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Kleber Roberto Lopes Corbalan
A Igreja Católica na Cuiabá Colonial:
da primeira Capela à chegada do primeiro Bispo
(1722 - 1808)
Cuiabá - MT
Dezembro de 2006
Kleber Roberto Lopes Corbalan
A Igreja Católica na Cuiabá Colonial:
da primeira Capela à chegada do primeiro Bispo
(1722 - 1808)
Universidade Federal de Mato Grosso
Instituto de Ciências Humanas e Sociais
Programa de Pós-graduação em História
Mestrado em História
2006
Kleber Roberto Lopes Corbalan
A Igreja Católica na Cuiabá Colonial: da primeira Capela
à chegada do primeiro Bispo (1722 - 1808)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em História, Mestrado em História do
Instituto de Ciências Humanas e Sociais da
Universidade Federal de Mato Grosso como
requisito parcial para obtenção do Título de
Mestre.
Área de Concentração: História, territórios e
fronteiras
Linha: Fronteiras, identidades e transculturação
Orientadora: Profª Drª Maria de Fátima Costa
Cuiabá-MT
Dezembro de 2006
Banca Examinadora
A Igreja Católica na Cuiabá Colonial: da primeira Capela
à chegada do primeiro Bispo (1722 - 1808)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História, Mestrado em
História do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato
Grosso como requisito parcial para obtenção do Titulo de Mestre.
Profª Drª Maria de Fátima Costa (Orientadora)
Profª Drª Dirce Lorimie Fernandes (Examinador Externo)
Prof. Dr. Pablo Diener (Co-orientador e Examinador Interno)
Prof. Dr. Otávio Canavarros (Suplente)
Agradecimentos Agradeço, primeiramente, a minha orientadora, Profª Maria de Fátima Costa, pela
confiança depositada na minha capacidade na qual, muitas vezes, nem mesmo eu acreditei, e
que, com seu bom exemplo de profissional dedicada ao ofício do historiador, me inspirou
constantemente na pesquisa e no estudo.
Sem nenhuma exceção, agradeço a minha família pelo apoio e compreensão,
especialmente, à minha irmã Angelita que, diariamente, suportou as minhas desculpas quanto
à ausência nos afazeres domésticos. Foram três anos ouvindo: hoje não dá, tenho que estudar
para o mestrado.
Aos amigos e amigas da Universidade e da Associação Filantrópica São Judas Tadeu
e, de modo especial, àqueles que compreendem as dificuldades de se passar por uma etapa da
vida como esta, na qual, dizer um não ou se ausentar não significa irresponsabilidade ou
pouco caso, mas necessidade de se alcançar uma meta para depois comemorar juntos.
Enfim, agradeço a todos que direta e indiretamente colaboraram para a realização deste
trabalho: à Capes pela Bolsa que recebi durante dois anos; aos professores do Departamento
de História e do Programa de Pós-graduação - Prof. Pablo Diener (meu co-orientador), Profª.
Ludmila Brandão, Prof. Otávio Canavarros, Prof. Leni Casely e Profª Maria Adenir Peraro; às
secretárias do Mestrado em História, Matilde e Mônica pela paciência e boa vontade; aos
amigos de turma: Roseli, Fernanda, Helena, Silviane, Marildes, Malú, Téo e Maildes; e pela
gentileza dos bons funcionários dos arquivos em que pesquisei, grandes colaboradores.
Sumário Lista de Abreviaturas.............................................................................................................08 Lista de Figuras.......................................................................................................................09 Introdução................................................................................................................................11
Capítulo I - A Igreja do período colonial na América portuguesa e na Vila Real do
Senhor Bom Jesus do Cuiabá.................................................................................................20
1- Cuiabá: de primeira Freguesia a sede da Prelazia...........................................................33
Capítulo II - A Comunidade Eclesial da Cuiabá colonial...................................................45
1- Os representantes leigos: as pessoas seculares.................................................................48
2- Os representantes do clero: as pessoas eclesiásticas........................................................55
Capítulo III - A vida da comunidade católica de Cuiabá....................................................71
1 - A edificação dos espaços religiosos...................................................................................85
2 - Os rituais fúnebres.............................................................................................................95
Considerações Finais.............................................................................................................102
Documentação ......................................................................................................................106
Referências Bibliográficas....................................................................................................109
LISTA DE ABREVIATURAS APMT - Arquivo Público de Mato Grosso NDIHR - Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional IHGMT - Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso AINSR - Arquivo da Igreja Nossa Senhora do Rosário ACMC - Arquivo da Cúria Metropolitana de Cuiabá AHU - Arquivo Histórico Ultramarino
LISTA DE FIGURAS Figura 01-Capitania de Mato Grosso e Cuiabá/ Prelazia de Cuiabá.
Corbalan, 2006..........................................................................................................................35
Figura 02 - Planta da Vila Real – Localização dos templos no início do século XIX..
Corbalan, 2006 .........................................................................................................................40
Figura 03 - Vista do Cuiabá, Século XVIII. Anônimo, Casa da Ínsua – Castenda/Portugal. In
SOUZA NUNES, José M; ADONIAS, Isa. Real Forte Príncipe da Beira, 1985..................40
RESUMO
O presente trabalho traz como objeto de estudo a formação da Igreja Católica em
Cuiabá, durante o século XVIII e princípio do XIX. Período que vai desde a ereção da
primeira capela no arraial do Senhor Bom Jesus do Cuiabá pelos paulistas em 1722 até o
momento da chegada do primeiro bispo da prelazia de Cuiabá, D. Luiz de Castro, em 1808.
Desse modo, o objetivo central do trabalho é o estudo da formação da comunidade eclesial e a
implantação da instituição eclesiástica nas novas terras coloniais da fronteira. E assim,
verificar a influência do regime do Padroado, a delimitação de sua jurisdição, o
reconhecimento de seus membros e de suas práticas mais significativas que foram marcadas
por uma religiosidade fortemente influenciada pelos padrões culturais lusitanos da época
barroca: a organização da comunidade dos fiéis leigos (as irmandades), a edificação dos
templos, os rituais fúnebres e as celebrações festivas.
ABSTRACT
The present research brings as an object of study the formation of the Catholic Church
in Cuiabá, during the 18 th century until the beginning of 19 th century. The period goes from
1722, when the first chapel in the camp (arraial) of Senhor Bom Jesus in Cuiabá was erected,
by “paulistas”, to 1808, the year the first bishop belonging to the Cuiabá prelacy, D. Luiz de
Castro, arrived. By this way, the main purpose of this research is to study the formation of an
ecclesiastic community and the implantation of the ecclesiastical institution in the new
colonial frontier lands. Therefore, it aims to check the influence of the Padroado system, the
delimitation of its jurisdiction, the recognition of its members and their more significative
practices that were marked by a religiosity strongly influenced by the Portuguese cultural
patterns from the baroque epoch, it means, the organization of the laymen’s communities (the
Irmandades), the edification of temples, the funeral rituals and the festive celebrations
O presente trabalho traz como objeto de estudo a formação da Igreja Católica em
Cuiabá, durante o século XVIII e princípio do XIX. Este período vai desde a ereção da
primeira capela no arraial do Senhor Bom Jesus do Cuiabá pelos paulistas em 1722 até o
momento da chegada do primeiro bispo da prelazia de Cuiabá, D. Luiz de Castro, em 1808.
Apesar da importância da Igreja Católica na consolidação do novo território e da sua
participação direta na formação da sociedade colonial cuiabana observa-se, ainda hoje, a
ausência de um estudo específico sobre o tema. Há vários autores que teceram considerações
paralelas em importantes trabalhos, porém, não há no meio acadêmico nenhum trabalho que se
aprofunde na análise desta instituição, apesar de sua relevância histórica.
A análise preocupa-se com a implantação da Igreja Católica enquanto instituição e
enquanto comunidade. São duas as formas pelas quais a Igreja Católica está referida no
percurso do trabalho, ora como instituição eclesiástica, ora como comunidade eclesial. A
primeira volta-se para as questões da hierarquia, administração, jurisdição e organização do
poder, enquanto a outra se refere a questões que se relacionam à comunidade formada por
leigos e clérigos, ou seja, pessoas seculares e pessoas eclesiásticas que, na sua condição,
vivenciaram a sua fé.
Desse modo, o objetivo central do trabalho é o estudo da formação da comunidade
eclesial e a implantação da instituição eclesiástica nas novas terras coloniais. Verifica-se
também a delimitação de sua jurisdição, o reconhecimento de seus membros e de suas práticas
mais significativas como a organização da comunidade dos fiéis leigos, a edificação dos
templos, os rituais fúnebres e as celebrações festivas.
Quanto a estes aspectos específicos nos quais o presente estudo se adentra, é abordado
o elemento que perpassa a todos eles, ou seja, a influência da tradição cultural lusitana de
orientação barroca.
No conjunto dessas manifestações sócio-culturais, segundo Fernandes (2002), o
religioso se confundia com o profano formando no final um substrato que hoje chamamos de
barroco. Estas celebrações eram manifestações públicas cheias de simbolismo, verdadeiros
espetáculos de intenso colorido rítmico e visual que ostentavam o poder da Igreja e do Rei e,
imprimindo, desse modo, sobre a população sentimentos reflexivos diante da morte e a consciência
mítico-existencial quanto à efemeridade do mundo (FERNANDES, 2002: 86).
O catolicismo, além de ter sido a única religião permitida por Portugal a se instalar em
suas colônias, devido ao pacto que havia entre a Igreja e o Estado português através do regime
de Padroado que, por muito tempo dominou o meio eclesiástico era, acima de tudo, parte
integrante da cultura portuguesa. Ser português significava também ser cristão católico
(BOXER: 1978: 129).
Nestas condições, quando os primeiros sertanistas entraram no interior da América do
Sul, na busca de gentios e metais preciosos e encontraram ouro nos rios Coxipó, Cuiabá e
depois em Mato Grosso, trouxeram consigo a sua fé, pois, como bem observou Ricardo (1970:
206), todos os atos da vida cotidiana dentro das bandeiras se realizavam cristãmente. Os
intrépidos sertanistas sempre se faziam acompanhar por algum padre ou religioso. Estes
padres, os capelães, os ajudavam a descarregar a consciência nos momentos difíceis. O fato é
que o catolicismo foi também uma condição para que as Bandeiras acontecessem.
Considerando que o sertanista se sentia encorajado ao saber que seria amparado,
espiritualmente, no momento da angústia da morte.
Quanto à motivação dos padres (seculares, religiosos ou missionários), confirmou-se
que, mesmo sendo duvidosa no que se refere à difusão da fé católica, acabou garantindo,
direta ou indiretamente, as bases para a instalação da instituição eclesiástica e a formação da
comunidade eclesial. Pois, vários clérigos, se não a maioria, estavam interessados em juntar
riquezas e fazer fortuna, não era só o bandeirante que ambicionava ouro, não; o padre também
(Ricardo, 1970: 207).
De modo geral, o clero colonial da América Portuguesa, especialmente os padres
seculares conhecidos também como clérigos do Hábito de São Pedro, não eram bem-vistos
pelas autoridades locais devido, principalmente, a sua má ou pouca formação. Os padres do
Hábito de São Pedro eram seculares, ou diocesanos. Estes ficavam sob a administração de um
bispo diocesano.
Durante o período colonial, por vários motivos, os clérigos regulares pertencentes a
grandes Ordens religiosas também não eram bem-vistos pela Coroa, ocasionando serem os
clérigos seculares os únicos com permissão para se instalar e cuidar das paróquias nas regiões
mineradoras, apesar da má formação e comportamento duvidoso.
Entre os clérigos seculares e os regulares (os religiosos), havia várias diferenças;
dentre as quais se destaca a de que os padres seculares eram ministros da Igreja ordenados que
deveriam cumprir a obrigação do celibato e obedecer diretamente a um bispo diocesano,
podendo possuir bens em seu nome e levar uma vida independente como os demais membros
da sociedade, enquanto os padres regulares faziam votos como o de pobreza, castidade e
obediência (Cf. VASQUEZ, 2004).
Os padres regulares (religiosos) eram mais exigentes quanto à formação de seus
membros, principalmente os jesuítas. As Ordens que mais se destacaram na América
Portuguesa, neste período, foram os franciscanos, carmelitas, dominicanos, beneditinos,
jesuítas e agostinianos. No entanto, a atuação desses clérigos, além de causar muita polêmica,
foi restringida a regiões próximas ao litoral. Por desconfiança da Coroa, as Ordens religiosas
foram proibidas de se instalar com suas casas e mosteiros nas regiões mineradoras. O que não
quer dizer que os religiosos não estiveram lá; em Cuiabá, por exemplo, verificou-se a presença
de vários deles, principalmente os franciscanos. Na documentação há informações que
delatam a presença de algum religioso em Mato Grosso, incluindo esmoleres da Terra Santa,
durante todo o período colonial.
A presença regulada de clérigos nas regiões mineradoras ocasionou o florescimento de
uma organização eclesial marcada pela participação dos leigos através de associações
chamadas de irmandades. Estas eram associações criadas e organizadas espontaneamente por
pessoas leigas, ou seja, pela sociedade civil junto às igrejas tendo por referência um santo
padroeiro. Entre as irmandades mais antigas na Vila Real estão a do Senhor Bom Jesus do
Cuiabá, do Glorioso Arcanjo São Miguel e Almas, do Santíssimo Sacramento e a de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos (SIQUEIRA, 1995: 80; SILVA, 2001: 67).
Quanto ao papel da Igreja Católica, apesar de ser também utilizada como instituição
estatal na colônia por parte da Coroa portuguesa, sua presença fez parte da vida da nova
povoação de modo especial, pois, antes mesmo da instalação do próprio poder civil
metropolitano, verificar-se-á que ela já estava presente em meio à população. Em Cuiabá, com
a primeira capela levantada no novo arraial e dedicada ao Senhor Bom Jesus do Cuiabá, já em
1723, foi erigida a vigairaria com a presença do Padre Francisco Justo, do Hábito de São
Pedro, encomendado pelo bispo do Rio de Janeiro, D. Francisco de Guadalupe.
Desse modo, a Igreja Católica, enquanto instituição, estruturou-se rapidamente em
Cuiabá, apesar da demora de mais de meio século para a chegada do seu primeiro bispo. Em
menos de um quartel de século, em 1746, a sede da freguesia do Senhor Bom Jesus do Cuiabá
tornou-se, também, sede da prelazia da nova região que logo seria, em 1748, a capitania de
Mato Grosso e Cuiabá. A Vila Real passou a ser, então, a sede da nova prelazia do Cuiabá, ou
seja, uma grande circunscrição eclesiástica determinada através de Bula Papal, antes mesmo
que as fronteiras territoriais estivessem definidas por completo entre Portugal e Espanha.
A Bula Papal, Candor Lucis Aeternae, de 6 de dezembro de 1746, foi a que
desmembrou a diocese do Rio de Janeiro em cinco circunscrições eclesiásticas: bispado do
Rio de Janeiro; bispado de São Paulo; Bispado de Mariana; Prelazia de Goiás e Prelazia de
Cuiabá.
A prelazia de Cuiabá correspondia a uma grande área territorial, toda a região que hoje
abrange os atuais Estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia. Era, sem sombra
de dúvida, uma das maiores circunscrições eclesiásticas da colônia. No entanto, o trabalho, ora
apresentado, tem por referência geográfica somente o espaço da freguesia do Senhor Bom
Jesus do Cuiabá que compreende o território da Vila Real do Senhor Bom Jesus. O estudo da
prelazia em toda a capitania seria tema para outro trabalho.
As balizas temporais de que a investigação lançou mão têm como referência
cronológica o início do arraial do Cuiabá com a criação do primeiro espaço religioso e sua
utilização como matriz de uma nova freguesia em 1722, e como data limite o ano de 1808,
quando chega à Vila Real o primeiro bispo prelado de Cuiabá. Depois de anos de vacância do
cargo de prelado, a Igreja em Cuiabá recebeu seu primeiro dirigente, não tendo mais que
depender diretamente do Bispado do Rio de Janeiro e, conseqüentemente, inicia-se uma nova
fase para a igreja em Cuiabá.
A pesquisa se configura como documental e bibliográfica, realizada a partir de um
conjunto de fontes que conjugam documentação escrita (manuscrita e publicada). Estes
documentos se encontram em acervos de Cuiabá e Lisboa. Em Cuiabá, consultaram-se os
manuscritos guardados no Arquivo Público de Mato Grosso (APMT), no Instituto Histórico e
Geográfico de Mato Grosso (IHGMT), no Núcleo de Documentação e Informação Histórica e
Regional na Universidade Federal de Mato Grosso (NDIHR/UFMT), no arquivo da Igreja de
Nossa Senhora do Rosário (AINSR) e no Arquivo da Cúria Metropolitana de Cuiabá
(ACMC); este último está todo microfilmado e pôde ser consultado no NDIHR/UFMT.
Quanto aos documentos que fazem parte de acervos lusitanos - notadamente os do
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), uma vez que os mesmos foram microfilmados e
digitalizados, foi possível consultá-los através das microfichas pertencentes ao NDIHR, e dos
microfilmes e CDs depositados no APMT.
Como se trabalhou com um bom número de manuscritos, optou-se por atualizar a
ortografia dos documentos que aparecem citados no texto sem, contudo, interferir na
pontuação e conteúdo dos mesmos.
O trabalho aqui apresentado em forma de dissertação estrutura-se em três capítulos.
Estes foram elaborados buscando informações sobre a formação e a instalação da Igreja
Católica na região de Cuiabá.
O primeiro capítulo – A Igreja do período colonial na América Portuguesa e na
Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá - aborda o contexto colonial no qual a religião
católica foi inserida na América Portuguesa, de modo especial nas regiões mineradoras como
Cuiabá. Estas regiões apresentaram uma dinâmica social própria, na qual predominou a
participação leiga, mas com a tentativa efetiva de controle por parte da Igreja através de
normas como as Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia e da criação de dioceses e
prelazias. A Igreja, enquanto estrutura hierárquica com seus membros que atuavam
diretamente sobre as populações dos diversos rincões da América Portuguesa, se instalou no
novo território sob o regime de Padroado, pelo qual o Poder Real exercia sua função de
protetor de acordo com seus próprios interesses e não como se devia. O Estado português se
apropriou do controle e dos benefícios que a Igreja Católica proporcionava através de sua
estrutura e organização. No entanto, mesmo atrelada e subordinada a este Estado absolutista, a
Igreja colonial, por meio de seus líderes eclesiásticos, buscou se auto-afirmar através da
criação de normas próprias que dessem conta das necessidades de seu contexto sócio-cultural.
Na capitania de Mato Grosso e Cuiabá, de modo especial, a Igreja Católica deu o suporte
necessário para a estruturação das povoações e, indiretamente, na configuração do espaço
territorial da fronteira, mas, sobretudo, na organização e na busca de equilíbrio de uma
sociedade colonial mineradora com a implantação de suas normas e de seus valores morais.
Na construção do capítulo foram utilizadas fontes manuscritas avulsas (cartas,
correspondências, ofícios), o Livro dos Annaes do Senado da Câmara de Cuiabá e fontes
impressas (Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia e os escritos dos cronistas do
século XVIII: Barbosa de Sá, Joaquim da Costa Siqueira).
Já o segundo capítulo – A Comunidade Eclesial da Cuiabá colonial - trata da
participação dos agentes formadores da Igreja Católica em Cuiabá. A participação dos leigos
se deu, especialmente, através das associações (as irmandades) e da atuação dos membros
eclesiásticos, o clero secular e regular (religiosos). Por parte dos fiéis, as irmandades
representaram, no mundo colonial, o espaço privilegiado de manifestação popular de caráter
religioso, mas também de relativa liberdade e autonomia. Porém, não perderam o vínculo com
a política colonizadora, sendo dela agente, uma vez que reproduziram as discriminações
geradas por essa mesma política, entre elas o preconceito de cor, sangue e posição na
sociedade. O clero desta região mineradora, por sua vez, teve características específicas. Sua
atuação foi marcada também pela ação do Padroado real. Muitos membros do clero
comportavam-se como se fossem apenas funcionários públicos a serviço da Coroa, ou, com
muita freqüência, a serviço de si mesmos. Por ter sido proibida a entrada de Ordens Religiosas
na região das minas, predominou a presença do clero secular, diocesanos. Mas, foi freqüente a
presença de clérigos regulares. Alguns eram destemidos missionários a vaguear pelo sertão,
passando de vila em vila dando atendimento às comunidades, pregando, confessando e
abençoando os fiéis. Os documentos utilizados foram: manuscritos avulsos (cartas,
correspondências, ofícios, compromissos ou estatutos de algumas irmandades), o Livro dos
Annaes do Senado da Câmara de Cuiabá e fontes impressas (Constituições Primeiras... e os
escritos dos cronistas do século XVIII: Barbosa de Sá e Joaquim da Costa Siqueira).
O terceiro e último capítulo – A vida da comunidade católica de Cuiabá -, por sua
vez, trata de algumas práticas da vida da comunidade eclesial cuiabana (clero e irmandades).
Deu-se atenção àquelas consideradas mais expressivas, que constituíram uma religiosidade de
características próprias dos padrões culturais lusitanos que trazem como espírito orientador a
influência da época barroca. Assim, observaram-se as edificações dos templos religiosos, que
deram o suporte ao culto e à devoção aos santos padroeiros; os rituais fúnebres que permeiam
a angústia existencial dos fiéis e que também serviram de afirmação da autoridade
monárquica; e as festividades do calendário litúrgico que integravam a população por meio de
celebrações religiosas, cortejos, apresentações culturais e torneios. Neste último capítulo
também foram utilizados documentos manuscritos avulsos (cartas, correspondências, ofícios,
compromissos ou estatutos de algumas irmandades), o Livro dos Annaes do Senado da
Câmara de Cuiabá, fontes impressas (Constituições Primeiras... e os escritos dos cronistas do
século XVIII: Barbosa de Sá e Joaquim da Costa Siqueira).
