A indústria fonográfica e o mercado da música gravada – histórias de um longo desentendimento*

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    Revista Crtica de Cincias Sociais, 85, Junho 2009: 105-129

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    Na literatura sobre as indstrias culturais e, em particular, sobre a inds-tria fonogrfica, so escassos os trabalhos que interrogam consistentementeos processos de instituio destes universos de actividade como camposindustriais e como campos mercantis. De facto, na sociologia, tal como naeconomia, frequente ver mobilizados para a anlise e a descrio destetipo de objectos conceitos to abstractos como os de modo de produoindustrial capitalista e de mercado. Porm, a sua fecundidade analticadepende, em grande medida, de uma operacionalizao crtica, capaz deidentificar as dimenses mais pertinentes para cada objecto. No caso daindstria e do mercado fonogrficos, tal operacionalizao exige uma inter-rogao acerca da forma como estas actividades se foram desenvolvendo

    * Uma verso mais curta deste texto foi apresentada no congresso internacional Sociologia daMsica: Tendncias, Interpelaes, Perspectivas, organizado pelo CESEM e realizado em Lisboaentre 23 e 25 de Julho de 2009.

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    historicamente de modo a instituir um universo que simultaneamenteindustrial, mercantil e cultural.

    Perceber as condies em que, no final do sculo XIX e no incio do

    sculoXX

    , surgiram um novo conjunto de actividades, de equipamentos ede objectos, e compreender os processos atravs dos quais se foram cons-tituindo os respectivos valores de uso e de troca, parece-me uma estratgiaadequada para evitar a reproduo de vises mais ou menos simplistas sobreum complexo universo.

    Para desenvolver este enfoque analtico inspiro-me nas perspectivasinstitucionalistas da economia e da sociologia, nomeadamente as teses dePaul DiMaggio e de Walter Powell acerca dos campos organizacionais e deNeil Fligstein acerca dos mercados (Powell e DiMaggio, 1991; Fligstein,

    1996; Fligstein, 2001). O enfoque analtico destas teorias relativiza o con-tributo das racionalidades tcnica e mercantil no desenvolvimento dasactividades econmicas, mostrando como elas se combinam com um con-

    junto de outras racionalidades de carcter convencional, que subjazem institucionalizao dos campos organizacionais e seus mercados. Para iden-tificar esta articulao de lgicas e de racionalidades diversas indispens-vel recorrer a uma anlise histrica sobre a constituio desses mesmoscampos. Foi essa perspectiva analtica que procurei desenvolver ao estudar

    a indstria fonogrfica, com o objectivo de captar os processos de formaodos padres institucionais que tm vindo a enformar a actividade destaindstria, a organizao das suas companhias e o funcionamento dos mer-cados. A adopo desta perspectiva possibilita, ainda, o dilogo com ateoria dos campos de Pierre Bourdieu, aplicando a uma indstria culturala perspectiva estruturalista e gentica adoptada pelo autor para descreveros campos culturais (Bourdieu, 1996).

    Uma abordagem histrica sobre a indstria fonogrfica permite revelar,em primeiro lugar, a pluralidade dos objectos que tm sido alvo de lutas e denegociaes entre os vrios intervenientes no campo. E em segundo lugar,evidencia a natureza distinta desses objectos, que no se restringem apenass ordens do econmico ou do cultural, como prope Pierre Bourdieu.Nesse sentido, a histria mostra como a afirmao das actividades fono-grficas enquanto campo industrial e cultural decorre da luta por recursosde natureza diversa e pela negociao de variadas convenes. Partilhadaspelos diferentes actores no campo (companhias fonogrficas, sindicatosprofissionais, associaes de gesto de direitos de propriedade, associaes

    de companhias), so essas convenes que permitem a coordenao dassuas aces no sentido da produo, da difuso e do consumo dos seusprodutos. No obstante, os processos de definio dessas convenes foram

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    sempre complexos e morosos, reflectindo a mobilizao de diversos regi-mes de acordo e modos de justificao ou, na expresso de Luc Boltanskie Laurent Thvenot, diferentes ordens de grandeza. Segundo estes auto-

    res, existem pelo menos seis regimes o da inspirao, o domstico, o dareputao, o cvico, o industrial e o de mercado , cada um deles envolvendoa articulao entre um princpio de grandeza relevante para a aco, ostestes ou provas dessa mesma grandeza e as correspondentes ordenaesou hierarquias; os actores sociais pertinentes, para alm dos objectos e dosdispositivos materiais e tcnicos que materializam cada uma dessas ordens(Boltanski e Thvenot, 1991 e 1999; Thvenot, 2001 e 2002). Reflectindo aarticulao com diferentes regimes de acordo e justificao, a constituiodas convenes do campo da indstria fonogrfica revela disputas e acor-

    dos que no se restringem s questes tcnicas ou mercantis, associadas sordens industrial e do mercado. So tambm observveis lutas e negociaesacerca de contedos e de formatos culturais, devedoras dos princpios daordem da inspirao; ou contendas sobre modelos de apresentao e difusopblica de companhias, de fonogramas e de artistas, orientadas pelas lgicasinerentes ordem da reputao; ou ainda controvrsias sobre as definiesde propriedade e as formas de regulao pblica dos respectivos direitos,evocativas dos princpios da ordem cvica.

