico de Fados e Canções de Coimbra, «dizer-se, pois, que a Canção de raíz Coimbrã é o

»Fado de Coimbra», está muito longe de ser verdade»12

. José Manuel Osório, fadista e

9 Pimentel, Alberto: «A triste canção do sul (subsídios para a história do fado)», Livraria central de Gomes de

Carvalho, editor, Lisboa, 1904, página desconhecida por motivo de erro na copia digitalizada

10 Ibidem.

11 Ibidem.

12 RIBEIRO DE ALMEIDA, José Lúcio: «Cordofones Portugueses», [online]. 2008 [cit. 2011-08-19]. Fado como

expressão musical. Accesível em: <http://www.jose-lucio.com/Pagina2Fado/Expressao%20Musical.htm>

14

investigador, é ainda mais explícito dizendo sobre o fado de Coimbra: «Para mim existe a

balada, a trova e a canção de Coimbra. Fado é que não..»13

.

No entanto, já num dos primeiros estudos sobre fado de 1904 por Alberto Pimentel há

alusões para a existência do chamado fado de Coimbra, sendo aceitada esta denominação em

vários dicionários do fim do século XIX: « Lacerda, na 4. a edição, que é de 1874, diz: «Fado,

cantiga e dança popular, muito característica e pouco decente: o de Lisboa, o de Coimbra»»14

.

Seja canção ou fado, não se pode contestar uma certa semelhança que há entre esta

expressão musical e fado original lisboeta, pelo que poderemos considerá-la como uma outra

vertente de fado.

2.4 O fado – canção propriamente portuguesa

Logo após a sua divulgação fora da cidade de Lisboa, onde teriam aparecido as primeiras

canções do fado, para a cidade de Coimbra, onde o fado ganhou a sua forma específica, este

estilo musical, devido à mobilidade dos seus habitantes e à sua posterior projecção nos media, ia

tornando-se conhecido por todo o país.

Mesmo que o fado, na sua época inicial, fora das cidades de Lisboa e Coimbra, «apenas

era acceitado como um dictame da moda» e, como afirma Alberto Pimentel, «não estava em

todas as províncias de Portugal na alma do povo»15

, já nos primeiros estudos sobre o fado

aparece a ideia de que o fado constitui uma expressão de alma lusitana e do povo português. Para

dar um exemplo, Rodney Gallop no seu estudo «Cantares do povo português» observa que «no

fado é evidente a tradição nacional pelo parentesco com certos cantares regionais»16

, a ideia que

é igualmente defendida pelos próprios fadistas, tais como, por exemplo, Jorge Fernando, que

afirma a canção do fado não ser mero canto acompanhado por música, senão uma expressão

13 GARRIDO, Diana: «O fado não é a canção nacional, é de Lisboa», Ionline [online]. 26 de Fevereiro de 2010, no

42, [cit. 2011-08-19]. accesível em: <http://www.ionline.pt/conteudo/48567-o-fado-nao-e-cancao-nacional-e-lisboa--

-video>

14 Pimentel, Alberto: «A triste canção do sul (subsídios para a história do fado)», Livraria central de Gomes de

Carvalho, editor, Lisboa, 1904, página desconhecida por motivo de erro na copia digitalizada

15 Ibidem.

16 Gallop, Rodney: «Cantares do Povo Português», Estudo crítico, recolha e comentário, Instituto Para Alta Cultura,

Depositária Livraria Ferim, Lisboa, 1937, pág. 72

15

particular da alma portuguesa, realçando a sua melancolia e fatalismo: «o Fado é sobretudo um

estado de alma que tem a ver com o psiquismo português, (...) com a nossa forma de estar na

vida, (...) com a nossa emotividade, e é por isso que fomos nós que o criámos»17

.

Um outro motivo pelo qual o fado possa ser considerado a canção propriamente

portuguesa são os seus próprios temas, tais como o mar, a cidade de Lisboa, a corrida de touros

ou a situação miserável do povo (ver mais o cap. 4.1). Estes podem-nos servir de testemunhas

que o fado é inseparável das circunstâncias sociais e culturais nas quais surgiu e começou a ser

cantado, e portanto não pode ser associado a um outro povo além do português, nem a um outro

ambiente além de Portugal.

Além de alguns fadistas, esta atitude de o fado ser um veículo de expressão dos

sentimentos e as preocupações dos portugueses é defendida, sobretudo, pelos amadores do fado,

especialmente os de idade, que lhe atribuem a classificação da canção nacional. Por outro lado,

há muitos músicos e cientistas, tais como José Manuel Osório ou José Lúcio Ribeiro de Almeida,

que defendem a teoria de que o fado não é e não pode ser a expressão dos portugueses de todo o

país, uma vez que o verdadeiro fado é uma canção regional, proveniente dos arredores de Lisboa.

Por exemplo, José Lúcio Ribeiro de Almeida, músico e investigador, defende a ideia de que

devemos levar em consideração a diversidade de cada província do país: «Que os portugueses de

agora possam saborear o FADO em diversos pontos do nosso território, não faz do FADO a

canção nacional. Cada província portuguesa tem maneiras de estar de cantar e de sentir bem

distintas»18

.

A ideia de a canção do fado ser a canção nacional, portanto, o autor considera como

simplificada e generalizadora, e se a canção do fado representa um veículo de expressão, não se

refere a todo o povo português, senão se limita ao povo lisboeta.

Além disso, não devemos esquecer-nos de mencionar a opinião geral acerca desta ideia do

público fora do ambiente fadista, para o qual a canção do fado nem desempenha o papel da

canção propriamente portuguesa, nem de veículo de expressão do povo lisboeta, senão afirmam

que se trata de mera canção que para eles, sendo portugueses, não tem nada para dizer. Esta ideia

é defendida especialmente por jovens estudantes do conservatório e por um público consumidor.

17 Castro D’Aire, Teresa: «O fado», Temas da Actualidade, Lisboa, 1996, página desconhecida por motivo de erro na

copia digitalizada.

18 CRAVO, Jorge: «Canção de Coimbra : Um canto de rua», In História do Fado de Coimbra [online]. [s.l.] : [s.n.],

2002, 2003-08-23 [cit. 2011-08-15]. acessível em: http://www.capasnegras.com/historia_fado.html

16

Seja como for, seja o fado a canção nacional portuguesa, canção regional de Lisboa ou

mera canção, a verdade é que no conhecimento geral fora de Portugal esta canção é considerada

um artigo representativo do país.

A ideia de atribuir ao fado a classificação da canção nacional não é uma ideia recente.

Pela primeira vez teria aparecido, mais provavelmente, já na época do chamado Estado Novo em

que esta música foi considerada um dos elementos de propaganda do Estado. Esta classificação,

seja qual for a sua razão, têm-se mantido até a actualidade, especialmente no conhecimento dos

estrangeiros.

Porém, coloca-se a questão se esta classificação pode ser considerada válida hoje, no tempo da

globalização, quando o fado pode ser ouvido em todo o mundo através dos media, costuma ser

cantado em outras línguas que não em português, e goza de imensa popularidade nos países como

a França ou o Japão. Deste ponto de vista, a canção do fado é vista como uma canção que tem

recebido várias influências de culturas e estilos musicais bem distintos, o que lhe dá um aspecto

de uma canção, que como qualquer outra, pode ser classificada sob à categoria musical de world

music. Porém, apesar de tudo, há ainda bastantes vozes que defendem a ideia que o fado, mesmo

neste processo de globalização, não deixa de manter as suas características da canção de Lisboa,

canção portuguesa, as que, enquanto o fado existir, nunca podem desaparecer por completo.

O entendimento geral da canção do fado como canção nacional comprova o facto de que o

fado foi apresentado oficialmente, em Junho de 2010, na Assembleia Municipal de Lisboa dentro

da Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO, pedido

que deverá ser apreciado em Setembro de 2011. Assim se comprova o facto de que o fado como

expressão musical, moderno ou tradicional, veículo de expressão da alma lusitana ou só uma

canção para divertir, tem uma importância extraordinária no tempo-espaço cultural tanto

português como internacional.

2.5 A canção do fado e os fadistas

«O fado somos nós a cantar a vida» (Frederico Vinagre)

Não há dúvida de que a canção do fado na conciência dos próprios fadistas sempre tem

desempenhado um papel extraordinário. Como nota o fadista Rodrigo em entrevista com Teresa

Castro d‘Aire, «o fado é uma forma de se contar coisas da história e determinadas verdades que

17

tinham de ser ditas, e quanto a mim esta foi uma das funçőes mais importantes do Fado, e ainda

hoje é, nalguns aspectos»19

.

Frederico Vinagre, por sua vez, afirma: «Bom, se o Samba é graça, se o Flamenco é raça,

então o Fado é nostalgia. O Fado fala da vida das pessoas, fala das emoções de um povo que

talvez seja um povo um bocadinho triste, mas pronto, somos assim mesmo, é a nossa verdade que

ali está»20

.

Segundo um outro fadista João Braga, «o fado tem uma característica particular que os

outros géneros musicais não têm – a emoção, uma sensibilidade que é universal, que consegue

tocar o coração dos estrangeiros mesmo sem perceberem só uma palavra»21

.

Desta importância particular da canção do fado podemos deduzir que o papel do fadista

não se limita a ser o de mero cantor ou artista, senão este constitui um tipo de portavoz social,

cultural e pessoal dos portugueses, «uma espécie de veículo de consciencialização social»22

. A

maioria dos fadistas contemporâneos afirma cantar o fado não só por mero gosto ou obrigação

por ser a profissão deles, senão «por uma necessidade ou vocação interior» (Nuno da Câmara

Pereira, Rodrigo), «por paixão» (Frederico Vinagre), ou pela simples razão de «já nasci a cantar o

fado» (Odete Mendes)

III. Origens da canção do fado

3.1 Introdução ao tema

Tal como foi mencionado na introdução deste trabalho, a nascença da canção do fado

sempre tem sido envolvida em mistério. A verdadeira origem do fado parece uma questão que

nunca será esclarecida. Até os próprios fadistas não sabem dizer com precisão como e quando o

fado nasceu, inventando as mais diversas teorias. A resposta que me pareceu mais acertada tem a

autoria de Nuno da Câmara Pereira, dizendo que «o Fado é como o rio Tejo. Recebe os seus

19 Castro D’Aire, Teresa: «O fado», Temas da Actualidade, Lisboa, 1996, página desconhecida por motivo de erro na

copia digitalizada

20 Ibidem.

21 Ibidem.

22 Ibidem.

18

afluentes da margem direita, que tem a ver com a sensibilidade ribatejana, a maneira de ser dos

campinos da lezíria, recebe os seus afluentes da margem esquerda, que tem a ver com a

melancolia dos alentejanos, e vem desaguar a Lisboa, está a ver? (...) Esta é que é a verdade do

Fado, é uma mistura de tantas coisas, de tantas influências...»23

.