Este trabalho, através do estudo da implantação e formação de uma instituição como a
Igreja Católica, sem ser pretensioso, quer dar uma contribuição para o entendimento da
formação da sociedade colonial da América Portuguesa e, de modo especial, da sociedade
colonial cuiabana, que cada vez mais rompe as barreiras do regionalismo historiográfico
buscando seu lugar na configuração da memória nacional.
I Capítulo
A IGREJA DO PERÍODO COLONIAL NA AMÉRICA
PORTUGUESA E NA VILA REAL DO SENHOR BOM JESUS DO
CUIABÁ
A partir da segunda metade do século XVI, quando, efetivamente, começou a
colonização lusitana no Brasil, o catolicismo que se implantou na colônia foi o marcado pela
Contra-Reforma engendrada no Concílio de Trento (1545-1563), ou seja, foi a implantação de
uma Igreja que havia passado pela crise da Reforma Protestante e agora se preocupava com a
expansão da fé e com a conquista de novos membros para o seu redil.
Porém, para aquele que se debruça sobre a religiosidade colonial, Boschi (1986)
recomenda que não se pode ter como parâmetro as normas e os padrões do catolicismo
doutrinal ditado pela teologia e pelo Direito Canônico. Em sua visão, o que se vê na colônia é
justamente o contrário, um catolicismo popular marcado pela precariedade da evangelização e pela
hipertrofia das constelações devocionais e protetoras 1.
Desde a chegada da caravana de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, os portugueses
trouxeram consigo a espada e a cruz. Tais representações forjaram emblemas na vida da
colônia desde os primórdios um universo existencial marcado pela religião com um forte
espírito católico, hoje representado, em parte, por um patrimônio cultural próprio do povo
brasileiro, seja ele material ou imaterial: nas festas populares, nas construções religiosas, nas
crenças etc.
Tal foi a influência do catolicismo na configuração sócio-cultural da colônia
portuguesa que, Hoornaert (1977: 246-247) considerou a Igreja no Brasil colônia como uma
cristandade. Não apenas como uma extensão da romana, mas como algo original, genuíno
com um jeito próprio em sua mistura de raças e costumes, mas conflitante na medida em que
1 BOSCHI Caio César. Os leigos e o poder. Irmandades leigas e Política colonizadora em Minas Gerais.1986: 59-60.
aceitava a escravidão. Os valores e virtudes eram interpretados segundo o ponto de vista de
uma sociedade que não sabia sobreviver sem escravos 2.
A Igreja Católica cumpriu um importante papel para os objetivos da Coroa Portuguesa
no Brasil. Foi através de sua estrutura que tudo era certificado e sustentava o estabelecimento
de uma sociedade não-fraternal. As freguesias, dentro de um regime colonial mal organizado,
davam conta dos registros dos nascimentos, casamentos e óbitos, da posse de terras, da
integração dos indígenas, catequese dos africanos, segurança das fronteiras e a da doutrinação
acerca do direito “divino” do império português 3.
Desse modo, consolidou a aliança estreita e indissolúvel que já havia há muito tempo
entre a cruz e a Coroa, o trono e o altar, a fé e o império. Esta era uma das principais
preocupações comuns dos monarcas ibéricos, ministros e missionários em geral 4.
Para que a fé se expandisse o Sumo Pontífice contava com o trabalho de Ordens
religiosas regulares e com seus missionários, como os franciscanos, dominicanos,
agostinianos, carmelitas e jesuítas, mas, sobretudo, com o apoio dos monarcas católicos por
meio do regime de Padroado, que desde a Idade Média a Igreja Católica confiou aos reis os
cuidados de novas conquistas, primeiramente à Espanha, a partir da expulsão dos mouros e,
depois também, a Portugal no ultramar 5.
Segundo Boxer (1978), sucessivos vigários de Cristo não viram nenhum mal em deixar
à custa dos monarcas ibéricos as missões católicas e instituições eclesiásticas na África, Ásia e
no Brasil. Estes direitos e deveres provinham de uma série de bulas e breves papais 6. Boxer
(2002: 243) define o Padroado Português como uma combinação de direitos, privilégios e
deveres concedidos pelo papado à Coroa Portuguesa, como patrono das missões católicas e
2 HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja no Brasil. Ensaio de interpretação a partir do povo. 1977: 248. 3 Idem, p 249. 4 BOXER, 1978: 98. 5 AZZI, Riolando. “Segundo período. A Instituição Eclesiástica durante a primeira época colonial”. In: História da Igreja no Brasil. Ensaio de interpretação a partir do povo. 1977:160. 6 Op. Cit.1978: 99.
eclesiásticas nas conquistas coloniais, transformando a Igreja, como bem observou Holanda
(1995:118), em um simples braço do poder secular, em um departamento da administração
leiga.
No caso lusitano, em conseqüência do grão-mestrado da Ordem de Cristo, sobretudo
depois de confirmada em 1551 pelo papa Julio III na Bula Praeclara carissimi, coube ao
patronato das novas terras descobertas exercer um poder praticamente discricionário sobre os
assuntos eclesiásticos 7.
Boxer (2002: 244) analisa bem as relações da monarquia com os membros
eclesiásticos em que os reis de Portugal davam ordens ao clero (bispos, párocos superiores de
Ordens religiosas) sem nenhuma consulta a Roma, controlando, assim, suas atividades e
algumas vezes até legislando sobre matérias eclesiásticas. Tal abertura fez com que, por meio
do Padroado, o Estado português reivindicasse para si o direito sobre as questões religiosas
que antes cabia exclusivamente à Igreja. Em outras palavras, Boxer (1978: 100) considera
que, salvo nos assuntos referentes ao dogma e à doutrina, a Igreja Colonial estava sob o
controle direto e imediato da respectiva Coroa.
De modo geral, esse regime foi a forma através da qual o governo de Portugal exerceu
sua função de “proteção” sobre a igreja católica, religião oficial e única permitida na nação
8. Os monarcas ibéricos tiveram a autorização do bispo de Roma para várias ações como:
[...] Erigir ou permitir a construção de todas as catedrais,
igrejas, mosteiros, conventos, eremitérios dentro dos respectivos
patronatos;
[...] apresentar à Santa Sé uma curta lista dos candidatos
mais convenientes para todos os arcebispados, bispados e abadias
7 HOLANDA Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil, 1995 : 118. 8 AZZI, 1977: 162.
coloniais e para as dignidades e funções eclesiásticas menores, aos
bispos respectivos;
[...] administrar jurisdições e receitas eclesiásticas e a
rejeitar as bulas e breves papais que não fossem primeiro aprovados
pela respectiva chancelaria da Coroa 9.
Aqui, até então, sem sombra de dúvida, pode-se chegar à conclusão de que o regime de
Padroado foi o instituto que norteou toda a vida religiosa das colônias lusitanas. No caso
brasileiro, conforme Boschi (1986:2), em termos cronológicos, orientou a maior parte da
história brasileira, pois só desapareceu nos fins do século XIX com a proclamação da
República, quando o Estado e a Religião se romperam.
Boaventura (1991:312) caracteriza esta situação para os países ibéricos no século
XVIII e início do XIX como um quadro complexo de imbricadas relações entre a Igreja e o
Estado. Em carta do Conde de Vila Verde enviada ao futuro prelado de Cuiabá em 1805,
verifica-se referência ao respeito que se tinha ao Sumo Pontífice na época, mas também se
observa a preocupação com as temporalidades da Coroa.
As sobreditas Letras Apostólicas há Sua Alteza Real por bem acordar
o seu Real Beneplácito e Régio Auxilio, para que se possam dar a sua devida
execução: com declaração porém, que pelo que respeita à Fórmula do
Juramento, deve V. Exª ficar entendendo, que sendo ele muito justo, e
necessário para tudo o que respeita aos Direitos do Primado do Sumo
Pontífice, não seja nunca vista fazer o menor prejuízo aos das
temporalidades da Coroa destes Reinos, para desnaturalizar a V. Exª dos
Privilégios e das obrigações de Vassalos da mesma coroa; e ficar pela
degradação deles inabilitado para possuir nos mesmos Reinos os Benefícios
9 BOXER, 1978: 100.
que somente são permitidos aos Nacionais, como Vassalos do mesmo
Senhor.
Deus guarde a V. Exª Paço em 26 de abril de 1805
Conde de Villa Verde 10.
Pelo visto, o conde esperava do novo bispo uma atitude razoável de entendimento
quanto ao seu papel de representante eclesial e, ao mesmo tempo, uma atitude de vassalo para
com Vossa Alteza Real. Fica evidente nesta carta a preocupação das autoridades seculares em
manter os chefes eclesiásticos cientes dos direitos que a Coroa possuía por meio do padroado
perante Roma.
Entre os vários direitos e deveres, o Padroado conferia aos monarcas lusitanos a
cobrança e administração dos dízimos eclesiásticos, ou seja, a taxa de contribuição dos fiéis
para a Igreja, vigente desde as mais remotas épocas 11. Segundo Boxer (2002: 244), os
dízimos recolhidos, quando eram realmente pagos, quase sempre tinham que ser
suplementados com subsídios, pensões ou outras formas de pagamento feitas através do fundo
geral do tesouro real, pois com freqüência eram insuficientes 12.
Além das várias obrigações dos monarcas para com a Igreja, cabia ao próprio rei como
grão-mestre da Ordem de Cristo também zelar pelo bem espiritual e material das colônias
portuguesas, da construção e conservação dos edifícios do culto, de remunerar o clero e de
promover a expansão da fé cristã 13. Enfim, era obrigação de Vossa Alteza financiar as missões
e as instituições da Igreja nas possessões ultramarinas.
Entretanto, na prática, a Coroa nem sempre (para não dizer quase nunca) cumpria com
sua parte. Muitos são os casos em que as côngruas não eram pagas, as igrejas acabavam sendo
10 CARTA do Conde de Vila Verde ao Bispo eleito para a Prelazia do Cuiabá. Manuscrito (daqui para frente mss), Doc nº 1579, Pasta 59, Cx 17, IPDAC-ACBM, IHGMT. Rio de janeiro, 26 de abril de 1805. 11 AZZI,1977:163. 12 BOXER, Charles R. O império marítimo português 1415-1825. 2002: 244. 13 Op cit. 1977: 163-164.
construídas e mantidas pelo clero local e pelos próprios fiéis que arcavam com os custos. Em
documento do período, verifica-se que um dos motivos pelos quais os prelados não assumiam
seus postos em regiões menos abastadas, como Cuiabá e Goiás, era exatamente a preocupação
com a falta de recursos e o não-pagamento das côngruas.
As duas Prelazias, que foram criadas pela Bula=Candor Lucis
eterno= de 1746, nunca foram providas em dois Prelados, porque se
julgavam muito tênues os seus reditos para a sustentação de cada um:
Puis-se remediar isto anexando a cada uma das Prelazias uma
vigararia pelo Alvará, ou Resolução de S. A. Real de 21 de maio de
1800. Vê-se, porém que esta providência não contemplou o Prelado, e
não na de Bispo; e que querendo S. A. R. , como quis e solicitou do
Santíssimo Padre Pio 7o , que o Prelado do Cuyabá fosse promovido
a Bispo, como se vê do Aviso de 26 de Abril de 1805, devia logo dar-
lhe uma Côngrua proporcional ao novo Caráter, como dá a todos os
mais Bispos Ultramarinos, e isto ainda supondo, que a primeira
Côngrua assinada ao simples Prelado, e os Reditos da Igreja anexa
fossem suficientes neste caráter; mas não o são; porque não há
pagamento efetivo, nem da tênue côngrua de 400$000 r ; [...] Quanto
aos Emolumentos da Igreja anexa, abasta dizer-se que são eventuais,
para não dizer Litigiosos e meramente dependentes do alvedrio dos
povos, que no caso de recusa não podem ser constrangidos, nem o
Bispo os constrangerá a pagarem. [...] Ora há de estar um Bispo a
este respeito ainda de pior condição do que um simples vigário! [...]
São estas as que novamente expõem a S. A.R. e para as quais suplia
um remédio, e uma providência digna da justiça e digna da Piedade
do mesmo Soberano 14.
Pelo documento verifica-se o quanto era importante a questão do sustento e,
conseqüentemente, do status para o exercício de um representante eclesiástico que ocuparia
um cargo de notável importância. A falta de pagamentos colocaria o bispo em situação de
constrangimento. Ao futuro prelado de Cuiabá chegou-se a recomendar que assumisse uma
outra diocese:
Em tão triste circunstancias, partiu o prelado do Cuiabá Bispo
de Ptolomaida, e [frase ilegível] se respondia a todas as suas
suplicas, e justos requerimentos, de que não que não ir para as suas
Prelazias, e que multiplicavam [danificado] para pertentarem demorar,
com esperança de melhorarem Quanto ao dito Prelado acabou já
semelhante argumento; nem também se poderá nunca fazer o outro, de
que ele se quis ingerir no Episcopado, para fazer escala para outra
Diocese; porque o dito Prelado antes da sua Sagração ponderou tudo
aquilo a S. A.R. pelos seus Ministros, o Ex mo Visconde d’Anadia
pedindo que o escusassem do Episcopado. Não foi aceita esta escusa, e
sagrou-se o Prelado do Cuyabá, mas logo depois reconheceu o Exmo
Conde de Vª Verde os inconvenientes, e ofereceu ao mesmo Prelado o
Arcebispado de Granganôr, acenando lhe com a esperança de não ir
aquela Região 15.
14 CARTA tratando das duas Prelazias de Cuiabá. Mss, Doc nº 1580, Pasta 59, Cx 17, IPDAC-ACBM, IHGMT. S.L, S.d. 15 Idem.
O documento informa ainda que o dito Prelado não aceitou a tentativa de remediar a
situação como queria o Conde de Vila Verde, justificando que em tal arranjo nada interessaria,
nem ao Estado, nem à Religião, nem à Igreja.
Outra solução possível apresentada ao problema seria a união das duas prelazias em
um dos dois Prelados nomeados, dando-se ao outro um congruente destino, e para isso nem
seria necessário uma nova Bula papal.
[...] porque há uma de 1746, expedida à instancia do Senhor
Rei D. João 5o , que se acha no Maio de 55 das Bulas, nº 3o , que
principia = significavist nobis niper = a qual dá faculdade para
alterar inovar e varia os Territórios dos Bispados Ultramarinos; de
cuja Bula há noticia também no Conselho Ultramar e na Mesa da
Consciência e não será a primeira vez q e ocorra aquele
arranjamento 16 .
Como se pode observar, através do Padroado, a Coroa portuguesa exercia, da
metrópole às colônias do além-mar, controle sobre a Igreja e para isso dispunha ainda de
outros mecanismos como a Mesa de Consciência e Ordens, que foi criada por D. João III em
1532 e abolida somente em 1828 pela Lei de 22 de setembro. Era um órgão colegiado que
superentendia os assuntos ligados ao ensino universitário, às ordens religiosas, à prestação de
assistência a necessitados (órfãos, doentes), ao resgate de cativos em mãos dos muçulmanos e
aos pedidos de graça dirigidos ao rei 17.
A partir da primeira década do Setecentos, a Igreja na América Portuguesa também
passou a subordinar-se às normas próprias da colônia através das Constituições Primeiras do
16 CARTA tratando das duas Prelazias de Cuiabá. Mss, Doc nº 1580, Pasta 59, Cx 17, IPDAC-ACBM, IHGMT. S.L, S.d. 17 BOXER, 2002: 275.
Arcebispado da Bahia. Estas normas eram conhecidas também como as Constituições
primeiras ou, simplesmente, as Constituições. Era uma compilação de regras doutrinais para o
governo do Arcebispado da Bahia, mas que serviu de referência para toda a colônia e foi a
única legislação eclesiástica elaborada no Brasil durante o período colonial. 18
Priore (1994: 92) entende este conjunto de normas como um sucedâneo, para a colônia,
dos artigos promulgados pelo Concílio de Trento para a cristandade moderna. Antes, porém,
no que se refere às questões de doutrina, dogmas e moral, a Igreja da América Portuguesa
tinha como parâmetro, além do Direito Canônico e das normas do Concilio de Trento, as
Constituições do Arcebispado de Lisboa. No entanto, na opinião das próprias autoridades
eclesiásticas do Brasil, estas já não davam conta da realidade colonial.
[...] achamos, que pelas Constituições do Arcebispado de
Lisboa, de quem este havia sido sufragâneo; porque suposto todos
nossos digníssimos antecessores as procuraram fazer, o não
conseguiram, ou por sobra das ocupações, ou por falta de vida. E
considerando nós, que as ditas Constituições de Lisboa se não
podiam em muitas coisas acomodar a esta tão diversa Região,
resultando dali alguns abusos no culto Divino, administração da
justiça, vida e costumes de nossos súditos [...] 19.
A Igreja colonial precisava adaptar-se, não havia mais como acomodar certas coisas, e
para conter os abusos que eram cometidos por seus súditos e por seu próprio clero precisava
de normas que correspondessem ao novo contexto social. O 5º livro das Constituições trata de
uma série de desvios cometidos na colônia, eram eles: crimes de heresia, blasfêmias, feitiçaria,
18 HOORNAERT, 1977: 177. 19 Constituiçoens Primeiras do Arcebispado da Bahia.1720. Microfime. NDHIR-UFMT
sacrilégio, pacto com Demônio, simonia, perjuro, usura, falsário, alcovitaria e alcouce,
homicídio, ferimentos, injúrias e os delitos da carne (sodomia, bestialidade, molície, adultério,
incesto, estupro e rapto, concubinato, proceder contra mulheres casadas e solteiras e clérigos
amancebados) 20.
As Constituições Primeiras foi o resultado de um Sínodo realizado em 12 de junho de
1707 por iniciativa do arcebispo da Bahia, D. Sebastião Monteiro da Vide. Segundo Hoornaert
(1977: 177), D. Sebastião foi a figura mais destacada do Arcebispado da Bahia no século
XVIII. Com uma formação jurídica sólida, este arcebispo idealizou inicialmente não a
realização de um sínodo, mas de um Concílio provincial, que só não aconteceu devido à
ausência do bispo do Rio de Janeiro.
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia foi impressa no ano de 1720 no
Real Colégio das Artes da Companhia de Jesus em Coimbra, trata-se de uma obra, hoje rara,
composta por cinco livros com um total de 1318 parágrafos, que orientou principalmente a
ação pastoral da igreja do Arcebispado de Salvador, desde a administração dos sacramentos,
pagamento dos dízimos, comportamento do clero, as irmandades ou confrarias, os espaços
sagrados, administração das paróquias, os enterramentos e os crimes contra a fé.
Como já foi dito, estas normas acabaram servindo de referência para toda a colônia da
América Portuguesa. Através de alguns documentos do período, verifica-se essa influência
também na Igreja que se formou em Cuiabá.
Aos vinte dias do mês de julho de mil setecentos e sessenta e quatro
nesta freguesia do Senhor Bom Jesus do Cuiabá na Capela do Senhor
Santo Antonio de Rio abaixo aonde o Reverendo visita dos Manoel da
Silva Martins comigo secretario da visita abaixo nomeado [...] E
provendo no espiritual e temporal [...] parecer determinar o seguinte
20 Constituiçoens Primeiras do Arcebispado da Bahia.1720. Microfime. NDHIR-UFMT
[...] Que o Reverendo Capelão em todos os Domingos e Dias santos na
forma da Constituição ensinará a Doutrina Cristã aos seus aplicativos
principalmente as pessoas rudes e mais pequenas e com elas cantara o
terço de Nossa Senhora antes de entrar a Missa. [...] Que o reverendo
Capelão não consinta, que na dita capela se faça Batizado algum sem
expressa licença do Reverendo vigário da vara e do Reverendo Pároco
pena de se proceder contra ele na forma da constituição [...] 21.
Observando o documento, percebe-se que a palavra constituição é citada duas vezes
pelo vigário Manoel da Silva Martins e evidencia outras orientações sobre o modo de se
proceder no templo sob pena de o capelão ser penalizado. O documento segue ainda sobre a
conduta dos fiéis dentro do templo:
Que o Reverendo Capelão não consinta entre na dita capela
pessoa alguma com esporas nos pés barrete ou coifa na cabeça pena
de se ele dar em culpa 22.
Mais dois documentos consultados confirmam essa influência e importância das
Constituições sobre a nova organização eclesial na América Portuguesa. Em 1779, em uma
carta do pároco de Cuiabá sobre a condenação de uns pais por não batizarem seu filho no
tempo exigido pelas normas vigentes da época, o padre justifica sua atitude para com a família
citando as Constituições.
21 TERMO de Visita da Capela de Santo Antonio do Rio Abaixo. Mss, doc 2115, pasta 90, ACBM-IHGMT. Vila
do Cuiabá, s.d. 1764 22 Idem.
Já nesta Vila [Vila Real do Senhor Bom Jesus] se tinha
divulgado que V. Exª me mandava repreender e ameaçar por queixas,
que de mim havia feito Antonio Joaquim da Silva Frª quando no dia 3
do corrente me mostrou o Mestre de Campo Antonio Joze Pinto de
Figueredo a representação com que aquele Antonio Joaquim havia
sabido a presença de V. Exª e também a carta, em que a Honra e
Benignidade de V. Exª recomendava ao dito Mestre de Campo que de
baixo de amizade me fizesse saber o que aquela carta e representação
continha, e da parte de V. Exª me disse-se que eu tomasse o arbítrio de
mandar batizar em Rio acima o filho daquele queixoso para sougarem
as suas queixas [...] eu o condenava por não fase batizar um filho
nascido a mais de dois meses se aqui há culpa não e minha: e toda do
Direito Canônico que determina que as crianças sejam batizadas
dentro de poucos dias, e que se proceda contra os pais descuidados.
