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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES
DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATU SENSU EM PSICOPEDAGOGIA
PROJETO “LETRAMENTO”
A IMPORTÂNCIA DO LETRAMENTO NUMA VISÃO CONSTRUTIVISTA
PARA O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO
Roberta Carpintéro Fraga
Rio de Janeiro, Novembro de 2002
ROBERTA CARPINTÉRO FRAGA
Aluna do Curso de Pós-Graduação Latu Sensu em Psicopedagogia
Projeto “Letramento”
A IMPORTÂNCIA DO LETRAMENTO NUMA VISÃO CONSTRUTIVISTA
PARA O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO
Trabalho monográfico de conclusão do curso
de Pós-Graduação Latu Sensu em Psicope-
dagogia – Projeto “Letramento” –, apresentado
à Universidade Cândido Mendes, em exigên-
cia à disciplina de Metodologia, sob orientação
da Professora Diva Nereida M. M. Maranhão.
Rio de Janeiro, Novembro de 2002
ii
Dedico este trabalho a todos (inclusive eu)
que transformam seus sonhos em verda-
deiros desafios, nunca esmorecendo dian-
te das dificuldades.
iii
Agradecimentos
Aos meus pais, Manuel e Maria da Concei-
ção, e ao meu marido, Anderson, que con-
tribuíram para meu êxito, compreendendo
minhas ausências, compartilhando meus
ideais e sempre me incentivando a prosse-
guir.
iv
RESUMO
O trabalho em pauta objetiva a apresentação de um estudo sobre a ques-
tão do letramento enfocado numa visão construtivista em relação ao processo de alfabeti-
zação atualmente em aplicação. Poderão ser observados no decorrer do trabalho diver-
sos pontos referentes ao tema “letramento”, conforme segue: em um primeiro momento,
poderá ser verificada uma conceituação do “letramento”, assim como uma comparação
entre os termos letramento, alfabetização e escolarização, e suas respectivas diferenças.
Seguem-se questões importantes sobre escrever e ler; aspectos qualitativos da alfabeti-
zação; objetivos da alfabetização inicial; a língua escrita como objeto da aprendizagem (a
escola transformando a escrita de objeto social em objeto escolar); as dificuldades e as
facilidades na alfabetização; a produção de materiais na facilitação das ações de alfabeti-
zação; os conhecidos discursos do governo com relação ao analfabetismo; e, finalmente,
o lado político do analfabetismo e do letramento.
v
SUMÁRIO
Página
Resumo .................................................................................................................
Introdução .............................................................................................................
1.0 – Conceituação ...............................................................................................
2.0 – Escrever e Ler ..............................................................................................
2.1 – Escrever ..................................................................................................
2.2 – Ler ............................................................................................................
2.2.1 – Aprender a Gostar de Ler ................................................................
3.0 – Aspectos Qualitativos da Alfabetização ......................................................
4.0 – Os Objetivos da Alfabetização ....................................................................
5.0 – A Língua Escrita Como Objeto da Aprendizagem ......................................
6.0 – As Dificuldades Desnecessárias e seu Papel Discriminador .....................
7.0 – Produção de Materiais .................................................................................
8.0 – Alfabetização de Crianças e Fracasso Escolar ..........................................
8.1 – A Orientação das Políticas de Alfabetização .........................................
8.2 – Alguns Problemas Teóricos Vinculados à Alfabetização .......................
8.2.1 – Os Pré-Requisitos como Problema Escolar ...................................
8.2.2 – Os Pré-Requisitos como Problema Teórico ...................................
8.2.3 – Síntese .............................................................................................
9.0 – Analfabetismo e Letramento: Uma Questão Também Política ..................
Conclusão .............................................................................................................
Bibliografia .............................................................................................................
iv
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47
INTRODUÇÃO
A escolaridade obrigatória para toda a população tem por objetivo prioritário
alfabetizar os cidadãos, isto é, dar condições para que todos aprendam a ler e a escrever.
Por isso, o processo de alfabetização, um dos eixos principais da escolaridade básica,
inicia-se logo nas primeiras classes, até porque é necessário que as crianças aprendam
a ler com competência logo que possível para que possam utilizar adequadamente textos
escritos como instrumentos de apoio às situações de aprendizagem.
Quando inicia sua escolaridade, a criança espera aprender rapidamente a
ler e a escrever. No entanto, o aprendizado da escrita requer tempo, paciência e maturi-
dade. E as horas e horas de atenção a tarefas relacionadas a esse aprendizado, que nem
sempre fazem grande sentido para ela, certamente colaboram para que pense sobre
questões do tipo: que relações existem entre o que se fala e o que se escreve? Por que
todos devem escrever com a mesma ortografia? Por que é preciso “caprichar na letra?
Por que a língua escrita tem regras de acentuação? Por que a gramática da língua escrita
nem sempre corresponde à da língua oral?
Dentre essas questões, aquela que refere as relações entre saber ler e sa-
ber escrever é a que menos encontra uma ressonância significativa no planejamento das
atividades dos alunos.
Principalmente nas classes chamadas de alfabetização e primeiras séries,
são usuais as seqüências de situações de ensino de escrita centradas em questões or-
tográficas e caligráficas, acompanhadas por atividades de leitura das palavras, frases e
pequenos textos que servem de suporte para essas atividades.
Essa forma de relacionar as ações de ler e escrever a segmentos de escri-
ta freqüentemente pouco significativos não permite aos alunos conhecer as relações pro-
7
fundas que existem entre as práticas sociais de leitura e escrita, pois lêem e escrevem
textos que só servem para serem lidos e escritos dentro da sala de aula, durante as “ati-
vidades de alfabetização”, e jamais fora dessa situação, em contextos sociais amplos e
não escolares.
Assim, não é por acaso que, hoje em dia, seja raro os alunos descobrirem
o prazer que a leitura e a escrita podem proporcionar. E embora a cada dia mais pesqui-
sadores e professores reconheçam a necessidade de fomentar aprendizagens significati-
vas dessas práticas para que possam cumprir plenamente sua função de instrumentos
fundamentais de aprendizagem.
Mesmo reconhecendo que a escola não é a única responsável por esse
estado de coisas, são evidentemente os professores que poderão revertê-lo, ajudando
seus alunos a descobrirem o prazer da leitura e suas profundas conexões com a escrita,
instrumentos preciosos dentro e fora da escola.
Cabe aos professores promover um processo de alfabetização extensivo
no qual ler e escrever sejam compreendidos como práticas que envolvem uma dimensão
pessoal, lúdica e prazerosa, e que são interdependentes, intimamente relacionados e fru-
to de um processo longo, difícil e extremamente enriquecedor.
Fomentar o prazer da leitura e da escrita não é algo independente de ensi-
nar a ler e escrever. Existe uma estreita relação entre uma e outra coisa, e é por isso que
se pode dizer que o processo de alfabetização que não desenvolve o desejo de ler e
escrever não prepara a criança para viver plenamente a cultura em que nasceu.
1.0 - CONCEITUAÇÃO
Letramento, alfabetização e escolarização são termos que se podem con-
fundir. Vive-se em uma sociedade em que a "letra", isto é, a escrita está por toda parte e
as pessoas têm que "se virar" no seu cotidiano, independentemente de saberem ler ou
escrever, independentemente de terem freqüentado uma escola. Portanto, há muitas
pessoas, chamadas analfabetas, que são "letradas", embora não tenham sido escolari-
zadas. Como vivem em contato com a escrita, tomam ônibus, manuseiam dinheiro,
etc., "lendo", mediadas pelas cores, pelos algarismos e até pelas letras. Por isso, "letrar-
se", um processo que acontece na escola, na igreja, no sindicato ou em outras institui-
ções, é um conceito mais amplo do que alfabetizar-se, que se dá, sistematicamente, na
escola. É o que se chama de escolarização. Mas nem sempre o nível de escolarização
corresponde ao nível de letramento. Nesse sentido, pode-se dizer que há diferentes níveis
de letramento, como há diferentes níveis de escolarização.
O conceito de letramento, embora ainda não registrado nos dicionários
brasileiros, tem seu aflorar devido à insuficiência reconhecida do conceito de alfabetiza-
ção. E, ainda que não mencionado, já está presente na escola, traduzido em ações peda-
gógicas de reorganização do ensino e reformulação dos modos de ensinar.
A cada momento, multiplicam-se as demandas por práticas de leitura e de
escrita, não só na chamada cultura do papel, mas também na nova cultura da tela, com
os meios eletrônicos. Se uma criança sabe ler, mas não é capaz de ler um livro, uma
revista, um jornal, se sabe escrever palavras e frases, mas não é capaz de escrever uma
carta, é alfabetizada, mas não é letrada. Em sociedades grafocêntricas, como a em que
9
se vive, tanto crianças de camadas favorecidas quanto crianças das camadas populares
convivem com a escrita e com práticas de leitura e escrita cotidianamente, ou seja, vivem
em ambientes de letramento.