    O objectivo principal deste texto exactamente o de mostrar como ahistria da indstria fonogrfica e dos seus mercados foi, desde o seu incio,marcada por dvidas e incertezas vrias, decorrentes de disputas sobrediferentes objectos, e de como essas dvidas sempre conduziram reinven-o das convenes que tm vindo a plasmar a actividade deste campoorganizacional e mercantil. Na parte final do texto, procurarei ainda des-crever a actual crise da indstria fonogrfica como mais uma situao deincerteza crtica, em que os actores implicados se debatem com interrogaescapitais acerca do que define o valor comum dos fonogramas e de comoesse valor pode continuar a coordenar uma cadeia de actividades que vaida criao ao uso e fruio da msica gravada.

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    Na abundante literatura acerca da histria do registo sonoro frequenteencontrar a identificao de Thomas Edison e da sua inveno dofongrafo(phonogragh) como a personagem e o acontecimento primordiais da inds-tria fonogrfica. O fongrafo, um aparelho inventado nos laboratrios de

    Edison em 1877, foi, de facto, o primeiro aparelho de registo sonoro for-malmente reconhecido atravs de um registo de patente, em 1878. Noentanto, procurar definir um acontecimento ou uma personagem fundado-

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    res uma estratgia equvoca quando se trata de compreender o desenvol-vimento do campo fonogrfico. Adoptar a sugesto de Andre Millard, quesitua os primrdios do que hoje conhecemos como indstria fonogrfica

    no contexto da revoluo das comunicaes , em alternativa, uma estrat-gia mais produtiva (Millard, 2005: 17). A adopo desse pressuposto per-mite avaliar o modo como, a partir de um contexto relativamente indife-renciado de inovaes tecnolgicas e de aplicaes industriais, se foidefinindo o processo que conduziu formao de um universo especficode actividades industriais e culturais.

    De facto, a revoluo das comunicaes teve incio em meados dosculo XIX, com a inveno e o desenvolvimento do telgrafo. Na sequnciada aplicao desta tecnologia, multiplicaram-se o nmero e a velocidade

    das comunicaes, e o registo e a reproduo do som tornaram-se o objectode novas pesquisas. Em 1876, Alexandre Bell registou a patente do telefonee, logo no ano seguinte, Thomas Edison anunciava a inveno do fongrafo.Todavia, Bell e Edison so duas personagens entre muitas outras que explo-raram e ensaiaram as novas tcnicas e tecnologias, nos domnios do som,da electricidade e da comunicao.1 As ideias que Edison aplicou no desen-volvimento do fongrafo foram exploradas por muitos outros inventoresque, poca, conheciam as tcnicas associadas electricidade e ao som,

    nomeadamente as suas aplicaes no telgrafo e no telefone o caso deCharles Tainter e Chichester Bell, que desenvolveram ografofone,2 e tambmde mile Berliner, o inventor dogramofone.

    O enquadramento destas invenes no mbito da fervilhante actividadede inveno e inovao tecnolgica do sculo XIX e do intenso desenvolvi-mento industrial que a Inglaterra e os Estados Unidos, sobretudo, conhe-ciam poca, permite dar conta do carcter arbitrrio da atribuio dasorigens da indstria fonogrfica ao aparecimento dos primeiros equipamen-tos de registo sonoro. Desde logo, porque existe uma descoincidnciarazovel entre os usos atribudos pelos inventores aos novos aparelhos eaqueles que foram sendo reinventados na relao entre condicionantes

    1 Tal como Millard, tambm Oliver Read e Walter L. Welch consideram que a histria do modernofongrafo comeou, de facto, com a inveno do telgrafo e com as pesquisas em torno da comu-nicao telegrfica e telefnica. De tal modo que os principais nomes da inveno das primeirasmquinas falantes (Edison, Bell e Berliner) haviam estado todos envolvidos na pesquisa sobre acomunicao por telgrafo e telefone (Read e Welch, 1976: 1-10).2 Ografofone foi desenvolvido por Tainter e Bell nos laboratrios Volta, de Alexandre Bell, com

    base na tecnologia do fongrafo de Edison, introduzindo melhorias tcnicas e tecnolgicas sobreo tipo de cilindro usado no registo sonoro. A. Bell props a Edison a sua explorao conjunta maseste recusou, retomando o trabalho sobre o fongrafo e aperfeioando-o a partir das experinciasde Tainter e C. Bell com ografofone (Millard, 2005: 17-36).

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    tcnicas e tecnolgicas e o universo dos seus utilizadores: inventores, divul-gadores, comerciantes e pblicos.

    Edison , no que a isto diz respeito, um exemplo paradigmtico de

    desacerto. De facto, como mostra Sophie Maisonneuve, o clebre inventordefiniu um amplo scriptpara o fongrafo, situando-o num contexto simi-lar ao de outras invenes associadas comunicao. Isto , como umaparelho destinado a conservar e a reproduzir o som e, por isso, aplicvela diversas actividades administrativas, arquivsticas e pedaggicas. Umprolongamento do telefone, cujas aplicaes seriam particularmente teisno domnio das prticas administrativas (Maisonneuve, 2002: 49). Emboraesse scriptfosse suficientemente aberto para acolher as reconfiguraesque a apropriao do fongrafo vieram a inscrever, o mesmo no deixa de

    revelar a enorme distncia entre as concepes do inventor sobre o apare-lho e as suas futuras utilizaes.

    As limitaes tecnolgicas e tcnicas relativas prpria gravao sonoraobstaram a que o fongrafo se tornasse, de imediato, num dispositivo decomunicao, no sentido em que Edison o imaginou. Entretanto, a divul-gao dos aparelhos em exposies, feiras industriais e em exibies noslaboratrios, nas ruas e nos estabelecimentos comerciais revelou o potencialdos equipamentos para o entretenimento para alm da curiosidade nas

    invenes e nos seus potenciais usos, o pblico revelava gostar sobretudodo que som que se fazia ouvir. O sucesso destas exibies redefiniu os usosesperados da mquina falante e, com isso, colocou novos problemasrelativos manipulao do equipamento, possibilidade da reproduosonora (sem desgaste do suporte e do som registado), produo de regis-tos sonoros dedicados audio ldica, bem como a respectiva produoem quantidade.