Ate a Constituição do Arcebispado assim diz e impõem as condenações
segundo foi a negligência dos pais 23.
A influência destas normas na Igreja que se estruturou na Colônia foi tão forte que
atravessou o século XVIII e chegou até o período imperial como encontramos em outro
documento, já de 1876. Trata-se da ata de ereção da igreja de Nossa Senhora da Candelária de
Corumbá (Hoje Mato Grosso do Sul) que, apesar de ser do século XIX, é interessante para se
perceber que mesmo durante o Império, ainda continuavam em vigor as normas deste
documento, notadamente de grande relevância para a Igreja no Brasil.
- Ad perpetuam rei memoriam-
23 DIZ respeito a uma condenação aos pais de uma criança nascida há mais de dois meses a qual ainda não havia sido batizada. Mss, Senado da Câmara. APMT. Cuiabá, 1779,
Aos vinte cinco dias do mês de maio de mil oitocentos setenta e
seis, dia d’Assunção de Nosso Senhor Jesus Cristo, ano qüinquagésimo
sexto da Independência e do Império, n’esta Vila de Corumbá,
Província de Mato Grosso, pelas nove horas do dia, depois de
celebrado o Santo Sacrifício da Missa, pelo Reverendo Vigário da
Vara, Pregador Imperial, Frei Mariano de Bagnaia, autorizado pelo
Excelentíssimo Senhor Bispo Diocesano, em portaria de vinte seis de
novembro de mil oitocentos cinqüenta e nove, e na forma da
Constituição do Bispado titulo 16 nº683 e seguintes, benzeu a pedra
fundamental da Igreja que é dedicada a Deus e a Nossa Senhora da
Candelária, cuja edificação foi resolvida unanimente pela Irmandade
da mesma Senhora, Instituída n’esta Paróquia, e a é presentes a
Irmandade, as autoridades cíveis e militares e grande parte do povo da
Vila [...] 24.
Desse modo, pela documentação apresentada, nota-se que a Igreja, desde os seus
primórdios na história da colonização portuguesa, constantemente foi controlada através da
normatização, seja externamente por parte do poder secular, através do Padroado, ou ainda
internamente pela sua própria estrutura hierárquica que se formava na colônia.
Vila Real do Senhor Bom Jesus: de primeira Freguesia a sede da Prelazia.
De modo geral, a estrutura eclesiástica no século XVIII hierarquizava-se, enquanto
circunscrição eclesiástica, em arcebispado (ou arquidiocese), dioceses, prelazias e suas
freguesias (ou paróquias) com suas igrejas matrizes e capelas filiais. A diocese é uma porção
24 ATA da ereção da Igreja de Nossa Senhora da Candelária de Corumbá. Mss, nº 1088, Pasta 55, ACBM-IPDAC, IHGMT. Corumbá, 25 de maio de 1876.
do Povo de Deus confiada a um bispo com a cooperação do seu presbitério 25. Prelazia trata-
se de uma determinada porção do Povo de Deus territorialmente delimitada cujo cuidado, por
circunstâncias especiais, é confiada a um prelado que a governa como seu próprio pastor, à
semelhança do bispo diocesano 26. Segundo Hortal (1983: 197), a figura da prelazia territorial
foi usada ou para obviar certas dificuldades de caráter político, ou para organizar
eclesiasticamente territórios que não tinham os elementos mínimos como clero próprio,
substrato econômico para constituir-se em diocese. As paróquias são determinadas
comunidades de fiéis constituídas estavelmente na Igreja particular (diocese), e seu cuidado
pastoral é confiado ao pároco como seu pastor próprio, sob a autoridade do bispo diocesano
27.
Considerando-se o espaço correspondente à América Portuguesa, no século XVIII
contava-se apenas com um arcebispado, seis dioceses e duas prelazias. Salvador recebeu a
primeira diocese instituída em 1551, tornando-se, portanto, depois arcebispado. As dioceses
foram fundadas no Rio de Janeiro (1676); em Olinda (1676); São Luiz do Maranhão (1677);
Pará (1720); Mariana (1745) e São Paulo (1745). Existiam ainda prelazias subordinadas às
dioceses, como era o caso de Goiás (1746) e de Cuiabá (1746), ambas subordinadas à diocese
do Rio de Janeiro.
As prelazias, por sua vez, possuíam suas comarcas ou freguesias; a prelazia de Cuiabá,
na Capitania do Mato Grosso, dividia-se em duas comarcas eclesiásticas: da Santíssima
Trindade de Vila Bela de Mato Grosso (região do Guaporé) e do Senhor Bom Jesus do Cuiabá
com matriz na Vila Real (região do rio Cuiabá) como segue no quadro abaixo:
25 Código de Direito Canônico, Cân. 369. 26 Idem, Can. 370. 27 Ibidem, Cân. 515.
Figura 01 - Capitania do Mato Grosso e Cuiabá/ Prelazia do Cuiabá. Corbalan, 2006. Confeccionado pelo autor a partir de Rosa, C. A. “O urbano colonial na terra da conquista”. In. Rosa, C. A. e Jesus, Nauk M de (orgs). Terra da Conquista. História de Mato grosso Colonial. Cuiabá: Editora Adriana, 2003.
A comarca da Santíssima Trindade estendia-se desde os limites da capitania pelo lado
do Pará (norte) até o rio Jaurú (sul) e do rio Arinos (leste) até o rio Guaporé (oeste). A
comarca do Senhor Bom Jesus continuava desde o referido rio Jaurú e o rio Arinos (Oeste) até
o rio Grande (hoje Araguaia no sentido leste) que extrema a mesma capitania com a de Goiás,
do limite com o Estado do Pará (norte) até a divisa com a capitania de São Paulo (sul) 28.
28 ROSA, Carlos A. “O urbano colonial na Terra da Conquista”. In: A Terra da conquista. História de Mato Grosso colonial. 2003: 42.
A delimitação do território das circunscrições eclesiásticas foi motivo de disputa entre
o clero das duas freguesias. Consta nos Annaes do Senado da Câmara da Vila Real que, em
1746, com a descoberta das minas do Arinos, os Vigários de Cuiabá, o padre Manoel
Bernardes, e do Mato Grosso padre Pombo através de seu representante, o padre Antonio dos
Reis de Vasconcelos, chegaram a disputar por meio de excomunhões de um para com o outro,
o controle da nova povoação que acabou, por fim, se desfazendo com o desaparecimento do
ouro 29.
[...] não podendo averiguar o caso por si, nem por árbitros,
puxaram pelas espadas das excomunhões; e do Mato Grosso publicou
excomunhão contra do Cuiabá e todos os do seu séqüito, e este contra
aquele fez o mesmo.
Pregaram estas excomunhões na porta da capela que o Povo
tinha já erigido. Chegou um cavalo magro de Antonio de Almeida
Falcão com a boca tirou um papel daqueles que senão examinou qual
era. Sumiu-se ao mesmo tempo o ouro, que nem mostras dele serviram
mais. Retirou-se o povo com notável perdição deixando serviços,
roças, e casas [...]. 30
Aproximadamente quatro décadas depois, através de um edital de 04 de abril de 1780,
expedido pelo bispo do Rio de Janeiro, D José Joaquim J. Mascarenhas, verifica-se que o
cenário na capitania de Mato Grosso seria outro, praticamente o oposto.
[...] por nos constar que nas margens do Rio Paraguai que tem
servido de limites as Comarcas e Freguesias da Santíssima Trindade
de Vila Bela de Mato Grosso, e do Senhor Bom Jesus do Cuiabá se
acha estabelecida em terras pertencentes a uma, e a outra igreja
matriz uma não pequena povoação de moradores, os quais por ficarem
29 LIVRO dos Annaes do Senado da Câmara da Vila Real do Senhor Bom Jesus, mss, f.24. APMT. 30 Idem, f. 24. APMT.
distantes de suas Igrejas Matrizes não só padecem grave incomodo no
recurso a qualquer dos R. R. Párocos das mesmas Matrizes para
administração dos Sacramentos, mas também vivem expostos ao perigo
de falecerem sem receber aqueles que se aplicam aos fiéis em artigo
de morte por não estão nas mãos dos infernos a esperar com tão
prolongada demora enquanto se chama o Pároco [...] 31
Os moradores que viviam distantes das duas igrejas matrizes da Vila Bela da
Santíssima Trindade e da Vila Real do Senhor Bom Jesus, acabavam sendo abandonados
pelos párocos, faltava-lhes a administração dos sacramentos, vivendo assim expostos ao
perigo de faleceram sem receber a presença de sacerdotes. Diante deste quadro o bispo D.
José Joaquim J. Mascarenhas aprovou a divisão das freguesias, a desmembração e a ereção de
uma nova freguesia entre as comarcas da Vila Real e da Vila Bela. A nova freguesia seria
criada debaixo do título e invocação de São Luis da Vila Maria do Paraguai (atual cidade de
Cáceres-MT).32 Título já indicado, há um ano antes da aprovação, por sugestão do capelão
José Correa Leitão em correspondência ao Capitão General de Mato Grosso, Luis de
Albuquerque Pereira e Cáceres.
...E como na sua ereção se há de determinar e declarar o
Orago da freguesia e também necessário que V. Exª me ordene o
título ou orago da Igreja ou freguesia Assim como a Vila tem o titulo
de Maria, também a igreja há de ter o seu. E apressa com que eu [...]
de fazer a coisa me tirasse o tempo de consultar = eu para perpetuar
na daquela Vila o nome de V. Exª poria o seguinte = Freguesia de
31 EDITAL de Criação da freguesia de São Luis da Vila Maria do Paraguai. Mss, APMT. 04/04/1780. 32 Idem.
São Luiz de Vila Maria de Paraguai = V. Exª me determinará o que
hei de obrar.
Também são necessários limites para ela pois a freguesia não
há de constar so da vila. Parece que fica com bastante território
dando-lhe em todo o que fica do Sangrados do Mello para a parte do
Paraguai, desmembrando desta freguesia do Cuiabá tudo o que vai
daquele Sangrador até o Paraguai, em que estão algumas fazendas, e
aplicando a todo esse território, e seus moradores para a nova
freguesia, e pelo que me dizem é território de três dias de jornada não
prelada. [...] Para isto ser assim / no que não há dúvida quanto esta
minha freguesia / é necessário que o Reverendo Vigário desta
freguesia ceda dos fregueses que tem de Jaurú até o Paraguai [...] 33
Além do título da nova freguesia, a preocupação com a delimitação do seu território é
de capital importância para a sobrevivência da mesma. Quanto maior a área de abrangência
maior seria o número de fregueses e, conseqüentemente, maior a arrecadação e garantia de
sobrevivência da freguesia.
Até o final do XVIII a comarca do Senhor Bom Jesus contava com três freguesias: a
do Senhor Bom Jesus na Vila Real (1722), a de São Luiz de Vila Maria do Paraguai (1780) e a
Freguesia de Santana do Santíssimo Sacramento (1751) no arraial de mesmo nome na serra da
Chapada 34; na região da comarca do Mato Grosso havia apenas uma freguesia, a de Vila
Bela da Santíssima Trindade (1748).
Se comparado às quantidades entre Goiás e Cuiabá no final do século XVIII, a prelazia
de Cuiabá apresentava um número de freguesias pouco expressivo. A Capitania de Goiás 33 CORRESPONDÊNCIA referente à ereção da freguesia de Vila Maria do Paraguai e recusa do Frei Francisco Xavier Leite em dirigir a freguesia. Mss, Lata 1787 A - APMT. Cuiabá, 18 de abril de 1779. 34 Esta freguesia foi fundada por Ordem Régia em 1751, como missão de índios, pelos padres da Companhia de Jesus (os padres Estevão de Castro e Agostinho Lourenço) que vieram na comitiva do General Dom Antonio Rolim de Moura. (SIQUEIRA, Joaquim da Costa. Compendio Histórico cronológico das noticias de Cuiabá.2002: 115).
contava com um total de 27 freguesias, com suas respectivas matrizes, e 44 capelas filiais 35.
A Capitania de Mato Grosso somava apenas quatro freguesias. Até o final do Império, Mato
Grosso compreendia, além da capital Cuiabá, mais 14 freguesias eclesiásticas e civis 36.
Segundo Boaventura (1991: 313-314), após o Concílio de Trento, as paróquias ou
freguesias apresentaram-se como unidades de destaque e excelência na missão clerical,
responsáveis pelo discurso centralizador das práticas religiosas.
No panorama social do século XVIII, coube a elas [as
Paróquias] o exercício de um importante papel de caráter legislador,
como a cobrança dos dízimos referentes às questões litúrgicas, a
organização das festividades, serviços religiosos, ereção de capelas
particulares, etc...37
A freguesia do Senhor Bom Jesus era formada pela Igreja Matriz e suas capelas filiais.
Dentro do perímetro urbano da Vila Real até 1746 a freguesia contava além da matriz,
provavelmente, com a capela de Nossa Senhora do Rosário e a capela de Nossa Senhora do
Bom Despacho. Além deste espaço havia também outras capelas como a capela de Santo
Antonio de Rio abaixo, de Nossa Senhora da Penha de França (Arraial da Forquilha no rio
Coxipó) e de São Gonçalo (Beira Rio). E depois, até 1807, havia também as capelas de São
Gonçalo do Porto, Senhor dos Passos, Nossa Senhora da Boa Morte e, além de São Pedro Del
Rey (Poconé), São José dos Cocais (Livramento) e Nossa Senhora do Rosário de rio acima
(Rosário Oeste), como se pode conferir nas figuras seguinte:
35 BOAVENTURA, Deusa Maria Rodrigues. “Construção de igrejas e capelas em Vila Boa de Goiás no século XVIII: Relações entre condicionantes sociais e institucionais”. In: Fragmentos de Cultura. 1991: 315. 36 Estas freguesias eram: Mato Grosso ou Vila Bela, Poconé, Albuquerque, Miranda, Paranaíba, Piqueri, Santo Antonio, Santana da Chapada, Dom Pedro Segundo, Guia, Livramento, Brotas, Rosário e Diamantino. (Knob, 1988: 15). 37 Op cit.1991: 313-314.
A formação da igreja católica em Cuiabá se deu com a chegada dos primeiros
sertanistas, mas oficialmente com a instalação da freguesia. Este procedimento ocorreu antes
de qualquer outra instituição do Estado Português, antes mesmo da elevação do Arraial do
Senhor Bom Jesus do Cuiabá à condição de Vila. Desde o primeiro momento dos achados
auríferos em 1722, levantou-se uma capela coberta de palha por iniciativa do capitão-mor
Jacinto Barboza Lopes. Uma pequena palhoça que serviu de sede da freguesia que já neste
momento recebera o seu primeiro vigário curado e da vara, o padre Francisco Justo do Hábito
de São Pedro enviado pelo Bispo do Rio de Janeiro.
Conforme Costa Siqueira (2002: 22) e os registros dos Annaes do Senado da Câmara
de Cuiabá, no ano de 1724 o Bispo do Rio de Janeiro, D. Francisco de São Jerônimo, mandou
um segundo Vigário para Cuiabá, o padre Manoel Teixeira Rabello, este tomou posse da
igreja e entrou a exercer o seu pastoral oficio 38.
Somente seis anos depois da fundação da Vila Real do Senhor Bom Jesus, segundo
Canavarros (2004: 137), em 10 de junho de 1733, é que D. João V enviou ao governador de
São Paulo, Conde de Sarzedas, ordens para se fundar em Cuiabá uma vigairaria a fim de que
os cuiabanos não ficassem sem a administração do pasto espiritual. Um ano depois, em 1734,
o Governador respondeu que esta vigairaria já se achava criada pelo Cabido 39 do Rio de
Janeiro e confirmada pelo Bispo há mais de onze anos.
Passadas pouco mais de duas décadas da criação da vigairaria, em 06 de dezembro de
1746, a igreja de Cuiabá foi elevada à condição de Prelazia pelo Papa Benedicto XIV, por
meio da Bula Candor Lucis aeternae (Esplendor da Luz eterna).
38 SIQUEIRA, 2002: 22. 39 “Cabido é a forma portuguesa do latim capitulum, ou seja, reunião sob uma cabeça (caput), quer dizer, sob um superior. Paulatinamente foram assumindo também as funções de conselho ou senado do Bispo” (Código de Direito Canônico, 258).
“Esplendor da Luz eterna e imagem da bondade divina, o
Filho Unigênito de Deus, Jesus Cristo, Senhor Nosso, iluminando
maravilhosamente de suas alturas até os pontos mais remotos da
terra, suscitou no coração de nosso ilustríssimo filho João V, rei de
Portugal e Algarves o espírito de sabedoria e inteligência [...] voltou
sua atenção para a região da América, submetida ao seu poder
temporal e vendo na colônia do Brasil a Diocese do Rio de Janeiro,
com as bênçãos de Deus tão extensa por obra dos evangelizadores,
desde o início da fundação do seu episcopado, que dos pontos mais
distantes os pedidos e as queixas dos povos não chegam ao ouvido do
Pastor senão à distancia de um ano de tempo; [...] Vista e
considerada tal situação mandou que Nos fosse apresentada, uma
relação por meio do dileto filho Emanuel Pereira de Sampaio,
embaixador junto a nós e da Santa Sé para tratar das coisas
referentes a Portugal, relação solicitando se dividisse a imensa
diocese do Rio de Janeiro já existente, destacando uma outra em São
Paulo e mais uma em Mariana, deixando o restante a fazer para os
bispos e pastores, e que da mesma forma na mesma diocese se
estabelecesse uma Prelazia em Goiás e outra em Cuiabá, cada qual
atendendo sua população, arrancando-a do poder das trevas e
levando-a para o reino da graça [...] Roma, Santa Maria, 06.
12.1746 VII do Nosso pontificado 40.
O projeto apresentado pelo Conselho Ultramarino não era a criação de duas prelazias,
mas apenas a de Goiás com duas catedrais. Segundo Canavarros (2004: 139), D. João V talvez
enxergasse além de seus conselheiros, ao incluir a Vila de Cuiabá na proposta de 22 de abril
40 COMETTI, Pedro. Apontamentos da História eclesiástica de Mato Grosso – Paróquia e Prelazia. 1996: 59-60.
de 1745, apresentada à Santa Sé pelo ministro português em Roma, Manuel Pereira de
Sampaio. Pois, apesar dos gastos que isto traria aos cofres da Coroa, provavelmente os
portugueses acreditavam que os ganhos nas negociações futuras com a Espanha pela disputa
territorial seriam incomensuráveis. Tal diploma papal poderia significar a legitimidade da
conquista territorial, consolidava-se, assim, as fronteiras de suas terras americanas, sob a aparência
de um ato de fé cristã 41.
A Bula Papal estabelecia que, conforme Canavarros, os Prelados de Goiás e de Cuiabá
somente ficariam sujeitos à visitação, correição, superioridade e jurisdição do arcebispado de
Salvador em qualquer tempo no que tocasse à observância dos cânones, e deixava Cuiabá à
órbita do Bispado do Rio de Janeiro como até o momento já acontecia como era mais
conveniente à recém criada Comarca eclesiástica 42.
A elevação da freguesia à condição de prelazia seria o marco de uma nova etapa na
vida eclesial da região de Cuiabá e de Mato Grosso. A elevação da freguesia à condição de
prelazia daria à Igreja de Cuiabá um reconhecimento muito importante. Seria como um
registro de nascimento. Com um bispo a prelazia poderia se tornar mais independente em suas
ações.
No entanto, a nova prelazia continuou regida e administrada pelo bispado do Rio de
Janeiro até a primeira década do século XIX, pois seu primeiro prelado, Padre José Nicolau
d’Azevedo intitulado de Bispo Titular de Zoára, nunca tomou posse 43. Neste período de
vacância, os bispos que passaram pela administração do bispado do Rio de Janeiro foram os
que administraram a vida eclesial em Cuiabá e Mato Grosso. Ao todo foram cinco bispos na
seguinte ordem: D. Francisco de São Jerônimo, D. Antonio de Guadalupe, D. João da Cruz, D.
Antonio do Desterro e D. José Joaquim J. Mascarenhas Castel-Branco.
41 BOSCHI, 1986: 45. 42 CANAVARROS, Otávio. O poder metropolitano em Cuiabá (1727-1752). 2004: 140. 43 D. José Nicolau d’Azevedo nasceu em Lisboa, era licenciado em Direito Canônico pela Universidade de Coimbra. Foi transferido para prelazia de Goiás, mas renunciou. (COMETTI, 1996: 61).
Somente no século XIX, em 1808, com a nomeação de um novo prelado, é que a
Prelazia recebeu seu primeiro bispo, o sacerdote Luiz de Castro Pereira (intitulado Bispo de
Ptolomaida), da Congregação de São João Evangelista. Ele tomou posse por meio de um
procurador, padre Agostinho Luiz Gulart Pereira, em 1807. O prelado chegou no ano seguinte,
no mês de agosto, quando foi recebido com toda honra e pompa pela população da Vila Real.
Sua administração durou até o final do período colonial em 1822.
Quatro anos depois, em 1826, a prelazia foi elevada à condição de diocese e, em 1910,
Cuiabá foi elevada à categoria de Arquidiocese tendo como sufragâneas as Dioceses de
Corumbá e de São Luiz de Cáceres, criadas no mesmo ano 44.