A diferença é que crianças das camadas favorecidas têm um convívio ine-
gavelmente mais freqüente e mais intenso com material escrito e com práticas de leitura
e de escrita.
A preocupação com um analfabetismo funcional (terminologia que a Unes-
co recomendara nos anos 70, e que o Brasil passou a usar somente a partir de 1990,
segundo a qual a pessoa apenas sabe ler e escrever, sem saber fazer uso da leitura e da
escrita), ou com o iletrismo, que seria o contrário de letramento, é um fenômeno contem-
porâneo, presente até no Primeiro Mundo.
As sociedades, no mundo inteiro, tornaram-se cada vez mais centradas na
escrita. A cada momento, multiplicam-se as demandas por práticas de leitura e de escri-
ta, não só na chamada cultura do papel, mas também na nova cultura da tela, com os
meios eletrônicos, que, ao contrário do que se costuma pensar, utilizam-se fundamental-
mente da escrita, são novos suportes da escrita. Assim, nas sociedades letradas, ser
alfabetizado é insuficiente para vivenciar plenamente a cultura escrita e responder às de-
mandas de hoje.
Não se trata propriamente do aparecimento de um novo conceito, mas do
reconhecimento de um fenômeno que, por não ter, até então, significado social, permane-
cia submerso. Desde os tempos do Brasil Colônia, e até muito recentemente, o problema
que enfrentávamos em relação à cultura escrita era o analfabetismo, o grande número de
pessoas que não sabiam ler e escrever. Assim, a palavra de ordem era alfabetizar. Esse
problema foi, nas últimas décadas, relativamente superado, vencido de forma pelo menos
razoável. Mas a preocupação com o letramento passou a ter grande presença na escola,
10
ainda que sem o reconhecimento e o uso da palavra, traduzido em ações pedagógicas de
reorganização do ensino e reformulação dos modos de ensinar.
Letramento é, de certa forma, o contrário de analfabetismo. Aliás, houve
um momento em que as palavras letramento e alfabetismo se alternavam, para nomear o
mesmo conceito. Ainda hoje, há quem prefira a palavra alfabetismo à palavra letramento.
Analfabetismo é definido como o estado de quem não sabe ler e escrever; seu contrário,
alfabetismo ou letramento, é o estado de quem sabe ler e escrever. Ou seja: letramento é
o estado em que vive o indivíduo que não só sabe ler e escrever, mas exerce as práticas
sociais de leitura e escrita que circulam na sociedade em que vive: sabe ler e lê jornais,
revistas, livros; sabe ler e interpretar tabelas, quadros, formulários, sua carteira de traba-
lho, suas contas de água, luz, telefone.
Alfabetização e letramento se somam. Ou melhor, a alfabetização é um
componente do letramento. Pode-se considerar que é um risco o que se vinha fazendo,
ou se vem fazendo, repetindo-se que alfabetização não é apenas ensinar a ler e a escre-
ver, desmerecendo assim, de certa forma, a importância de ensinar a ler e a escrever. É
verdade que esta é uma maneira de reconhecer que não basta saber ler e escrever, mas,
ao mesmo tempo, pode levar também a perder-se a especificidade do processo de a-
prender a ler e a escrever, entendido como aquisição do sistema de codificação de fone-
mas e decodificação de grafemas, apropriação do sistema alfabético e ortográfico da lín-
gua, aquisição que é necessária, mais que isso, é imprescindível para a entrada no mun-
do da escrita.
2.0 - ESCREVER E LER
2.1 - Escrever
Escrever é diferente de falar. Escrever textos é uma maneira diferente de
produzir linguagem.
As crianças sabem muitas coisas sobre o sistema de comunicação verbal
antes de dominar a escrita. São, por exemplo, capazes de adequar-se às mudanças da
audiência: desde pequenas, dirigem-se de maneira diferente a um adulto e a outras crian-
ças. São também capazes de produzir e reconhecer diferentes organizações discursivas:
sabem da diferença discursiva entre o relato de um conto e a descrição de uma casa.
Ao mesmo tempo, já tiveram oportunidades variadas de observar o sistema
de representação escrita da língua que aprenderam a falar e, desta observação, puderam
construir, formular hipóteses sobre o que é necessário para que os signos que compõem
a escrita alfabética (letras, sinais de pontuação e acentuação) signifiquem, digam algo e
possam ser lidos.
Nas diferentes situações comunicativas que a escola oferece, defrontam-
se com a necessidade de lidar com diversos gêneros de discursos falados e escritos.
Precisam, por exemplo, conversar com colegas no desenvolvimento de diferentes ativida-
des, construir frases interrogativas para formular questões, descrever objetos, narrar fa-
tos, expor idéias.
Geralmente, quando chegam à escola as crianças já desenvolveram sua
competência de falante para poderem realizar muitas dessas ações com certa autonomi-
12
a. No entanto, o mesmo não ocorre com sua competência para a produção de textos es-
critos.
Ou seja, embora, durante os primeiros anos de escola, as crianças já pos-
sam conversar, dialogar com colegas e o professor, ainda não sabem como registrar, em
língua escrita, aquele mesmo diálogo; podem também entrevistar um colega sobre um
acontecimento vivido por ele, mas não sabem como registrar essa entrevista para publi-
cá-la na classe, por exemplo; sabem ler um texto de história, reproduzi-lo oralmente, mas
não sabem como registrar uma história que inventem de forma que a imagem do texto
escrito contribua para que o leitor leia, entenda e interprete o texto com autonomia.
De acordo com CAVALCANTI (1997):
“O conhecimento dessa forma diferente de produzir linguagem, que é a escrita, nascerá e se desenvolverá progressivamente, fru-to tanto da familiaridade, da intimidade com a língua escrita que os livros, os jornais, as revistas podem proporcionar, quanto das si-tuações de aprendizagem nas quais os alunos produzem diferen-tes tipos de texto”.
2.2 - Ler
Quando um adulto diz a uma criança que o livro é muito importante, nem
sempre se lembra de dizer-lhe que há inúmeros tipos de livros e textos.
É na escola que as crianças encontram um espaço programado para a-
prender a fazer diferentes leituras do mundo, a ler diferentes tipos de texto portadores de
diferentes conteúdos.
Esses textos chegam à sala de aula geralmente através dos livros e outras
publicações impressas que apoiam e contribuem para o trabalho dos professores e para
a aprendizagem dos alunos. De acordo com o conteúdo que envolvam, os textos se or-
ganizam de forma diferente.
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Quando os textos dos livros de ciências e de história, por exemplo, iniciam
uma análise dos fatos descritos, o autor estará usando outra função da linguagem; estará
iniciando um texto dissertativo, isto é, uma forma de escrever que transmite basicamente
a opinião de um escritor a respeito de determinado tema.
Os livros dedicados ao ensino da língua escrita trazem diversos textos que
procuram contribuir para que o aluno aprenda sobre a língua portuguesa, sua gramática,
sua literatura. No caso das antologias de língua portuguesa, o leitor pode ver-se diante de
vários registros e discursos.
Com isso, quer-se deixar claro que os alunos precisam saber ler diferentes
tipos de texto nas diferentes tarefas que a vida escolar lhes coloca. E que cabe ao profes-
sor criar diferentes situações de aprendizagem nas quais seus alunos aprendam a lidar
com eles.
2.2.1 – Aprender a Gostar de Ler
As crianças são mergulhadas no maravilhoso mundo dos contos de fadas
desde muito pequenas, antes de entrarem para a escola. Através deles, antes de se inici-
arem no universo da palavra escrita, as crianças desfrutam da liberdade típica da língua
oral, em que uma mesma história pode ser recontada de diversas formas, ao sabor do
momento.
Entretanto, quando as crianças são alfabetizadas, muitas vezes o profes-
sor se pergunta: E agora? O que será que posso lhes oferecer? Afinal, já passaram da
idade do conto de fadas.
CAVALCANTI (1997) esclarece quanto a estes questionamentos:
“Na verdade, o professor comete um equívoco porque não existe verdadeiramente uma idade certa para se ler um conto de fadas.
14
O bom livro não é como um sapato velho que quando o pé cresce é posto de lado. Uma história bem contada pode e deve ser relida ao longo de toda a vida. Por outro lado, a estrutura do conto, como gênero literário, é bastante abrangente, e ele não deve ser inter-pretado, reduzindo a uma espécie de receita ou categoria classifi-catória”.
O professor deve ter o cuidado de permitir que seus alunos exercitem-se
na descoberta da leitura e possam propor suas obras preferidas aos colegas, mesmo que
sua escolha contrarie o gosto do próprio professor, que não se deve deixar intimidar pela
escolha dos seus alunos ou pela rejeição de determinada obra.