Não há dúvida de que a canção do fado é de origem popular, nascendo nas ruas, nas

tabernas e nos bordeis da cidade de Lisboa, nos anos 40 do século XIX. São as únicas verdades

que sabemos dizer acerca da canção do fado. Mas o que foi que fez com que o fado nascesse? Foi

devido a um acontecimento histórico ou cultural? Ou graças à presença de uma certa cultura na

cidade tão heterogénea como a da cidade de Lisboa? Se efectivamente o fado é português, porque

é que apareceu na sua forma tradicional só no século XIX? E o seu próprio nome, «o Fado»,

donde é que teria vindo? Estas são as perguntas que se oferecem e que jamais serão esclarecidas

com certeza absoluta. Contudo, nos capítulos seguintes oferecem-se alusões a teorias que se têm

vindo a elaborar acerca do assunto e que talvez possam dar resposta ao menos a algumas das

perguntas apresentadas.

3.1.1 O fado e o destino

No que diz respeito à própria denominação deste estilo musical, considera-se mais

provável que o termo «fado» tenha a sua origem em palavra latina «fatum» que é uma

denominação para «destino», ou seja a vida predita e preconizada pelo oráculo e que o ser

humano não pode alterar.

Originalmente, «esta palavra tinha o significado de deus e na religião dos antigos Gregos

esta chegou a incluir as divindades do destino, tais como Moirae, Parcae e Sibyla»24

.

«Os romanos incluiam Fatum na sua mythologia como sendo a vontade expressa não só

por Júpiter, mas também pelos outros deuzes, em relação ao destino dos homens, das cidades e

23 Piedade, Arlete: «Origens do Fado da Severa à Ana Moura passando por Amália Rodriguês», In Radio Raizonline

[online]. EDIÇAO Nº84 . [s.l.] : [s.n.], 2010 [cit. 2011-07-25]. acessível em:

http://www.raizonline.org/oitentaequatro/setentaedois.htm>

24 «fatum» in English Encyclopedia of definitions. http://www.encyclo.co.uk/define/Fatum

19

das nações.»25

Este «fatum» «surgia como ameaça implacável e determinava a falta cometida

por alguém e o caminho da sua punição. Nascido da Noite e do Caos, o Destino estava acima

das divindades, submetendo-as ao seu poder. Cego e inexorável, dominava os céus, a terra, o

mar e os infernos»26

.

A importância do «fatum» não se perdeu com a aceitação geral do deus cristão em

Portugal, senão interpretou-se sob o ponto de vista do monoteismo. Desde este ponto de vista,

fado é registado nos grandes dicionários do século XVII-XIX, tais como o de Raphael Bluteau ou

Morães, como uma disposição ou providência divina que antevê os acontecimentos humanos.

Sendo assim, «acredita-se que o destino humano é regulado por uma auctoridade sobrenatural e

tem de ser cumprido com indeclinável sujeição»27

. Sendo assim, o povo português explica as suas

faltas e desgraças, e também sua boa fortuna, por uma imposição da lei do Fado. E é este

significado dado à palavra «fado» ou «destino» que se manteve até aos nossos dias.

A fatalidade do destino a que todos estão sujeitos nota-se bem na grande maioria das

letras tradicionais do fado (ver mais o cap. 4.1.4).

Uma outra hipótese acerca da origem da palavra fado defendida por Teófilo Braga diz que

a designação fado vem da palavra árabe huda que é a denominação de «uma espécie de lenga-

lenga de tropeiros»28

e que «apresenta na tradição francesa a forma de canto e dança figurada

em fatiste»29

.

Ao mesmo tempo, existe uma afirmação, apresentada por Alberto Pimentel, de que o

termo que designa a música do fado ter vindo da palavra «fadista» que em meados do século XIX

25 Pimentel, Alberto: «A triste canção do sul (subsídios para a história do fado), Livraria central de Gomes de

Carvalho, editor, Lisboa, 1904, página desconhecida por motivo de erro na copia digitalizada

26 «O fado segundo Rui Vieira Nery», In: Entre o fado e o samba : Diário de bordo - Visões e impressões. [online]. 1ª

edição. [s.l.] : [s.n.], 2011 [cit. 2011-01-20]. accesível em: <entreofadoeosamba.blogspot.com/2011/01/o-fado-

segundo-rui-vieira-nery.html>

27 Pimentel, Alberto: «A triste canção do sul (subsídios para a história do fado)», Livraria central de Gomes de

Carvalho, editor, Lisboa, 1904, página desconhecida por motivo de erro na copia digitalizada

28 Braga, Teófilo: «O Povo Portuguez nos seus costumes, crenças e tradições», vol. I - Costumes e vida domésticas,

Livraria Ferreira-Editora, Lisboa, 1885, página desconhecida por motivo de erro na copia digitalizada

29 Ibidem.

20

havia sido testemunhada como parte do calão português designando uma pessoa que leva um mau

destino: «Chama-se Fadista— diz Theophilo Braga — ao vagabundo nocturno que no meio das

suas aventuras modula essas cantigas (Fados), no velho francez, Fatiste significa poeta, e

Edelestand Du Meril pretende que esta designação vem do scandinavo fata, vestir, compor»30

.

Sendo assim, portanto «fado» uma denominação para uma canção em que os fadistas lastimam o

seu destino.

No que diz respeito à canção do fado, seja a sua origem a antiga palavra latina «fatum» ou

a recente designação aceite no calão português (donde, mais tarde, passou para a língua falada)

no século XIX, não há dúvida de que só desde meados do século XIX que esta adquiriu o novo

significado que chegou a ser registado nos grandes dicionários (em Lacerda, na 4ª edição de

1874, ou Morães na 7ª edição de 1878, por exemplo), a denominação da expressão musical.

3.1.2 Os estudos da canção do Fado

Desde os anos 90 do século XIX têm surgido os primeiros estudos que tiveram como

objectivo uma descrição do género e uma tentativa de revelar as origens da canção urbana de

Lisboa. Com vista ao facto, comprovado por tais investigadores como Pinto de Carvalho, Alberto

Pimentel, César das Neves ou Michel Angelo Lambertini, desde o início da prática sistemática do

fado por volta dos anos 40 do século XIX, ou seja, só cerca de cinquenta anos antes desta década

atrás referida, as investigações destes autores podiam basear-se nas memórias e na experiência

dos próprios fadistas de então que, digamos, desempenharam o papel de testemunhas do

estabelecimento da prática da canção do fado tal como a conhecemos actualmente. Sendo assim,

podemos considerar estes investigadores como verdadeiro fundo de informação sobre o género.

Logo, nos anos 20 e 30 do século XX surgiu um grupo de estudos e teses sobre as possíveis

origens do fado, escritos por tais autores como Fialho de Almeida, Gonçalo Sampaio, Artur

Arriegas ou Alberto Victor Machado. O terceiro grupo de trabalhos apareceu ao longo do antigo

regime do Estado Novo, devido, provavelmente, ao interesse do governo pela música do fado e à

sua propaganda como um dos elementos típicos do país, entre o futebol e Fátima. Na época actual

há ainda inúmeros estudos que tentam contribuir para a revelação das possíveis origens do fado, e

30 Braga, Teófilo: «epopeas da raça mosárabe», pág. 321, in: Pimentel, Alberto: «A triste canção do sul (subsídios

para a história do fado)», Livraria central de Gomes de Carvalho, editor, Lisboa, 1904, página desconhecida por

motivo de erro na copia digitalizada.

21

isto é, pertencentes tanto à literatura científica assim como à literatura considerada «menor».

Entre os autores chamados científicos podemos destacar José Ramos Tinhorão, Ruben de

Carvalho ou Joaquim Pais de Brito.

Como foi referido acima, desde o fim do século XIX até os dias de hoje têm surgido teses

diversas e por vezes contraditórias que apontam para as origens do estilo musical do fado.

Encontram-se paralelismos entre a música do fado e as cantigas medievais provençais, entre as

canções marítimas, entre os cantares e danças afro-brasileiros, ou entre os padrões de

ornamentação improvisada marroquina.

Porém, a despeito de aumentar o número dos estudos que se tem feito sobre o género, as

verdadeiras origens continuam na penumbra. A maioria dos investigadores consente na ideia de

que a canção do fado, mais provavelmente, não teria nascido de uma só origem e que, para se

criar uma opinião e um trabalho verdadeiramente objectivos, é imprescindível levar em

consideração todas as teorias existentes. Vejamos quais são as principais teorias de origem deste

estilo musical da canção do fado.

3.2.1 Tese provençal

A primeira hipótese defendida quanto à génese do fado remonta à época dos Trovadores

provençais dos séculos XII e XIII, em que se considera ser o fado uma consequência directa da

sua produção lírica.

A primeira sugestão desta eventual origem do fado foi notada pela investigadora literária

Carolina Wilhelma Michaelis de Vasconcelos31

, seguida, entre outros, por Mascarenhas

Barreto32

. Segundo este, mesmo que admita a existência de mais elementos que iam formando a

canção do fado, afirma os cantares trovadorescos terem constituído precisamente a sua génese.

Mais concretamente, segundo esta hipótese, a origem do fado assenta na lírica medieval

galaico-portuguesa influenciada e enriquecida pela lírica provençal, ou melhor occitana, que

apareceu na Península no início do século XII, juntando-se inseparavelmente com a lírica ali já

existente.

31 VASCONCELOS, Carolina Michaelis de: «Dicionário da Ajuda», Halle, 1904, 2 volumes

32 Barreto, Mascarenhas: «Origens Líricas e Motivação Poética», Editorial Aster, S.d., Lisboa, 1970

22

Iniciando-se nas primeiras décadas do século XII, nas províncias do sul da posterior

França regista-se um grande e extraordinário movimento cultural de cultivação da poesia e

música na corte real. Esta poesia cortesana espalhou-se devido aos trovadores e segréis

ambulantes por tais países como Aragonia, Itália e outros, incluso Portugal, dando origem à

posterior lírica medieval europeia. Em consequência deste movimento cultural que se alastrou

pela Europa, aparece na corte portuguesa, juntamente com uma cultura cavalheiresca, um novo

estilo de trovar, e com ele novas formas poéticas, tais como a chamo, o sirvente, o contense, o

pranto, a pastorela e muitas outras33

.