Enfim, exercendo sua função de protetor de acordo com seus próprios interesses e não
como se devia, o Estado português se apropriou do controle e dos benefícios que a Igreja
Católica proporcionava, através de sua estrutura e organização com seus membros que
atuavam diretamente sobre as populações dos diversos rincões da América Portuguesa. No
entanto, mesmo atrelada e subordinada a este Estado absolutista, a igreja colonial, por meio de
seus líderes eclesiásticos, buscou se auto-afirmar através da criação de normas próprias que
dessem conta das necessidades de seu contexto sócio-cultural. Na capitania de Mato Grosso e
Cuiabá, de modo especial, a Igreja Católica deu o suporte necessário para a estruturação das
povoações e, conseqüentemente, na configuração do espaço territorial da fronteira, mas,
sobretudo, na organização e equilíbrio da realidade conflitante de uma sociedade colonial
mineradora com suas normas e valores morais.
44 KNOB, Pedro. A Missão Franciscana do Mato Grosso. 1988: 16.
A implantação da Igreja Católica na América Portuguesa pode ser caracterizada por
movimentos missionários compreendidos em quatro períodos: o primeiro movimento
acompanhou a conquista e ocupação do litoral brasileiro; o segundo movimento foi
condicionado pela ocupação do interior brasileiro através do rio São Francisco; o terceiro
movimento é o maranhense, através do rio Amazonas; e, o quarto movimento missionário
dado nas regiões mineradoras, o ciclo mineiro 45.
Este quarto movimento missionário acompanhou o ciclo da mineração que, por
proibição régia, não pôde ter a instalação de ordens regulares nas regiões de Minas Gerais,
Goiás e Cuiabá, o que acabou propiciando o florescimento de associações leigas, as
irmandades ou confrarias.
Entretanto, a presença clerical existiu com predominância dos padres seculares
(diocesanos) conhecidos também como do Hábito de São Pedro. Estes padres seculares eram
subordinados diretamente aos bispos ou aos respectivos cabidos. Apesar da proibição régia,
alguns religiosos também estiveram, eventualmente, na região das minas como missionários
pregadores, ermitões e/ou aventureiros.
A formação da igreja católica em Cuiabá enquadra-se bem nas características do
movimento missionário minerador, classificado por Hoornaert (1977: 42) como um
catolicismo que é fruto de missão leiga, não-clerical, que só veio a ser controlado décadas
depois, principalmente com a criação de novos bispados e prelazias como aconteceu em 1746.
45 Cf. HOORNAERT, 1977: 42.
Os sertanistas no início do século dezoito foram os que tomaram a iniciativa de
levantar as primeiras capelas e trazer consigo algum religioso para as obrigações dos Ofícios
Divinos. Sabe-se, então, que desde a formação do arraial do Senhor Bom Jesus, em 1720, a
comunidade eclesial foi se formando rapidamente com a participação da população, que
cultivava suas devoções aos seus santos protetores e, depois de erguidos os templos,
organizaram-se em irmandades e passaram a ter orientação e controle dos clérigos.
Apesar da participação dos membros do clero (seculares e regulares), a comunidade
eclesial em Cuiabá, predominantemente, foi formada pelos membros leigos que eram os
brancos, negros e mestiços (senhores, escravos e livres). Na documentação do período estes
dois grupos, leigos e clérigos, são diferenciados como o das pessoas seculares e o das pessoas
eclesiásticas.
A comunidade das pessoas seculares, os leigos, por meio de suas associações (as
irmandades), de acordo com Boaventura (1991: 314), foram os verdadeiros grupos
dinamizadores de ações nos núcleos urbanos de caráter aluvionário, tornando-se peças
importantes na estrutura da colônia e, em muitos casos, mesmo sem possuir um espaço
religioso adequado, instituíam-se em grupos não apenas para a constituição de laços
fraternos e espirituais mas também para cobrirem suas necessidades materiais...46.
Desse modo, não foram os religiosos de ofício
os responsáveis pela implantação da fé, mas
sim os próprios leigos - senhores e escravos-
que, indiferentemente de sua condição social
foram os agentes de formação da Igreja
Católica 47.
46 BOAVENTURA, 1991: 314. 47 BOSCHI,1986: 24.
Os representantes leigos: as pessoas seculares
Como se viu até o momento, por força da instituição do Padroado, a Igreja do Brasil
colonial teve um caráter predominantemente laical 48. Os leigos, as pessoas seculares,
participavam ativamente da construção das igrejas, dos atos religiosos, da promoção e cultivo
das devoções aos santos.
Hoornaert (1977: 234) identifica duas formas típicas de participação dos leigos no
catolicismo tradicional: uma participação coletiva através das confrarias e a outra individual
pelos ermitões que eram pessoas que escolhiam viver reclusas em ermidas sob uma vida de
oração e de profunda austeridade. Em Cuiabá verificou-se apenas a primeira forma de
participação e, da segunda, não se conhece até o momento o registro da presença de
indivíduos.
A forma de participação leiga coletiva na América Portuguesa foi, principalmente,
através das irmandades ou das confrarias, sendo o século XVIII o seu período áureo e ainda
perduraram fortes na época do Império. Somente na fase republicana é que as irmandades
passaram a ser marginalizadas pela Igreja Católica 49.
De modo geral, as confrarias eram associações leigas criadas e organizadas
espontaneamente pela sociedade civil junto às igrejas, tendo por referência um santo
padroeiro. Nas Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia as confrarias deveriam ser
instituídas para o serviço de Deus N. Senhor, honra & veneração dos santos 50. Segundo Hoornaert
(1977: 234), a finalidade específica da confraria é a promoção da devoção a um santo.
No Brasil, existiram confrarias destinadas às obras de Misericórdia e aquelas
puramente religiosas. Ambas com a sua devida importância na tessitura social 51. As
48 HOORNAERT, 1977: 234. 49 Idem. 50 Constituiçoens Primeiras do Arcebispado da Bahia.1720. Microfime. NDHIR-UFMT. Artigo 867. 51 TORRES, João Camilo de Oliveira. História das idéias religiosas no Brasil, 1968: 73.
irmandades junto aos Senados da Câmara eram instituições fundamentais na consolidação do
Império português no ultramar 52.
Conforme Torres (1968: 73), a ação das irmandades pode ser desdobrada em três
planos: o Econômico-social; o psicológico e o cultural.
No plano econômico-social as irmandades funcionariam como entidades de classe,
servindo de instrumento de ação social, pois a devoção ao mesmo santo significava a unidade
dos irmãos na proteção e salvaguarda dos interesses comuns e auxílio aos irmãos mais
necessitados 53.
Em nível de influência psicológica começava pelo fato de todos dentro da irmandade
serem irmãos, nas irmandades de negros os senhores não entravam. Durante as festas, por
exemplo, os descendentes de africanos saíam à rua com insígnias da realeza e imitavam as
cortes reais sem nenhum problema 54.
Por fim, no terceiro plano, o cultural, as irmandades colaboravam para a solução de um
problema etnográfico, na medida em que foram aculturando os africanos através da catequese,
da administração dos sacramentos e da acomodação de manifestações artísticas como os
congados e reisados 55.
As confrarias religiosas, ainda segundo Torres (1968), colaboraram para diminuir o
abismo entre escravos e senhores, entre negros e brancos, entre africanos e a cultura européia.
Em síntese, considerando o pensamento de Boschi (1986: 14), as irmandades eram como que
agentes de solidariedade grupal, congregando, simultaneamente, anseios comuns frente à
religião e às perplexidades da realidade social.
Siqueira (1995: 74) aponta as irmandades no período colonial como espaço
privilegiado de manifestação de relativa liberdade e de autonomia. Porém, não perderam o
52 ROSA, 2003: 13. 53 TORRES, 1968: 73. 54 Idem: p 74. 55 Ibidem: p 75.
vínculo com a política colonizadora, sendo dela agente, uma vez que reproduziam as
discriminações geradas por essa mesma política, entre elas o preconceito da cor, sangue e
posição na sociedade 56. Conforme Boxer (2002), eram os critérios raciais que determinavam a
composição da maioria dessas irmandades, pois cada grupo racial tinha a sua: brancos, negros
e mulatos.
Algumas não faziam nenhuma distinção de classe ou de cor,
nem separavam escravos de homens livres; entretanto, nas irmandades
de escravos ou de negros libertos em geral era um branco que servia
como tesoureiro, conforme especificavam os estatutos 57.
Dentre as irmandades mais antigas na Vila Real do Senhor Bom Jesus estavam: a do
Senhor Bom Jesus, do Glorioso Arcanjo São Miguel e Almas e do Santíssimo Sacramento,
ambas de irmãos brancos; de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e de São Benedito
formadas por negros e que, conforme registros, também eram freqüentadas por índios 58. No
século XIX aparecem as irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte criada por mestiços e as
do Glorioso São Francisco de Paula, de Nossa Senhora do Carmo e de São Gonçalo que ainda
não se sabe ao certo quem eram seus membros 59.
Segundo Siqueira (1995: 82), a Irmandade do Senhor Bom Jesus de Cuiabá teve sua
origem nos primórdios da Vila Real, no início do século XVIII, ocasião em que ocorreu a
ereção da igreja sob a invocação do Senhor Bom Jesus, padroeiro de Cuiabá. Em ofício de
1821, os devotos do Senhor Bom Jesus solicitaram ao rei de Portugal (D. João V), permissão e
aprovação para a instalação da irmandade. 60 Porém, não foi encontrada até o momento a
56 SIQUEIRA, 1995: 80. 57 BOXER, 2002: 306. 58 SILVA, 2003: 67. 59 Idem: p 54. 60 Op. Cit. 1995: 84.
documentação referente ao início da irmandade do Senhor Bom Jesus, assim como de outras
irmandades do mesmo período na Vila Real.
A irmandade do Senhor Bom Jesus, assim como a do Santíssimo, era uma instituição
representativa da classe dominante, composta por membros de sua elite cuiabana (homens,
brancos, livres, abastados, “homens de bem” ou “homens bons”) 61.
Nos termos do compromisso da Irmandade do Senhor Bom Jesus, especificamente, no
artigo 5º, verifica-se o perfil do possível membro que poderia fazer parte de seus quadros:
Esta irmandade não terá numero limitado de irmãos, e
irmãs, e nela poderão entrar toda pessoa branca, que a sua
devoção mover a isso contando que seja Cristã e Batizada, e não
seja infame precedendo determinação da Mesa [...] 62.
O estatuto da Irmandade do Senhor Bom Jesus permitia, também, a entrada de
mulheres nos quadros de seus sócios. Era necessário, entretanto, que os membros tivessem
boa conduta e que fossem aprovados pela Mesa diretora.
A Irmandade do Santíssimo Sacramento tinha como seu principal objetivo a promoção
do culto à Eucaristia, visando a sua promoção mais solene. Mesmo sendo muito difundida,
essa irmandade se restringia aos centros urbanos, pois era de fundamental importância a
presença de sacerdotes, e dela participavam apenas homens, em geral, figuras destacadas da
elite local 63.
Nas festas de Corpus Christi a Irmandade do Santíssimo era a principal responsável
pela procissão. Todos os anos nesta festa e na Quinta -Feira Maior (Quinta-Feira Santa) os
61 ROSA, 2003: 13. 62 LIVRO de registro do Compromisso da Irmandade do Senhor Bom Jesus Padroeiro do Cuiabá. IHGMT. In: SIQUEIRA, 1995: 89. 63 HOORNAERT, 1977: 236-237.
irmãos tinham por obrigação participar dos momentos de oração e do cortejo solene junto à
hóstia consagrada.
Outras duas confrarias importantes foram: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário
dos Homens Pretos e a de São Benedito, estas agregavam o grupo dos negros (livres e
escravos) em Cuiabá.
A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, segundo Botelho (1999: 138),
surgiu em Portugal de uma transformação gradativa das irmandades dos brancos, que já
tinham a mesma devoção. A mesma autora, tendo como base o Frei Agostinho de Santa
Maria, informa que o culto a Nossa Senhora do Rosário pelos negros teve início a partir do
resgate de uma imagem de Nossa Senhora em Argel (África). Posteriormente, os negros foram
sendo incorporados nas Irmandades já existentes na península Ibérica e ao se tornarem
numerosos criaram irmandades autônomas.
Das irmandades negras em Cuiabá também não se sabe ainda da existência de
documentação que comprove a data de fundação destas confrarias. Da irmandade de São
Benedito, sabe-se que no mesmo ano da ereção da igreja que serviu de matriz para a freguesia
do Senhor Bom Jesus, em 1722, também os negros levantaram uma capela a São Benedito que
depois veio a ruir. Mas a devoção ao santo negro continuou, pois ao lado, anexada à igreja de
Nossa Senhora do Rosário, foi feita uma capela dedicada a São Benedito e sabe-se, também,
que era cuidada pela irmandade do mesmo santo 64. Quanto à irmandade de Nossa Senhora do
Rosário, provavelmente, teve seu início também com a origem de Cuiabá, nas primeiras
décadas do XVIII. Segundo Silva (2001: 53), há um primeiro compromisso da Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário com data de 1751 e nele há informações de alguns irmãos que já
eram membros da irmandade há anos anteriores. Existe ainda um livro de acento dos Irmãos
da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, citado no trabalho de Silva
64 Cf. CORBALAN, K. R. L. Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito: viva lembrança de um passado colonial da Cuiabá setecentista, 1730-1791. 2003.
(2001), no qual o registro da entrada do primeiro irmão seria de 1757, no entanto, este livro
não foi localizado no Arquivo da Igreja de Nossa Senhora do Rosário.
Na América Portuguesa, a Irmandade do Rosário que tinha Nossa Senhora do Rosário
como padroeira dos pretos, escravos e forros, assim como as de São Benedito e Santa
Efigênia, tinham regras similares às de outras Irmandades européias. Os associados, como
obrigação, deveriam reunir ou, em outros termos, redimir os cativos e presos, casar os órfãos,
praticar boas obras, buscando meios de inserção social na sociedade estratificada e bem
definida do mundo colonial, por meio do universo religioso do contexto da colônia, criando
assim territórios negros dentro do espaço branco 65.
No caso da Vila Real, Silva (2001: 23) observou que nas irmandades de negros, por
meio de seus espaços sagrados, “famílias artificiais” foram estruturadas no intuito de ajudar ao
próximo e aos irmãos que mais necessitassem. As irmandades estavam presentes em todos os
momentos de dificuldade, desenvolvendo teias relacionais de trabalho, devoção e sufrágio.
No Compromisso de 1838 da Irmandade de Nª Sª do Rosário da Cidade de Cuiabá,
artigos 36º e 37º do Capítulo 12 encontra-se essa obrigação dos irmãos para com os falecidos
e enfermos.
Artº 36, Terá a Irmandade um cemitério Sagrado, em que se dará
sepultura ao corpo de qualquer irmão ou irmã.
Artº 37, Dos dinheiros provenientes das jóias e Anuais tirar-se-á
o necessário para as festas, e para os indispensáveis socorros aos
Irmãos enfermos nimiamente pobres e sufrágio dos que falecerem 66.
Segundo Silva (2001: 57), normalmente, as irmandades de brancos erguiam suas sedes
primeiro e só depois os mestiços e negros realizavam tal ação, sem interferência das
65 SILVA, 2001: 137. 66 COMPROMISSO da Irmandade de Nª Sª do Rosário da Cidade de Cuiabá. Mss,. Doc nº 1066, pasta 55, cx 16, ACBM - IHGMT. Cuiabá, 20-02-1838
autoridades vigentes. Mas, para que qualquer irmandade fosse reconhecida pelas autoridades
metropolitanas, era necessária a aprovação de seus compromissos ou estatutos.
[...] se devem evitar nelas [as confrarias] alguns abusos, e
juramentos indiscretos, que os confrades, ou irmãos põem em seus
estatutos, ou compromissos, obrigando com eles a pensões onerosas, e
talvez indecentes, de que Deus N. Senhor, e os Santos não são
servidos, convém muito divertir estes inconvenientes [...] 67.
Os compromissos ou estatutos eram formados por um conjunto de normas que
regulamentava toda a organização e o cotidiano das irmandades. Além das obrigações
tradicionais dos católicos como, por exemplo, freqüentar as missas, confessar-se e praticar a
caridade, os compromissos traziam outras orientações bem específicas e necessárias para o
bom funcionamento dessas associações: fixavam as datas e as formas dos festejos dos santos
padroeiros, as responsabilidades de seus membros e a hierarquização dos papéis dentro das
mesmas, entre outras.
De modo geral, as irmandades na colônia conformaram-se
com a legislação maior, tridentina e das Ordenações, bem como com
as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia que, no seu
Titulo LX, §867, estabeleciam a obrigatoriedade da aprovação dos
compromissos pelo bispo 68.
67 Constituiçoens Primeiras do Arcebispado da Bahia.1720. Microfime. NDHIR-UFMT. Artigo 867. 68 WESTPHALEN, Cecília Maria; BALHANA, Altiva Pilatti. “Irmandades religiosas de Paranaguá no século XVIII”. In: Cultura Portuguesa na Terra de Santa Cruz. 1995: 135.
A existência de número tão expressivo dessas irmandades na América Portuguesa,
especificamente nas regiões mineiras, segundo Botelho (1999), deveu-se também, em grande
parte, à forte resistência da Coroa Portuguesa em permitir a entrada e permanência de padres
regulares.
Como conseqüência desse sistema religioso implantado nas regiões mineradoras, a
Igreja não conseguiu acompanhar o movimento e a agitação da vida mineira. As freguesias
(paróquias), assim como o clero secular, ficavam absorvidos por questões burocráticas,
abrindo precedente aos leigos e contribuindo para que a sociedade civil colonial agisse por
conta própria, organizando-se através das irmandades 69.
Os representantes do clero: as pessoas eclesiásticas.
O clero das regiões mineradoras da colônia, em particular, foi definido por Hoornaert
(1977:99) como uma espécie de funcionário público, pois a maioria dos padres perdeu sua
dimensão missionária. Para se ter idéia do fato, o clero foi incluído no quadro do oficialato, ao
lado dos funcionários da coroa passando a existir assim, além das folhas secular e militar,
também a folha eclesiástica 70.
A função do clero era a de rezar missas aos domingos e nos dias de festa, confessar os
fiéis na páscoa; mas, pelo demais, este clero se dedicou aos ofícios de advogar, administração
de propriedades de mina ou engenho e até mesmo de contrabando de ouro ou pedras
preciosas; alguns ainda eram negociantes, fazendeiros, políticos, estalajadeiros, solicitadores
ou mesmo curandeiros 71.
69 BOAVENTURA, 1991: 314. 70 CANAVARROS, 2004: 137. 71 Idem.
Segundo Boxer (2002: 260), até certo ponto a própria Coroa era culpada por este
comportamento desviante do clero que, por não receber a manutenção adequada nas paróquias
com o dinheiro que recolhia dos dízimos, era forçado a pedir mais dinheiro aos seus
paroquianos e a exercer atividades que não lhe competia.
De modo geral, observa-se as mesmas práticas na atividade do clero em toda a
Capitania de Mato Grosso. Estavam os padres muito mais preocupados com a própria
sobrevivência e com a possibilidade de enriquecimento pessoal, do que propriamente com a
sua obrigação pastoral. O Capitão general Rolim de Moura, em 1758, escreve sobre o clero da
seguinte forma:
[...] Pelo que toca ao Cuiabá agora aceitei a demissão que fez
da Aldeia de Santa Ana sita no distrito daquela vila o padre Estevão de
Castro, e lhe nomeei um clérigo para substituir; mas ainda não tenho
aviso de se haver efetuado, nem sei se efetuará da parte dos clérigos;
porque os que vêm para as minas, é sempre com o sentido de
enriquecer, [...]72.
Mais tarde, outra autoridade reclama da atuação do clero. Em uma correspondência de
1788, o Juiz Ordinário André Alves da Cunha ao Capitão-general Luis de Albuquerque
reclama da falta do pasto espiritual da comunidade do distrito São Pedro Del Rey (hoje cidade
de Poconé em Mato Grosso).
Ilmo. e Exmo Snrº Com a devida submissão, e o mais profundo
respeito me apresento na amável, e sempre respeitável presença de V.
Exª implorando o Alto Poder de V. Exª. sobre a grande consternação,
72 CARTA a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, 15/11/1758. Apud: Série Correspondências, Rolim de Moura Tavares, Cuiabá, Imprensa Universitária, 1983. Coleção Documentos Ibéricos - Serie: Capitães-Generais.
em que se acha este aflito povo, com a falta de pasto espiritual [...] e
não temos esperança de melhora: porquanto o Reverendo Pároco quer
que se lhe pague meia oitava por cada pessoa: o que nem todos podem
fazer, pois se verem alcansandos, e não tiveram ouro com a grandeza
que antes havia: a vista do que vou por meio desta humilhar-me ao Pés
de V. Exª para que mande ao Reverendo Pároco, que supra esta falta,
mandando um capelão ; pois assim os povos não duvidarão pagar com
gosto os emolumentos paroquiais, pagando-se lhes meia pataca de
cada [...] São Pedro d’El Rey 2 de abril de 1788 [...] 73.
Para algumas autoridades, certos membros do clero não eram vistos com bons olhos.
Percebe-se um ar de desentendimento e até disputa entre os membros da sociedade local e o
clero.
[...] E como temer fundamento para justamente duvidar nos
tejam gloso dar estas propinas, e a dispeza que fizemos no Magnífico
Mausoléu que [...] em viva lembrança, [...] de rajada soberanas,
mandamos construir na Igreja Matriz desta vila, pois, o reverendo
vigário dela certamente não faria mais do que um ordinário sinal de
sentimento a Real grandeza de Vossa Majestade [...] 74.