    Estes problemas foram colocados aos inventores dos equipamentos deregisto fonogrfico medida que se foram ensaiando os seus usos em pblicoe explicam o lapso de tempo que decorre entre a inveno do fongrafo ea produo industrial e comercializao quer dos equipamentos, quer dosregistos sonoros necessrios sua performance. De facto, s nos primeirosanos do sculo XX que foram ultrapassadas as principais dificuldades daproduo industrial destes frgeis equipamentos, encontrando-se em acti-vidade, nos Estados Unidos da Amrica, as trs principais companhiasresponsveis pela sua produo: a companhia fundada por Thomas Edison The Edison Phonograph Company , a Victor Talking Machine, de Eldridge

    Johnson e mile Berliner, e a Columbia Phonograph Company, um agenteda ento j desaparecida North American Phonograph Company, criada porJoseph Lippincott para produzir os primeiros modelos do fongrafo de

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    Edison. Como refere Millard, As companhias Edison, Victor e Columbiaeram como conhecidas comoAs Trs Grandes. Dominavam o mercado comum forte controle sobre patentes e com vastas instalaes industriais. Aps

    muitos anos de falhanos repetidos e de duras lies, estas companhiastinham finalmente conseguido aplicar o sistema americano de produoindustrial mquina falante (Millard, 2005: 50).

    Apesar dos equvocos associados s primeiras antevises dos usos dasmquinas falantes, Pekka Gronow e Ilpo Saunio (1999: 1-7) assinalam ofacto de, no incio do sculo XX, Edison j ter percebido que o fongrafo erasobretudo uma caixa de msica, dedicando-se ento produo de cilin-dros gravados e lanando um novo modelo de fongrafo destinado a equiparos lares americanos (the home phonograph, como lhe chamou). Entretanto,

    tambm o gramofone, de Berliner, havia conhecido aperfeioamentos subs-tanciais, sobretudo com os contributos de Eldridge Johnson. Foi Johnsonquem concebeu o motor que foi acoplado ao gramofone, permitindo o seufuncionamento autnomo. E foi tambm ele quem concebeu o processode gravao de matrizes em discos de cera, melhorando a qualidade dasgravaes e permitindo a reproduo em massa dos discos gravados.

    Assim, e apesar de subsistirem ainda muitas limitaes tcnicas e tecno-lgicas relativas quer aos aparelhos (fongrafo e gramofone), quer aos

    suportes (cilindros e discos), quer s prprias tcnicas de registo de som(ainda acsticas), nos primeiros anos do sculo XX existiam j condiestcnicas para o desenvolvimento da actividade industrial fonogrfica.

    No obstante, faltavam ainda vrias outras condies para a constituiode verdadeiros mercados. A primeira a que diz respeito ao encontro dessaoferta com uma potencial procura, sustentada em hbitos e prticas sociaisde integrao e uso dos novos objectos os aparelhos e os registos sonoros.De facto, como sugere Sophie Maisonneuve, a histria do fongrafo/gra-mofone e da indstria fonogrfica tem-se centrado sobre os aspectos tecno-lgicos, industriais e econmicos, negligenciando os seus usos e os seusutilizadores (Maisonneuve, 2001b: 91). , contudo, o processo de transfor-mao dos novos equipamentos em novos media musicais e a constituiode uma nova cultura musical que permitem consolidar a actividade daindstria e do mercado fonogrfico a partir dos anos 20.

    Nas primeiras duas dcadas do sculo passado, conjugaram-se con-dies econmicas e tecnolgicas que permitiram baixar o preo dosequipamentos e dos registos sonoros e alargar o volume e a diversidade do

    repertrio musical gravado. A principal inovao tecnolgica diz respeito introduo do microfone, que permitiu no s melhorar significativa-mente a qualidade sonora dos registos, como gravar a performance de

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    formaes musicais mais amplas, um leque mais vasto de instrumentos e,por isso mesmo, uma maior diversidade de repertrio. Em simultneo, osavanos na tecnologia do suporte, nomeadamente a introduo do disco

    de dupla face e o alargamento do tempo de gravao sonora em cada umdos lados do disco, multiplicaram os efeitos da gravao com microfone,permitindo um crescimento substancial do nmero de registos sonoroscomercializados. Por seu turno, a evoluo dos gramofones como equi-pamentos portteis multiplicou as possibilidades de audio de discos.Este conjunto de inovaes explica, em grande medida, o facto de ogramofone se afirmar como o aparelho de reproduo sonora por exce-lncia, o medium musical de que fala Maisonneuve (2001a), suplantandodefinitivamente o fongrafo.

    Estas novas condies tecnolgicas reflectiram-se no modo como osconsumidores foram desenvolvendo um conjunto de novos usos materiaise estticos da msica, dos equipamentos e dos discos. O trabalho de SophieMaisonneuve mostra como a audio domstica de discos envolve, simul-taneamente, uma nova forma de consumo de msica e um novo modo deaudio musical.3 Um consumo que tem lugar no espao domstico e envolvecuidadosas operaes de manipulao do gramofone e dos discos, dandolugar formao de competncias e a disposies especficas. Um consumo

    que materializa a msica, retira aos discos o estatuto de objectos de luxo eos transforma em mercadorias passveis de coleco. Em suma, um consumoque altera os modos de relao com a msica, pois permite a escuta repetidadas obras, a comparao de registos, a acumulao de conhecimentos est-tico-musicais e experincias emocionais, estimulando uma forma de audiocuja varivel central o som. Uma escuta aural que tem lugar no espaoprivado da casa e favorvel construo de universos ntimos de fruioesttica (Maisonneuve, 2001a).