A leitura de um livro, num primeiro momento, quando a criança ainda não é
fluente, pode parecer-lhe fria se comparada ao prazer que desfrutava ao ouvir uma histó-
ria em companhia de amigos. E se em casa a criança não tiver usufruído da experiência
de ver pais e familiares entretidos na leitura, se pertencer a um ambiente no qual absolu-
tamente não há esse hábito, nasce a possibilidade de uma rejeição ao ato da leitura.
Contudo, se o professor for capaz de introduzir a idéia de que a escrita é
um jogo instigante e a leitura uma fonte inesgotável de conhecimento, estará abrindo os
olhos de novos leitores e o caminho de vigorosos escritores.
3.0 – ASPECTOS QUALITATIVOS DA ALFABETIZAÇÃO
A alfabetização parece enfrentar-se com um dilema: ao estender o alcance
dos serviços educativos, baixa-se a qualidade, e se consegue apenas um “mínimo de
alfabetização”, o que significa alcançar um nível “técnico rudimentar”, apenas a possibili-
dade de decodificar textos breves e escrever algumas palavras (além de grafar quantida-
des e talvez as operações elementares), porém sem atingir a língua escrita como tal.
Nada garante que tais aquisições perdurem, sobretudo se se levar em
consideração que a vida rural ainda não requer um uso cotidiano da língua escrita. (É por
este motivo que alguns autores se perguntam se alguns resultados da incrementação da
alfabetização, como cifras globais, não se devem mais ao processo de urbanização do
que às ações educativas específicas).
Mais ainda: por mais bem-sucedidas que sejam as campanhas de alfabeti-
zação de adultos, não há garantias de se alcançarem porcentagens de alfabetização altas
e duráveis enquanto a escola primária não cumprir eficazmente sua tarefa alfabetizadora.
Na medida em que a escola primária continuar expulsando grupos consideráveis de cri-
anças que não conseguem alfabetizar, continuará reproduzindo o analfabetismo dos adul-
tos.
FERREIRO (2001) usa intencionalmente o termo “expulsar” em lugar dos
eufemismos “retenção” (por parte da instituição) ou “abandono” (por parte dos alunos) na
intenção de tentar mostrar como operam, no interior do sistema escolar, mecanismos
encobertos de discriminação que dificultam a alfabetização daqueles setores sociais que
mais necessitam da escola para se alfabetizar.
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De todos os grupos populacionais, as crianças são as mais facilmente al-
fabetizáveis. Elas têm mais tempo disponível para dedicar à alfabetização do que qual-
quer outro grupo de idade e estão em processo contínuo de aprendizagem, enquanto os
adultos já fixaram formas de ação e conhecimento mais difíceis de modificar.
O sucesso dos objetivos da alfabetização das crianças requer superar a
visão da introdução à leitura e à escrita como a aprendizagem de uma técnica, e essa
medida está indissoluvelmente ligada ao problema da “qualidade do ensino”.
Conforme abordagem de FERREIRO (2001):
“Os resultados recentes das pesquisas sobre o processo de aqui-sição da língua escrita nas crianças levam a uma conclusão que merece ser considerada: as crianças são facilmente alfabetizá-veis; foram os adultos que dificultaram o processo de alfabetiza-ção delas”.
4.0 – OS OBJETIVOS DA ALFABETIZAÇÃO INICIAL
Quais são os objetivos da alfabetização inicial? Freqüentemente esses ob-
jetivos se definem de forma muito geral nos planos e programas, e de uma maneira muito
contraditória na prática cotidiana e nos exercícios propostos para a aprendizagem.
É comum registrar nos objetivos expostos nas introduções de planos, ma-
nuais e programas, que a criança deve alcançar “o prazer da leitura” e que deve ser ca-
paz de “expressar-se por escrito”. As práticas convencionais levam, todavia, a que a ex-
pressão escrita se confunda com a possibilidade de repetir fórmulas estereotipadas, a
que se pratique uma escrita fora de contexto, sem nenhuma função comunicativa real e
nem sequer com a função de preservar informação.
Um dos resultados conhecidos de todos é que essa expressão escrita é
tão pobre e precária que, inclusive, aqueles (poucos) que chegam à universidade apre-
sentam sérias deficiências de leitura e redação. Outro resultado bem conhecido é a gran-
de inibição que os jovens e adultos mal alfabetizados apresentam com respeito à língua
escrita: evitam escrever, tanto por medo de cometer erros de ortografia como pela dificul-
dade de dizer por escrito o que são capazes de dizer oralmente.
A declaração sobre o “prazer da leitura” leva a privilegiar um único tipo de
texto: a narrativa ou a literatura de ficção, esquecendo que uma das funções principais da
leitura ao longo de toda a escolaridade é a obtenção de informação a partir de textos es-
critos. Ainda que as crianças devam ler nas aulas de Estudos Sociais, Ciências Naturais
e Matemática, essa leitura aparece dissociada da “leitura” que corresponde às aulas de
língua. Um dos resultados é, uma vez mais, um déficit bem conhecido em nível dos cur-
18
sos médio e superior: os estudantes não sabem resumir um texto, não são capazes de
reconhecer as idéias principais e, o que é pior, não sabem seguir uma linha argumentativa
de modo a identificar se as conclusões que se apresentam são coerentes com a argu-
mentação precedente. Portanto, não são leitores críticos capazes de perguntar-se, diante
de um texto, se há razões para compartilhar do ponto de vista ou da argumentação do
autor.
Um dos objetivos sintomaticamente ausente dos programas de alfabetiza-
ção de crianças é o de compreender as funções da língua escrita na sociedade. Como as
crianças chegam a compreender essas funções? As crianças que crescem em famílias
onde há pessoas alfabetizadas e onde ler e escrever são atividades cotidianas, recebem
esta informação através da participação em atos sociais onde a língua escrita cumpre
funções precisas.
Essa informação que uma criança que cresce em um ambiente alfabetiza-
do recebe cotidianamente é inacessível para aqueles que crescem em lares com níveis
de alfabetização baixos ou nulos. Isso é o que a escola “dá por sabido”, ocultando assim
sistematicamente, àqueles que mais necessitam, par que serve a língua escrita. E, ao
ocultar essa informação, discrimina, porque é impossível obter essa informação fora dos
atos sociais que a convertem em funcional. Na maioria das escolas se apresenta a escri-
ta como um “objeto em si”, importante dentro da escola, já que regula a promoção ao ano
escolar seguinte, e também importante “para quando crescer”, sem que se saiba na reali-
dade de eu maneira esse “saber fazer” estará ligado à vida adulta: prestígio social? Con-
dições de trabalho? Acesso a mundos desconhecidos?
5.0 – A LÍNGUA ESCRITA COMO OBJETO DA APRENDIZAGEM
No decorrer dos séculos, a escola (como instituição) operou uma transmu-
tação da escrita. Transformou-a de objeto social em objeto exclusivamente escolar, ocul-
tando, ao mesmo tempo, suas funções extra-escolares: precisamente aquelas que histo-
ricamente deram origem à criação das representações escritas da linguagem. É imperio-
so (porém nada fácil de conseguir) restabelecer, no nível das práticas escolares, uma
verdade elementar: a escrita é importante na escola porque é importante fora da escola, e
não o inverso.
A escola (como instituição) se converteu em guardiã desse objeto social
que é a língua escrita e solicita do sujeito em processo de aprendizagem uma atitude de
respeito cego diante desse objeto, que não se propõe como um objeto sobre o qual se
pode atuar, mas como um objeto para ser contemplado e reproduzido fielmente, sem
modificá-lo.
Essa atitude de respeito cego manifesta-se nos mínimos detalhes. Segun-
do FERREIRO (2001):
“O aprendiz deve respeitar cuidadosamente a forma das letras e reproduzi-las seguindo um traçado imposto; deve respeitar tam-bém a ortografia desde o início, como se “a roupagem gráfica” de cada palavra fosse eterna; oculta-se-lhe, assim, que a escrita ¾ tanto como a língua oral ¾ são objetos que evoluem, e que, se há fortes razões para manter, dentro de certos limites, a norma or-tográfica estabelecida, esta é apenas uma convenção útil que permite a comunicação a distância entre falantes que comparti-lham da mesma língua, mas não do mesmo dialeto (e que, portan-to, lerão o mesmo texto com pronúncias muito diferentes, confor-me a variante da língua que eles aprenderam em seus primeiros anos de vida).