Pode-se afirmar que a maioria dos clérigos não fazia jus à sua vocação. Vê-se pela
documentação que muitos deixavam a desejar quanto ao exercício de sua missão. Os motivos
de tal postura clerical poderiam ser explicados a partir de várias razões, mas o que mais se
fundamenta seria o baixo nível da formação dos padres seculares. Segundo Nizza Silva (1999:
73 CORRESPONDÊNCIA do Juiz Ordinário André Alves da Cunha ao Cap. Gal. Mss. Lata 1788 A, APMT. São Pedro d’El Rey, 02/04/1788. 74 CARTA dos oficiais da Câmara à rainha [D. Maria] em que pedem restituição dos gastos com as exéquias de D. Maria Vitória, mãe da rainha. Mss, CTA: AHU, cx 23, doc. 1383. APMT. Vila do Cuiabá, 12 de novembro de 1782.
93), a formação dos padres, dada a escassez de seminários diocesanos, tão recomendados pelo
Concílio de Trento, assentava fundamentalmente, nas aulas Régias de Gramática Latina,
espalhadas pelas vilas mais importantes, e nas de Retórica e Filosofia Racional e Moral,
criadas apenas nas cidades, embora não em todas.
Segundo Boxer (2002: 357), durante séculos, o baixo nível intelectual de muitos
clérigos portugueses da metrópole e do ultramar provocou comentários desfavoráveis. O
próprio Bispo do Rio de Janeiro reconhece as dificuldades de lidar com o clero,
especialmente, o da capitania de Mato Grosso.
O que posso segurar a V. Exª é, que nenhuma das Igr as do
extensíssim o território deste bispado me desse tantos cuidados,
como as dessa cap nia As informações, que tem chegado, e chegam aos
meus ouvidos, são as mais lastimosas, que se podem considerar. [...];
e por mais que eu pense, não tenho podido aceitar nos meios de
aplicar-lhe a providencia , de q’ tanto se necessita, como V. Exª m mo
de mais perto não pode deixar de conhecer 75.
A causa do problema, segundo o bispo, seria a má formação do clero. Em geral, a
formação do clero diocesano (secular) era muito precária. Segundo Boxer (1978: 21), essa era
uma preocupação constante no século XVIII para a metrópole. No entanto, mais adiante em
outro documento o mesmo bispo do Rio de Janeiro alega outros fatores como as condições
ambientais que atormentavam os sentidos, sendo as igrejas da Capitania de Mato Grosso as
que mais lhe dispensava cuidados. As informações que chegavam ao bispo seriam as mais
lastimosas.
75 OFICIO do Bispo do Rio de Janeiro a João de Albuquerque de M. P. e Cáceres. Mss, Doc nº 1999, pasta 57, cx 17, IPDAC-ACBM, IHGMT. Rio de Janeiro, 20 de março de 1792.
Ouço que infelizmente para todo o sertão grassa a torpeza dos
vícios contra a pureza da Nossa Santa Religião: que os infelizes
pecadores resistem á Doutrina Santa, e se ensurdecem para a reforma
dos seus costumes que os mesmos sacerdotes que há na Província e
servem de Pastores não são bem instruídos, e por conseqüência pensão
mais nos seus interesses, que nos de seu próximo;[...] 76.
E por mais que o bispo se esforçasse, o mesmo alegava que não tinha como tomar
providências, pois na sua visão entendia que o que faltava para a igreja da capitania era a
presença de um bispo na região.
V. Exª conhece muito bem os embaraços insuperáveis, que
ocorrem, para o Bispo do Rvº mandar bons operários aos vastos
sertões de Mato Grosso, e tão nocivos, de que todos se queixam, ainda
que sem tão justas causas, como V. Exª me diz: más como se poderá
resistir a voz comum, que inculca a pestilência dos ares desse clima?
Só um Bispo mais virtuoso, e mais discreto, que conferisse com V. Exª
de viva vós nesse mesmo Território me lembra seria o mais útil para
fazer frutificar nesse clima os saudáveis Dogmas da Santa Religião
Católica. Eu o representei já a S. Majestade Fidelíssima e com ofício se
nomeou um Bispo para Prelado do Cuiabá, e a muitos anos; mas não
me consta tenha saído da Vossa Corte. Deus V. Senhor provera de vem
e diz a sua Igreja [...] 77.
76 OFÍCIO do Bispo do Rio de Janeiro a João de Albuquerque de M. P. e Cáceres. Mss, Doc nº 1999, pasta 57, cx 17, IPDAC-ACBM, IHGMT. Rio de Janeiro, 20 de março de 1792. 77 OFICIO do Bispo do Rio de Janeiro a João de Albuquerque de M. P. e Cáceres. Mss, Doc nº 1999, pasta 57, cx 17, IPDAC-ACBM, IHGMT. Rio de Janeiro, 20 de março de 1792.
Porém, no meio deste clero interesseiro de Cuiabá houve exceções, como foi o caso do
padre João Caetano Leite que se manifestou preocupado com o estado da primeira igreja
erigida na Vila Real e, em 1739, incitou o Povo para que cada um contribuísse com o que
pudesse, para se fazer nova Matriz, por ser a que havia muito pequena, feita de pau-a-pique
coberta de palha, que não condizia com o erigimento 78. O outro exemplo foi o do padre José
Correia Leitão, muito estimado pela população cuiabana:
Foi o Pároco que a muitos anos a esta parte mais trabalhou
em pessoa na sua Igreja, sem embargo de ter dois coadjutores nesta
vila, a quem pagava pensão para o ajudarem e outros dois fora dela,
um em Rio acima, e outro no bairro do Cocais. Gastou com a sua
Igreja avultada quantia a fim em obras, como em alfaias, e destas
ainda existem um Cálice dourado feito ao moderno, uma caldeirinha
de prata, duas dalmáticas brancas, véu de ombros da mesma cor, e
várias alvas. Socorreu muito a pobreza da sua Freguesia não só a
particular com vantajosas esmolas, mas também a pública, sustentando
em sua casa a muitos necessitados todos os dias, essa cadeia o número
de doze presos avaliasse haver gasto com os pobres a terça parte dos
reditos da Igreja. Tinha gênio arrebatado porém muito flexível, e nada
odioso, passou desta Vila por ordem do Excelentíssimo Bispo do Rio de
Janeiro Dom José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castel Branco
para a Comarca de Goiás, onde se acha na Freguesia da Meia Ponte
ocupado nos empregos de Vigário da Vara, e Igreja daquele Arraial, e
Vigário Geral de toda a Capitania, havendo sido também Visitador
geral dela 79.
78 LIVRO dos Annais do Senado da Câmara de Cuyabá , f 21v. mss, APMT. 79 LIVRO dos Annaes do Senado da Câmara do Cuiabá, f. 47v, APMT
Dos sacerdotes que vieram para a Vila Real, a maioria era de padre secular
(diocesano). Da construção da primeira capela, em 1722, até a chegada de D. Luiz de Castro,
em 1808, a freguesia do Senhor Bom Jesus contou com o total de 20 párocos como se vê no
quadro abaixo 80.
- Tabela I - Párocos da Freguesia do Senhor Bom Jesus, 1722 - 1807.
Nº de Ordem Nomes
Ano de chegada E posse
Observações
1. Francisco Justos 1722 Vigário curado da Vara 2. Manoel Teixeira Rabello 1724 3. Lourenço de Toledo Taques 1726 Vigário da Vara e Visitador 4. Antonio Dutra de Quadros 1729 Vigário 5. André dos Santos Queiroz 1732
6. João Caetano Leite César de Azevedo
1735 Vigário da Vara
7. Antonio José Pereira 1741 Vigário 8. Manoel Bernardes Martins Pereira 1743 Vigário da Vara 9. Fernando Baptista 1747 Vigário
10. Antonio dos Reis Vasconcelos 1749 Vigário. Titulo de Doutor
11. João de Almeida e Silva 1750 Vigário e Visitador. Titulo de doutor
12. Manoel Antonio Falcão 1753 Vigário
13. João Antonio Vaz Morilha 1754 Vigário e Ouvidor
14. Jose Mendes de Abreu 1757 Vigário 15. Manoel da Silva Martins 1763 Vigário
16. José Pereira Duarte 1767 Visitador, vigário. Titulo de Doutor
17. José Correia Leitão 1777 Seu Substituto foi Francisco Xavier Leite
18. Luiz de Souza Correa 1781 Procurador do Padre Manoel Bruno Pina
19. José Vicente José Gama 1794 Titulo de Doutor 20. Agostinho Luiz Gularte Pereira 1796 Vigário da Vara
Fonte: Annaes do Senado da Câmara de Cuiabá
Segundo Rosa (2003: 30), a presença eclesiástica em Cuiabá, desde os tempos do
arraial (1721) até a chegada do primeiro Capitão-general (1751) da Capitania de Mato Grosso
e Cuiabá, soma-se no mínimo 44 sacerdotes, além de Juízes eclesiásticos e dos visitadores.
80 Idem, ver também Canavarros, 2004: 138-139.
Ao tomarem posse dos postos de vigário da vara (juízes eclesiásticos) e de pároco, os
padres, em sua maioria, entravam em conflito com seu antecessor, criando-se rixas, dando
ordem de prisão e espalhando excomunhões. O cronista setecentista José Barbosa de Sá
fornece vários exemplos de conflitos entre clérigos. Veja os casos do primeiro e do segundo
vigários da vara de Cuiabá ocorridos em 1727.
Veio também na mesma monção em que veio o General o
Padre Lourenço de Toledo Taques por vigário da Vara e Pároco desta
Vila provido pelo senhor Dom Frei Antonio de Guadalupe Bispo do
Rio de Janeiro entrou logo em visita formou muitos sumários prendeu
o antecessor o Padre Manoel Teixeira Rabelo com tal intrépido e
confusão que tremia a terra e abalavam se os montes temerosos de
tanta justiça [...] 81.
O rigor exagerado das atitudes desses clérigos para com seus antecessores pode ser
considerado como uma violência física e espiritual. O comportamento descortês, quase
homogêneo, só se compreende como um meio de se manter no cargo, inclusive perante as
autoridades civis, demonstração clara de disputa entre a Igreja e o Estado absolutista, apesar
do pacto do Padroado 82.
Como corporação, a Igreja podia ser aliada e até cúmplice
fiel do poder civil, onde se tratasse de refrear certas paixões
populares; como individuo, porém, os religiosos lhe foram
constantemente contrários 83.
81 BARBOSA DE SÁ, Relações das povoações do Cuiabá e do Mato Grosso de seus princípios até os tempos presentes. 1975: 21. 82 SIQUEIRA, 2002: 79. 83 HOLANDA, 1995: 118.
Essa disputa ferrenha entre Igreja e Estado também se nota pela atitude de D. João V,
que, mesmo sendo considerado o monarca mais subserviente à Santa Sé, lutou por seu direito
de padroeiro do Brasil e recusou, inflexivelmente, a permitir que qualquer ordem religiosa se
fixasse em Minas Gerais, o que ficou valendo para todas as regiões mineradoras da América
Portuguesa. Essa política de início foi adotada sob o pretexto de que frades renegados
estavam contrabandeando ouro das áreas de mineração 84.
Canavarros (2004: 140) confirma a idéia do risco de contrabando por parte das Ordens
Religiosas na colônia, à exceção das Ordens Terceiras compostas por irmãos leigos, sem votos
e nem sacramento de consagração 85. Entretanto, segundo Hoornaert (1977: 98), essa
proibição para regiões mineradoras aconteceu porque as Ordens Religiosas eram por demais
independentes, resultando assim numa conjuntura desfavorável para os religiosos. O exemplo
mais visível na historia da colônia foram os jesuítas, como bem demonstra Paulo Assunção:
O poder real dos jesuítas e o poder imaginado pelos
atacantes da Companhia de Jesus permitiram que uma série de
acusações e denúncias aflorasse de forma rápida, tendo como
preocupação denunciar e confirmar que os desatinos dos membros da
Ordem tinham começado desde longa data 86.
A Vila Real não contou com a presença de ordens religiosas durante o período
colonial. Porém, segundo Canavarros (2004), houve interesse da presença de missionários
84 BOXER, 2002: 260. 85 No caso de Cuiabá, Knob (1988: 21) levanta a suspeita da possibilidade de ter existido uma Ordem Terceira na Vila Real, mas não foi encontrado até o momento nenhum registro do período investigado. 86 ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios Jesuíticos. O cotidiano da Administração dos Bens divinos. 2005: 224.
para a Capitania de Mato Grosso, inclusive por parte da Coroa, mas, somente, com o intuito
de catequizar as nações gentílicas.
Desse modo, mesmo por pouco tempo, também estiveram na capitania de Mato Grosso
e Cuiabá os irmãos de santo Inácio. Foram apenas dois padres jesuítas, Estevão de Castro -
que foi para a Aldeia de Santa Ana da Chapada distante 8 (oito) léguas de Cuiabá e meia légua
da povoação onde hoje é atual cidade de Chapada dos Guimarães, para trabalhar com o
aldeamento dos índios - e, Agostinho Lourenço que acompanhou o general D. Antonio Rolim
para fundar a sede da nova Capitania, Vila Bela da Santíssima Trindade.
Seguindo as instruções dadas pela rainha D. Maria, o capitão-general D Antonio Rolim
de Moura, em 1751 chegou à recém-criada capitania do Mato Grosso e Cuiabá com os dois
inacianos concedidos pelo provincial dos jesuítas do Brasil. O objetivo era fazer com que os
índios das nações mansas, que se achavam dispersos servindo moradores a título de
administração, fossem recolhidos e formassem uma missão.
Ao realizar a conversão espiritual, os jesuítas ordenavam o
espírito indígena e a sociedade colonial, mas cabia ao rei favorecê-los
para que pudessem pôr em execução o projeto catequético de
conversão, controlando e evitando desvios 87.
Apesar do trabalho prestado por esses religiosos ao governo de Rolim de Moura 88,
informações recebidas do governador de Mato Grosso demonstravam que os jesuítas não
causaram problemas somente no Pará e Maranhão. Segundo Assunção (2005: 213), os
inacianos demonstravam que aumentar os domínios de El Rey católico não era o seu intento,
causando assim conflitos na região.
87 Assunção, 2005: 153. 88 CORREA FILHO, Virgílio. História de Mato Grosso. 1997: 656.
De fato, o padre Estevão de Castro que se dirigiu para a missão de Santa Ana na
Chapada parece não ter se adaptado muito bem, tendo causado certo descontentamento a D.
Rolim de Moura, conforme uma carta do próprio capitão já citada, em parte, anteriormente.
E quanto aos eclesiásticos, que hão de paroquiar os índios
agradeço e venero o parecer de Vossa Excelência, e confesso ser cheio
de cautela prudente a vista do que nos nossos tempos se tem visto, e
experimentado nos padres da Companhia. Pelo que toca ao Cuiabá
agora aceitei a demissão que fez da Aldeia de Santa Ana sita no
distrito daquela vila o padre Estevão de Castro [...] Mas pelo que toca
a Aldeia de São Jose, em que assiste o padre Agostinho Lourenço, o
que Vossa Excelência me insinua, e parte delas presentemente são
insuperáveis 89.
Nota-se também pelo documento que, em compensação, o outro jesuíta que havia ido
para Vila Bela teve um desempenho diferente de seu companheiro de Ordem. Contudo,
mesmo demonstrando ter reconhecimento pelo trabalho prestado por parte do padre Agostinho
Lourenço, o governador não pôde fazer nada pelo missionário 90. O trabalho dos missionários
foi interrompido pela perseguição promovida pelo Marques de Pombal e, em 1758, o general
D. Rolim de Moura recebeu uma carta régia mandando que os religiosos da Companhia
fossem remetidos ao Pará, logo em seguida foram expulsos de todas as terras lusitanas.
Como já se viu até aqui, o fato de nenhuma ordem regular ter se instalado na região da
Capitania de Mato Grosso, não foi impedimento para a presença de padres regulares
(religiosos), já que vários religiosos estiveram na Vila Real. A partir de uma contagem dos
89 CARTA a Francisco Xavier de Mendonça Furtado. 15.11.1758. Apud: Sèrie Correspondências, Rolim de Moura Tavares. Cuiabá, Imprensa Universitária: 1983. 90 BRETÃS, Márcia M Miranda. “Ler, escrever e contar: considerações sobre as práticas de ensino na Capitania de Mato Grosso”.In: A Terra da Conquista. História de Mato Grosso Colonial. 2003:135.
registros em crônicas do período, constata-se a presença de pelo menos 7 (sete) religiosos.
Destes, 5 (cinco) eram franciscanos, 1 (um) carmelita e o outro não foi possível identificar. De
modo geral, alguns eram missionários que atuavam juntos aos sertanistas, outros eram
andarilhos missionários que vagavam pelos sertões da colônia de vila em vila.
Notadamente, os franciscanos foram os que mais se destacaram enquanto presença
religiosa em Cuiabá. Barbosa de Sá em suas crônicas (Relações...), faz menção à presença de
vários desses religiosos, sendo também, os primeiros a chegarem na região do Cuiabá:
Ano de mil setecentos e vinte um chegaram neste ano alguns
dos que partiram de povoado o ano antecedente e escaparam da morte
com outros que neste mesmo ano partiram e com os primeiros se foram
juntando e juntos chegaram sendo os de mais nome: [...] o padre Frei
Florencio dos Anjos Religioso carmelita o Padre Jerônimo Botelho do
hábito de São Pedro o Padre André dos Santos Queiros do hábito de
São Pedro, o Padre Frei Pacífico dos Anjos Franciscano Irmão do
Capitão mor Jacinto Barboza Lopes 91.
O padre frei Florêncio dos Anjos, irmão do capitão-mor Jacinto Barboza Lopes, filhos
de Francisco Barbosa e de Francisca da Silva Rebelo 92, foi o mesmo que pela primeira vez,
como capelão, celebrou missa na capela de palha dedicada ao Senhor Bom Jesus.
Como esses religiosos conseguiam autorização para acompanhar essas viagens não se
sabe. Nas Constituições Primeiras para que um religioso de qualquer ordem pudesse fazer
pregação, ainda que fosse às suas próprias igrejas, teria que ter aprovação com licença por
91 BARBOSA DE SÁ, 1975: 13. 92 KNOB, 1988: 17.
escrito de seus superiores e do bispo 93. Os franciscanos, por exemplo, pelas suas Regras de
vida, eram proibidos de exercer o ministério da Palavra sem permissão de seu superior 94.
Barbosa de Sá, nas suas Relações, registra a presença de outros religiosos missionários
que passaram pela Vila Real e por Mato Grosso no Setecentos. Em 1729, na ocasião da
chegada da imagem do Senhor Bom Jesus na Vila Real, vinda de Sorocaba, foi o padre mestre
Frei José de Angola, um franciscano, quem fez missa cantada e sermão 95. Em 1736, vindo
em uma monção, um franciscano tentou chegar a Cuiabá, mas os índios Paiaguás o
interceptaram e ele não conseguiu sobreviver. Era o frei Antonio Nascentes, conhecido como
o Tigre devido a sua extraordinária força e intrepidez. Seus ossos foram transportados quatro
ou cinco anos depois para a cidade de Itu, onde foi sepultado com grande pompa no convento
franciscano de São Luiz 96.
Outro franciscano, que passou por Cuiabá em 1749, foi o frei Antonio do Extremo.
[...] chegou no mesmo ano [1749] por terra um religioso
franciscano o Padre Frei Antonio do Extremo só sem mais companhia
que um cachorro seu bordão na mão o Breviário na manga caminho de
três meses de viagem sem povoação alguma tudo deserto fez uma
missão com muito fruto passou a Mato Grosso na mesma diligência
voltou no ano seguinte e tornou por terra só e na mesma forma em que
havia vindo 97.
93Constituiçoens Primeiras do Arcebispado da Bahia.1720. Microfime. NDHIR-UFMT. Artº 515. 94 SAO FRANCISCO DE ASSIS. Escritos e biografias de São Francisco de Assis. Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano.1997. 95 BARBOSA DE SÁ, 1975: 27. 96 Op cit. 1988: 19. 97. BARBOSA DE SÁ, 1975: 54.
Frei Antonio do Extremo é venerado ainda hoje na Província Franciscana da
Imaculada Conceição como seu maior missionário 98. Pertencendo ao clero secular mineiro,
Antonio do Extremo entrou na ordem franciscana em 1730 e começou em 1740 uma vida de
treze anos contínuos dedicados às missões volantes nas regiões de Goiás, Minas Gerais, Mato
Grosso, São Paulo, colônia do Sacramento. Há a informação de que no arquivo da província
da Imaculada Conceição, conserva-se uma carta deste missionário, relatando a sua viagem
para a Colônia do Sacramento, escrita por ele um ano antes de sua morte, estando já doente.
Frei Antonio do Extremo faleceu em São Paulo no ano de 1753 99.
Knob (1988: 20) citando o frei Basílio Röwer, nos dá algumas informações sobre o
missionário frei Antonio do Extremo. Ele fazia as suas viagens ora acompanhando tropa, ora
em canoa, mas quase sempre a pé, calçando alpercatas. Sua vestimenta era um sertum (xale)
de baeta azul, bem amarrado, uma túnica, um hábito e manto que só retirava ao iniciar as suas
práticas no púlpito, que chegavam a durar até quatro horas. Para se proteger do sol e também
para beber água colocava uma cuia por debaixo do capuz. Pendurado a tiracolo carregava seu
breviário e uma latinha de rapé e na mão um bastão.