    A formao desta nova cultura musical e a instituio do gramofone comomedium musical por excelncia tm um significado cultural particular, nocontexto da formao da nova indstria. De facto, estes processos envol-veram particularmente a forma de expresso musical que, poca, assumiao mais significativo valor esttico e social a msica clssica, o repertrio

    3 A autora mostra de forma viva o modo como, em Frana e em Inglaterra, os amantes de msicaforam desenvolvendo competncias tcnicas e operacionais que estimularam a constituio denovas disposies estticas de audio musical. Para isso recorre aos depoimentos que surgem eminmeras publicaes que, no incio do sculo XX, circulavam na Inglaterra e em Frana. Simulta-

    neamente, a autora evidencia o modo como os crticos musicais contriburam para o mesmo pro-cesso, assumindo funes pedaggicas, e as companhias se adaptaram editando manuais para osequipamentos e catlogos de apresentao e descrio dos registos editados. Para uma apresenta-o analtica destes processos, ver Maisonneuve, 2002.

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    musical que, ao longo dos sculos XVIII e XIX, se tinha vindo a constituir comoo cnone musical por excelncia (DeNora, 1995; Weber, 1989). A sua assi-milao como parte do repertrio musical gravado contribuiu grandemente

    para o reconhecimento cultural da indstria fonogrfica, quer na Europa,quer nos Estados Unidos da Amrica.4 Mas, como referem Maisonneuve(2002) e Chanan (1995), a transformao do gramofone em novo mediummusical envolve igualmente um conjunto de expresses musicais popularesque haviam explodido a partir de meados do sculo XIX, com o desenvol-vimento de novas formas de lazer. Atravs dos discos, estas expressesmusicais populares conquistaram o espao pblico e associaram-se a novasformas de sociabilidade e lazer.

    Para alm da formao dessa nova cultura musical, essencial para o

    desenvolvimento das procuras necessrias constituio dos mercadosfonogrficos, outras condies limitavam a formao de campos industriaispolarizados em torno de mercados de bens fonogrficos. Uma dessas limi-taes estava associada natureza dos bens produzidos pela prpria inds-tria. Como refere Simon Frith (1988: 11-23), no final do sculo XIX e noincio do sculo XX, a indstria fonogrfica era sobretudo uma indstria dehardware, mais do que de software, integrando a actividade da indstriaelctrica. No entanto, como sugere Michael Chanan (1995: 23-36), a parti-

    cularidade desta indstria residia na existncia de uma associao tcnicaque fazia com que as suas mercadorias assumissem uma dupla forma: a deequipamento de registo/reproduo sonora o fongrafo ou o gramofone;e a do registo fonogrfico o cilindro ou o disco. E mais ainda: os sonsproduzidos por esses objectos no existiriam seno na necessria co-pre-sena de equipamentos, de suportes e registos sonoros. Em consequncia,os produtores de equipamentos de registo e reproduo sonoros tiveramnecessariamente de acrescentar sua actividade a produo dos contedos:Na medida em que no se pode ter um sem o outro, tal deu origem a umprincpio geral segundo o qual os produtores de qualquer tipo de hardware

    4 Tambm do ponto de vista da produo dos registos fonogrficos, daquilo que David Mortondesigna como recording culture (Morton, 2000: 13-47), e apesar de a msica popular constituir amaior fonte de crescimento da indstria fonogrfica ao longo da sua histria, a msica clssica foia forma musical que, nos anos da formao da indstria, mais influenciou as mudanas tecnolgi-cas e as prticas dos estdios de gravao: Os executivos das companhias de gravao por vezesrevelaram que os seus catlogos de registos clssicos tinham como principal objectivo o prestgio,no o dinheiro. A influncia da msica erudita no desenvolvimento da tecnologia de gravao

    excedeu amplamente a importncia econmica das respectivas vendas de discos ou a dimenso dasaudincias de tal msica. De facto, a alta-fidelidade e a alta cultura desempenharam papis impor-tantssimos no estabelecimento das bases da engenharia do registo sonoro e ainda hoje continuama exercer influncia (Morton, 2000:16-17).

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    tm eles prprios de se preocupar com a produo de software adequado,sem o qual o hardware no tem mercado (Chanan, 1995: 32).

    Nos primeiros tempos em que as companhias fonogrficas perceberam

    o carcter vital da produo de registos sonoros para o sucesso da produ-o de equipamentos, vrios foram os obstculos que tiveram, ainda, deultrapassar. Nesse contexto, e como referi anteriormente, o sistema criadopor Berliner e posteriormente aperfeioado e desenvolvido por Eldridge

    Johnson, revelou-se o mais gil na resposta s necessidades de replicaodos registos sonoros. Os discos, ao contrrio do que acontecia com oscilindros, podiam j ser reproduzidos a partir de uma matriz e, portanto,produzidos em quantidades aceitveis para a procura de um mercado(Millard, 2005: 48-49). Berliner e Johnson asseguraram ainda outra vanta-

    gem, pois foram igualmente pioneiros no envio, para a Europa, de tcnicosespecialistas na gravao sonora, com o intento de dilatar o leque de gra-vaes musicais disposio das suas companhias. Os mais conhecidosdesses tcnicos so os clebres irmos Gaisberg, responsveis por inmerasgravaes que constam nos primeiros catlogos da Gramophone Company(em Inglaterra) e da Victor Talking Machine (nos Estados Unidos), realiza-das na Europa e um pouco por todo o mundo. A sensibilidade musical deFred Gaisberg permitiu s duas companhias um estratgico desenvolvi-

    mento dos seus catlogos de discos, recheado de registos das mais impor-tantes obras e intrpretes da msica clssica, mas tambm de gravaesde intrpretes e de temas musicais populares, dos mais diversos pontosdo mundo.