Desde o início, exige-se que o aluno pronuncie como está escrito, inverten-
do, assim, as relações fundamentais entre a fala e a escrita: não são as letras que “se
20
pronunciam” de certa maneira; são as palavras que “se grafam” de certo modo. Exige-se
do aluno, desde o início, um respeito cego para com o que um texto “diz” exatamente,
independente do que “queria dizer”; o respeito pela forma se põe diante de qualquer inten-
ção de interpretar o conteúdo, porque se teme que as intenções de interpretação levem a
antecipar significado, e que essa antecipação leve à substituição léxica ou à paráfrase em
detrimento da forma; assim também se inverte a relação fundamental entre forma e signi-
ficado: em primeiro lugar está o que se quer dizer; a escrita ¾ tanto como a língua
oral ¾ oferece múltiplas opções para dizê-lo.
Por mais que se repita nas declarações iniciais dos métodos, manuais ou
programas, que a criança aprende em função da sua atividade, o que se tem que estimu-
lar o raciocínio e a criatividade, as práticas de introdução à língua escrita desmentem sis-
tematicamente tais declarações. O ensino neste domínio continua apegado às práticas
mais envelhecidas da escola tradicional, aquelas que supõem que só se aprende algo
através da repetição, da memorização, da cópia reiterada de modelos, da mecanização.
Há crianças que chegam à escola sabendo que a escrita serve para escre-
ver coisas inteligentes, divertidas ou importantes. Essas são as que terminam de alfabeti-
zar-se na escola, mas começaram a alfabetizar-se muito antes, através da possibilidade
de entrar em contato, de interagir com a língua escrita. Porém, há outras crianças que
necessitam da escola para apropriar-se da escrita. Essas práticas escolares, entretanto,
não lhes permitem apropriar-se de nada: acabam por ser meras reprodutoras de signos
estranhos.
6.0 – AS DIFICULDADES DESNECESSÁRIAS E SEU
PAPEL DISCRIMINADOR
As crianças são facilmente alfabetizáveis desde que descubram, através
de contextos sociais funcionais, que a escrita é um objeto interessante que merece ser
conhecido (como tantos outros objetos da realidade aos quais dedicam seus melhores
esforços intelectuais).
São os adultos que têm dificultado o processo imaginando seqüências ide-
alizadas de progressão cumulativa, estimulando modos idealizados de fala que estariam
ligados à escrita e construindo definições de “fácil” e de “difícil”, que nunca levaram em
conta de que maneira se define o fácil e o difícil para o ator principal da aprendizagem: a
criança. Tudo isso tornou o processo mais difícil do que deveria ser, produziu fracassos
escolares desnecessários, estigmatizou uma grande parte da população e transformou a
experiência de alfabetização em uma experiência literalmente traumática para muitas cri-
anças.
A partir da idéia de que cada letra representa de maneira precisa um som
da língua, tende-se a corrigir, com a pretensão de homogeneizar a pronúncia. É preciso
enfatizar que essa dimensão que está sendo considerada é independente das metodolo-
gias precisas de ensino que estejam sendo praticadas. Como a escrita tem prestígio,
chega-se daí com grande facilidade a supor que representa as variantes de prestígio da
língua, ou seja, as variantes dialetais que correspondem à chamada “língua culta”, e que é
mais correto caracterizar como o modo de fala dos grupos poderosos dentro da socieda-
de e/ou o modo de fala do centro político e cultural do país.
22
O resultado imediato é o mesmo: despreza-se o modo de fala das crianças
de grupos socialmente marginalizados como inconveniente para dar acesso à escrita. É
preciso enfatizar que o preconceito lingüístico é um dos mecanismos de distribuição, no
interior da escola, com maiores conseqüências para a criança. Primeiro, porque ao des-
prezar uma variante dialetal se está desprezando não somente a criança, mas também o
grupo social a que ela pertence; segundo, porque ninguém pode mudar sua forma de fala
por um ato de vontade individual (todos levam a marca lingüística não só da sua língua
materna como também da variante dialetal dessa língua que se aprende como primeira,
ainda que se possa supostamente adquirir outras variantes dialetais tanto quanto se pos-
sa adquirir outras línguas); terceiro, porque as professoras ¾ que também não empre-
gam as variantes de prestígio ¾ constroem uma idealização da sua própria percepção
de fala que cria distorções lingüísticas às vezes caricaturais; quarto, porque a escola não
pode, por mais que o pretenda, modificar a língua oral da comunidade (exceto, e em me-
dida mínima, em nível lexical).
Segundo FERREIRO (2001),
“Não há nenhuma prova empírica que permita concluir que é ne-cessário certo tipo de pronúncia para ter acesso à língua escrita... Toda escrita alfabética tem como princípio fundamental marcar as diferenças sonoras através de diferenças gráficas, mas no desen-rolar histórico se produzem inevitavelmente defasagens entre es-se princípio geral e as realizações concretas dos usuários”.
Esta abordagem de FERREIRO (2001) se dá por duas razões:
· a primeira tem a ver com uma variável temporal ¾ as ortografias das
línguas escritas evoluem muito mais lentamente do que a fala;
· a segunda razão é de caráter espacial ¾ na medida em que uma lín-
gua se estende a um número crescente de usuários dispersos numa área geográfica
ampla, surgem variantes dialetais que se distanciam em maior ou menor medida do que
se representa por escrito.
23
Por essas razões, é falso supor que a escrita (em seu estado atual, produ-
to de um desenvolvimento histórico) representa diretamente a fala, ou um modo idealiza-
do de fala A escrita representa a língua e não a fala. Qualquer intenção de justificar a or-
tografia a partir da pronúncia leva a desprezar as variantes de fala das crianças das popu-
lações socialmente marginalizadas, e a dificultar sua aprendizagem. Esta é uma das ra-
zões fundamentais por que a correção ortográfica não pode ser exigida nas primeiras
etapas da alfabetização, com risco de se distorcer o processo desde o início.
Curiosamente, não existem questionamentos a respeito do processo de
aquisição da língua oral. Quanto a isso não há polêmicas metodológicas porque se trata
de uma aprendizagem extra-escolar. A nenhuma mãe ocorre ocultar do seu filho certos
fonemas da língua porque são difíceis: elas falam e cantam para seus filhos sem se preo-
cupar em saber quais fonemas estão apresentando e em que ordem o estão fazendo. E
as outras pessoas que rodeiam a criança falam, entre si, permitindo que as crianças as
escutem, ainda que suponham o não-entendimento de tudo o que escutam. Em outros
termos, e conforme FERREIRO (2001), “ninguém nega às crianças acesso à informação
lingüística antes que sejam falantes; ninguém propõe um plano de apresentação dessa
informação lingüística em uma seqüência predeterminada”.
As seqüências pedagógicas a respeito da língua escrita procedem de uma
maneira completamente oposta: as letras, as sílabas, as palavras ou frases se apresen-
tam em uma certa ordem, em doses pré-fabricadas, iguais para todos, para evitar riscos;
nega-se acesso à informação lingüística até que se tenham cumprido os rituais da inicia-
ção; não se permite à criança “escutar língua escrita” (em seus diferentes registros) até
que a mesma não possa ler; a língua escrita se apresenta fora de contexto1.
Embora o aprendizado da língua escrita não seja exatamente similar ao da
língua oral, é útil prosseguir com o contraste entre as atividades sociais frente às duas
aprendizagens. No caso da aprendizagem da língua oral, os adultos que rodeiam a crian-
24
ça manifestam entusiasmo quando ela faz suas primeiras tentativas para comunicar-se
oralmente. Ninguém espera que, desde a primeira palavra emitida, a pronúncia seja corre-
ta. Ninguém espera que, desde as primeiras combinações de palavras que tente produzir,
a sintaxe seja perfeita. Todos tentam compreender o que a criança disse supondo que
quis dizer algo, e dão feedback lingüístico ao responder as suas perguntas parafrasean-
do, quando parece necessário, a emissão infantil.
No caso da língua escrita, o comportamento da comunidade escolar é
marcadamente oposto. Quando a criança faz suas primeiras tentativas para escrever é
desqualificada de imediato porque “faz garatujas”2. Desde as primeiras escritas, o traçado
deve ser correto e a ortografia convencional. Ninguém tenta compreender o que a criança
quis escrever, porque se supõe que não possa escrever nada até ter recebido a instrução
formal pertinente (na realidade: é melhor que não escreva até não saber grafar de modo
conveniente). Ninguém tenta retraduzir o que a criança escreveu, porque lhe nega o direito
de aproximar-se da escrita por um caminho diferente do indicado pelo método escolhido
pelo professor.