Em Cuiabá, depois das fadigas e privações da viagem, frei Antonio do Extremo,
bastante debilitado, recolheu-se por quatro meses na casa do síndico, ou seja, pessoa que
administrava os interesses da Ordem em lugares diversos 100. Após seu restabelecimento das
moléstias fez missão de nove dias em Cuiabá e depois na capela de Santo Antonio de Rio
Abaixo de onde embarcou numa canoa para as partes de São Paulo 101.
Em 1771, na Vila Real, um outro religioso franciscano se envolveu diretamente com a
construção de alguns edifícios religiosos da Vila Real, frei José da Conceição Paço de Arcos.
98 Divisão administrativa da Ordem dos Frades Menores que correspondem hoje a São Paulo, Rio de Janeiro, e parte de outros Estados da Região sudeste. 99 HOORNAERT, 1977: 112. 100 KNOB, 1988: 21. 101 IDEM, 1988: 21.
[...] neste ano em que vamos conseguir este intento o Doutor
Jose Pereira Duarte o não fazia por falta de pessoa inteligente que
mestrasse a obra [...] E como todos os acontecimentos humanos tem
na mente Divina ponto determinado aconteceu achar-se na ocasião
nesta Vila o Padre Frei Jose de Nossa Senhora da Conceição
Religioso de São Francisco no emprego de pedir para o subsidio dos
Lugares Santos conhecendo este os intentos do Reverendo Vigário
ofereceu-se para a fatura da Torre deu-se lhe princípio a custa do
Povo que todos concorreram com o que puderam e do mesmo Vigário
acabou-se nos fins de março do seguinte ano com toda a perfeição e
aprovação comum exercendo o dito religioso todos os empregos da
Arquitetura e Geometria não só mostrando a obra mas obrando com
suas mãos e ensinando os oficiais que nela trabalhavam 102.
A atuação desse franciscano, provavelmente, se deu também na igreja de Sant’Ana da
Chapada, construída por iniciativa do Juiz de Fora, Dr José Carlos Pereira, em 1779, bem
como na nova capela de São Gonçalo na região do Porto Geral da Vila Real 103. Diante da
necessidade de pessoas que mestrassem as construções, a presença deste religioso, com os
seus conhecimentos em arquitetura e geometria, colaborou muito com os espaços sagrados da
região, pois além de construir ensinou vários oficiais cuiabanos 104.
Frei José da Conceição parece ter sido um exemplo de conduta franciscana. Pois,
conforme Miranda (1976: 95), os religiosos franciscanos tinham o espírito operário, de
servidores de Deus e dos homens, por isso eram populares nas freguesias e nas cidades do
interior, permanente ou transitoriamente. Além disso, Frei José da Conceição também era
esmoler da Terra Santa.
102 BARBOSA DE SÁ, 1975: 45. 103 Cf. SIQUEIRA, 2002. 104 BARBOSA DE SÁ, 1975: 54.
A maioria dos esmoleres da Terra Santa, neste período andava por toda parte e é certo
que por Cuiabá passaram vários deles. Em 1755, encontra-se o esmoler da Terra Santa frei
Inácio de Santa Rosa, entre 1764 e 1767, faleceu o Irmão frei Francisco de Santa Maria,
também esmoler da Terra Santa, em 1771, frei José da Conceição Paços D’Arcos e, em 1801,
também falecido em Cuiabá o irmão frei Francisco de São Tiago 105. Segundo Knob (1988:
21), gozando de privilégios régios, estes religiosos podiam entrar nos territórios das minas e
pedir esmolas para os Lugares Santos na Palestina que eram confiados à Ordem franciscana
há vários séculos.
Desse modo, a comunidade católica cuiabana colonial foi formada por leigos e clérigos
seculares, características próprias de regiões mineradoras da América portuguesa. Foi uma
comunidade marcada, principalmente, pela atuação dos leigos através de suas associações e de
iniciativas individuais que deram suporte ao culto e ao convívio organizado entre os diferentes
grupos sociais e étnicos que formavam a sociedade colonial cuiabana. Mas, mesmo sem a
instalação de ordens religiosas a presença clerical se fez constante, através dos clérigos
seculares e de religiosos missionários que enfrentavam os perigos do sertão, garantindo (bem
ou mal) a manutenção da estrutura eclesiástica na região e assistência aos fiéis.
105 KNOB, 1988: 21 e 23.
O conjunto das práticas, das ações ou procedimentos da comunidade católica, tanto da
parte das pessoas seculares como das pessoas eclesiásticas, na Cuiabá colonial,
proporcionaria grande quantidade de estudos sobre o assunto. Entretanto, em função da
natureza deste trabalho e do foco que se pretendeu dar, abordamos aqui os procedimentos
mais significativos verificados na documentação referente a essa comunidade e que se inter-
relacionam como manifestações próprias do período colonial de tradição barroca.
O esforço depositado na arte e na arquitetura na edificação dos espaços sagrados, as
festividades tanto do calendário litúrgico como as procissões e entradas solenes das
autoridades laicais e eclesiásticas na vila, bem como os rituais fúnebres são as formas mais
freqüentes que apareceram na documentação, de como a comunidade colonial católica
cuiabana expressava seu sentimento religioso. Cabe dizer que esse sentimento religioso, em
muitos momentos, se confundia e se completava com o profano 106. Esta diferenciação entre o
sagrado e o profano, para a sociedade colonial influenciada pelo barroco, em muitos
momentos, é difícil de distinguir.
Entre os procedimentos analisados dessa gente que viveu na Cuiabá colonial, nota-se
uma ligação entre todos eles que vêm caracterizar o que se poderia chamar um modus vivendi.
Trata-se de uma maneira de se perceber e agir no mundo, obedecendo a uma ritualizaçao ou
padrões que influenciam desde a forma de pensar até o cotidiano das relações e das práticas.
Na sociedade colonial, especificamente em Cuiabá, essa influência é a do modelo
cultural europeu português barroco. Segundo Etzel (1974: 29), a palavra Barroco era usada,
originalmente, pelos portugueses para designar de forma bizarra, as pérolas naturais e
irregulares, diferentes das esféricas. Mas, o seu emprego como expressão artístico-religiosa,
pode ser caracterizado como:
106 Cf. FERNANDES, 2002.
uma aspiração ao infinito. É suntuoso, porque assim exalta a
glória de Deus; é redundante, porque reforça a expressão dessa
glória; é cheio de formas esvoaçantes que exprimem a
espiritualização da fé. Dentro dessa aspiração, manifestou-se com
riqueza espantosa onde houve recursos, sobretudo o ouro que
amparava suas pretensões; foi modesto, pobrezinho, humilde onde,
mesmo à mingua de recursos, deixou sua marca nesta ou naquela
composição que exprimiu tudo o que a veneração modesta do fiel
pode oferecer a seu Deus 107.
Todavia, nesta citação, Etzel refere-se ao barroco mais como um estilo artístico.
Realmente, o barroco foi o estilo artístico que orientou a vida artística da colônia por mais de
duzentos anos e que, à primeira vista, mais impressiona. No entanto, optou-se neste trabalho
por observar o Barroco como um conceito mais amplo, como no entendimento de Affonso
Ávila (1994), em que o considera além das concepções estéticas, visto não apenas como um
estilo artístico, mas como uma sistematização de gosto que se reflete em todo um estilo de
vida, portanto, um estilo global de cultura e de época 108.
Visão semelhante é a do historiador espanhol Maravall (1997: 42), cuja noção trata-se
de um conceito histórico, ou ainda, um conceito de época que, em princípio, se estende a todas
as manifestações integradas da cultura da mesma 109. Em resumo, Maravall compreende o
barroco como um conjunto de meios culturais de tipos muito variados, reunidos e articulados
107 ETZEL, Eduardo. O Barroco no Brasil: psicologia e remanescentes em São Paulo, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul. 1974: 30. 108 ÁVILA, Afonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. 1994: 60. 109 MARAVALL, José Antonio. A Cultura do Barroco: análise de uma Estrutura Histórica. 1997: 45.
para operar adequadamente com os homens, tal como são compreendidos, eles e seus grupos,
a fim de prática e satisfatoriamente, conduzi-los e mantê-los integrados no sistema social 110.
As festas são exemplos marcantes mais visíveis do que Maravall chama de cultura
dirigida. Havia, por parte das forças políticas dominantes, um esforço de sustentar esse modus
vivendi e, como já foi observado, nas comemorações as noções de sagrado e profano se
confundiam e se complementavam caracterizando, portanto, a festa em um ato religioso,
político e simbólico 111.
O Rei e a religião católica, sob a regência do Estado Moderno, estendiam seu manto
protetor e ao mesmo tempo repressor sobre as comunidades 112, tendo assim, nas festas um
dos meios mais espetaculares e persuasivos para preservar o sistema absolutista configurado
na mentalidade barroca o sucesso do poder 113.
As festas também contribuíam para o rompimento da monotonia do cotidiano. Ao
estudar as festividades no México, Bravo afirma que:
Es proverbial afirmar que durante el virreinado la fiesta
significava un rompimiento con la monotonía de la vida diaria. Se
establece un tiempo de excepción con valor ritual y colectivo en el que
durante el tiempo de la celebración se suspende el ritmo de la vida
cotidiana 114.
Além das celebrações e festividades próprias do ritual romano da época, havia
também um calendário para as festas religiosas definido pelas Ordenações do Reino e que
deveria ser cumprido nas vilas por todos. Segundo Araújo (1997: 131), a participação das
pessoas nas cerimônias festivas era estimulada pelas autoridades, quando não obrigada. Em
110 Op. Cit. 1997: 120. 111 PRIORE, Mary del. Festas e Utopias no Brasil Colonial. 1994: 10. 112 Idem: p 14-15. 113 FERNANDES, 2002: 104. 114 BRAVO, Maria Dolores. “La Festa Publica: su tiempo y espacio”. In: Historia de la vida cotidiana em México, 2005: 435.
datas como a da comemoração de Corpus Christi (maio ou junho), Visitação (2 de junho) e
Anjo da Guarda (Terceiro domingo de Junho) nas Ordenações era obrigatória a presença da
população nos festejos solenes.115
Nas Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia há um índice específico de
feriados que, entre outros, dever-se-ia guardar:
Janeiro, a 20 S. Sebastião
Maio , a10 a festa do voto, & procissão real a S. Francisco Xavier.
Julho, a 2 a Visitação
Agosto, a 6 a Transfiguração
Novembro, a 2 a Comemoração dos fiéis defuntos
Dezembro, o primeiro, Procissão Real da Aclamação.
Quarta feira de Cinzas [...] 116.
No Estatuto municipal e posturas de Vila Bela da Santíssima Trindade encontramos
expressa essa determinação régia referente à comemoração de tais festividades.
[...] que a Câmara assista com o Real Estandarte à festividade
do mártir São Sebastião, à ladainha de São Marcos, às três ladainhas
de Maio, à Festa do Corpo de Deus, à do Anjo Custódio, do Reino
[danificado], da visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel, à Festa
de Nossa Senhora do Monte do Carmo, à Festa de Nossa Senhora da
Conceição, do Te Deum Laudamus, em dia de São Silvestre, e à
publicação da Bula da Santa Cruzada: Acordaram que esta Câmara
com o Real Estandarte assistesse a todas essas funções, com distinção
que em lugar da festa de Nossa Senhora do Carmo que na Cidade de
115 ARAÚJO, Emanuel. Transgressões e transigências na sociedade urbana colonial. 1997: 131. 116 Constituiçõens Primeiras do Arcebispado da Bahia. Microfilme. NDHIR-UFMT.1720: 05.
Mariana é Padroeira, fosse nesta vila como Padroeira dela a festa da
Santíssima Trindade 117.
A responsabilidade pela manutenção dos gastos com os festejos das datas estipuladas
pela Coroa ficava por conta dos Senados da Câmara.
5o . Que na forma da Ordenação Livro 1o , Titulo 66,
parágrafo 48, deve a Câmara fazer à custa dos bens do Conselho, as
festividades da visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel, a do Anjo da
Guarda e a Solenidade e procissão do Corpo de Deus [...] seguindo-se a
Constituição, [...] . E que para a festividade do Mártir São Sebastião, bem
necessário nestas Minas do Mato Grosso por advogados da Peste, [...] na
festividade de N. Sra. Da Conceição, como Padroeira do Reino.
6o . Para a Festa da Santíssima Trindade [...] 118.
Desse modo, o calendário do período era cheio de comemorações religiosas. Na Vila
Real também deveria ser respeitada a mesma determinação régia. Segundo Rosa (2003: 32),
só as procissões feitas pela Câmara chegavam ao número de quase oito ou nove por ano. Com
tantas datas para se comemorar, pelo menos nos centros urbanos, quase não sobrava tempo
para trabalhar 119.
Em Relatórios das Receitas e Despesas da Câmara de Cuiabá dos anos de 1772, 1773
e 1777 verifica-se também alguma destas datas:
Julho 16 [1772] Pelo que pagou a Antonio Pereira dos Santos
por mandado corrente no livro de lei § 174 de cera e em senso que se
117 ESTATUTOS Municipais ou Posturas da Câmara da Vila Bela da Santíssima Trindade para o Regimento da República nos casos em que não há Lei expressa segundo o Estado do País. In: Terra da Conquista. História do Mato Grosso Colonial, 2003: 195. 118 Idem. 119 ARAÚJO, 1997: 130.
pôs na festa do M. S. Sebastião o ano passado de 1773 vinte seis mil
sete centos setenta e quatro reis - 28 $ 774 120.
Mço 16 [1773] Pelo que pagou ao Reverendo Doutor
Vigário da Vara Matriz José Pereira Duarte por mandado corrente no
livro deles § 10 da assistência das Missas cantadas do dia do Glorioso
São Sebastião e festa de Corpo de Deus quarenta e três mil e duzentos
reis 121.
Dzbr 4 [1777] Pelo que pagou ao Reverendo Padre vigário
Jose Correia leitão por mandado corrente no livro dele a §144 das
assistências de quatro missas cantadas feitas nos dias de S. Sebastião
Corpo de D visitação de S. Izabel, e Anjo Custodio na formas das
ordens de sua Maj e a dezoito oitavas de ouro cada uma e oitenta e
seis mil e quatrocentos - 86 $ 400 122.
Encontra-se nos documentos do Senado da Câmara a indicação do cumprimento das
festas de São Sebastião, do Corpo de Deus, Visitação de Santa Izabel e do Anjo Custódio. Em
verdade, essas festas representavam as devoções dos próprios monarcas portugueses.
Além de todas as comemorações dedicadas às datas do calendário religioso, também
foram realizadas, ou melhor, determinadas outras festas. Eram celebrações em que se
comemoravam os nascimentos e casamentos dos infantes, exéquias reais e ainda a chegada de
autoridades na vila, conhecidas como entradas solenes, caracterizando bem os rituais barrocos
descritos na documentação consultada.
Os cronistas que viveram em Cuiabá, no período colonial, registraram muitas
festividades, que foram resumidas no quadro abaixo: 120 RELATÓRIO das Receitas e Despesas do ano de 1772. Mss, Senado da Câmara - Vila Real. APMT. Vila Real, 5 de novembro de 1774. 121 RELATÓRIO das Receitas e Despesas do ano de 1773. Mss Senado da Câmara - Vila Real. APMT. Vila Real, 1773. 122 RELATÓRIO da Conta do Procurador Tesoureiro do Senado da Camara do ano de 1777. mss, Senado da Câmara - Vila Real. APMT. Cuiabá, 1778.
- Tabela II - Relação das festividades acontecidas na Vila Real de 1726 a 1817 Nº de Ordem
Data Acontecimento
1. 1726 • 15 de novembro, chegada do General Rodrigo César 2. 1751 • Chegada do General D. Antonio Rolim de Moura 3. 1761 • Em Julho e agosto festejo do casamento dos Príncipes filhos do Sr Rei D. Jose -
comédias, danças, fogos e cavalhada
4. 1763
• Em agosto festejo do nascimento do Infante D. Jose, neto do Sr Rei D. Jose I - festas, comédias, fogos cavalhadas
5. 1769 • 20 de julho chegada do General Luis Pinto de Souza Coutinho e Dr Ouvidor Miguel Pereira Pinto Teixeira - festa
6. 1772 • Chegada em 04 de outubro pelas cinco horas da tarde, pelo caminho de terra, do General Luis de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres
7. 1778 • 06 de janeiro celebração das festividades dos Santos Reis Magos, Bodas de Caná, e Batismo de Jesus Cristo.
8. 1786 • Celebração de gratificações a Deus pelos casamentos dos Infantes de Portugal, D. João e D. Mariana Vitória com os infantes de Espanha, D. Gabriel Antonio e D. Carlota Joaquina (Oficio em 8/12 e celebração em 31/12) - solene festividade
9. 1787 • Demonstrações de alegria pelo sucesso do casamento dos Senhores infantes de Portugal e Espanha;
10. 1794 • 30 de outubro, Nascimento da Princesa da Beira 11. 1796 • 06 de abril notícia do nascimento do Senhor Príncipe;
• 17 de setembro chegada do general Caetano Pinto de Miranda Montenegro; 12. 1798 • Nascimento da Senhora Infanta de Portugal 13. 1799 • Nascimento do infante 14. 1800 • Chegada do General, 13 de maio festa com beija-mão; 15. 1801 • 21 de setembro, oficio sobre o nascimento do infante 16. 1804 • 20 de março chegada do Capitão General Manoel Carlos de Abreu e Menezes; 17. 1805 • 21 de janeiro, chegada de Vila Bela do Capitão General Manoel Carlos 18. 1806 • Em outubro chegada de oficio de S.A.R. para celebrar o nascimento de sua infanta 19. 1807 • 07 de outubro, chegada do Capitão General João Carlos Augusto de Oeynhausen 20. 1808 • 16 de agosto chegada do Bispo - festa
• Em outubro chega ofício para se festejar a chegada de Sua Alteza Real ao Rio de Janeiro • 1o de Novembro fez-se festa e procissões
21. 1810 • Chegada do General • 17 de dezembro aniversário da Rainha
22. 1811 • Casamento da princesa D. Maria Thereza Michaela e o Senhor Infante D. Pedro
23. 1812 • Em 10 de abril celebração do nascimento do Filho de D. Pedro e D. Michaela • 13 de maio aniversário do Príncipe regente • 17 de novembro chegada do Governador Capitão General • 17 de dezembro celebração do aniversário da rainha
24. 1813 • 25 de abril celebração do aniversário da princesa • 13 de maio celebração do aniversário do Príncipe Regente • 06 de junho comemoração da festa do Divino Espírito Santo • Junho festa de são João • 17 de dezembro celebração os anos da Soberana Rainha
25. 1815 • 13 de maio a 17 de dezembro festejo do aniversário do Príncipe regente e da Rainha
FONTES: BARBOSA DE SÁ,1975. COSTA SIQUEIRA, 2002, ANNAES DO SENADO DA CÂMARA DE CUIABÁ, APMT.
Segundo Cardim (2001: 97), era de interesse das autoridades portuguesas o grande
número de festividades devido ao seu impacto político sobre a sociedade. As entradas solenes
em Portugal eram as festividades que melhor expressavam a mentalidade barroca, assinalando
a autoridade dos monarcas sobre os seus súditos.
Esta tradição de tempos ancestrais saiu da metrópole e se espalhou pelo mundo
colonial através das entradas de representantes do rei. Assim, Portugal e Brasil - colônia eram
ambientes sociais e culturais com plena consciência tanto do potencial expressivo das
cerimônias como da profusão de significados 123.
Desse modo, na maioria das vezes, a chegada de alguma autoridade civil ou religiosa,
era motivo de grande festa na Vila Real e, praticamente, toda a população se mobilizava para
que a entrada do ilustre visitante fosse uma grande solenidade. Nas Relações de Barbosa de
Sá encontramos a descrição de quatro destas entradas. Nas Crônicas e no Compêndio
Histórico de Joaquim da Costa Siqueira há um total de oito chegadas e entradas na Vila Real.
O mesmo número de chegadas e entradas registradas nos Annaes do Senado da Câmara da
Vila Real.
A entrada solene na Vila Real, grosso modo, era uma recepção especial com cortejos
que seguiam desde o local de entrada da vila até a residência oficial, previamente preparada.
Quanto maior o grau de importância da autoridade, como os Capitães generais ou o bispo, por
exemplo, maior prestígio ganhava a recepção e se tornava motivo de muitos festejos
caracterizando verdadeiros rituais numa mistura de religioso com o profano.
Na documentação nota-se uma descrição cada vez mais detalhada conforme se passam
os anos. As primeiras narrativas são simples, com poucos detalhes, enquanto as do início do
século XIX são cheias de pormenores. Em, 1807, foi realizada uma grande recepção para a
chegada do Capitão-general João Carlos Augusto de Oeynhausen descrita por Costa Siqueira:
123 CARDIM, Pedro. “Entradas solenes: rituais comunitários e festas políticas, Portugal e Brasil, séculos XVI e XVII”. In: Festa. Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa.2002: 99.
Na entrada da vila se achava construído por ordem deste
senado um excelente pavilhão, ornado com riqueza e decência possível,
aonde se achava o juiz de fora presidente do senado e mais vereadores
com seus republicanos para pegarem nas varas do palio, debaixo do
qual foi conduzido S. Ex. precedido de homens bons, nobreza e povo
desta vila, e seguidos da legião de milícias, que marchava ao som de
uma bem organizada música, a igreja matriz, aonde o Ver. Vigário da
vara e igreja, Agostinho Luiz Gularte Pereira, entoou o hino Te Deum,
que foi seguido por todo o clero e musica; e concluída esta religiosa
solenidade se encaminharam para a residência destinada oara S. Ex.
aonde foi logo cumprimentado pelo corpo do senado, clero e pessoas
de distinção desta vila [...] 124.