    Edison teve mais dificuldades em se convencer da necessidade de mul-tiplicao dos registos sonoros, sendo mais sensvel aos aperfeioamentostcnicos e tecnolgicos do fongrafo, dos seus cilindros e da qualidade dosom reproduzido. A sua viso relativamente ao universo da produo e doregisto musical foi mais conservadora, centrando-se sobre os dispositivosmateriais e desvalorizando o facto de o valor tcnico e mercantil destes estarintimamente associado ao contedo especificamente musical dos sons gra-vados. Mais tarde, este equvoco de Edison viria a ser um factor determi-nante para a debilidade da sua companhia fonogrfica e mesmo para o seudesaparecimento, em 1928.

    A importncia do contedo cultural das actividades fonogrficas tor-nara-se de tal forma evidente que os prprios compositores e autores, eos respectivos editores grficos, reivindicaram a extenso das regras do

    direito de autor ao universo da msica mecnica. Essa disputa foi diri-mida pelos Estados, primeiramente atravs dos tribunais e, depois, atravsda consagrao legal dos direitos de propriedade dos autores e composi-

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    tores sobre as obras que eram objecto de gravao fonogrfica nas legis-laes nacionais e em acordos internacionais nomeadamente na Con-veno de Berna, assinada em Paris, em 1890, e revista em Berlim em 1908

    (Chanan, 1995: 23-36).5

    A apresentao, ainda que breve, de alguns dos aspectos da histria docampo fonogrfico nas suas primeiras dcadas de vida, isto , nos temposda sua institucionalizao organizacional, teve como objectivo colocar emevidncia as mltiplas ambiguidades que pautaram esses momentos primor-diais e cuja soluo imps a negociao de acordos relativamente aos regi-mes de justificao a adoptar. Essas ambiguidades surgiram no contexto deactividades orientadas por duas ordens de grandeza dominantes: a ordemindustrial subjacente actividade inventiva que marcou o sculo XIX e que

    produziu um conjunto amplo de novos artefactos tcnicos, nomeadamenteo fongrafo; a ordem mercantil, associada produo para o mercadodesses mesmos artefactos. O surgimento de um novo artefacto como ofongrafo e a sua orientao para o mercado exigiu uma negociao sobreos usos relevantes desse mesmo objecto. Uma negociao complexa dadoque no envolveu apenas os especialistas tcnicos da concepo e produoe os profissionais do mercado, mas tambm os potenciais utilizadores e umamultiplicidade de intermedirios dessas relaes.

    Neste caso, a negociao sobre o regime de justificao dos usos condu-ziu mobilizao de uma nova ordem de grandeza a ordem da inspirao.Tendo sido introduzida na coordenao das actividades de uso dos fon-grafos, esta ordem teve impactos sobre a produo e comercializao dosartefactos, obrigando a ajustamentos no domnio das actividades industriaise mercantis dos mesmos. A articulao deste conjunto particular de activi-dades envolveu, num mesmo campo de aco, actores sociais e objectos todiversos quanto os regimes de justificao mobilizados para a sua coorde-nao e conduziu constituio de um campo especfico de actividades o campo da indstria fonogrfica. O seu desenvolvimento histrico foiincorporando sucessivamente actores e objectos que inicialmente estavamfora desse universo e, com eles, novas ordens de grandeza. Entre os primei-ros tero estado os compositores e os autores, envolvidos neste campoatravs das suas composies e dos seus poemas, indispensveis na produ-

    5 Michael Chanan d conta de vrios processos judiciais que foram accionados ainda antes darectificao da Conveno de Berna, em 1908, e que tiverem diferentes desfechos. Em Inglaterra,

    em 1899, os editores de msica em papel perderam as suas causas. Mas em Frana, em 1905, ostribunais decidiram contra a reproduo no autorizada de canes e de msica e, em 1906, emItlia, a Sociedade Italiana de Autores e Compositores conseguiu conquistar, atravs da via judicial,o direito de royalties sobre as vendas de discos (Chanan, 1995).

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    o das gravaes musicais. A sua entrada na arena implicou a disputa denovos modos de aco, desta vez orientados segundo a ordem cvica, demaneira a proteger os direitos de propriedade reconhecidos aos criadores

    e, com eles, as actividades artsticas."TBNCJHVJEBEFTDPOUFNQPSiOFBTFBEJTTPMVmkPEFDPOWFOm{FT

    Dos primrdios at aos nossos dias, muitos outros focos de ambiguidadee de incerteza foram surgindo: i) desde o padro de relao com os con-sumidores de discos, mediado desde a dcada de vinte por novos objec-tos e novas actividades os aparelhos de rdio e as emisses radiof-nicas e, a partir da dcada de cinquenta, pelos televisores e pelaradioteleviso; ii) aos estilos musicais das produes e registos fonogr-

    ficos, substancialmente ampliados e reinventados a partir dos anos cin-quenta e do lanamento do rock nroll; iii) aos formatos das obras fono-grficas que, aps o lanamento dosdiscos de longa-durao (long-play),vm a assumir a estrutura de lbuns, com uma narrativa articulada entretemas musicais; iv) natureza das tcnicas e tecnologias de gravao, tor-nadas acessveis e manipulveis, primeiro pelos msicos e intrpretes e,depois, tambm pelos consumidores; v) aos direitos de propriedade asso-ciados s obras musicais gravadas j no s direitos de autores, mas tam-

    bm direitos conexos a esses, reivindicados e atribudos a intrpretes e aprodutores; etc., etc., etc. Em momentos sucessivos, tais incertezas deramorigem a fortes disputas entre os actores presentes no campo, reinven-o dos acordos existentes ou negociao de outros novos acordos, agre-gadores de outras ordens de grandeza, de modo a garantir a sobrevivn-cia das suas actividades comuns.