Estes géneros occitânicos, simplificando-se no ambiente peninsular, fundiram-se nos géneros já

ali existentes, dando origem a três formas poéticas que ali se estabeleceram e desenvolveram,

tornando-se as mais populares e cultivadas pelos trovadores portugueses:

a) a cantiga de amor - representada por uma voz masculina, donde o trovador destaca todas as

qualidades da mulher amada e, em maioria, canta sobre o seu amor não correspondido34

,

b) a cantiga de amigo - representada, ao contrário, por uma voz feminina, onde a mulher lamenta

a falta do seu amado35

, e

c) a cantiga de escárnio e maldizer - através das quais os trovadores expressavam sátiras, directas

ou indirectas, em relação a outra pessoa36

.

Mascarenhas Barreto no seu livro «Origens Líricas e Motivação Poética» afirma estarem

precisamente estas três formas na origem da canção do fado do século XIX e consequentemente

do contemporâneo.

Na base da explicação da sua hipótese está, principalmente, o paralelismo temático que

encontra entre estas cantigas medievais e a canção do fado, levando em consideração também a

voz da sua expressão. Sendo asim, chega à seguinte afirmação:

- as cantigas de amor, devido à expressão do sentimento masculino juntando-se com a sua

temática amorosa e romântica, resultou no fado de Coimbra.

- As cantigas de amigo, devido ao facto de serem produzidas pela voz da mulher e igualmente

pelo seu espírito amoroso e romântico, deram origem ao fado de Lisboa que é, em maioria,

produzido por fadistas femininas.

33 Mais informação em: Saraiva, António José; Lopes, Óscar: «História de literatura portuguesa», 17ª edição, Porto

Editora, Porto, 1996, pp. 36-43

34 mais informação em: Sua Pesquisa : Portal de pesquisas temáticas [online]. 2004, 2011-18-8 [cit. 2011-08-19].

accesível em: http://www.suapesquisa.com/artesliteratura/trovadorismo.htm>

35 Ibidem.

36 Ibidem.

23

- «As cantigas de escárnio e maldizer, devido ao seu espírito crítico e motejador, tem

correspondências no chamado fado à desgarrada, demonstrando-se na crítica política e social

tão típica do Fado37

.

Além disso, referenciando alguns exemplos registados nos Cancioneiros do Colégio dos

Nobres, da Vaticana e de Colocci-Brancuti, e comparando-os com algumas letras de canção do

fado do século XIX, Barreto encontra semelhanças em termos da «forma métrica», da «toada

poética» e dos «motivos de inspiração»38

.

No que diz respeito à forma métrica, Barreto ilustra e justifica a sua afirmação com uma

cantiga de amor escrita em forma de sextilha heptassilábica que «se adaptaria facilmente a um

Fado de Coimbra»39

.

A seguir compara uma cantiga de amigo com estribilho, da autoria de D. Dinis, com

algumas letras da canção do fado do século XIX, semelhantes na sua forma com a primeira40

.

Quanto aos motivos de inspiração, Barreto nomeia, sobretudo, a temática amorosa (ver

mais o cap. 4.1.1) tanto nas cantigas de amigo, como nas cantigas de amor, e o «espírito crítico»

das cantigas de escárnio e maldizer que revelam semelhanças com alguns temas recorrentes dos

fados actuais.

Defendendo as semelhanças entre a temática amorosa das cantigas medievais e a da

canção do fado do séculos XIX, prossegue, dentro da mesma linha de pensamento, com as

cantigas de escárnio e os chamados «fados à desgarrada».

Comparando as cantigas dos séculos XIII e XV com algumas letras da canção do fado do século

XIX revela tais temas comuns como, por exemplo, troça de uma outra pessoa ou queixas de

injustiça social.41

Ao mesmo tempo, Barreto alude a uma outra similaridade entre a lírica trovadoresca

medieval e a canção do fado de oitocentos, que é o papel que cumpria na sociedade, ou seja, o

facto de ambas se terem expandido entre todas as classes sociais, servindo, por assim dizer, como

um certo elo intermediário entre o povo e a aristocracia:

37 Barreto, Mascarenhas: «Origens Líricas e Motivação Poética», Editorial Aster, S.d., Lisboa, 1970, pág. 14

38 Ibidem, pág. 16

39 Ibidem, pág. 18

40 Ibidem, pág. 18

41 Ibidem, pág. 460

24

«Hoje, como outrora, a nobreza e o povo, os poderosos e os humildes irmanam-se ainda no

espírito poético e melódico do Fado, havendo valiosos autores e intérpretes de todos os níveis

sociais.»42

Esta hipótese, tanto como as outras que serão apresentadas nos seguintes capítulos, têm

tido bastantes críticas que se pronunciam sobre ela como sendo «atrevida» (Manuel Paula

Maça43

) ou «bastante generalizadora» (Rui Vieira Nery44

).

Rui Vieira Nery no seu livro «Para uma História do Fado» pronuncia-se sobre a sugestão

de Carolina Michaelis de Vasconcelos e de Mascarenhas Barreto, considerando-a bastante

superficial e pouco comprovada por uma qualquer evidência documental. No que diz respeito à

similaridade em termos dos temas e da forma poética entre as cantigas medievais e as letras da

canção do fado, segundo Nery, sob o seu ponto de vista de musicólogo, não se trata de evidencias

convincentes que possam servir para esta finalidade, dizendo que

«... estamos perante uma mera constataçao de um paralelismo ocasional (e ainda por cima

duvidoso) (...) que não toma em consideração a inexistência de qualquer laço de transmissão

directa e específica entre ambas no decurso dos mais de quinhentos anos que se desenrolam

entre ambas.»45

Manuel Paula Maça, por sua vez, pronuncia-se sobre a pouca autenticidade da «tese

provençal» ou «a tese galaico-portuguesa», acrescentando um argumento que tem a ver com a

distância física entre as zonas do Galaico-Português e dos arredores da cidade de Lisboa onde a

canção do fado realmente se desenvolveu e ganhou a forma tal como é conhecida hoje. Maça

deixa expressa a sua dúvida ao questionar-se:

« (...) Porque não se implantou o fado nas zonas do galaico-português, nos territórios da lírica

medieval, no Norte de Portugal e na Galiza, onde são ainda perceptíveis muitos traços culturais

e musicais com características comuns? Qual a zona da planície alentejana onde se desenvolveu

e afirmou?»46

42 Ibidem, pág. 18

43 Mais informação em: MAÇA, Manuel Paula: «O Fado – José Malhoa : Subsídios históricos», In O fado do fado

[online]. [s.l.] : [s.n.], 3 de Fevereiro de 2011 [cit. 2011-08-19]. Accesível em:

<http://carreiradomato.blogspot.com/2011/02/o-fado-do-fado-meus-livros-meus-discos.html>

44 Nery, Rui Vieira: «Para uma história do fado», Público : Corda Seca, Lisboa, 2004

45 Ibidem, pág. 55

46 MAÇA, Manuel Paula: «O Fado – José Malhoa : Subsídios históricos», In O fado do fado [online]. [s.l.] : [s.n.], 3

de Fevereiro de 2011 [cit. 2011-08-19]. accesível em: http://carreiradomato.blogspot.com/2011/02/o-fado-do-fado-

meus-livros-meus-discos.html>

25

Finalmente, da mesma forma como se verá no seguinte capítulo, também neste caso tanto

os defensores como os críticos da tese provençal convergem num ponto comum ao aceitarem que

admitem a presença de outros elementos que podiam ter contribuído para a posterior criação da

canção do fado.

3.2.2 Tese marítima

Segundo esta tese, a música do fado se considera ter formado a partir dos cantos dos

marinheiros. Os seus defensores, tais como Pinto de Carvalho47

ou María Luísa Guerra48

,

apontam, como a base desta tese, para as características e a temática dolente dos cânticos dos

marinheiros portugueses que, como afirmam os referidos, além de outros, coincidem com os

Fados mais antigos oitocentistas e, afinal, com um grande número de fados actuais que se têm

inspirado por esta temática (ver mais o cap. 3.1.3).

Como testemunham várias fontes históricas e inúmeras obras literárias, o mar tem

ocupado destacada posição na cultura portuguesa, e isto é tanto na própria vida (pescadores,

marinheiros) como na lírica portuguesa (L. de Camões, F. Pessoa e outros). O mar, em geral,

prezou-se de grande respeito entre o povo, sendo considerado como um mundo específico, e,

«para um grande número da população portuguesa que desempenhava o papel dos marinheiros,

significava Destino.»49

Como sabemos, a época da expansão portuguesa começou-se a partir do século XV, ou

seja, desde o ano de 1415, data em que foi conquistado o porto de Ceuta: desde então, iniciou-se

uma época de viagens marítimas com o objectivo de descobrir novas terras. Os seus sonhos e

expectativas tornaram-se realidade, ao descobrirem e povoarem várias zonas em África, Ásia e

América do Sul.

O marinheiro dos séculos passados era considerado uma personagem específica. A partida

para as suas viagens além-mares significava despedir-se por muito tempo das suas famílias, viver

em condições extraordinariamente desagradáveis e perigosas, e, em muitos casos, até arriscar a

sua própria vida50

.

47 Carvalho, Pinto de: «História do Fado», Livraria Guimarães & Ca., Lisboa, 1903

48 Guerra, Maria Luísa: «fado – alma de um povo (Origem Histórica)», Edição: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,

Lisboa, 2004

49 Barreto, Mascarenhas: «Fado, Origens Líricas e Motivação Poética», Editorial Aster Lda., Lisboa, 1970, pág. 326

50 as incertezas e desgraças das viagens marítimas descreve, por exemplo, Luís de Camões na sua obra «Os

Lusíadas» no canto iv, 89

26

Como refere María Luísa Guerra no seu livro «fado – Alma de um povo», as viagens

marítimas tinham como consequência um «reforço da necessidade da música». Levando os seus

instrumentos, as guitarras e as violas em especial, até nos navios, cantar e tanger serviu-lhes

como um veículo de evasão da desgraça e da incerteza do seu destino, como um remédio, como

lembrança da sua pátria, etc.51

Segundo a autora, «o marinheiro português traz, no seu interior, tudo o que lhe era

querido»52

e, juntando isso com a angústia da morte e com a incerteza do futuro, deu origem à

música amorosa e saudosista que os marinheiros produziram.