A população da Vila Real se movimentava para receber bem o visitante. Para a
sociedade local, principalmente para as pessoas que ocupavam cargos de destaque era muito
importante mostrar a capacidade de saber organizar um evento como este. As ruas ganhavam
nova feição, enfeites e iluminação, levantavam-se pavilhões e arcos temáticos por onde a
pessoa esperada teria a sua passagem ou levavam carros alegóricos até a presença da
autoridade como segue o documento:
Houve iluminação geral por três noites por toda a vila, e na
segunda delas ofereceu o capitão juiz de fora Joaquim da Costa
Siqueira um pomposo carro todo iluminado em que ocupavam com
propriedade os lugares Apolo, Júpiter, Marte, Cupido, Juno, Vênus,
Minerva e as nove musas, o qual, tendo rodeado a praça, parou em
124 SIQUEIRA: 2002: 57.
frente das janelas da aposentadoria de S. Ex. a quem se dedicava
aquele obséquio 125.
Depois do translado realizado e dos ofícios religiosos executados com a maior
solenidade, vinham os festejos populares que duravam dias. Eram realizadas apresentações de
comédias e óperas em tablado na praça pública, cavalhadas e até touradas.
Seguiram-se três tardes de cavalhadas igualmente ricas e bem
desempenhadas, de que foram mantenedores o capitão Apolinário de
Oliveira Gago e o cadete Antonio Pedro Falcão das Neves.
Houve também duas noites de musica e baile nas casas da
residência do mesmo Exmo general, e duas tardes de touros, o que
tudo aplaudiu com demonstração da mais política afabilidade 126.
A população e as autoridades locais tinham a intenção de agradar o ilustre
representante, e este, por sua vez, também deveria demonstrar a sua satisfação e agrado pelo
cortejo oferecido, pois, dessa forma, colocava-se em questão a confirmação de laços de
fidelidade política de ambos os lados.
A entrada solene assinalava a chegada dos representantes de
um poder exterior, detentor de uma jurisdição preeminente sobre as
autoridades locais, as quais eram detentoras de um certo poder
jurisdicional e, sobretudo, de um poder muito efetivo sobre essas
vastas terras 127.
125 Op cit. 2002: 57-58. 126 Idem: p 58. 127 SIQUEIRA, 2002: 123.
Outra grande festa na Vila Real, com entrada solene, aconteceu em decorrência da
chegada de uma importante e esperada autoridade eclesiástica, o novo bispo da Prelazia de
Cuiabá, D. Luiz de Castro. Em agosto de 1808, depois de longa viagem pelo caminho de terra,
uma comitiva formada principalmente pela milícia desta vila se dirigiu até a missão localizada
em Chapada onde encontrou a comitiva do dito prelado e, depois de pernoitar no antigo arraial
do Coxipó, por volta das nove horas da manhã do dia 16 de agosto, chegaram à Vila de
Cuiabá.
Saiu a encontrar na entrada da rua o senado, o clero, os
republicanos e toda a nobreza, para o conduzirem com a ostentação
mais plausível ao pavilhão que lhe estava destinado; e aonde sendo
recolhido, despostas as vestimentas viatorias, tomando as episcopais, e
paramentado com capa pluvial, mitra e báculo, com dois acólitos de
dalméticas, além do Ver. Governador que tomou capa pluvial, formada
uma solene procissão principiou a cantar a musica Ecce sacerdos
magnos; prosseguindo sempre até a entrada da Igreja Matriz,
servindo-lhe de caudatário o capitão-mor desta vila Antonio Luiz da
Rocha [...] 128.
De todas as entradas solenes na Vila Real, esta parece ter sido uma das em que mais
houve empenho por parte da população. Nela se nota todo um respeito por parte da
comunidade para com o bispo, caracterizando como que um gesto de devoção em função de
sua representatividade, criando sentimento onde o profano e o religioso se misturavam ao
sabor do espírito barroco, característica principal das entradas solenes.
128 Op cit. 2002: 62.
A doze passos do pavilhão se achava o primeiro arco feito pela
câmara, debaixo do qual por ser ali a entrada da vila se praticaram as
cerimônias que determina o pontifical em semelhante ato; depois do
que prosseguiu aquela solene e dilatada procissão, que se compunha
do corpo do clero e de todas as irmandades e confrarias desta vila, e
logo atrás do palio o senado da câmara com o seu estandarte e
insígnias, e logo o regimento de milícias, que puxava o seu tenente-
coronel, e por ultimo o imenso povo, que não se satisfazia de ver o seu
desejado prelado [...] 129.
O cronista continua seu registro informando sobre detalhes do cortejo como a
iluminação das casas, a cerimônia religiosa na igreja matriz e, de modo especial, sobre os
arcos que eram bem preparados e iluminados. Esses arcos eram cheios de simbolismo e
expressavam as honras e sentimentos dos grupos que os preparavam: eram os arcos dos
clérigos, dos comerciantes e da Câmara.
O da Câmara era de ordem jônica, tinha oitenta e seis palmos
de altura e quarenta de largo, tecido com cimalha real, e guarnecido
em cima com maravilhoso remate, com sua pirâmide em cada lado; no
dito remate tinha duas tarjas, na parte da entrada a mitra e o báculo, e
na da parte da vila, as armas do senado. O arco foi todo vestido de
fazenda branca encrespada, com varias flores, e todo ele guarnecido
com galões de ouro; debaixo da cimalha real, sobre a volta do arco, o
painel do retrato da nossa Augusta Soberana, isto é na frente da
entrada, e correndo pé direito de ambos os lados os retratos dos vice-
129 Op cit. 2002: 62.
reis e capitães generaes que tem servido nesta América. [...] O arco
dos negociantes era da ordem corintia, com cinqüenta e seis palmos de
altura e de largo vinte e seis, tendo cimalha da volta, que o guarneciam
com remate, em que se via pela parte da entrada a mitra, e pela da
vila o báculo e pirâmides nos lados; era todo vestido de damasco
carmesim, guarnecido de galões de ouro, com bambolinas de franjas
de ouro na volta.
O do clero era da ordem compósita. Com altura de oitenta e
seis palmos e largura competente [...] sobre a cimalha real pela parte
da vila e no meio dela estava sentado um venerando índio velho em
figura de vulto, que simbolizava o Cuiabá; o qual sustinha sobre seu
ombro as sobreditas armas do prelado. Sobre a mesma cimalha aos
lados deste venerando velho estavam dois Atlantes em figura de vulto,
cada um deles com seu cântaro derramando água, simbolizando um o
rio Paraguai, e o outro o rio Guaporé; [...] 130.
Através da descrição desses arcos em seu modo majestático, identifica-se uma forma
de comunicação de caráter político encetada por meio de imagens, pictóricas e verbais. Toda a
arte empregada nestas alegorias simbolizava uma relação de poder e de submissão,
característica principal das entradas solenes, tanto na metrópole como na colônia. Segundo
Cardim, as entradas solenes apresentavam uma estrutura fortemente hierarquizada e
discriminatória, com laços de submissão claramente definidos e com diferenças estatutárias muito
acentuadas 131.
Esta noção de representação de um poder exterior era, para ambas as partes, algo muito
claro. Os membros das comunidades locais sabiam da sua condição de submissão, mas,
130 SIQUEIRA, 2002: 63-64. 131 CARDIM, 2001: 122.
principalmente de aceitação perante o poder exterior. O cronista setecentista de Cuiabá
comenta sobre tal comportamento com a seguinte observação: manifestando assim o regozijo
como sabem receber aquelas pessoas que nestes remotos lugares representam a Sua Majestade 132.
A edificação dos espaços religiosos
Outra prática própria e fundamental para os católicos era a construção de seus espaços
sagrados. A construção de igrejas pelos cristãos sempre foi uma prática comum pelo menos
desde o século IV, mas em cada época e de acordo com a tradição cultural de cada povo, as
igrejas foram ganhando características estéticas diferenciadas. No caso da colônia portuguesa,
os espaços sagrados foram construídos a partir do ideal da cultura do barroco português.
Observa-se que na América Portuguesa, praticamente, todos os momentos importantes
para os fiéis envolviam os espaços sagrados, era nestes lugares que se iniciavam ou
terminavam os eventos religiosos como também os profanos, com missas solenes, toques de
sinos, faziam-se sermões, expunha-se o Corpo do Senhor (a eucaristia) e recitava-se o Te
Deum e outras coisas mais.
Para Tirapeli, a Igreja Católica no período colonial, mesmo submissa ao poder real, cumpriu
papel preponderante na formação da cultura brasileira como maior centro irradiador de arte e
cultura da nação. Com sua arquitetura, seus retábulos (altares), a imaginária e tudo que compõe
seu recheio, as igrejas do período colonial, são consideradas,hoje um dos maiores patrimônios
histórico-culturais do Brasil.
Segundo Boxer, as igrejas, os mosteiros e as ermidas renascentistas, maneiristas e
barrocas que os portugueses espalharam por todo canto de seu império ultramarino constituem
132 SIQUEIRA, 2002: 89.
seus monumentos históricos mais importantes 133. Era no templo religioso que se podia
respirar o ar cultural que Portugal se esforçava por imprimir à sua colônia 134.
Nos lugares destinados às práticas religiosas, do ponto de vista estético, a tradição
barroca e/ou rococó foi levada a sua expressão máxima pelas mãos de grandes mestres do
século XVI e do século XIX.
Com exceção das áreas mineradoras, muito foi feito sob a influência das ordens
religiosas (jesuítas, franciscanos, dominicanos e carmelitas), com o trabalho e esforço de
artistas e mecenas que trouxeram a linguagem formal da Europa para o Brasil e a adaptou às
necessidades da colônia.
As ordens religiosas freqüentemente recrutavam seus artistas e
artesãos entre os irmãos leigos, e também preparavam alguns dos
conversos indígenas para torná-los pintores, escultores e artesãos de
vários gêneros. Esses homens, fossem europeus, asiáticos, africanos,
fossem ameríndios, também eram considerados humildes, conforme os
padrões da época, e foram poucos os nomes que perduraram 135.
Em todo caso, a barreira enfrentada pelas ordens religiosas contribuiu para que a igreja
leiga das regiões mineiras preocupasse muito mais com seus espaços sagrados e edificasse
belíssimos e variados edifícios religiosos seguindo a tradição predominante na colônia, o
barroco.
No entanto, assim como muitos aspectos da sociedade colonial em que o sagrado se
confundia com o profano, estes espaços religiosos tinham uma importância social mais
abrangente que simplesmente a religiosa. Além de pólo irradiador de arte e cultura, os espaços
133 BOXER, 2002: 367. 134 TIRAPELI, Percival. Arte Sacra Colonial. Barroco memória viva, 2001: 08 e 15. 135 BOXER, 2002: 364.
sagrados foram também elementos fundamentais na formação social das comunidades, vilas e
cidades.
Neves (1995: 173) lembra que a ereção de uma capela em matriz, por exemplo,
próxima da habitação dos fiéis, significava não só a garantia de receber o pasto espiritual,
mas, sobretudo, prestígio e distinção em relação aos demais moradores.
Considerando-se que a territorialização dos espaços é estabelecida numa relação de
alteridade entre grupos sociais mediada pelo estabelecimento de limites, as edificações
religiosas do período colonial podiam ser compreendidas como pontos referenciais entre os
diferentes espaços, estabelecendo limites materiais e imateriais, ou seja, o estabelecimento de
fronteiras entre as territorialidades de diferentes grupos sociais. 136
Desse modo, uma construção religiosa representava também uma complexa relação
presente na sociedade colonial. Os espaços religiosos podiam ser diferenciados a partir de sua
representação social e um verdadeiro padrão de posse por parte dos colonizadores como
observou Hoornaert (1977: 296). Havia as igrejas de irmandades ou de conventos, de negros
ou de brancos.
No caso da Vila Real é possível observar claramente essa delimitação de territórios
entre os diferentes espaços sagrados. Considerando o estudo de Silva (2002), pode-se observar
a Igreja de Nossa Senhora do Rosário como um território referencial para a comunidade negra
na Vila Real. Apesar de que, fora a identificação com santos negros, ao contrário do que se
imagina, observa-se que nas “igrejas negras”, os grupos de escravos buscavam constantemente
o mesmo ideal do grupo senhorial, longe de expressar sinais da cultura africana, seguiam o
mesmo programa das “igrejas brancas” 137.
A igreja Matriz da Vila Real, dedicada ao Senhor Bom Jesus, foi erguida no local que
passou a ser o centro do povoado. Esta igreja foi o território branco dedicado ao Sagrado. Nela
136 TURRA NETO, Nelson. “Do território aos territórios”. In: Paisagem, território e região. Em busca da identidade, 2001: 89. 137 Cf. MACHADO, Lourival Gomes. Barroco Mineiro, 1991.
se abrigavam as irmandades dos brancos e era freqüentada pela elite cuiabana. Em seu entorno
localizavam-se os edifícios destinados aos órgãos públicos: a residência dos Juízes de Fora,
Casa-da-Câmara-e-cadeia, o Palácio dos governadores e outras edificações.
Segundo Rosa (2003: 29), até 1751, os únicos espaços sagrados da Vila Real eram: a
Matriz (1722), o oratório de Nossa Senhora do Rosário (por volta de 1740), a capela de Nossa
Senhora do Bom Despacho (1725) e a capelinha a São Benedito (1722) que logo deixou de
existir. Há também a Igreja de Nossa Senhora do Rosário que, apesar de aparecer na
documentação somente em 1754, provavelmente já existia anterior a esta data.
No começo do século XIX, final do período colonial, além dos edifícios religiosos do
século XVIII, encontramos mais quatro capelas como são apresentadas no quadro seguinte:
- Tabela III - Igrejas e capelas da Vila Real do Senhor Bom Jesus de 1722 a 1818.
Nº Denominação Local Ano 01. Matriz do Senhor Bom Jesus do Cuiabá Largo da Matriz 1722 02. Capela de São Benedito Próximo da rua do sebo 1722 03. Capela de N. Sra do Bom Despacho. Morro de N. Sra. do B. Despacho 1725∗ 04. Oratório de N Senhora do Rosário Próximo à ponte do Rosário 1740* 05. Capela de Nossa Senhora do Rosário Morro de N. Sra. do Rosário 1754* 06. Capela de São Gonçalo Porto 1781 07. Capela de Nossa Senhora da Boa Morte Região acima da Matriz 1810* 08. Capela do Senhor dos Passos Antigo oratório do Rosário 1816* 09. Capela da Casa Real Pia de S. Lázaro. Não localizada 1817 10. Capela de N. Sra. da Conceição. Santa Casa de Misericórdia 1818
Fonte: Annaes do Senado da Câmara da Vila Real. ∗Não foram encontradas as datas de suas edificações, estas são datas dos momentos a partir dos quais são mencionadas pela primeira vez na documentação.
Ao todo, foram levantadas de 1722 a 1818, dez edificações religiosas no âmbito
urbano da Vila Real (incluindo o Porto Geral). Destes espaços religiosos apenas um era
oratório que depois deixou de existir.
Em Cuiabá, a primeira igreja erguida foi a capela dedicada ao Senhor Bom Jesus no
ano de 1722. Foi levantada uma capela de pau-a-pique coberta de palha no local que, mais
tarde, tornou-se o centro da Vila Real, longe do lugar das minas, por iniciativa do Capitão-
mor Jacinto Barbosa Lopes. A pequena capela serviu como matriz da freguesia desde o
começo da povoação até o ano de 1739 quando, no mesmo local, foi construído um templo
maior. Depois disto sofreu várias intervenções durante sua história até que, em 1968, foi
demolida para dar lugar a uma nova igreja 138.
A capela de São Benedito foi levantada no mesmo ano de 1722, pelos negros,
obviamente escravos. Estaria situada na “Rua do Sebo”, provavelmente, o “Largo da
Mandioca”, hoje praça “Conde de Azambuja” 139. Mas, pouco tempo depois, veio a ruir e se
reergueu anexa à Igreja do Rosário. Portanto, assim como ocorrera em diversas regiões da
América Portuguesa, também em Cuiabá a igreja de Nossa Senhora do Rosário e a de São
Benedito passaram a compor um só edifício 140.
A Igreja de Nossa Senhora do Rosário é o templo religioso mais antigo da cidade de
Cuiabá, de características coloniais ainda em pé. Sua construção, provavelmente, ocorreu na
década de 1730, no lugar, à época, conhecido como “Tanque do Arnesto”, situado às margens
do córrego da “Prainha”. Atualmente, esta região encontra-se no centro da cidade de Cuiabá,
próximo ao “Morro da Luz”. O edifício da Igreja de Nossa Senhora do Rosário foi pouco a
pouco e – através dos anos – sofrendo mudanças até ganhar a fisionomia que vemos hoje. Em
04 de dezembro de 1975, o Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional - IPHAN
efetivou o Tombamento desse edifício e com base na documentação iconográfica e
prospecções arqueológicas, reconstituiu a antiga torre e sua fachada original de forma a
138 Cf. BRANDÃO, Ludimila de Lima. A catedral e a cidade: uma abordagem da educação como prática social, 1997; LACERDA, Leila Borges de. “Edificação, transformações e demolição da Catedral do Senhor Bom Jesus do Cuiabá”. In: Terra da Conquista. História do Mato Grosso Colonial,2002. 139 Cf. ROSA, Carlos A. A Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá – Vida urbana em Mato Grosso no Século XVIII: 1722-1808,1996: 42 e CANAVARROS, 2004: 67. 140 Cf. CORBALAN, 2003.
devolver à igreja uma fisionomia próxima à que tinha no final do século XIX. Este templo foi,
principalmente, um esforço coletivo da comunidade negra da Vila Real 141.
A capela de Nossa Senhora do Bom Despacho foi erguida em um morro de mesmo
nome, onde hoje se localiza também o “Seminário da Conceição”. Esta igreja é citada pela
primeira vez na data de 1726. Sabe-se também que, em 1744, depois de sofrer e sobreviver a
um ataque de gentios, um grupo de monçoeiros ao chegar à Vila Real foi render graças na
Capela de Nossa Senhora do Bom Despacho, levando um caixão de cera por pagamento de
promessa que havia sido feita na hora da aflição 142. No início do século XX, a pequena capela
colonial foi demolida e em seu lugar construíram uma bela e grande igreja de arquitetura
neogótica.
A capela de São Gonçalo, localizada no bairro do Porto, foi inaugurada em 15 de
novembro de 1781, quando ocorreu a transferência da imagem de São Gonçalo que estava na
antiga capela na foz do rio Coxipó 143. Esta igreja no século XIX tornou-se sede de freguesia e
ganhou uma nova construção em 1916.
A Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, localizada hoje na praça Antonio Corrêa, foi
construída por volta de 1810 pela irmandade de mesmo nome. Era uma irmandade formada
por pessoas pardas 144.
A igreja do Senhor dos Passos, localizada na atual rua 07 de setembro na esquina com
a rua Voluntários da Pátria, encontra uma primeira referência com a data de 1816 nos Annaes
do Senado da Câmara de Cuiabá 145. Esta igreja foi construída sobre o local do antigo Oratório
de Nossa Senhora do Rosário em uma baixada próxima às margens do córrego da Prainha. A
origem e a história desse templo envolvem contos e personagens muito interessantes.
141 CORBALAN, 2003. 142 BARBOSA DE SÁ, 1975: 43. 143 CONTE, Cláudio Quoos; FREIRE, Marcus Vinicius de La Mônica. Centro Histórico de Cuiabá, patrimônio do Brasil, 2005: 36. 144 Idem: p 34. 145 Ibidem: p 34.
As capelas de Nossa Senhora da Conceição e da Sociedade Pia de São Lázaro foram
erguidas no início do século XIX, uma em 1817 e a outra em 1818. São poucas as informações
sobre a mesma na documentação do período.
Estas foram as igrejas edificadas no espaço urbano da Vila Real até o final do período
colonial. Também havia capelas em povoados distantes de Cuiabá como: Santo Antonio de
Rio Abaixo e Nossa do Rosário de Rio Acima e outras. Eram capelas modestas, do ponto de
vista arquitetônico e artístico, mas feitas com que de melhor havia na região e eram bem
cuidadas e asseadas.
Tocando-se novamente na questão de territorialidades, de modo geral, pode-se
identificar na divisão dos espaços internos das igrejas a realidade conflitante da sociedade
colonial brasileira. Ao observar os espaços internos das igrejas coloniais, Hoornaert verifica as
seguintes características: 1) um espaço organizado em torno da imagem de um santo
(geralmente do padroeiro). A imagem do santo significava a presença do santo, do sagrado e,
portanto, ocupava o lugar central e absolutamente primordial da construção; 2) apesar de tudo
se voltar para o altar, este não significava a “mesa da Eucaristia”, mas sim uma extensão da
imagem central. Não era o tabernáculo (lugar onde se guardam as hóstias consagradas) o
ponto referencial, a não ser que ele mesmo seja interpretado como imagem de “Jesus
sacramentado”; 3) o presbitério ou recinto clerical era separado dos outros recintos, um lugar
destinado apenas aos organizadores do culto; 4) o recinto central ou a nave central, num plano
mais baixo, era reservado às mulheres (livres e escravas); 5) os recintos laterais eram
reservados aos “homens bons” ou livres que ficavam em pé; 6) o espaço em torno da porta, o
adro, era reservado para os pretos e escravos em geral que também ficavam em pé 146.