    Desde os anos oitenta, contudo, o ritmo da introduo de incertezastem vindo a acelerar. O desenvolvimento das tecnologias digitais, a suaimportao para o universo da msica gravada e a subsequente integraodos sistemas digitais, da informtica e das tecnologias da comunicaovieram a ter consequncias radicais, de efeito multiplicador, sobre todo ouniverso fonogrfico. Num curto espao de tempo, alteraram-se as con-dies da criao musical, da sua produo fonogrfica, da sua difuso edo seu consumo.

    Nos primeiros anos da dcada de oitenta, o desenvolvimento dos sinte-tizadores digitais e do primeiro interface digital para instrumentos (oMIDI)e o surgimento dos novos suportes de gravao em linguagem digital (os

    discos compactos) marcaram radicalmente a vida da indstria fonogrficae contriburam para a redefinio dos valores de uso e das modalidades deconsumo musical.

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    Os sintetizadores surgiram em meados da dcada de setenta, quando aindstria de instrumentos musicais encetou a comercializao de instru-mentos dotados de dispositivos de memria capazes de armazenar progra-

    mas de som. O desenvolvimento das tecnologias digitais veio ampliar aspotencialidades destes dispositivos e introduzir novas variantes de opera-dores de sons sintetizados, como a dos conhecidos samplers.

    O desenvolvimento e a comercializao dos samplers digitais, seja comopeas de hardware autnomas, seja como modalidades de software paracomputadores, converteu as tcnicas digitais em operaes acessveis aosmsicos. E na medida em que os samplers trabalham sobre qualquer tipode som pr-gravado, a sua utilizao introduziu novas prticas de produoe criao musical as prticas de sampling. Estas constituem uma forma de

    citao musical atravs da qual os compositores procedem incorporao dequalquer som pr-gravado num novo trabalho de gravao (Katz, 2004: 139).

    A popularizao do recurso aos sons digitalizados na produo musicalrevelou a convenincia da articulao entre os diferentes padres de sinte-tizadores, conduzindo a um esforo de estandardizao dos sinais digitaisatravs da concepo de um interface para instrumentos digitais oMusi-cal Instrument Digital Interface (MIDI). O desenvolvimento deste dispositivoinformtico teve incio em 1981, atravs de um conjunto de contactos infor-

    mais entre representantes dos maiores fabricantes de equipamentos digitaisde som, e a primeira verso desse interface MIDI Specification 1.0 surgiunos mercados no Vero de 1983.

    OMIDItornou possvel a conexo entre uma pletora de equipamentos,dos sintetizadores aos instrumentos musicais clssicos, atravs da linguagemdigital. Para alm de fornecer uma plataforma de comunicao entre dife-rentes dispositivos de produo musical, o sistemaMIDIfacultou o desen-volvimento de novas formas de composio, mistura e edio musical, nasquais o computador desempenha um papel central.

    J nos anos noventa, comearam a surgir nos mercados dirigidos aosconsumidores no profissionais os primeiros gravadores digitais de mltiplaspistas, equipados com dispositivos de mistura e edio musical. Mas aproduo de masters, ou matrizes, para edio comercial dependia aindados profissionais dos estdios e da sua mestria. Todavia, o aperfeioamentodos sistemas informticos, do hardware e do software, permitiu que oscomputadores pessoais pudessem funcionar como terminais digitais deudio (digital audio workstations, DAW). Estas aplicaes informticas

    transformaram os computadores em versteis gravadores digitais (Millard,2005: 382), preparados para funcionar em articulao com outros disposi-tivos graas popularizao do sistemaMIDI.

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    A difuso dasDAW, aliada popularidade do sistemaMIDI, aos sinteti-zadores digitais e aos samplers, teve significativos impactos sobre as formasde organizao da produo musical. Em meados dos anos noventa, era

    possvel montar, com custos relativamente baixos, estdios domsticos comdisponibilidades tcnicas e tecnolgicas semelhantes s encontradas nosestdios profissionais.

    Essas mudanas produziram impactos significativos sobre os estdios eos seus profissionais, que perderam a importncia que haviam conquistadono universo da msica popular, a partir das dcadas de setenta e oitenta.Nessa altura, a introduo dos gravadores de mltiplas pistas e o desenvol-vimento das tcnicas de mistura e de edio tinham-lhes proporcionado umlugar autnomo e central na produo musical, em detrimento dos prprios

    msicos (Thberge, 1997: 217). Desde ento, os estdios assumiam o esta-tuto de dispositivos colectivos de composio e produo musical, sob acoordenao dos produtores musicais cuja autoridade se fundava na media-o por eles desenvolvida entre msicos, tcnicos, dispositivos, editoras epblicos (Hennion, 1989).

    As tecnologias digitais possibilitaram aos msicos a instalao de estdiosdomsticos dedicados s suas actividades de criao, de experimentao ede composio musical. E atravs deles os msicos reconquistaram o seu

    lugar como criadores, fugindo ao controlo exercido por produtores e enge-nheiros de som. Os estdios profissionais no desapareceram, mas perderamproeminncia como dispositivos colectivos de criao, assumindo frequen-temente um papel complementar na produo final dos temas musicais.