Continuando com o livro da Maria Luísa Guerra, além dos marinheiros havia uma grande

parte da população portuguesa que, por outro lado, ficava à espera dos seus familiares que

estavam no mar. A espera dos barcos, por vezes por dias e meses, era acompanhada por um

sentimento de nostalgia e esperança, que se tornou num símbolo e logo num tema básico da

canção do fado53

. Sendo assim, estas experiências, segundo a autora, tinham uma importância

extraordinária, moldando para sempre a essência da gente portuguesa: «O povo, no inconsciente

colectivo gravou a dor da partida, da separação, da incerteza o que coincidiu com a própria

essência do existir»54

. Isso deu origem à resignação, ao sofrimento e ao fatalismo português que

se projectou na gente e na sua música.

Como vemos, a característica dos cantos dos marinheiros e dos que à espera deles

ficavam, logo deram origem ao chamado «fado marinheiro»ˇ, o qual, segundo Pinto de Carvalho,

foi o fado mais antigo de todos, marcado por uma certa nostalgia, tristeza e angústia, porém, dado

que o destino da viagem constituía uma ambivalência, haviam também canções eufóricas e

alegres. Estas canções comunicavam experiências e estados de alma, os temas principais eram,

portanto, amor e saudade (ver cap. 3.1.1 e 3.1.2).

51 Guerra, Maria Luísa: «Fado – Alma de um povo (Origem Histórica)», Edição: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,

Lisboa, 2003, pág. 53

52 Ibidem, pág. 27

53 mais informação em: Osório, Jerónimo: «Da Vida e Feitos de El-Rei D. Manuel», vol. i, liv. I, Livraria

Civilização, Porto, 1944, pág 37, in: Guerra, Maria Luísa: «Fado – Alma de um povo (Origem Histórica)», Edição:

Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003, pág. 32

54 Guerra, Maria Luísa: «Fado – Alma de um povo (Origem Histórica)», Edição: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,

Lisboa, 2003, pág. 30

27

Há vários motivos que levaram os autores, acima referidos, a defenderem esta chamada

«tese marítima».

O motivo principal constituem, precisamente, os temas tratados nas canções dos marinheiros, as

quais, logo nas primeiras décadas do século XIX, deram origem aos primordiais fados55

, os quais

se iam tornando o modelo de todos os outros tipos de canção do fado, e, com a contribuição de

outros elementos, ganharam a forma do fado como a tal conhecida canção urbana lisboeta.

No que diz respeito à temática dos cantos dos marinheiros, ou seja, à sua característica

nostálgica e saudosista, consideradas pelos defensores da «tese marítima» como a expressão

própria aos marinheiros portugueses, estes autores apontam para o facto de que estes temas

tinham sido já tratados na literatura portuguesa dos escritores emigrantes ou desterrados, tais

como, por exemplo, já no século XVI o grande poeta português Luís Vaz de Camões que nos

seus poemas exprime a dor da separação pela Distância e pelo Tempo. «Luís de Camoes,

afastado da sua terra, por viagens e combates, exprimiu, melhor que nenhum outro, essa

saudade lusitana.»56

Esta afirmação é negada pelo musicólogo Rui Vieira Nery57

, o qual no seu livro «Para

uma história do fado», nota que uma mera semelhança temática entre os cantos dos marinheiros e

a canção do fado oitocentista não pode bem servir como um argumento convincente devido ao

qual a tese marítima possa ser considerada como reconhecida e aceite.

Além disso, há um argumento, sustentado por María Luísa Guerra, que afirma a

experiência portuguesa relacionada com a vida marítima (ver pág. anterior) ter sido uma

experiência particular que moldou para sempre a sensibilidade e a visão do mundo do povo

português, e que, não tinha sido vivida por outros povos. Como sumariza Maria Luísa Guerra,

«Se o povo português é o único que canta fado é porque também foi protagonista de uma

experiência particular»58

.

No que diz respeito a este argumento, não há nenhum testemunho directo nem uma tese

feita que o reprovem, porém, existem inúmeras fontes históricas que provam que a experiência

portuguesa é bem semelhante com a de outras nações (tais como Espanhóis ou Britânicos), cujos

povos navegaram grandes oceanos nas suas viagens marítimas desde o século XVI59

. A nostalgia

55 Os primeiros Fados eram, segundo Pinto de Carvalho, os chamados «fados do marinheiro», tal como «as cantigas

das fainas», «as cantigas de levantar ferro» ou «as cantigas do degredado», cantados na proa dos navios; mais

informação em: Carvalho, Pinto de: «História do Fado», Livraria Guimarães & Ca., Lisboa, 1903, página desconhecida por

motivo de erro na copia digitalizada

56 Barreto, Mascarenhas: «Fado, Origens Líricas e Motivação Poética», Editorial Aster Lda., Lisboa, 1970, pág. 72

57 Nery, Rui Vieira: «Para uma história do fado», Público : Corda Seca, Lisboa, 2004

58 Guerra, Maria Luísa: «Fado – Alma de um povo (Origem Histórica)», Edição: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,

Lisboa, 2003, pág. 66

59 Johnson, Donald; Nurminen, Juhan: «História das viagens marítimas», edição em Português, Sete Bares, colecção

N.o I. Lisboa

28

do povo Escocês ou Irlandês projecta-se na sua música que também fala de »grandes despedidas»

ou das «viagens sem fim»60

, no entanto, cujas características musicais, tal como o seu

acompanhamento, não correspondem às da canção do fado. Assim podemos deduzir que estas

características musicais e temáticas, provavelmente, não residem únicamente no facto de os

portugueses terem passado por esta experiência. Mais factores haverá que para tal contribuíram,

porém a análise deles ultrapassaria os objectivos e límites deste trabalho.

Podemos aqui nomear ainda mais um motivo que faz reprovar a chamada «tese

marítima», e isto é, a expansão dos marinheiros. Segundo a afirmação de muitos historiadores, os

marinheiros portugueses, devido às viagens marítimas ultramarinas, espalharam-se por todo o

mundo. No entanto, não há testemunhos que as suas canções tenham sido practicadas em

qualquer outro país, senão em Portugal, na cidade de Lisboa e, posteriormente, em Coimbra:

«Sendo Portugal um país com tão grande extensão marítima, O FADO teria aparecido em

diversos pontos de Portugal, levado por marinheiros e constaria dos arquivos e diários de bordo,

por exemplo na Ponta de Sagres, onde existiu a Escola Náutica.»61

É verdade que, os defensores da «tese marítima», afinal, admitem a existência de outros

elementos que talvez pudessem ter contribuído para a criação da canção do fado, tais como o

contacto dos portugueses com a cultura árabe (como já veremos no seguinte capítulo), porém

estes elementos são, para eles, considerados como secundários.

3.2.3 Tese árabe

A terceira das principais teses, defendida sobre tudo pelo historiador Teófilo Braga,

remete para as influências culturais dos mouros que chegaram a Portugal do norte de África no

século VIII e permaneceram após a reconquista cristã, encontrando um certo paralelismo entre os

seus cânticos e a canção do fado em termos das características gerais da canção (e isto é, em

especial, a dolência e a melancolia nela exprimida) e das suas características temáticas (tais como

a saudade (ver mais o cap. 4.1.2)).

Teófilo Braga difere dos restantes investigadores já na opinião sobre a origem da própria

palavra fado, dizendo que esta teria derivado da palavra árabe huda, uma denominação para os

cantos de carácter melancólico, típicos dos mouros e trazidos para o mundo cristão já no século

60 Mais informação em: Child, Francis Jame: «The popular ballads of England and Scotland», Boston: Houghton

Mifflin, 1904

61 Pimentel, Alberto: «A triste canção do sul (subsídios para a história do fado)», Livraria central de Gomes de

Carvalho, editor, Lisboa, 1904, página desconhecida por motivo de erro na copia digitalizada

29

VIII e afamados já no século XIV pelo escritor castelhano Juan Ruiz, conhecido como Arcipreste

de Hita que, além de cantigas para cegos andantes e para tunas escolares teria escrito também

canções populares em árabe. Ainda que se duvide sobre a veracidade desta informação e, além do

mais, «dá-se por assente que não chegou a escrever n‘esta língua alguns dos seus cantares», é

certo que este escritor «obedeceu manifestamente à influencia árabe»62

e, como foi referido

acima, trouxe e afamou os cantos mouriscos no mundo cristão. Teófilo Braga aceita os hudas,

pelo menos, como um vestígio daquela mesma influência. E é ainda mais explícito ao dizer: «As

danças portuguezas participam dos caracteres provenientes da nossa situação: sensuaes, como

os Fados, os Batuques recebidos dos árabes e das possessões africanas, e as Modinhas recebidas

das colónias do Brazil.»63

Um outro antecedente árabe do nosso fado teria sido, como afirma Teófilo Braga, o canto

e dança chamados xácara: «É verdade que nas Epopeas da raça mosarabe fallando da xácara,

usada pelos xaques ou ciganos (d'onde veio a denominação xácara ou xacarandina) diz que o

nosso Fado é «uma degeneração da xácara, que pelas transformações sociaes veio a substituir a

canção de gesta da idade media.»64

Como foi referido acima, a base da explicação da sua teoria são, para Braga, as

semelhanças na dolência sentimental e na melancolia dos cantos dos Mouros, que são também

tão característicos para a canção do fado.

Para completar a sua teoria, Teófilo Braga alude às influências dos árabes no uso dos

instrumentos musicais, tais como o alaúde e o chamado «citolom» ou «cítola» da qual teria

derivado a guitarra, um instrumento indispensável para a canção do fado.

A influência árabe, literária e musical, é mencionada também noutros estudos acerca das

origens do fado, tais como, por exemplo, o de Mascarenhas Barreto. Na base da sua

62 Pimentel, Alberto: «A triste canção do sul (subsídios para a história do fado)», Livraria central de Gomes de

Carvalho, editor, Lisboa, 1904, página desconhecida por motivo de erro na copia digitalizada.