As pesquisas sobre os processos de aquisição da língua oral mostram cla-
ramente que a repetição desempenha um papel muito limitado nesse processo. Sabe-se
que as crianças aprendem muito mais construindo do que repetindo o que os outros dis-
seram. Em língua escrita, esses processos de construção estão proibidos. Nenhuma das
metodologias tradicionais cogita que, desde o início do processo de alfabetização, as cri-
anças possam escrever palavras que nunca antes copiaram, e que essas tentativas para
construir uma representação são tão importantes nessa aprendizagem como as tentati-
vas para dizer algo em língua oral. Nenhuma dessas metodologias pensa em dar instru-
mento ao professor para saber ler (interpretar) essas produções infantis, para poder tra-
1 O professor não lê para informar-se nem para informar a outros, mas para “ensinar a ler”; não escreve para
comunicar ou para guardar informações, mas para “ensinar a escrever”. 2 Esgar, momice, careta. Desenho malfeito, tosco, de pouca importância; rabisco, gatafunho, gatafunhos,
garabulha, garabulho, garafunhas, garafunhos, gatimanhos, garavunha, gregotim, gregotins. Rabisco.
25
duzi-las sem desqualificá-las (tal como se faz na língua oral, onde se trata de entender o
que a criança disse, dizendo-a, sem necessidade de desqualificar sua emissão com um
“você não sabe falar!”).
Segundo abordagem de FERREIRO (2001):
“Na língua oral, não se aprende um fonema nem uma sílaba e nem uma palavra por vez. As palavras são aprendidas, são desapren-didas, são definidas e são redefinidas continuamente. Não há um processo cumulativo simples, unidade por unidade, mas organiza-ção, desestruturação e reestruturação contínua. As crianças pro-curam ir sistematizando o que aprendem (na aprendizagem da lin-guagem e em todos os domínios do conhecimento), põem à prova a organização conseguida através de atos efetivos de utilização do conhecimento adquirido, e reestruturam quando descobrem que a organização anterior é incompatível com os dados da experiên-cia... O que desmotiva, o que dificulta a aprendizagem, é impedir esses processos de organização da informação”.
Isto não significa que o processo de aquisição da língua escrita seja “natu-
ral e espontâneo”, que o professor se limite a ser um espectador passivo, nem que seja
suficiente rodear a criança de livros para que aprenda sozinha. É um processo difícil para
a criança, mas não mais difícil que outros processos de aquisição de conhecimento. É
um processo que exige acesso à informação socialmente veiculada, já que muitas das
propriedades da língua escrita só se podem descobrir através de outros informantes e da
participação em atos sociais onde a escrita sirva para fins específicos. Não é um proces-
so linear, mas um processo com períodos precisos de organização, para cada um dos
quais existem situações conflitivas que podem antecipar-se. Esses conflitos têm papel
construtivo no processo (não qualquer conflito, mas alguns muito específicos); o trabalho
da professora é crucial na identificação da natureza das dificuldades que se apresentam,
algumas das quais representam problemas que devem ser enfrentados pelas crianças. A
escrita lhes apresenta desafios intelectuais, problemas que terão que resolver, precisa-
mente para chegar a entender quais são as regras de construção internas do sistema.
7.0 – PRODUÇÃO DE MATERIAIS
Um fator freqüentemente mencionado como necessário para facilitar as
ações de alfabetização é a produção de materiais. A esse respeito, de acordo com CA-
VALCANTI (1997), pode se distinguir três tipos de materiais, conforme a seguir descritos.
a) Materiais dirigidos aos professores como um modo de veicular uma
proposta pedagógica e de fazer-lhes chegar informação atualizada que os ajudem a pen-
sar criticamente sua própria prática profissional. Esses materiais são úteis na medida em
que se evite a versão “receita culinária”. Essas receitas existem em abundância e só
contribuem para desprofissionalizar o professor, que delega a elas a responsabilidade do
resultado obtido; o professor pode trocar de receitas, seguindo as modas ou correntes de
opiniões que, por acaso, encontre, sem poder distinguir o que elas oferecem de novo.
b) Materiais para ler (não para aprender a ler, mas para ler). Eles são es-
senciais e tanto mais necessários quanto mais nos distanciamos das regiões urbanas. Já
á na região experiência acumulada sobre a produção desses materiais (por parte de a-
gências governamentais e por parte de editoras privadas). Em cada classe de alfabetiza-
ção, deve haver um “canto ou área de leitura” onde se encontrem não só livros bem edita-
dos e bem ilustrados, como qualquer tipo de material que contenha escrita (jornais, revis-
tas, dicionários, folhetos, embalagens e rótulos comerciais, receitas, embalagens de me-
dicamentos, etc.). Quanto mais variado esse material, mais adequado para realizar diver-
sas atividades de exploração, classificação, busca de semelhanças ou diferenças e para
que o professor, ao lê-los em voz alta, dê informações sobre “o que se pode esperar de
um texto” em função da categorização do objeto que o veicula. Quando as crianças têm
28
em suas casas outros materiais de leitura, não é tão grave que na escola se use um úni-
co texto. Torna-se grave precisamente quando o ambiente escolar é praticamente o único
ambiente alfabetizador existente.
Pode-se objetar que, ao deixar entrar na classe todo tipo de material escri-
to, se introduzem materiais de qualidade duvidosa, tanto do ponto de vista estilístico como
ideológico. Ao primeiro cabe responder que pouco se pode elogiar a qualidade estilística
dos textos (cartilhas) de iniciação à leitura (particularmente os de caráter comercial). Ao
segundo cabe assinalar que eles permitem uma leitura crítica desde o começo da alfabe-
tização, dando oportunidade ao professor para assinalar que é legítimo duvidar da veraci-
dade do que se escreve (tanto como é legítimo duvidar da veracidade do que se diz).
c) Materiais para alfabetizar. É chegado o momento de desmistificar tais
tipos de materiais, que não só não são necessários, mas que são freqüentemente con-
traproducentes. Para alfabetizar, é preciso ter acesso à língua escrita (tanto como para
aprender a falar é necessário ter acesso à língua oral) e é isso que está ausente nas fa-
mosas cartilhas ou manuais “para aprender a ler”. Nesses manuais, apresentam-se ora-
ções estereotipadas, impossíveis de encontrar em textos com função comunicativa, in-
formativa ou puramente estética.
Segundo abordagem de CAVALCANTI (1997):
“Certamente se conhece qual a justificativa de tais práticas anti-gas: pretende-se que a criança compreenda a mecânica da codifi-cação; depois (e somente depois) poderá fazer algo inteligente. Is-so é tão pouco racional como supor que se aprende melhor ma-temática aprendendo primeiro a recitar mecanicamente a série dos números e os resultados das operações para poder pensar depois”.
O problema é que as crianças tendem espontaneamente a pensar, e toda
proposta pedagógica que as obrigue a renunciar a compreender dificulta a aprendizagem.
O problema é que a escrita é antes de tudo representação da linguagem, e tudo o que a
29
afaste da linguagem, convertendo-a em uma seqüência gráfica sem significado, a defor-
ma até caricaturizá-la. Em última instância, não se está apresentando à criança o real
objeto da sua aprendizagem, mas um substituto caricaturesco. Por mais bem-
intencionados que sejam os manuais ou cartilhas, eles introduzem sempre um elemento
de rigidez na aprendizagem, que dificulta a necessária adaptação às exigências individu-
ais e grupais.
As seqüências didáticas tradicionais baseiam-se em uma série de falsos
pressupostos que se mantêm com a inércia dos hábitos adquiridos e que resistem a
qualquer análise racional. Não seria demasiado grave se não fosse porque essas didáti-
cas tornam ainda mais difícil o processo para quem a escolarização já é uma empresa de
”alto risco”.
8.0 – ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS E FRACASSO ESCOLAR
Todas as frases que expressam preocupação sobre a situação do analfa-
betismo já fazem parte do discurso oficial dos governos. Todos os diagnósticos coinci-
dem: o analfabetismo se concentra nos bolsões de pobreza das grandes cidades, junta-
mente com a aglomeração urbana, falta de água potável, trabalho ocasionado e mal-
remunerado; o analfabetismo se concentra nas zonas rurais, onde os camponeses vivem
com uma economia de subsistência, cultivando com métodos arcaicos; o analfabetismo
se concentra nas populações indígenas (também camponesas) que falam alguma das
muitas línguas originárias do continente mas que não possuem recursos próprios para
grafar sua própria língua.
Em conseqüência, como já é sabido, analfabetismo e pobreza caminham
juntos, não são fenômenos independentes, assim como analfabetismo e marginalização
social. O analfabetismo dos pais está relacionado com o fracasso escolar dos seus fi-
lhos.
8.1 – A Orientação das Políticas de Alfabetização
Há ainda muito por fazer no plano do diagnóstico e orientação das políticas
para que se tome consciência da gravidade da situação e do escândalo de certas conjun-
turas. Para restabelecer a necessidade da indignação de que fala Paulo Freire.
Muito resta por fazer para esmiuçar as armadilhas do discurso oficial. Fala-
se da “luta contra o analfabetismo” e caracterizam-se, às vezes, as campanhas como
31
“batalhas contra o analfabetismo”. Linguagem militar ou linguagem dos órgãos de saúde
pública: fala-se de “erradicar o analfabetismo” como se fosse malária ou varíola.