    Do ponto de vista cultural, as mudanas tecnolgicas tiveram tambmimpactos significativos sobre a criao musical, multiplicando as possibili-dades de algumas das tendncias criativas j anunciadas na dcada de setentae intensamente exploradas nas duas dcadas seguintes. Entre essas tendn-cias encontrava-se oRap, uma expresso musical com origens no Hip Hop,uma subcultura afro-americana de rua, nascida no South Bronx, em NovaIorque, nos anos setenta, envolvendo a msica, a dana e ograffiti.

    As principais caractersticas do Rap a combinao de uma narrativavocal, expressa de forma compassada sobre um fundo musical rtmicoelectrnico, em que a cadncia da voz e da batida musical operam em con-

    junto6 esto directamente relacionadas com as suas razes culturais e coma sua associao a uma forma musical danada (Rose, 1994: 1-20). A batidada msicaRap conseguida atravs do recurso a uma tcnica explorada

    6 A prpria sigla faz eco dessa forma particular de combinar uma batida e a voz ritmada: RAP,Rythm and Poetry (Fradique, 2003: 39).

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    pelosDJs, em meados dos anos setenta, nos clubes e nas discotecas de NovaIorque, Chicago e Washington:

    A batida da msica rap produzida por um processo conhecido como scratchmixingatravs do qual um gira-discos de dois pratos, originalmente concebido para propor-cionar uma sequncia contnua de faixas de dana em discotecas e clubes nocturnos, transformado ele prprio num instrumento musical. Usando um dos pratos paraproduzir o ritmo, conseguido atravs do manejo de um disco de modo a que umadeterminada sequncia de compassos continuamente repetida, o DJ usa ento osegundo prato para misturar nesse ritmo fragmentos de sons e temas instrumentaisde outros discos.(Bennett, 1999: 78-79)

    Atravs destas tcnicas, e com recurso a fragmentos de msicas pr-gra-vadas, produz-se um dos elementos cruciais deste estilo musical, aquilo queTeresa Fradique designa como um novo tipo de percusso (Fradique, 2003: 39).

    Envolvendo um modo de criao que inicialmente dependia de proces-sos mecnicos de colagem e de recomposio de sons, os rappers encontra-ram nas tecnologias digitais mltiplos recursos para a criao dos seus ritmosmusicais. E no s os rappers. Tambm osDJs exploraram esses equipamen-tos para compor outras expresses musicais, como a House ou a Techno.

    De facto, se, em Nova Iorque, as tcnicas desenvolvidas pelosDJs foramapropriadas pela subcultura de rua Hip Hop, dando origem ao Rap, emChicago, elas foram evoluindo no contexto dos prprios clubes de dana,dando lugar House music, cujo nome advm de um dos clubes mais popula-res na cidade o Warehouse Club (Langlois, 1992). No centro da cenamusical House encontra-se oDJ, um profissional cujo papel evoluiu ao longodas dcadas de setenta e oitenta, deixando de ser apenas o responsvel pelaseleco e substituio dos discos ao longo de uma noite, para se transfor-mar numa espcie de msico (Langlois, 1992: 230). No final dos anossetenta, os DJs usavam uma tcnica particular para a manipulao dosdiscos a blend mixing, como era conhecida atravs da qual fragmentosde msicas impressas em discos de vinil eram misturados com recurso a umleitor de discos com dois pratos, de modo a produzir novos sons e texturasmusicais e mesmo novas peas musicais. O estilo dosDJs norte-americanosrapidamente se popularizou entre osDJs da Europa e do resto do mundo,que exploraram as suas prprias tcnicas de mistura. Desta forma, a Housepassou a influenciar a msica de dana dos anos oitenta e noventa.

    Outra das influncias dessa mesma msica de dana ter sido a Techno,uma forma de msica electrnica, construda a partir do uso de computado-res, que surgiu em Dsseldorf, na Alemanha, pelas mos de um grupo

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    designadoKraftwerk. A msica dosKraftwerk tornou-se popular entre osDJs de Chicago e outras cidades norte-americanas, que passaram a integraros sons dessa msica electrnica nas suas misturas. As tecnologias digitais,

    introduzidas na dcada de oitenta, influenciaram tanto estas novas expres-ses musicais como as experincias dos pioneiros daquilo que Andy Bennettdesigna como electro-pop (Bennett, 2001: 118-135).

    Os computadores, os samplers, o sistema MIDIpermitiram aos DJsdesenvolver novas tcnicas de animao musical dos clubes de dana,sobrepondo a msica dos discos a suportes sonoros pr-produzidos e regis-tados digitalmente e articulando todos os sons de forma inovadora:

    Na medida em que a msica House tem sido frequentemente construda a partir de

    pedaos de materiais sonoros pr-gravados digitalmente (sampled), a arte da com-posio musical no seu sentido mais comum virtualmente inexistente, e o gnero, portanto, relativamente acessvel a compositores com o tipo de formao dosdisc-jockeys. Com um sampler, sintetizadores e um computador ligados por um sistemaMIDI, pode-se perfeitamente sincronizar uma multiplicidade de vozes numa batidae program-las para entrar numa pea quando se pretender. [] Operar com umcdigo digital em vez de uma fita electromagntica permite uma edio fcil e muitorpida do material, que pode ser revertido, retardado ou acelerado consoante for

    mais apropriado. (Langlois, 1992: 231)

    Mas, se oRap e as novas msicas de dana, a House, a Techno,so ilus-traes flagrantes do modo como as novas tecnologias digitais foram rapi-damente absorvidas na produo musical, participando da recriao deestilos e prticas musicais, elas no esto isoladas do que se passa no restantepanorama da msica popular gravada. De facto, ao longo das dcadas deoitenta e de noventa, o recurso s tecnologias digitais tornaram a mistura,o sampling e os sons sinteticamente processados em tcnicas de composiomusical transversais a todos os gneros musicais.