63 Braga, Teófilo: «O Povo Portuguez nos Seus Costumes, Crenças e Tradições», Vol. I - Costumes e vida domésticas,

Livraria Ferreira-Editora, Lisboa, 1885, pág. 385

64 Pimentel, Alberto: «A triste canção do sul (subsídios para a historia do fado)», Livraria central de Gomes de

Carvalho, editor, Lisboa, 1904, página desconhecida por motivo de erro na copia digitalizada

30

argumentação destaca-se uma filiação da canção do fado na «balada poética» mourisca, a

temática da saudade tratada nas canções árabes (ver mais o cap. 4.1.2) e a maneira de expressão

do próprio canto: «O trovar mourisco e a saudade a que a poesia árabe dedica constante

atenção, como motivo inspirador, influíram no trovar português, tornando-o diferente das

restantes baladas de origem provençal. Até o trinar arrastado da toada monódica dos Fados dos

nossos dias tem algo que nos recorda as melopeias árabes e se afasta nitidamente das canções

de folclore, com excepção dos cantares alentejanos, em que a influência mourisca se não

discute.»65

Esta teoria, ou seja, a tese árabe, parece ser a mais provável também ao fadista Frederico

Vinagre, justificando a sua opinião pelo simples motivo de que «uma grande parte dos fadistas é

natural do Alentejo, onde os árabes residiam; (...) não há dúvida de que o Alentejo tem dado ao

País muitos e bons fadistas66

. Além disso, este fadista encontra semelhanças na produção do fado,

mais concretamente, na maneira específica de cantar própria aos fadistas, afirmando que «os

trinados que ainda hoje se fazem, o arrastar da voz, tudo isso faz parte da nossa herança

árabe»67

Os primeiros e os mais eminentes oponentes, por terem definido o seu ponto de vista e as

suas ideias de maneira mais explícita, são Alberto Pimentel: No seu estudo «a triste canção do

sul» (1904) e Ernesto Vieira no seu «diccionario musical» (1899).– Pimentel, por exemplo,

apresenta o argumento de não corresponder os pontos de estadia dos Árabes em Portugal com o

ponto de primeiro aparecimento da canção do fado. Explica que nos últimos redutos dos Árabes

estendidos pela parte do sul de Portugal (Faro, Albufeira, Loulé, Aljezur e o Castelo de Porchas), não se

encontravam nenhuns vestígios de música semelhante ao fado antes de este aparecer em Lisboa,

donde «irradiou para as províncias, apenas com o caracter de «moda» de invenção moderna, o

que exclue a hypothese de uma antiga filiação árabe».68

Pimentel admite uma existência de uma certa influência árabe da natureza e do ritmo das

músicas populares do sul de Portugal, «mas esse rythmo não chega a ser choroso e cortante

65 Barreto, Mascarenhas: «Fado, Origens Líricas e Motivação Poética», Editorial Aster Lda., Lisboa, 1970, pág. 341

66 Castro D’Aire, Teresa: «O fado», Temas da Actualidade, Lisboa, 1996, página desconhecida por motivo de erro na

copia digitalizada

67 Ibidem.

68 Pimentel, Alberto: «A triste canção do sul (subsídios para a história do fado)», Livraria central de Gomes de

Carvalho, editor, Lisboa, 1904, página desconhecida por motivo de erro na copia digitalizada

31

como o dos Fadinhos, nem tem a mesma expressão de melancolia acabrunhada, esmagadora,

que distingue o Fado.»69

Muito mais explícito é Ernesto Vieira, a afirmar que «Nas províncias do sul, onde os

árabes se conservaram por mais tempo e os seus costumes e tradições são ainda hoje mais vivos,

o Fado é quasi desconhecido principalmente entre a gente do campo.»70

Além disso, Ernesto Vieira destaca a marcante divergência que há em termos das formas

poéticas do fado e as árabes: «A poesia com que, invariavelmente quasi, se canta o Fado è uma

quadra glosada em decimas, forma poética duma antiguidade pouco remota, sem relação

alguma com a poesia árabe.»71

A única influência dos Árabes, considerada por ambos investigadores como verdadeira e

indubitável, é a da tradição árabe da guitarra em Portugal: «É filha do alaúde musulmano, e foi

naturalmente conservada pelos jograes utouriscos. Alguns estrangeiros chamam-lhe ainda

«guitarra mourisca» para a distinguir do instrumento a que dão o nome de— guitarra — e que

não é outra cousa senão o violão ou a viola franceza.»72

Porém, afirmam que este mesmo instrumento não se identificou com o fado antes do seu

aparecimento na metade do século XIX: «a guitarra serviu entre nós para executar «sonatas» e

acompanhar «modinhas», muitas das quaes não glosavam assumptos tristes, nem cantavam a

fatalidade amarga do Destino.»73

Um outro motivo para considerar contestável a tese árabe, reside, para Alberto Pimentel,

numa incompatibilidade que há entre as canções portuguesas e as árabes, e isto é, em termos das

69 Ibidem.

70 Vieira, Ernesto: «Diccionario musical contendo todos os termos technicos», 2ª ed., Lambertini, imp., Lisboa, 1899,

página desconhecida por motivo de erro na copia digitalizada

71 Ibidem.

72 Ibidem.

73 Pimentel, Alberto: «A triste canção do sul (subsídios para a história do fado)», Livraria central de Gomes de

Carvalho, editor, Lisboa, 1904, página desconhecida por motivo de erro na copia digitalizada

32

suas melodias e da sua expressão. O próprio Teófilo Braga admite esta divergência: «A pobreza

ou simplicidade da Melodia portugueza provém lhe da falta de melismos, ornatos, floreios

estranhos, como acontece com as melodias hespanholas, muito pittorescas, mas cheias de

ornatos dos árabes.»74

Alberto Pimentel, aplicando esta mesma teoria ao canto do fado, exclue, definitivamente,

«a cooperação ornamental dos árabes na melodia do Fado, que é simples, ingénua, corrida...»75

Para concluir este capítulo, cumpre-nos repetir que as ideias desta tese, tal como das

outras aqui apresentadas, por mais que sejam contestáveis, devem ser levadas em consideração ao

estudar as origens do fado. Quanto à tese árabe, não há dúvida de que a cultura e, portanto, a

música mourisca, devido à sua presença em Portugal por mais de sete séculos, teria de deixar os

seus vestígios mesmo com a expulsão dos árabes da península após a reconquista cristã. Porém, a

questão de ser a música árabe a verdadeira origem da canção do fado, ou mera influência, será

difícil de resolver.

Antes de passar para a tese seguinte, mencionemos, mais uma vez, Alberto Pimentel que,

no fim da sua argumentação contra a veracidade da tese árabe, oferece uma proposta para uma

possível origem que nos pode servir de ponte para o seguinte capítulo: «Quer-nos parecer que os

Fados da actualidade estão mais próximos, na indole como no tempo, dos lunduns africanos do

que dos hudas árabes.»76

3.2.4 A tese afro-brasileirista

No que diz respeito ao nascimento do fado, a tese chamada afro-brasileirista, a última das

principais teses apresentadas neste trabalho, é, em geral, considerada uma das mais credíveis, e,

por conseguinte, será analisada com mais detalhe do que no caso das restantes. Como diz o seu

74 Tradição, Revista da Etnographia Portugueza, IV Anno, N.o 1, in: Pimentel, Alberto: «A triste canção do sul

(subsídios para a história do fado)», Livraria central de Gomes de Carvalho, editor, Lisboa, 1904, página

desconhecida por motivo de erro na copia digitalizada

75 Pimentel, Alberto: «A triste canção do sul (subsídios para a história do fado)», Livraria central de Gomes de

Carvalho, editor, Lisboa, 1904, página desconhecida por motivo de erro na copia digitalizada

76 Ibidem.

33

nome, esta tese, seguida, por exemplo, por Mário de Andrade77

, Manuel de Sousa Pinto78

, Luís

Moita79

, e, sobretudo, por José Ramos Tinhorão80

, atribui ao fado uma origem afro-brasileira.

Mais concretamente, afirma-se que a primeira expressão musical que levou o nome da

canção do fado teria nascido no Brasil, e isto é, como uma denominação duma dança com este

nome, e só depois de ter chegado a Portugal, na virada dos séculos XVIII e XIX, ganhou a sua

forma só cantada.

Os defensores desta teoria, em geral, apoiam-se no argumento de que, até o fim do século

XVIII quando «bailes do fado - formas brasileiras de dança e canto»81

- apareceram, não se

evidenciava a existência de nenhuma expressão musical que levasse este nome.

Sendo assim, «a canção chamada fado nasceu do intermezzo cantado das danças de fofa e do

fandango (..) que acabaria por destacar-se da dança e virar canção»82

.

Os «bailes do fado», por sua vez, nasceram de uma mistura das danças de Fofa e do

Lundum ou Lundu (danças afro-brasileiras) e da dança do fandango (uma dança de origem

provavelmente espanhola que, mais tarde, foi adoptada em Portugal). Antes de nos dedicarmos à

importância deste intermezzo para o desenvolvimento da canção do fado, o que faremos mais à

frente, consideremos primeiro a influência do fandango, da fofa e do lundum na criação dos

«bailes do fado».

No que diz respeito à dança do fandango, este, mais provavelmente, nasceu pelos fins do

século XVI como uma «mistura das danças tradicionais espanholas com as danças das suas

77 Andrade, Mário de: «Pequena História da Música», São Paulo, 1942

78 Pinto, Manuel de Sousa: «O Lundum, avô do fado», IN: Ilustração, A. 6, nº 141 (1 Nov. 1931), Lisboa, pp. 17-19.

79 Moita, Luís: «O Fado - canção de vencidos», Oito, Palestras na Emissora Nacional, Lisboa, 1936

80 Ramos Tinhorão, José: «Fado - dança do Brasil, cantar de Lisboa - o fim de um mito», Editorial Caminho, Lisboa,

1994

81 Ibidem, pág. 13

82 Ibidem, pág. 23

34

colónias americanas.»83

. Nesta dança aparecem elementos coreográficos de várias culturas, tais

como negro-africanos, orientais, ciganos e tradicionais europeus, o que se deve, mais

provavelmente, à convivência de várias culturas distintas neste país.84

A dança, em geral, era considerada lasciva, e era divulgada, sobretudo, entre a classe popular do

país. O fandango era acompanhado ao som da viola, e as partes da dança eram interrompidas

pelos «estribilhos cantados»85

. No século XVIII esta dança apareceu em Portugal, adoptando-se

ali tão facilmente que foi considerada uma dança popular nacional.86

Como foi referido acima, outras danças que contribuíram para a origem da dança

chamada fado eram duas danças importadas do Brasil – a fofa e o lundum.

A origem do lundum, segundo várias documentações, veio das danças do calundum, ou

seja, das danças dos ritos religiosos africanos representados no Brasil pelos escravos importados

deste continente. A miscigenação e a participação dos europeus no Brasil nos ritos dos negros já

desde o século XVI levou à dessacralização destas danças e logo à sua disseminação em todo o

Brasil. Nos anos trinta do século XVIII, a dança ganhou o nome de lundum.