Sabe-se perfeitamente que o conjunto de conhecimentos que um indivíduo
adquire no curso do seu desenvolvimento depende das exigências do meio cultural em
que cresce. A cultura do campo exige conhecimentos diferentes da cultura da cidade.
Uma pessoa do campo, transferida violentamente para a cidade, aparece como alguém
depreciado, tanto quanto o seria um habitante da cidade transferido violentamente para o
campo. Ocorre que o movimento social vai em direção à urbanização e não à ruralização.
Por esse motivo, não faz nenhum sentido caracterizar o adulto ou a criança do campo
como um “carente”. Ambos só aparecem como tais em função das exigências da vida
urbana.
Contudo, na medida em que a participação na sociedade global requer o
domínio dos conhecimentos que são “essenciais” em uma cultura urbana, e, na medida
em que esses conhecimentos são transferidos de maneira privilegiada através de textos
escritos, a falta de capacidade para manejar os sistemas simbólicos de uso social põe
qualquer indivíduo em situação de carência. O funcionamento da sociedade global requer
indivíduos alfabetizados; portanto, os indivíduos podem exigir o direito à alfabetização, o
que não pode ser entendido como uma opção individual, mas como uma necessidade
social.
Que tipo de alfabetização se requer? A distância que separa os grupos al-
fabetizados dos não-alfabetizados é cada vez mais próxima a um abismo: depois do perí-
odo em que se acreditou ilusoriamente que a imagem transmitida por televisão substituiria
a necessidade de recorrer às mensagens escritas, o surgimento e a rápida difusão dos
computadores restituíram à escrita seu lugar de privilégio.
Alfabetizar como e para quê? Pode-se continuar pensando em uma alfabe-
tização rudimentar para alguns e uma alfabetização sofisticada para outros? Como susci-
32
tar o direito à alfabetização do lado de outros direitos primordiais? O direito à saúde signi-
fica, entre outras coisas, o direito de todo indivíduo a uma atenção médica atualizada, de
acordo com os avanços científicos e técnicos dessa área profissional. O direito à alfabeti-
zação não pode significar menos que isso. No entanto, assim como se vê claramente
existir uma atenção diferenciada à saúde segundo os setores sociais (uma atenção à
saúde “de primeira classe”, oferecida em instituições privadas de custos altíssimos, e
uma atenção de péssima qualidade oferecida nos hospitais públicos), vê-se existir uma
tendência exatamente similar na área educativa: a escola pública está cada vez mais de-
teriorada, empobrecida e tecnicamente desatualizada, enquanto as escolas privadas (cujo
nível de qualidade nem sempre coincide com o que se declara) multiplicam-se.
Na realidade, o que ocorre na saúde e na educação é parte da tendência
geral à privatização que se observa atualmente: o Estado delega ao setor privado a maior
parte das suas obrigações e retém somente aquelas de tipo “assistencial” para os seto-
res cujo poder aquisitivo não lhe permite pagar por um serviço necessário. A noção de
“direito à saúde, moradia e educação” perde, assim, seu sentido global. Em lugar de os
cidadãos reclamarem um direito, estabelece-se, como se fosse “normal”, que eles “com-
prem serviços”3.
Na área da alfabetização, esta situação é dramática porque nada garante
que os resultados conseguidos com uma alfabetização de “má qualidade” perdurem. Os
cursos de alfabetização de adultos nutrem-se abundantemente dessas crianças mal-
alfabetizadas pela escola pública, dessas que ano após ano foram reprovadas, acumu-
lando vergonhas, sanções e rejeições, mas não conhecimentos.
É preciso denunciar muito claramente e tantas vezes quantas forem ne-
cessárias, até criar uma consciência pública de que não é possível alcançar os objetivos
3 Acrescenta-se a isto, evidentemente, uma ação propagandista que tende a enfatizar que qualquer coisa
que se obtém por via privada (pago) é de qualidade superior ao que o Estado pode oferecer.
33
educativos colocados já para o novo milênio se não se modificar rapidamente a própria
concepção da alfabetização.
8.2 – Alguns Problemas Teóricos Vinculados à Alfabetização
Conforme já mencionado, há uma diferença fundamental entre a concep-
ção tradicional, que considera que o primeiro passo na aquisição da língua escrita é a
aquisição de uma técnica de codificação/decodificação, e a caracterização desse pro-
cesso de aquisição como a compreensão de um modo particular de representação da
linguagem.
Há domínios para os quais ninguém pergunta se a criança está ou não
“pronta” ou “madura” para iniciar essa aprendizagem. O acesso ao computador é, hoje
em dia, um deles: há programas de iniciação ao uso do computador (não a programação)
para adultos profissionais e para crianças de pré-escola. Dada a velocidade com que esta
tecnologia ingressou na vida moderna, parece haver consciência de que “quanto antes,
melhor”. Na medida em que não há ainda parâmetros claros com relação ao tempo ade-
quado para utilizá-lo produtivamente, e na medida em que não faz parte do currículo esco-
lar, a noção de “fracasso na aprendizagem” ainda não está instaurada.
O problema dos pré-requisitos para uma aprendizagem coloca-se de dife-
rentes maneiras: (a) apresenta-se como uma noção escolar, como algo que uma criança
“tem” ou “não tem”, e que é avaliada mediante provas psicológicas ou psicopedagógicas;
(b) é visto como um problema teórico.
8.2.1 – Os Pré-Requisitos como Problema Escolar
Como problema escolar, os pré-requisitos estabelecem barreiras: os sujei-
tos devem demonstrar possuir as habilidades definidas como requisitos prévios para po-
der ingressar em certo nível da escola. Supõe-se a aquisição dessas habilidades vincula-
34
das a uma sempre mal definida “maturação”, que é entendida, às vezes, como maturação
biológica, e a referência à biologia parece dispensar outras determinações. Não basta
dizer que algo é “biológico” para que se torne algo preciso. É necessário saber exatamen-
te o que é que amadureceria ¾ biologicamente falando ¾ para tornar fácil e imediata a
aprendizagem da língua escrita.
De acordo com CAVALCANTI (1997):
“As avaliações psicológicas representadas pelos testes de matu-ridade ou prontidão (tanto como os exercícios psicopedagógicos para favorecer tal maturidade ou prontidão) podem convalidar as idéias pedagógicas tradicionais ou buscar apoio em alguma espé-cie de dado mais controlado. Nesse sentido, podem ter uma fun-ção de ‘ponte’ ou ‘articulação’ entre ambos os domínios: convali-dam os juízos pedagógicos através de correlações empíricas (sem sustentação teórica) ou buscam algum tipo de fundamenta-ção teórica (que não entre em choque com as convicções susten-tadas pela tradição escolar)”.
Antes de se passar à interpretação teórica do conceito de pré-requisito,
convém perguntar: para que tem servido, na prática escolar, a noção de maturidade?
· A noção de maturidade abriu um próspero mercado comercial.
· A noção de maturidade tem facilitado o trabalho dos professores, atra-
vés de cadernos com exercícios para serem seguidos mecanicamente e de provas para
avaliar, também mecanicamente.
· A noção de maturidade tem servido para manter o pré-escolar “assepti-
camente” isolado da língua escrita. A pré-escola ocupa-se (por definição) de crianças
imaturas para a língua escrita. O que deveria ser feito para ajudar a escola primárias seria
contribuir para o “amadurecimento” dessas habilidades prévias que, segundo parece,
“maturam” em contextos alheios à língua escrita (discriminar entre formas arbitrárias que
não são letras: distinguir direita/esquerda e em cima/em baixo em contextos que não en-
volvem letras; aprender a distinguir seqüências sonoras “que rimam” sem colocá-las em
correspondência com seqüências gráficas que também “são parecidas”; ouvir contos que
35
a professora narra, mas não lê; usar lápis de cor, crayon e pincéis para desenhar, mas
não usar lápis preto para escrever, etc.).
· A noção de maturidade tem-se prestado para encobrir os fracassos me-
todológicos. Efetivamente, se são as crianças que estão imaturas, o método é inocente.
As condições de aprendizagem ficam fora de questão.
· Finalmente, a noção de maturidade tem funcionado para discriminar as
crianças dos setores marginalizados. Qualquer que seja o teste de maturidade que se
aplique e quaisquer que sejam os critérios de prontidão que se utilizem, os imaturos são
sempre os mesmos: os filhos dos analfabetos.
O dramático é que a psicologia ¾ como ciência ¾ tem-se prestado a
esse tipo de “jogo equívoco”. Em lugar de denunciar as armadilhas de uma manobra dis-
criminatória (a instituição escolar como veículo de convalidação das diferenças sociais), a
maquinaria de “testes” serviu para convalidar os julgamentos a priori do preconceito soci-
al. Por que será que no Brasil a seleção em função da cor de pele corresponde quase
pontualmente com a seleção por “prontidão”? Está-se avaliando realmente uma capaci-
dade individual ou uma herança social?