Portanto, em um estudo específico sobre todas essas características dos espaços
sagrados, pode-se verificar a delimitação de “fronteiras” internas entre os níveis sociais, mas
146 HOORNAERT, 1977: 293-294.
também entre os gêneros e a posição hierárquica que ninguém poderia transpor: O homem não
vai para o recinto central, o pobre não entra nos recintos laterais, o leigo não penetra no recinto
clerical 147.
Além do estabelecimento de vários espaços internos nas igrejas com todas estas
características, era necessário, ainda, uma série de elementos para se compor o edifício
religioso como estava previsto nas Constituições:
As igrejas paroquiais terão capela maior, & cruzeiro, & se
procurará a que a capela maior se funde de maneira, que posto o
sacerdote no altar fique com o rosto no Oriente, & não podendo ser,
fique para o meio dia, mas nunca para o norte, nem para o Ocidente.
Terão pias batismais de pedra, & bem vedadas de todas as partes,
armários para os santos óleos, pias de água benta, um púlpito,
confessionários, sinos, & casa de sacristia; & haverá no âmbito, &
circunferência delas adros, & cemitérios capazes para neles se
enterrarem os defuntos [...] 148.
Apesar das distâncias geográficas impostas pelo território continental da colônia
brasileira, das dificuldades de acesso da barreira dos povos gentios, da falta de mão-de-obra
qualificada e de recursos materiais se construiu um conjunto que, em geral, foi composto por
templos simples, mas com o que de melhor havia na região. Assim como em outros redutos
coloniais de origem mineradora, a Vila Real do Senhor Bom Jesus teve várias igrejas
edificadas com o mesmo espírito orientador da época que genericamente pode ser denominado
de barroco.
147 HOORNAERT, 1977: p 294. 148 Constituiçõens Primeiras do Arcebispado da Bahia. Microfilme, NDHIR – UFMT, 1720: Artigo 688.
Os espaços religiosos eram para a sociedade colonial da América Portuguesa,
também um ponto referencial em relação ao ordenamento urbano. Nas palavras de Boxer, o
centro, além de conter o pelourinho, era circundado pela igreja matriz e pela casa-da-Camara-e-
cadeia, seculares expressões materiais do urbano português 149.
Vale lembrar que era através de normas canônicas que se deveriam estabelecer as
igrejas nas vilas e arraiais. Nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia verifica-se
as seguintes orientações:
Conforme o direito Canônico, as igrejas se devem fundar, &
edificar em lugares decentes, &e acomodados, pelo que mandamos,
que havendo-se de edificar de novo alguma Igreja Paroquial em
nosso Arcebispado, se edifique em sítio alto, & lugar decente, livre da
umidade, & desviado, quando for possível, de lugares imundos, &
sórdidos, & casas particulares, & de casas de outras paredes, em
distancia que possam andar as procissões ao redor delas, & que se
faça em tal proporção, que não fomente seja capaz dos fregueses
todos, mas ainda de mais gente de fora, quando concorrer a festas, &
se edifique em lugar povoado, onde estiver o maior numero dos
fregueses.E quando se houver de fazer, será com licença nossa [...] 150.
O Padrão ordenador dos ambientes urbanos coloniais, conforme Rosa (2003: 17), era o
extraído das Ordenações do Reino e das normas eclesiásticas que era operacionalizado pelas
câmaras. Junto à necessidade de organização da sociedade colonial, a criação de capelas
passou a ser muito importante, pois por meio delas, surgiam as paróquias onde, entre vários
149 ROSA, 2003: 17. 150 Constituiçõens Primeiras do Arcebispado da Bahia.Microfilme, NDHIR – UFMT, 1720: Artigo 687.
sentidos, se desenvolviam estruturas sócio-administrativas sólidas para a consolidação efetiva de
uma população 151.
Segundo Etzel (1974: 75), a sociedade mineira começou no deboche moral. Mas, com
a riqueza veio a necessidade da respeitabilidade, de normas comunitárias da autoridade civil e
religiosa e também as hipocrisias sociais, um mal necessário para uma vida em sociedade 152.
No surgimento da Vila Real, por exemplo, vemos que negociantes, mineradores e mais
todo tipo de aventureiros, seduzidos pela miragem do enriquecimento rápido, saltavam
ansiosos no “Porto Geral” de Cuiabá para chegar às famosas minas recém-descobertas no
arraial do Senhor Bom Jesus 153. Repetiu-se assim, o fenômeno ocorrido nas “minas geraes”.
De início, o atropelo de gente, cada um querendo ocupar o seu espaço, depois, conflitos e com
eles a necessidade de estabilização, ordem e registros 154.
O comportamento dos fiéis dentro dos espaços sagrados sempre foi uma preocupação
para as autoridades eclesiásticas, sendo necessária a normatização como se vê nas
Constituições Primeiras que no caso do comportamento dos fiéis da elite colonial no templo,
tinha uma importância ainda maior, pois suas atitudes poderiam servir na doutrinação e
educação dos demais grupos sociais como o dos negros escravos, por exemplo. Quanto maior
o posto na hierarquia social, melhor deveria ser o comportamento em relação aos demais
membros da comunidade para que servisse de modelo 155.
Entretanto, nem todos os freqüentadores dos espaços sagrados tinham essa consciência
e o respeito necessário que ali se exigia na época para com tais lugares. Tanto que essa
reverência aos lugares sagrados precisava ser prevista nas normas, como já foi dito
anteriormente, sob pena de punição severa.
151 BOAVENTURA, 1991: 313-314. 152 ETZEL, 1974: 75. 153 CORREA FILHO, 1994: 207. 154 CANAVARROS, 2004: 69. O rush para Cuiabá, cuja duração preencheu o período de 1720/1727. 155 Constituiçõens primeiras do Arcebispado da Bahia, Manuscrito, NDHIR-UFMT, 1720: Artigo 728.
A Igreja é Casa de Deus, especialmente deputada para seu
louvor, portanto convém que haja nela toda a reverencia, humildade,
& devoção, & se desterrem daí todas as superstições, abusos,
negociações, tratos profanos, práticas, discórdias, & tudo o mais que
pode causar perturbação nos Ofícios Divinos, & ofender os olhos da
Divina Majestade, para que se não cometam novos pecados, quando, &
onde se vai pedir perdão dos cometidos 156.
Os espaços sagrados coloniais, as igrejas, eram para essa sociedade colonial locais de
reais significados religiosos, mas também, referenciais da vida comunitária de forma a se
tornarem um meio, segundo Boaventura (1991: 14), de assegurar a própria sobrevivência
passando a abrigar várias outras funções além das previstas tradicionalmente como: de
intercomunicação expressa nas festas, reconhecimento social, reunião entre os irmãos,
contribuição para os laços fraternos e espirituais, protestos, controle social, normatização e
doutrinação.
Os rituais fúnebres
Com um sentimento de morte sempre presente em meio ao efêmero da vida na colônia,
Deus tinha que ser lembrado 157. Sendo que esse era um dos papéis fundamentais da religião
católica junto à sociedade colonial e, de modo especial, da fronteira como aconteceu na
Capitania de Mato Grosso e Cuiabá.
Para uma sociedade influenciada por uma religiosidade barroca, ou seja, dramática,
extremamente devocional, a morte constituía-se em séria preocupação para os fiéis, tornando-
156 Constituiçõens primeiras do Arcebispado da Bahia, Manuscrito, NDHIR-UFMT, 1720: Artigo 728. 157 ETZEL, 1974: 75.
se um dos momentos mais significativos, para não se dizer central, dentre as práticas
religiosas da comunidade dessa época.
Na sociedade colonial a morte era “administrada” exclusivamente pela Igreja Católica.
Os cemitérios públicos só foram criados a partir do século XIX. Antes, porém, os falecidos
eram enterrados necessariamente nas igrejas ou nos cemitérios das mesmas, seguindo o ritual
católico, exceto aqueles que eram contrários à fé católica ou que cometessem alguma ofensa
grave.
Nas constituições primeiras do Arcebispado da Bahia, segue no artigo 857 a lista das
pessoas, às quais deveria ser negada a sepultura eclesiástica:
I - Judeus, Hereges, cismaticos, & apostatas de nossa santa
fé, II - Aos blasfemos contra Deus Deus, Nossa Senhora e os Santos,
III - suicidas, IV - Os que desafiam publicamente, ou particulares, e
morrem neles, V - Aos manifestos usuários tidos, & havidos por taes,
VI - manifestos roubadores, ou violadores das igrejas, & seus bens,
VII - excomungados públicos, VIII - Religiosos professos, que no
tempo de sua morte constar manifestamente, que tem bens próprios
contra as Regras de sua Religião, IX - Aos que por sua culpa
deixarem de se confessar e comungar naquele ano pela obrigação da
Igreja, X - Aos infiéis & pagãos, que nunca pediram ou receberam o
sacramento do batismo, XI - As crianças, que não forem batizadas,
posto que seus pais, sejam ou fossem cristãos 158.
158 Constituiçõens primeiras do Arcebispado da Bahia, Manuscrito, NDHIR-UFMT, 1720: artigo 857.
Os falecidos que não poderiam ser enterrados em local “sagrado” constituíam um
problema para as autoridades laicais e religiosas 159. Porém, não há, até o momento,
informações de que em Cuiabá existisse um cemitério público destinado aos corpos dessas
pessoas excluídas que, provavelmente, eram enterradas em lugares situados fora da vila como
se fazia em outros lugares da colônia e nos momentos de epidemias.
Não se encaixando em nenhum dos casos da lista acima citada, o cristão para não
correr o risco de sua alma ir para outro local que não fosse o céu ou o purgatório, e assim
perder a garantia de sua passagem e o descanso na outra vida do além morte, o crente tinha
que se esforçar no cumprimento de suas obrigações para com a Igreja e, principalmente, fazer
parte de uma irmandade.
Fazendo parte de uma irmandade, cumprindo as suas obrigações previstas nos
compromissos, o fiel sabia que ao morrer teria a realização de todo o ritual das exéquias, seria
enterrado em local adequado (de preferência dentro da igreja), e que os irmãos estariam
rezando por sua alma por algum tempo.
Dessa maneira, a preparação do funeral começava com bastante antecedência, antes
mesmo de a pessoa demonstrar algum sinal de doença. Tudo tinha que ser muito bem
preparado: o cortejo fúnebre, a encomenda das missas, a reserva da sepultura dentro do espaço
dos templos e o traje mortuário. Toda essa preparação acabava transformando os funerais em
eventos sociais, esta foi a forma de celebrar a morte que perdurou por mais de trezentos anos
no Brasil 160.
Em Cuiabá, os enterramentos durante todo o período colonial e em parte do período
imperial, também foram feitos nas igrejas e nas suas imediações 161. A notícia do primeiro
sepultamento dentro das igrejas da vila foi dada por Barbosa de Sá em 1724, quando morreu o
159 PAGOTO, Amanda Aparecida. Do âmbito sagrado da igreja ao cemitério público: transformações Fúnebres em São Paulo (1850-1860), 2004:62. 160 Idem, p 19. 161 Rosa, 1996: 40.
Capitão Mor Pascoal Moreira Cabral, seu corpo foi sepultado na igreja Matriz da Vila 162;
depois disto, conforme a documentação, muitos outros sepultamentos foram realizados.
Por meio dos cronistas temos notícias de pelo menos três sepultamentos na igreja de
Nossa Senhora do Rosário durante o setecentos: do mulato Manoel do Prado e de sua mulher,
enterrados junto à porta principal 163; e, em 1774, do Sr Francisco Lopes de Araújo, primeiro
mestre de campo do regimento auxiliar das minas e membro professo da Ordem de Cristo, que
faleceu em 21 de janeiro 164.
Assim como outras cidades brasileiras, Cuiabá ganhou um cemitério público no início
do século XIX. A partir de 1835, por meio de seus Códigos de Posturas, é que se observa em
Cuiabá a regulação buscando coibir os enterramentos nas igrejas 165.
A partir de Barnabé de Mesquita, Siqueira (1995) aponta no período do século XVIII,
três tipos de enterramentos no âmbito das igrejas: os que aconteciam junto aos consistórios
das respectivas irmandades existentes; os tipos de enterramentos que eram feitos dentro das
igrejas, ou capelas filiais; e, por fim, o terceiro tipo que ocorria no cemitério da igreja ou
cemitério da fábrica que se destinava ao enterramento dos pobres e escravos 166.
Por seu valor social de demonstração de riqueza, poder e status, os funerais formaram
uma verdadeira tradição fúnebre, própria da cultura portuguesa e do catolicismo tradicional,
calcados no imaginário barroco 167.
Inseridas neste mesmo período, também eram celebradas com muito requinte e
ostentação exéquias solenes por ocasião da morte de reis e príncipes portugueses 168. Eram
celebrações públicas simuladas de caráter litúrgico sem a presença do cadáver.
162 BARBOSA DE SÁ, 1975. 163 Idem: p 36. 164 SIQUEIRA, 2002: 99-100. 165 Cf. ROCHA, Maria Aparecida Borges de Barros. Transformações nas Práticas de Enterramento – Cuiabá, 1850-1889. 2005. 166 SIQUEIRA, 1995: 98. 167 PAGOTO, 2004: 30. 168 FERNÁNDES, 2002: 86.
Na Vila Real também foram realizadas no período colonial, com as devidas pompas,
todas as exéquias dos monarcas e príncipes de Portugal e também do Papa Clemente XIII, em
19 de dezembro de 1769 169. Em agosto de 1751 as exéquias de D. João V, em janeiro de 1778
de D. José I, em abril de 1787 de D. José III, 04 de novembro de 1812 de D. Pedro Carlos, em
09 de outubro de 1813 da infanta D. Mariana e em 08 de setembro de 1816 da Senhora D.
Maria I 170.
A celebração das Exéquias reais era um meio, pelo qual, se buscava avivar na
população sentimentos reflexivos diante da morte. Mas, sobretudo, um mecanismo utilizado
pelas autoridades civis e eclesiásticas de interação entre os diferentes grupos sociais que
formavam a sociedade colonial ressaltando o poder da monarquia aos súditos 171. Neste
sentido, o resultado almejado destas celebrações fúnebres era muito próximo dos objetivos das
entradas solenes, como já foi analisado anteriormente.
A descrição do funeral por ocasião do falecimento de D. Maria I pode dar uma idéia
geral do que era a celebração das exéquias reais e de seus objetivos.
Em o dia 08 do mês de setembro começaram a dobrar os sinos
da câmara, catedral e capelas filiais, repetindo os dobres de hora em
hora por espaço de três dias. No dia 10 do mesmo mês saiu a câmara
a quebrar os reais escudos, cuja cerimônia se executou nos largos da
Igreja catedral, do Senhor dos Passos e da Praça Real,
acompanhando a todos este atos os republicanos, almotacéis,
letrados, escrivaes de banca e mais oficiais de justiça, vestidos e
ornados de rigoroso e sisudo luto. [...] Tendo determinado a mesma
camara solenizar com a mais crescida pompa as exéquias pela alma
169 BARBOSA DE SÁ, 1975: 51. 170 Cf. Idem, SIQUEIRA e Annaes do Senado da Câmara de Cuiabá. 171 Op cit. 2002: 91.
de S. M. Fidelíssima, fez levantar por obrigação devida dentro da
capela-mor da catedral um rico e aparatoso mausoléu de figura
oitavada em forma piramidal. [...] cobertos de veludo preto, e ornados
de ricos galões e folhagens de fino ouro e prata, que sobremaneira o
aformoseavam e enriqueciam [...] 172.
Toda a comunidade deveria mostrar-se consternada diante do fato, dando
demonstrações de sua obediência e fidelidade de vassalos para com o poder do suserano, que
estava sendo representado pela ornamentação e riqueza da urna funerária. Esta era sempre
feita em andares sucessivos com pinturas e ornamentação ricas em detalhes que estivessem à
altura da dignidade do falecido. Além da urna o aparato todo era formado por elementos que
envolviam praticamente todos os sentidos do sujeito: a visão, o olfato, a audição, mas,
sobretudo, o seu emocional.
Haviam quatro horrorosos esqueletos com mantos de cavaleiro da
Ordem de Cristo sobre outros tantos pedestais fronteiros aos quatro cortes
angulares do mesmo mausoléu [...] Sobre os quatro lados do primeiro banco
estavam assentados quatro jarros prateados, em que se depositaram
odoríficos perfumes, que incessantemente exalavam colunas de fumo e
incensavam a majestosa urna que ficava superior 173.
Pela descrição deste funeral, observa-se que as exéquias reais eram cerimônias cheias
de símbolos e de significado. Segundo Fernandes (2002: 95), das cerimônias fúnebres emerge
a idéia de que, subjacente à sagração ou investidura divina, o rei era o maior beneficiário de
172 SIQUEIRA, 2002: 97. 173 Idem: 98.
um sistema simbólico que faz dele o vassalo de Deus num sistema onde se confundiam e se
completavam o espiritual e o temporal.
Dessa maneira, ao olhar para os vestígios da vida religiosa da comunidade católica
cuiabana pode-se concluir que suas ações foram influenciadas pelo modelo cultural português
da época, o barroco, no qual o sagrado e o profano se confluíam e se complementavam. Das
práticas religiosas, três delas, de modo especial, foram as mais presentes no decorrer da
história desta comunidade: a edificação dos espaços sagrados, as comemorações ou
festividades e os rituais fúnebres. Todas elas se inter-relacionavam na demonstração de uma
religiosidade barroca, extremamente devocional, ritualista e teatral.
Neste trabalho buscou-se observar a participação da Igreja Católica na formação da
comunidade cuiabana no período colonial, desde a formação do arraial do Senhor Bom Jesus
até o momento da chegada de seu primeiro bispo.
Assim como nos demais recantos da América Portuguesa, verificou-se que a Igreja
Católica exerceu um papel de administradora dos paradoxos da sociedade colonial escravista,
expresso pelos contrastes das culturas e das raças que formavam essa sociedade. Foi também
esta instituição que acompanhou e deu suporte à vida organizacional da comunidade em
Cuiabá e, além da dimensão espiritual, determinava os padrões morais e costumes dessa
sociedade e através das irmandades organizou a sociedade cuiabana em seus diferentes níveis
sociais.
Sob o controle do Padroado através de seus membros eclesiásticos, serviu aos
objetivos do poder metropolitano e, de modo especial, na conquista do território. Com a
criação da prelazia do Cuiabá o monarca português pôde contar com o aval do Papa para o
estabelecimento das fronteiras do reino.
O que mais se verificou de decisivo na atuação da Igreja Católica em Cuiabá foi a
influência da tradição da cultura barroca portuguesa. A atuação de seus membros, seculares e
eclesiásticos produziu na sociedade colonial cuiabana uma forma de religiosidade baseada em
três elementos muito significativos, dos quais fluíam todas as outras ações. Estes elementos
eram as festas, a edificação dos espaços sagrados e o culto à morte.
Em todos esses elementos perpassou um tipo de religiosidade, no qual, os limites entre
o sagrado e o profano se confundiram e, ao mesmo tempo, se complementavam. Daí também
o comportamento questionável de certos membros do clero, preocupados muito mais com
demonstrações de poder e com as rendas da Igreja, do que com o trabalho pastoral de
assistência aos fiéis como poucos fizeram.
O significado da edificação religiosa, ou seja, do estabelecimento de espaços sagrados
foi muito além do seu próprio valor religioso. Representou a materialização de parte da
identidade da cultura portuguesa e um dos mecanismos de ocupação do novo território que
deveria ser conquistado e consagrado. Pois, com o estabelecimento e edificação desses
espaços é que se deu suporte ao culto e abrigou as irmandades leigas e a estrutura
administrativa.
Apesar de sempre haver a presença de clérigos na Vila Real, o papel decisivo na
formação da Igreja em Cuiabá foi desempenhado pelo grupo dos leigos, que tomaram as
primeiras iniciativas desde a construção dos templos até a promoção do culto divino, da
organização em irmandades até o sepultamento dos irmãos.
A Igreja Católica em Cuiabá foi formada por uma comunidade que se manteve atuante
em meio aos desafios da região e, apesar de muito cedo ser elevada à condição de prelazia, por
mais de meio século não contou com a presença direta de um bispo.
Apesar de quase não aparecer cobranças na documentação referente à ausência do
prelado indicado para a prelazia, na descrição da chegada do primeiro bispo em 1808, nota-se
uma satisfação por parte da população , que aguardava já quase meio século.
Sem ufanismos, é mister dizer que a Igreja de Cuiabá, sem dúvida alguma, exerceu
importante papel na consolidação da colonização e no domínio português sobre a região e as
populações da Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, assim como no restante da
Capitania de Mato Grosso.
Aventurar-se num território cheio de perigos, como a Capitania de Mato Grosso e
Cuiabá no século XVIII, onde a morte poderia chegar mais brevemente, fez do consolo
espiritual um elemento de colaboração relevante para que homens e mulheres se instalassem
em meio a tantos obstáculos. Evidentemente, o sonho de encontrar fortuna foi o grande motor
propulsor para essas pessoas, mas para uma população cheia de religiosidade e de
superstições, o receio de morrer sem ter a garantia do descanso com Deus também contava
muito.
Enfim, estudar a formação da Igreja Católica na Cuiabá colonial e seu desempenho,
tanto do ponto de vista da comunidade eclesial como da instituição eclesiástica
proporcionaram uma série de reflexões que ainda merecem aprofundamento. O trabalho que
aqui foi apresentado não pretende ter caráter conclusivo, mas, o de começar uma discussão,
quiçá, com futuros pesquisadores do assunto, quem sabe o inicio de um debate sobre as
instituições culturais que participaram da formação da sociedade cuiabana, ainda pouco
exploradas pela historiografia mato-grossense.
Fontes Manuscritas:
Documentos avulsos
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