Esta dança, tal como o fandango, era uma dança viva e rítmica, tinha uma imagem lasciva

(devido a um elemento coreográfico chamado por «Umbigada»87

), e, tal como o fandango,

praticava-se ao som de estribilhos cantados, produzidos pelos dançarinos. No que diz respeito ao

seu acompanhamento instrumental, o lundu, tal como o fandango, era «marcado por palmas

quando faltava acompanhamento de percussão»88

, e, mais tarde, graças à influência dos

europeus, era acompanhado ao som da viola.

83 Ibidem, pág. 17

84 Ibidem, pp. 17-18

85 Ibidem, pág. 27

86 mais informação em: Braga, Teófilo: «O Povo Portuguez nos Seus Costumes, Crenças e Tradições», Vol. I -

Costumes e vida domésticas, Livraria Ferreira-Editora, Lisboa, página desconhecida por motivo de erro na copia

digitalizada

87 Umbigada é uma denominação para uma dança de roda africana, marcada por movimentos lascivos, tais como a

aproximação e afastação dos corpos do homem e da mulher, imitando assim o acto sexual

88 Ramos Tinhorão, José: «Fado - dança do Brasil, cantar de Lisboa - o fim de um mito», Editorial Caminho, Lisboa,

1994, pág. 27

35

Segundo José Ramos Tinhorão, devido ao facto do seu estreito parentesco coreográfico

com o fandango, o lundum, com as trocas comerciais e culturais entre Portugal, a Espanha e o

Brasil, logo com o fandango e, mais tarde, junto com a dança da fofa, deu origem à dança

chamada fado.

Como já foi dito, o gosto por estas danças foi notado primeiro entre as camadas

populares dos centros urbanos do Brasil, porém, logo se ampliou para outras classes até que

chegou à aristocracia e à própria corte real. Um elemento que fez com que estas danças,

consideradas lascivas, fossem divulgadas para além da classe popular, foi, para Ramos Tinhorão,

o teatro onde apareciam negros e crioulos como músicos, cantores ou dançarinos, «introduzindo

os bailes licenciosos de origem negróide ou indiana»89

acompanhados por cantos e estilizando-as

« para torná-las moralmente aceitáveis»90

. Sendo assim, estas danças mesmo que lascivas

começaram a ser praticadas pelos nobres brasileiros.

Como já foi dito, os chamados «bailes do fado» nasceram da síntese das danças do

fandango, do lundum e da fofa, e isso é, mais provavelmente, no Rio de Janeiro, pelo fim do

século XVIII. Esta dança juntava o castanholado do fandango às umbigadas do lundum, mas

também «ampliava o papel do canto, trocando os estribilhos marcados por palmas pelo

intermezzo cantado às vezes de pensamento verdadeiramente poético, acompanhado à viola.»91

Sendo os «bailes do fado» uma dança de roda, os cantos, marcados pelo facto de serem

improvisados, eram praticados, além do tocador de viola, por coro de participantes.

Dentro da própria tese afro-brasileirista podemos encontrar várias divergências, tais

como, por exemplo, a que diz respeito ao lugar da origem da dança chamada fado e o seu

aparecimento em Portugal. A maioria dos defensores, tais como Manuel de Sousa Pinto, Luís

Moita, e, sobre tudo, Francisco F. Lopes, afirmam que este teria chegado a Portugal só depois do

regresso da corte real de D. João VI do Brasil, em 1821. Francisco F. Lopes prova assim a sua

afirmação: «em 1819, já o fado seria tocado, cantado e dançado no Brasil, e era ainda

89 Ibidem, pág. 20

90 Ibidem, pág. 20

91 Ibidem, pág. 59

36

inteiramente desconhecido em Portugal onde são referidas unicamente outras danças e

cantares.»92

Por outro lado, tais investigadores como Mário de Andrade, no seu livro «Pequena

história da música», tentam deixar-nos a prova que a dança chamada fado foi trazida para

Portugal já no século XVIII pelo tráfico marítimo que o teria introduzido nos bairros típicos da

cidade de Lisboa.

José Ramos Tinhorão, por sua vez, considera relevante a afirmação de Andrade, embora

não ignore a importância do papel da contribuição cultural que o dito regresso da corte

desempenhou: «Embora se possa dar quase como certo que em Portugal já se conhecesse a

dança do fado desde final de Setecentos — considerada a dinâmica normal das relações

culturais entre as baixas camadas da metrópole e da colónia —, ia ser o regresso do rei D. João

VI e sua corte para Lisboa, em 1821, o responsável pelo impulso maior na sua difusão.»93

Seguindo a tese do Tinhorão acima referida, baseada na vasta documentação, foram

precisamente os serviçais da corte real que fizeram esta disseminação entre a gente da mais baixa

condição, e foi precisamente nos redutos das camadas mais baixas de Lisboa onde a dança

acompanhada ao canto, assim chamada fado, começou a ser cultivada, recebendo as mais

diversas formas.

Os intermezzos cantados improvisados realizados entre as partes dançadas, dos quais,

segundo esta teoria, teria nascido a canção do fado, tal como a conhecemos hoje, começaram a

evoluir, na década de 20 e 30 do século XIX, e, destacando-se, ganharam a forma da canção a

solo. Como afirma Pinto de Carvalho94

, um outro apologista desta tese, esta evolução consistia

num processo de mistura e junção dos já referidos intermezzos dos «bailes do fado» com algumas

formas de cantares já tradicionais em Portugal, tais como, por exemplo, o chamado canto à

desgarrada de espírito crítico e o canto ao desafio de espírito humorístico95

. (ver mais o cap.

4.2.4)

92 Lopes, Francisco F.: «Fado na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», Vol. X, Lisboa - Rio de Janeiro, pp.

824-826

93 Ramos Tinhorão, José: «Fado - dança do Brasil, cantar de Lisboa - o fim de um mito», Editorial Caminho, Lisboa,

1994, pág. 14

94 Carvalho, Pinto de: «História do Fado», Livraria Guimarães & Ca., Lisboa, 1903, página desconhecida por motivo

de erro na copia digitalizada

95 Ibidem.

37

Estes cantares evoluíram sucessivamente: começaram a ser glossados até que receberam a

forma mais elaborada de quadras e décimas.

Quanto às suas características musicais, a nascente canção do fado, segundo várias

testemunhas, dispunha do acompanhamento muito básico (consistindo na repetição alternada dos

acordes de tónica e sétima da dominante) dando possibilidades aos cantores para improvisarem as

mais diversas melodias, que eram, em muitos casos, bastante rítmicas.

O primeiro lugar onde estes cantares começaram a ser cultivados foi «nas tabernas e

bordéis, ou seja, nos lugares de encontro das camadas populares que, na Lisboa da época, eram

constituídas por uma massa enorme e heterogénea de pessoas»96

. Tinhorão até acrescenta que «A

forma de canto solo, que a partir de meados do século XIX receberia o nome de fado,

representou uma criação espontânea das camadas mais baixas de Lisboa»97

cuja vida insegura e

o descontamento com a situação social em que se encontravam reflectia-se bem no espírito

humorístico, crítico e, mais tarde, amoroso, destas primeiras canções do fado (ver mais o cap.

4.2.4).

É natural que até a tese afro-brasileirista tenha os seus oponentes, e isto é, tanto da área

dos investigadores (José Lúcio Ribeiro de Almeida98

), bem como do ambiente dos próprios

fadistas (João Braga99

).

O principal motivo que leva os oponentes a condenarem esta teoria, é a divulgação

mínima da canção do fado além dos arredores de Lisboa: «Se assim fosse, mais uma vez ele teria

sido levado para outros pontos e não teria ficado circunscrito à zona de Lisboa».100

Destacando

96 Ramos Tinhorão, José: «Fado - dança do Brasil, cantar de Lisboa - o fim de um mito», Editorial Caminho, Lisboa,

1994, pág. 79

97 Ibidem, pág. 75

98 ALMEIDA, José Lúcio Ribeiro de: «Um Olhar Musical pelos Resíduos», 1.ª Edição, Ministério do Ambiente

Instituto dos Resíduos, Lisboa, 1998

99 PASSINHAS, Gonçalo: Biografia de João Braga. In Cotonete : Música e rádios on-line [online]. [s.l.] : [s.n.], 2010

[cit. 2011-08-19]. Dostupné z WWW: <http://cotonete.clix.pt/artistas/biografia.aspx?id=1278>

100 ALMEIDA, José Lúcio Ribeiro de: «Cordofones Portugueses» [online]. 2008 [cit. 2011-08-19]. Fado como

expressão musical. accesível em: <http://www.jose-lucio.com/Pagina2Fado/Expressao%20Musical.htm>.

38

um facto que enquanto a canção do fado, após a sua origem nos anos 40 do século XIX,

continuou a cultivar-se em Portugal até a actualidade, no Brasil esta viria desparecer sem deixar

qualquer vestígio.

Além disso, não devemos omitir uma verdade quanto aos oponentes desta tese, e isto é,

que estes, em muitos casos, sentem-se ofendidos pelo facto de que a origem da canção portuguesa

seja precisamente o Brasil, dizendo que «os brasileiros têm é que ficar muito orgulhosos da

Bossa Nova, sem precisarem de vir mexer cá no nosso fado.»101

sem levar em consideração uma

verdade que os defensores da «tese brasileirista» destacam ao afirmarem que o fado ganhou a

sua forma da canção urbana precisamente em Portugal...

Voltemos ainda, por última vez, ao crítico e investigador musical José Ramos Tinhorão,

que, no mesmo livro citado ao longo deste capítulo, admite a importância do elemento português

que desempenhou o seu papel na evolução da canção do fado: «é natural que a dança do fado ia

ganhar novas formas – adaptando-se à nova realidade social».102

Este facto leva-nos à conclusão que até esta teoria, tal como as outras, não nos devia

permitir considerá-la como única e absoluta verdade quanto ao surgimento do fado. Deviamos

antes considerá-la como um dos possíveis elementos que contribuíram para a sua criação,

levando em consideração, ao mesmo tempo, todas as teorias abordadas nos prévios capítulos, não

ignorando as hipóteses ou motivos de influência a que ainda faremos referência.

3.2.5 Outras hipóteses acerca da origem da canção do fado

Além destas teses aqui apresentadas existem outros motivos, mais ou menos

reconhecidos, que dão alusões acerca das possíveis origens do fado. Devemos acentuar que estas

hipóteses não desempenham o papel de teorias, mas sim de motivos que talvez pudessem

contribuir para o seu surgimento. A seguir vamos apresentar brevemente algumas delas.