8.2.2 – Os Pré-Requisitos como Problema Teórico
Se se pensar agora no problema dos pré-requisitos como um problema te-
órico, ver-se-á de imediato delinearem-se duas maneiras muito diferentes de defini-lo,
segundo a perspectiva teórico adotada.
Em uma visão psicológica elementarista (conjunto de hábitos ou destre-
zas), buscar-se-ão quais dessas destrezas ou habilidades se correlacionam com níveis
de desempenho na leitura ¾ avaliados pelo critério do professor ou por um teste que
toma como critério externo o critério do professor, o que resulta no mesmo. Desta pers-
pectiva, nunca houve um questionamento para tentar saber o que é que a criança conhe-
36
ce sobre a língua escrita antes de estar alfabetizada, antes de ter participado de cursos
formais, antes de ingressar na escola primária.
Em uma perspectiva construtivista, os pré-requisitos não são habilidades
ou destrezas que a criança deve demonstrar possuir antes que lhe autorizem a participar
do ensino formal (para que participe “com proveito”, que não seja desperdiçado algo tão
valioso...) mas aquelas noções, representações, conceitos, operações, relações, etc.,
que aparecem teoricamente fundamentadas e empiricamente validadas como as condi-
ções iniciais sobre as quais se constroem as novas concepções.
Segundo abordagem de CAVALCANTI (1997), tudo o que foi colocado até
aqui muda radicalmente se se tomar como objetivo escolar a aquisição da língua escrita,
se se reconhecer que não há uma proeminência da leitura sobre a escrita ¾ enquanto
atividades que permitem conhecer esse modo particular de representação da linguagem
¾ e se se reconhecer também que as crianças não chegam ignorantes à escola, que
têm conhecimentos específicos sobre a língua escrita, ainda que não compreendam a
natureza do código alfabético e que são esses conhecimentos (e não as decisões escola-
res) que determinam o ponto de partida da aprendizagem escolar.
Os trabalhos sobre a relação entre consciência fonológica e leitura, que se
ocupam da incidência da ação escolar, contrastam crianças que estão submetidas dife-
rentes metodologias de ensino da leitura. Isto também é reduzir um problema muito mais
complexo a um só de seus ingredientes. O método que o professor segue é apenas um
dos ingredientes da maneira como o objeto social “língua escrita” é apresentado no con-
texto escolar.
As diferenças maiores não se situam no nível da metodologia que as pro-
fessoras declaram estar utilizando, mas em nível de outras variáveis, que têm a ver com
a maneira de apresentar (ou ignorar) a língua escrita. A escola, através do seu longo pro-
cesso de desenvolvimento enquanto instituição social, operou uma transmutação da es-
crita. A escrita é um objeto social, mas a escola transformou-a em um objeto exclusiva-
mente escolar, ocultando ao mesmo tempo suas funções extra-escolares (precisamente
37
aquelas que deram origem, historicamente falando, à criação das representações escri-
tas da linguagem). A escola, como instituição, transformou-se em guardiã desse objeto e
exige da criança, no processo de aprendizagem, uma atitude contemplativa frente a este
objeto. Na concepção tradicional de aprendizagem, não se apresenta a escrita como um
objeto sobre o qual se pode atuar, um objeto que é possível modificar para tratar de com-
preendê-lo, mas sim como um objeto para ser contemplado e reproduzido fielmente (so-
norizado fielmente e copiado com igual fidelidade).
O conhecimento das funções sociais da escrita é “natural” em crianças cu-
jos pais são alfabetizados, mas não tem nada de natural em outras, que não tiveram as
mesmas oportunidades sociais de interagir com os diferentes tipos de objetos sociais que
portam marcas escritas, que não tiveram oportunidade de participar de ações sociais em
que outros indivíduos utilizam a língua escrita, lendo ou escrevendo com propósitos defi-
nidos.
Conforme dados de CAVALCANTI (1997), em todas as pesquisas realiza-
das sobre este tema, constata-se reiteradamente o mesmo: os filhos de pais alfabetiza-
dos chegam à escola com uma série de conhecimentos que adquiriram em contextos
sociais de uso desse objeto social e, além disso, com uma série de conhecimentos, pro-
duto de suas explorações ativas sobre a língua escrita (graças a livros, revistas e jornais
que possuem em casa; graças à possibilidade de escrever que oferecem os lápis e pa-
péis em branco que possuem em casa; graças às informações que receberam em con-
textos variados, totalmente informais, porque puderam perguntar se havia alguém por per-
to em condições de responder).
As crianças de pais não-alfabetizados ou semi-alfabetizados tampouco
chegam ignorantes à escola; chegam, porém, com muito menos informação: quase tudo
o que sabem é produto de suas próprias explorações ativas sobre a língua escrita em
contextos pouco apropriados (a escrita em uma camiseta, em um pedaço de jornal que
serve para acender o fogo, na embalagem de produto comestível que serve para guardar
38
qualquer outra coisa ou serve como um vaso de plantas...). Estes não puderam aprender
em contextos sociais as funções básicas da escrita em nossa sociedade; sabem que é
algo importante, mas não sabem exatamente por que é tão importante. Sabem pouco,
não por falta de curiosidade nem por falta de capacidade, mas porque não tiveram a quem
perguntar no momento oportuno, porque não havia alguém por perto que pudesse res-
ponder as perguntas que todas as crianças se colocam no início, porque não tiveram a
oportunidade de confrontar suas escritas iniciais com as escritas produzidas por outros (e
de enfrentar os conflitos que estas confrontações acarretam).
Reduzir a língua escrita a um código de transcrição de sons em formas vi-
suais reduz sua aprendizagem à aprendizagem de um código. Em termos educativos, o
problema das atividades preparatórias coloca-se de maneira radicalmente diferente se se
aceitar que é função da escola introduzir a língua escrita como tal. E, de acordo com a-
bordagem de CAVALCANTI (1997), introduzir a língua escrita quer dizer, ao menos, o se-
guinte:
· permitir explorações ativas dos distintos tipos de objetos materiais que
são portadores de escrita (e que, além disso, têm recebido nomes específicos: jornais,
revistas, agendas, livros ilustrados, receitas, telegramas, etc.);
· ter acesso à leitura em voz alta de diferentes registros da língua escrita
que aparecem nesses distintos materiais;
· poder escrever com diferentes propósitos e sem medo de cometer er-
ros, em contextos onde as escritas são aceitas, analisadas e comparadas sem serem
sancionadas;
· poder antecipar o conteúdo de um texto escrito, utilizando inteligente-
mente os dados contextuais e, na medida em que vai sendo possível, os dados textuais;
· participar em atos sociais de utilização funcional da escrita;
· poder perguntar e ser entendido; poder perguntar e obter resposta;
39
· poder interagir com a língua escrita para copiar formas, para saber o
que diz, para julgar, para descobrir, para inventar.
Ainda sobre a questão da introdução da língua escrita, CAVALCANTI (1997)
declara:
“Se me perguntarem qual das metodologias tradicionais de ensino da leitura e escrita introduzem desta maneira a língua escrita, mi-nha resposta é fácil: nenhuma. Porque todas as metodologias fo-ram pensadas em função do código, não em função da língua es-crita”.
8.2.3 - Síntese
CAVALCANTI (1997) sintetiza a questão dos pré-requisitos conforme a se-
guir descrita.
Colocada como problema teórico, a questão dos pré-requisitos é de uma
importância; no entanto, a forma de tratar o problema difere marcadamente segundo a
posição teórica adotada. Além disso, a visão clássica dos pré-requisitos não se ocupa da
língua escrita, mas do código alfabético, não se ocupa das condições de obtenção de
certo conhecimento, mas da presença, em um indivíduo particular, desse conhecimento,
dessa destreza ou habilidade, e tampouco se ocupa das condições especificamente es-
coares de obtenção dos pré-requisitos tanto como da obtenção do conhecimento-meta.
Do ponto de vista construtivista, o problema dos pré-requisitos coloca-se
da seguinte maneira: é essencial estabelecer os antecessores de qualquer conhecimento
em um momento qualquer do seu desenvolvimento. Contudo, a identificação desses an-
tecessores não leva a sugerir sua incorporação ao currículo escolar, já que há uma dis-
tinção entre conhecimentos adquiridos somente quando são ensinados e aqueles que o
sujeito adquire, em interação com outros sujeitos (de níveis similares, inferiores ou supe-
riores em relação a esse conhecimento) sem ser explicitamente ensinados, mas em
condições que favorecem o processo de apropriação.
40
Não se deve confundir a necessidade teórica de encontrar os antecessores
psicogenéticos com a peudonecessidade institucional de encontrar maneiras de classifi-
car as crianças como “aptos-/não-aptos”, “maduros/não-maduros”, “prontos/não-prontos”.
Qualquer instrumento que se utilize terminará refletindo as diferenças sociais nas ocasi-
ões de acesso à língua escrita. Portanto, é inevitável que os testes de maturidade (ou
como se queira chamá-los) funcionem como instrumentos de discriminação social.
9.0 – ANALFABETISMO E LETRAMENTO:
UMA QUESTÃO TAMBÉM POLÍTICA
O problema do analfabetismo sempre teve um forte apelo político e ideoló-
gico, sendo um tema educacional e social que sistematicamente retorna à agenda públi-
ca, apesar de oscilar na escala de prioridades das políticas governamentais e de orga-
nismos internacionais. Freqüentemente, é tomado como indicador de desenvolvimento,
associado a uma grande variedade de problemas sociais, econômicos e políticos, como a
criminalidade, o desemprego, a explosão da natalidade ou as impossibilidades da demo-
cracia. O debate em torno de medidas para atacar o analfabetismo, por sua vez, também
assume quase sempre conotações fortemente políticas, ainda que essas possam ser
divergentes. Dois emblemas brasileiros que bem exemplificam essa constatação são os
nomes (extinto) Mobral e Paulo Freire, remetendo-nos tanto à assunção da alfabetização
como meio de controle social e legitimação do status quo ¾ no caso do Mobral ¾
quanto meio de conscientização e transformação social ¾ no caso de Paulo Freire.
O entusiasmo com relação ao potencial da alfabetização na promoção do
desenvolvimento econômico e social, que tinha suas bases também na produção socio-
lógica das décadas de 50, 60 e 70, passou a ser fortemente criticado nos meios acadê-
micos a partir da década de 80. As críticas também se voltaram à suposição de que a
alfabetização fosse um aspecto definidor do perfil psicológico ou mesmo do caráter ou da
moral dos indivíduos, suposição essa que remonta a períodos bem mais remotos da his-
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tória das civilizações. Os estudiosos da temática, recorrendo a pesquisas históricas, et-
nográficas e psicológicas mais rigorosas, passaram a chamar a atenção para o fato de
que a aprendizagem ou a disseminação da linguagem escrita, por si sós, não promovem
mudanças nas pessoas ou nas sociedades, que as implicações psicossociais da alfabe-
tização e dos usos da leitura e da escrita dependem sempre dos contextos em se reali-
zam, dos objetivos práticos a que respondem, aos valores e significados ideológicos aí
envolvidos. A partir desse enfoque, os próprios conceitos de analfabetismo e de alfabeti-
zação ¾ entendida como aprendizagem inicial da leitura e da escrita ¾ perdem o vigor
explicativo frente ao conceito de letramento, que abarca não só diferentes tipos e níveis de
habilidades individuais relacionadas à compreensão e produção de textos escritos, como
também as diversas práticas sociais nas quais esses textos se fazem presentes.
No campo das formulações políticas, verificou-se também um alargamento
das idéias relativas à alfabetização. Na acepção difundida por esse organismo, analfabe-
tismo funcional diz respeito à impossibilidade de participar eficazmente de atividades nas
quais a alfabetização é requerida; remete, portanto, aos usos sociais da escrita e a tipos e
níveis variáveis de habilidades de acordo com as demandas impostas pelo contexto. A
partir desse enfoque, a problemática deixa de concernir apenas às populações adultas
que não tiveram acesso à escola ¾ os chamados analfabetos absolutos ¾, aplicando-
se também às populações escolarizadas e, portanto, à escola de maneira geral e não
apenas aos programas de alfabetização de adultos.
Contando com um importante corpo de fundamentos, resultado do interes-
se de várias disciplinas das ciências humanas pelo fenômeno, o conceito de letramento
encerra, sem dúvida, um grande potencial para a reflexão sobre a educação escolar, indo
além, inclusive, das questões específicas da área de Língua Portuguesa. Na sua acepção
mais ampla, que remete às habilidades de compreensão e produção de textos e aos usos
sociais da linguagem escrita, o letramento pode ser tomado como importante eixo articu-
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lador de todo o currículo da educação básica. Grande parte dos conteúdos culturais que a
escola se propõe a disseminar depende da escrita para a sua elaboração e transmissão;
grande parte das atividades escolares está, por conseguinte, baseada no uso intenso de
suportes de escrita ¾ quadros-negros, cadernos, livros e, mais recentemente, os com-
putadores ¾, fazendo com que o sucesso da trajetória escolar dos indivíduos dependa
crucialmente de suas capacidades de leitura e escrita. Entretanto, o vigor do conceito de
letramento para a reflexão pedagógica não reside apenas no reconhecimento da centrali-
dade da leitura e da escrita no interior da própria escola, mas principalmente no fato de
que ele instiga os educadores ¾ e a sociedade de maneira geral ¾ a refletir sobre re-
lação entre a cultura escolar e a cultura no seu conjunto, sobre as relações entre os usos
escolares e os demais usos sociais da escrita.
No que concerne à produção de conhecimentos e informações úteis para a
elaboração de políticas educacionais e propostas pedagógicas, importa tanto a pesquisa
sobre a leitura e a escrita na escola quanto fora dela. Entretanto, nesse universo concei-
tual alargado em que trafegam hoje os estudos sobre o letramento, os problemas metodo-
lógicos da pesquisa se avolumam consideravelmente, em especial quando se trata de
construção de indicadores que sirvam à medição e à avaliação do letramento como pro-
blema educacional e social.
Pode-se identificar como principal problema a impossibilidade de se contar
com uma definição precisa de letramento, que permita estabelecer uma linha divisória
universalmente válida entre essa condição e a do analfabetismo. Deve-se analisar a se-
qüência, como o problema se concretiza em diferentes estratégias de medição: os cen-
sos populacionais, as avaliações do desempenho de alunos em diferentes níveis do sis-
tema de ensino e os estudos por amostragem populacional. Deve-se, também, julgar que
essa última estratégia é a que mais possibilidades encerra de se abarcar a complexidade
do fenômeno do letramento, tanto na sua dimensão individual, ou seja, a posse de deter-
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minadas habilidades de leitura e escrita, quanto na sua dimensão social, relativa às práti-
cas de leitura e escrita em diferentes contextos.
CONCLUSÃO
Existe uma consciência crescente da importância da educação básica e do
mais básico na educação: a alfabetização. Mas há também um risco de regressar à con-
cepção da alfabetização como algo demasiado elementar, isto é, mínimos rudimentos de
decodificação.
Há uma consciência crescente, ainda, sobre a impossibilidade de aceitar
as taxas de repetência atualmente existentes. Não importa que os argumentos atuais se-
jam basicamente econômicos, desde que sirvam para recordar-nos que, se a escola não
gera aprendizagem, não pode justificar-se como instituição social.
Há um risco sério de continuar gerando desigualdades através de velhos e
novos esquemas de competitividade, eficiência e modernidade. No entanto, existe tam-
bém um sólido pensamento teórico sobre a natureza da alfabetização, ao qual estão con-
tribuindo lingüistas, historiadores, antropólogos, psicólogos, sociólogos e educadores.
Esta nova visão multidisciplinar sobre a alfabetização não permite retornar a uma visão
supersimplificadora e profundamente equivocada sobre o processo de alfabetização.
Particularmente nos setores mais pobres do Brasil, os objetivos da alfabe-
tização devem ser mais ambiciosos. Se as crianças crescem em comunidades iletradas
e a escola não as introduz na linguagem escrita (em toda a sua complexidade), talvez
cheguem a atingir esses “mínimos de alfabetização”, que lhes permitam seguir instruções
escritas e aumentar sua produtividade em uma fábrica, contudo não se terão formado
cidadãos para este presente nem para o futuro próximo. Daí a importância de um efetivo
trabalho de letramento para uma melhor construção do processo de alfabetização.
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Há que se alfabetizar para ler o que outros produzem ou produziram, mas
também para que a capacidade de “dizer por escrito” esteja mais democraticamente dis-
tribuída. Alguém que pode colocar no papel suas próprias palavras é alguém que não tem
medo de falar em voz alta.
Necessita-se que muitos mais tenham a capacidade de dizer por escrito
quem são, para manter a diversidade cultural que é parte da riqueza do mundo. Fala-se
muito da diversidade biogenética de plantas e animais, que constitui um dos mais preza-
dos recursos para o futuro da humanidade. Entretanto, não se deve esquecer da diversi-
dade cultural. A alfabetização pode e deve contribuir para a compreensão, difusão e enri-
quecimento da própria diversidade humana, histórica a atual.
BIBLIOGRAFIA
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