101 Castro d=Aire, Teresa: «O fado», Temas da Actualidade, Lisboa, 1996, página desconhecida por motivo de erro

na copia digitalizada

102 Ramos Tinhorão, José: «Fado - dança do Brasil, cantar de Lisboa - o fim de um mito», Editorial Caminho, Lisboa,

1994, pág. 70.

39

Em primeiro lugar, devemos nomear a teoria de Gonçalo Sampaio103

, para o qual a canção do

fado teria a marca rural dos cantos tradicionais do norte de Portugal.

Além disso, há quem encontre paralelismos entre a nascença da canção do fado, ou seja,

«uma melopeia que tanto exprimia a tristeza unânime de um povo e a desilusão deste para com o

ambiente instável em que vivia»104

, e o movimento da corrente estética e literária do romantismo

e o posterior realismo,

Continuando com a enumeração das teorias acerca da origem da canção do fado, há outros

investigadores, tais como Margarida Brito105

, que encontram um certo paralelismos entre a

canção do fado e as chamadas «mornas» - um estilo musical típico nas ilhas do Cabo Verde, e

isto é, quer no seu «carácter suave e dolente»106

, quer nas suas características musicais e

temáticas, ou no seu acompanhamento instrumental.

Uma outra hipótese, apresentada por Alberto Pimentel no seu livro «A triste canção do

sul» aponta para a poesia portuguesa dos séculos XVI, XVII e XVIII, tal como, por exemplo, a

forma versificatória da redondilha, como um possível antecedente das letras da canção do fado:

«A lettra do Fado revela a facilidade espontânea da metrificação popular, da redondilha, que é o

portavoz da raça latina da península.»107

Portanto, segundo Pimentel, a canção do fado

representa uma natural consequência das tendências culturais e literárias puramente portuguesas.

O mesmo autor aponta para outros factores, já mencionados neste trabalho, para a classe

popular dos fadistas (ver mais o cap. 3.1.1) e para as suas canções das quais, precisamente, teria

103 Sampaio, Gonçalo: «As origens do fado», in revista Águia, N. 9-10, Porto, 1923, pp. 31-33

104 CASIMIRO, Vasco: História do fado. In CASIMIRO, Vasco. El fado : À volta do Fado no X-centrico [online].

[s.l.] : [s.n.], 2009 [cit. 2011-08-19]. Acessível em: <http://elfado.x-centrico.com/?cat=1>

105 BRITO, Margarida: «Breves Apontamentos sobre as Formas Musicais existentes em Cabo Verde», In Alfarrabio

[online]. [s.l.] : [s.n.], 1998 [cit. 2011-08-19]. Accesível em:

<http://alfarrabio.di.uminho.pt/cancioneiro/etnografia/margaridaBrito-formascv.doc>

106 Ibidem, pág. 4

107 Pimentel, Alberto: «A triste canção do sul (subsídios para a história do fado)», Livraria central de Gomes de

Carvalho, editor, Lisboa, 1904, página desconhecida por motivo de erro na copia digitalizada

40

evoluído a canção do fado actual. «O facto de termos encontrado nos Mysterios do Limoeiro108

a

palavra fadista (como termo de calão e) sem que até essa época (1849) appareça qualquer

vestígio do vocábulo Fado ou Fadinho na accepção de cantiga popular, leva-nos à conjectura de

que foi da moderna nomenclatura da classe que derivou o nome da canção, em vez de ser da

canção que proviesse o nome à classe.»109

Finalmente, no contexto da diversidade de todas estas teses aqui apresentadas, devemos

notar que os historiadores, qualquer que seja a sua tese sustentada, no fim de contas, convergem

num ponto ao constatarem que houve mais elementos que foram contribuindo para a criação

urbana a que hoje chamamos de Fado. Exemplificando com Rodney Galop que no seu livro

«Cantares do Povo Português»110

sintetiza as contradições e divergências, considerando a canção do

fado como uma «síntese, estilizada por séculos de lenta evolução, de todas as influências musicais que

afectaram o povo de Lisboa». Ou seja, para ele a canção do fado apresenta o resultado de sucessivas e

diversificadas influências que, ao longo da história, foram contribuindo para o enraizamento da matriz

urbana e popular da canção do fado e para a afirmação da sua própria identidade como forma de expressão

musical.

Aqui damos por concluída a apresentação das diversas teorias a que nos propusemos no

que diz respeito à canção do fado e às suas origens, levando em consideração que esta lista não

está completa, existindo ainda outras teses, mais ou menos reconhecidas. Como foi referido

acima, o objectivo deste trabalho não é uma enumeração de todas as teorias existentes, senão de

uma apresentação das mais importantes e mais reconhecidas no domínio do estudo científico do

assunto. Nos capítulos que se seguem faremos alusão às relações existentes entre estas teses aqui

apresentadas com a temática da própria canção do fado. Ou seja, através da enumeração dos

principais temas da canção do fado tradicional, na sua diversidade, vamos tentar provar como

estes influenciaram os investigadores nas suas suposições, definição e defesa das suas teses.

108 Cândido de Carvalho, João (Padre Rabecão): «Eduardo» ou «Os mistérios do limoeiro», Typ. da Revolução de

Septembro, Lisboa, 1849, página desconhecida por motivo de erro na copia digitalizada

109 Pimentel, Alberto: «A triste canção do sul (subsídios para a história do fado)», Livraria central de Gomes de

Carvalho, editor, Lisboa, 1904, página desconhecida por motivo de erro na copia digitalizada

110 Gallop, Rodney: «Cantares do Povo Português», Estudo crítico, recolha e comentário, Instituto Para Alta Cultura, Depositária

Livraria Feriu, Lisboa, 1937

41

IV. Os assuntos da canção do fado

A canção do fado, ao longo da sua história, sempre serviu para designar certas verdades.

Como foi referido nos primeiros capítulos, e em especial em 1.1.5, o fado são os fadistas a cantar

a sua vida.

As diferentes temáticas da canção do fado costumam estar na base da explicação de

muitas das teorias sobre a possível origem do fado, seja ela a do amor ou a da tauromaquia dos

aristocratas para a tese provençal ou a da vida do marinheiro para a tese marítima.

Segundo a sua temática a canção do fado agrupa-se em diferentes categorias, tais como Fado

corrido, Fado Castiço, Fado Menor, etc.

É verdade que esta canção, ao longo do século XX, servia para defender certas verdades

políticas ou posicionamentos sociais, porém um aprofundamento deste tema iria além dos

objectivos propostos para este trabalho. Como nos dedicamos ao período iniciante do fado, serão

pormenorizados os temas tratados no fado tradicional, digamos, na época da sua origem e nas

primeiras décadas seguintes.

O objectivo deste capítulo é bem apresentar, sem entrar em detalhe, os assuntos tratados

no fado, para, talvez, completar um imaginativo sobre a sua origem e sobre a sua importância no

período do seu nascimento para o povo português.

Apresentando todos os particulares temas da canção do fado, desde os temas comuns até

aos temas próprios do fado de Lisboa e do de Coimbra, logo veremos que este tipo de canção

sofre a influência de várias culturas e estilos musicais.

4.1 Os temas comuns

4.1.1 O amor

O primeiro e o mais destacado tema, comum tanto ao fado de Lisboa como ao fado de

Coimbra, é o amor, desde o amor correspondido ou desencontrado, o amor feliz ou irrealizável.

Nas letras das canções do fado de amor figuram a descrição da beleza de uma personagem

feminina ou as virtudes do homem, e a descrição lírica das situações romanescas. O amor encobre em si a

42

sua outra face, também descrita nalgumas canções do fado deste tipo: o ciúme e a mentira, não faltando os que

«se referem a grandes crimes ou outros acontecimentos de sensação»111

Mesmo que o tema do amor seja comum a todos os fados do país não dependendo da sua

origem geográfica, há algumas diferenças que se registam entre o fado de Lisboa e o chamado

fado de Coimbra. Enquanto no fado de Lisboa o falante nas canções é uma personagem feminina,

nos fados de Coimbra prevalece a voz do homem. Este facto, como sabemos, levou a alguns

historiadores a encontrar paralelismos entre as cantigas medievais de amigo cantadas pela voz da

mulher e as de amor, representadas pelos jograis (ver mais o cap. 3.2.1).

Os estudos acerca do fado convergem numa opinião comum quanto à diferença do

tratamento do amor nas canções de amor de Lisboa e as de Coimbra, e isto é, que nos fados de

Lisboa prevalece o amor castiço, tal como o amor das prostitutas e outras personagens da classe

baixa, enquanto nos fados de Coimbra há um certo tom aristocrático e romântico ao se cantarem

os amores estudantis.

4.1.2 A saudade

A saudade, a palavra que interpenetra quase todas as letras da canção do fado, é

considerada uma palavra propriamente portuguesa que, em qualquer língua para que se tente

traduzir, não existe uma correspondência exacta. Há inúmeros estudos que tentaram definir esta

palavra tão polissemica, abrangendo em si tão vasto conjunto dos sentimentos humanos que

exprime num só momento, tanto tristeza como alegria. «A saudade comporta a ambivalência de

que nasce. (...) É um caleidoscópio que sintetiza, numa só vivência, toda a gama da

existência.»112

Esta saudade encontra-se na maioria das letras da canção do fado com o matiz

melancólico, e isto é, tanto nas lisboetas como nas de Coimbra.

Tal como foi mencionado no capítulo da tese árabe, «expressão de saudade manifesta-se

fundamentalmente na poesia e na literatura de proveniência mourisca»113

(tal como, por

exemplo, Abu-Becr-Ibn-Amar que nas suas trovas mencionou várias vezes a palavra «saúda», o

111 Pimentel, Alberto: «A triste canção do sul (subsídios para a história do fado)», Livraria central de Gomes de

Carvalho, editor, Lisboa, 1904, página desconhecida por motivo de erro na copia digitalizada

112 Guerra, Maria Luísa: «fado – alma de um povo (Origem Histórica)», Edição: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,

Lisboa, 2003, pág. 37

113 Barreto, Mascarenhas: «Fado, Origens Líricas e Motivação Poética», Editorial Aster Lda., Lisboa, 1970, pág. 22

43

possível antecedente da palavra saudade). Este facto leva a alguns investigadores à conclusão de

considerar verdadeira precisamente a tese árabe (ver mais o cap. 3.2.2).

4.1.3 O mar

O tema do mar costuma ser descrito tanto nos fados líricos, que cantam o infinito do mar

como tal, como nos fados descritivos, que se relacionam com a vida do marinheiro (ver mais o

cap. 3.2.2). O mar nas letras da canção do fado costuma ser personificado e as suas características

costumam ser comparadas com as qualidades femininas, adquirindo neste caso o artigo feminino

e o valor duma mulher.

4.1.4 O destino

Como define Alberto Pimentel, a denominação da canção do fado deu-se «às canções que

celebram as agruras do destino e a crença na lei irrevogável do Fado»114

. Esta afirmação

explica o facto de haver muitas letras de canções do fado que falam precisamente do fado, ou

seja, do destino, como tal.

4.1.5 Outros temas

Além destas três categorias temáticas acima apresentadas há inúmeras outras fontes que

servem de inspiração para as canções de fado, tais como temas líricos: a beleza da vida, a morte,

a guitarra, e épicos: descrição de festas populares, de assuntos religiosos, de acontecimentos de

tempos passados, « phenomenos sociaes quotidianos, de interesses e particularidades de

classe»115

, etc.

114 Pimentel, Alberto, A triste canção do sul, Livraria central de Gomes de Carvalho, editor, Lisboa, 1904, página

desconhecida por motivo de erro na copia digitalizada

115 Ibidem.

44

4.2 Os temas da canção do fado lisboeta

4.2.1 Personagens populares

Esta categoria temática abrange as personagens da classe popular, com a vida acidentada,

tal como os célebres fadistas e outras personagens de influência que possam interessar ao

ambiente fadista. Podemos dizer destas personagens serem «do mau destino» (ver mais o cap.

3.1.1), de uma vida inquieta, difícil e cheia de desconfortos.

Tal como foi referido no capítulo da tese marítima, há alguns fados que falam da vida

acidentada dos marinheiros, não deixando de mencionar a vida difícil dos que estão à espera

deles (sendo estas, em especial, mulheres). Nos fados exprimem a sua tristeza e esperança. Os

temas típicos dos marinheiros são comuns também aos desterrados: a mesma angústia do

desconhecido ou da morte, a mesma distância, o mesmo desejo do regresso à pátria.

Típicos nas canções do fado de Lisboa são as personagens dos bairros populares, tais

como as varinas - típicas vendedeira de peixes da Ribeira do Tejo em Lisboa, ou os pregoes – dos

vendedores de rua, que aparecem em fados descritivos.

Outras personagens descritas nalguns fados de Lisboa são célebres fadistas, tratando-se,

em maioria, das personagens femininas (destacando, nas canções do fado de então e de hoje, a

figura de Maria Severa Onofrian, uma fadista particular de proveniência popular).

4.2.2 A tauromaquia

Um outro assunto tratado nalgumas canções do fado é a tauromaquia e os seus aspectos.

Os jogos tauromáquicos conhecidos na península ibérica já desde tempos remotos, atingiram, em

Portugal o seu máximo esplendor no século XVIII, «até que o acidente trágico de Salvaterra de

Magos enlutou a Festa Brava»116

. Como uma reacção a este acontecimento

Fundou-se uma escola do ensino equestre em Portugal, representado pelo célebre

Marques de Marialva que deu a nova fama à tauromaquia em Portugal. O nome «marialvas»

tornaram-se uma denominação para «os cavaleiros tauromáquicos e, porque estes apreciavam o

116 Barreto, Mascarenhas: «Fado, Origens Líricas e Motivação Poética», Editorial Aster Lda., Lisboa, 1970, pág. 154

45

Fado e muitos deles o interpretavam, aquela denominaçao tornou-se corrente entre os

fadistas.»117

Estes elementos próprios à tauromaquia (as proezas dos Marialvas, os seus trajes e

cavalos, o acidente de Salvatera e outros) tornaram-se motivos de inspiração para muitas letras

dos fados. Este facto deixa-nos uma sensação de o fado, além de ser uma canção lírica, se

assemelhar às canções descritivas medievais dos aristocratas, recordando-nos a tese provençal.

4.2.3 A crítica social

Já nas primeiras canções do fado, chamadas «canto à desgarrada» ou «cantos ao

desafio»118

, aparece um certo tom crítico e irónico.

No início do século XIX, com a partida da família real para o Brasil, bem como a guerra

civil que se seguiu para determinar a sucessão ao trono entre D. Miguel e D. Pedro e os seus

seguidores, absolutistas e liberais, muitas tragédias e convulsões sociais assolaram a sociedade de

então. Os ideais liberais, veiculados pela revolução francesa, contribuíram para que as pessoas

começassem a não tolerar e a revoltarem-se, procurando libertar-se das injustiças sociais. Assim,

tendo presente os momentos históricos de então, não é de estranhar que fossem estes os temas

que começaram a ser cantados nos primeiros fados.

Enquanto a canção do fado como tal entrou no conhecimento geral (especialmente fora do

ambiente fadista) como uma canção lamentosa e melancólica, as primeiras canções deste tipo,

como afirma Pinto de Carvalho e Alberto Pimentel, e define José Ramos Tinhorão, não levaram

em si nada deste tom lamentoso: « De facto, basta uma visão geral do tipo humano frequentador

de baiucas e bordéis das primeiras décadas de Oitocentos para se compreender que lhes faltaria o

sentido por assim dizer metafísico das desgraças nascidas da situação de injustiça social em que

viviam. Pelo contrário, em vez dessa consciência (...), reagiam às desventuras através da sua

simples e realista comprovação, decidindo-se a enfrentá-las com coragem.» (((tinhorão, pág. 79)

Sendo assim, o povo exprimia as suas desgraças nas suas canções do fado com um acentuado tom

irónico. «Assim é que nas cantigas do Fado os assumptos mais tristes são temperados por um

sabor picante de ironia, que lhes adelgaça o azedume, como, por exemplo, quando o marinheiro

117 Ibidem, pág. 155

118 Carvalho, Pinto de: «História do Fado», Livraria Guimarães & Ca., Lisboa, 1903, página desconhecida por motivo de erro

na copia digitalizada

46

conta a sua vida, ao som da guitarra, sorrindo e zombando do seu próprio destino.»119

O arranjo

sentimental, que, aliás, nos é tão conhecido na canção do fado, chegou, segundo Tinhorão, só a

partir da segunda metade do século XIX com o advento da classe média onde, aliás, a canção do

fado foi também aceite.

Sendo assim, o fadista nas suas canções crítica a pobreza, a miséria da vida, as injustiças

sociais e as restantes classes superiores, além de comentar os acontecimentos políticos.

Como sabemos, este tom crítico dalguns fados leva a alguns investigadores encontrar um

paralelismo com as medievas «cantigas de escárnio e de maldizer» (ver mais o cap. 3.2.1).

4.2.4 Os lugares

Há inúmeras as canções de fado de Lisboa, tanto líricos como descritivos, que cantam a

cidade de Lisboa como tal, destacando as suas belezas e a sua atmósfera, com o seu rio Tejo, com

os seus recantos, ruas e bairros populares.

4.3 Os temas da canção do fado coimbrão

Como foi referido acima, o fado (ou a canção) de Coimbra como tal é considerado mais

literário do que o castiço fado de Lisboa, realçando nele a matiz estudantil. Generalizando os

temas do fado de Coimbra, além dos temas comuns também aos fados de Lisboa (o amor, a

saudade, o mar) trata-se de canções, digamos, duma cidade e dum rio: nelas se canta a beleza da

cidade, sendo esta, muitas vezes, personificada, os momentos passados à beira do rio Mondego, a

beleza da vida estudantil, da juventude e outros. Não há dúvida de que em todas as letras das

canções do fado deste tipo há um certo tom romântico.

Como foi referido no capítulo da «tese provençal», há uma certa tendência a encontrar

semelhanças entre as letras amorosas dalguns fados de Coimbra, cantados por homens, com as

medievais «cantigas de amor» (ver mais o cap. 3.2.1).

119 Pimentel, Alberto, A triste canção do sul, Livraria central de Gomes de Carvalho, editor, Lisboa, 1904, página

desconhecida por motivo de erro na copia digitalizada

47

Em síntese desta breve apresentação dos diversos temas da canção do fado podemos

deduzir uma afirmação, um pouco generalizadora, porém, enfim, nada falsa, que o fado, no

fundo, canta todos os parâmetros da vida humana, «reflecte a situação e a realidade vivida do

povo»,120

e da diversidade da natureza que o rodeia. Como já foi mencionado (no cap.1.5), na

canção do fado o fadista traduz toda a expressão da sua alma e oferece-nos uma sínthese da sua

existência.

Como foi referido acima, os temas na sua diversidade apontam para várias teorias acerca

da origem do fado aqui apresentadas, o que nos leva, mais uma vez, a aceitar uma certa

importância a cada uma delas.

V. Conclusão

Não há dúvida de que a canção do fado, como música popular urbana, na história da sua

origem, sofreu as mais diversas influências, e isto é, tanto musicais e culturais como históricas.

Porém, dentro destas influências esta canção logo ganhou a sua especificidade própria que

manteve ao longo da sua história até a actualidade. Esta especificidade faz distinguir esta canção

de outros estilos musicais como uma canção original, propriamente portuguesa.

Ao longo deste trabalho tentámos apresentar a problemática relacionada com esta canção

em termos da sua origem, exemplificando nos principais assuntos tratados nas letras desta canção

a relação que se faz entre as hipóteses da sua possível origem com a sua temática.

Em primeiro lugar, notámos que, dentro das hipóteses e estudos dedicados a este assunto

é necessário distinguir duas denominações: «o fado» - uma palavra que indica destino (ver mais o

cap. 3.1.1), usada em vários documentos desde séculos remotos, e «o fado» como expressão

musical que, segundo várias documentações, é conhecido só desde o século XVIII.

Além disso, notámos um facto de que devemos levar em consideração todas as teorias

existentes, sustentem estas uma origem recente ou remota para observarmos esta problemática na

sua plena complexidade sem tender à generalização ou subjectivismo.

Ainda ficou realçado que as características temáticas da canção do fado desempenham um

papel importante para que sejam deduzidas as suas origens.

A canção do fado, por mais diversa que seja a sua origem, é um estilo musical que ainda

continua a ser de pouco conhecimento para além do ambiente fadista. Por fim, resta-nos esperar

que o trabalho cumpra o último objectivo formulado em introdução, que possa servir de fonte de

informação deste peculiar género musical, e assim contribuir para uma mais fundada

compreensão do mesmo.

120 Ramos Tinhorão, José: «Fado - dança do Brasil, cantar de Lisboa - o fim de u m mito», Editorial Caminho, Lisboa,

1994, pág. 26

48

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