    A produo musical passou a recorrer, com frequncia, reciclagem detemas musicais populares em outras pocas e sua apropriao comomatria-prima para a criao de novas expresses musicais.7 Esses processos

    7 Usando tcnicas de sampling, msicos e produtores podem efectivamente retirar sons dosseus contextos originais e transform-los em novas peas de msica. Pode-se ouvir os primeirosexemplos de sampling na construo de nova msica no trabalho do agrupamento JAMs, de mea-dos da dcada de 1980, que mais tarde reapareceu como KLF. Os JAMs criaram temas como The

    Queen and I, que misturava pedaos dos ABBA e dos Sex Pistols com o Hino Nacional Britnico,e Whitney Joins JAMs, que apresentava samples de I Wanna Dance with Somebody (Who LovesMe), de Whithney Houston, Theme from Shaft, de Isaac Hayes, e o tema musical da srie de cultonorte-americanaMisso Impossvel, dos anos 1970 (Beadle, 1993: 111-112)(Bennett, 2001: 121).

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    foram explorados com o apoio dos mltiplos recursos de manipulaotecnolgica dos sons acsticos, humanos e no humanos, e de integraode sons puramente sintetizados na composio musical. E se, do ponto de

    vista estritamente musical, estas formas de composio levantaram diversascontendas, na perspectiva da produo fonogrfica, elas acarretaram novosproblemas relativos identificao de autorias e atribuio do copyright.

    Para alm das repercusses sobre a produo musical, a aplicao dastecnologias digitais aos suportes de gravao e aos equipamentos de repro-duo musical aconteceu no incio da dcada de oitenta, abrindo caminhoa transformaes radicais no universo dos consumos da msica gravada.

    A Sony e a Philips foram as duas companhias responsveis por essa apli-cao. A cooperao entre as duas companhias permitiu o desenvolvimento

    dos primeiros equipamentos digitais e dos respectivos discos os compactdiscs (CDs). O prottipo do sistema foi apresentado pela Philips inds-tria fonogrfica em 1981, mas s em 1982 os primeiros discos compactosforam postos venda no Japo e nos Estados Unidos e, em 1983, foramintroduzidos nos mercados europeus (Gronow e Saunio, 1999: 147-212).A Philips e a Sony desenvolveram, ento, uma agressiva promoo juntoda indstria fonogrfica, de modo a conseguir ultrapassar a concorrnciae impor o seu sistema de discos compactos como sistema padro. Uma

    das grandes vantagens da parceria entre estas companhias residiu no factode elas poderem explorar de forma imediata a combinao entre o novohardware e o software aplicvel, isto , a msica gravada. O facto de a Philipsser a companhia me da Polygram possibilitou essa ligao directa, entre aintroduo da nova tecnologia e o mercado da msica gravada, revelando-sefundamental para a ilustrao das potencialidades dos novos equipamentose dos novos suportes.

    As principais vantagens das novas tecnologias digitais residiam na lim-pidez do registo sonoro e da sua reproduo, no acrscimo do tempo degravao disponvel dos novos discos, nas possibilidades abertas para umaleitura aleatria dos discos e, sobretudo, a sua menor susceptibilidade aosefeitos do uso (Millard, 2005: 346-356). As suas principais desvantagensdecorriam das dificuldades inerentes assimilao de novas tecnologias eda sua adaptao por parte dos agentes nos campos fonogrficos e nosmercados. De facto, a sua introduo impunha uma ruptura com as capa-cidades instaladas e a necessidade de uma renovao completa dos sistemasde leitura e de reproduo de som que equipavam os consumidores. Esse

    reequipamento acarretava custos relativamente elevados, num momentoem que os sistemas de reproduo de cassetes, economicamente mais aces-sveis, estavam ainda a conquistar pblicos.

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    Ainda assim, as novas tecnologias digitais revelaram-se imediatamenteinteressantes, sobretudo para a difuso da msica clssica. Os amantes destamsica, normalmente consumidores exigentes, apreciadores da qualidade

    tcnica do som da msica gravada, mostraram-se rapidamente interessadospelas novas tecnologias. Alm disso, a maior capacidade dos discos com-pactos permitia pela primeira vez uma audio ininterrupta de obras maislongas, como as sinfonias ou os grandes concertos.

    No obstante o seu bom acolhimento no universo da msica erudita, sna segunda metade da dcada de oitenta a venda de CDs se tornou maispopular e o seu mercado se tornou apetecvel para as editoras. De facto,durante a primeira metade da dcada, embora o mercado dos discos de viniltivesse sofrido uma crise profunda, o mercado das cassetes udio encon-

    trava-se em forte expanso. Foi preciso tempo para que as companhiaspercebessem as vantagens das novas tecnologias, e os consumidores asreconhecessem, ultrapassando as incertezas associadas introduo de umnovo sistema de gravao e reproduo de sons.

    Ultrapassadas essas hesitaes, os CDs revelaram-se uma oportunidadede excelncia para as companhias fonogrficas. Permitiram o relanamentono mercado de muitos registos disponveis nos seus fundos de catlogo,atravs da sua transposio para som digital e da sua edio em disco com-

    pacto. Ajudaram a conquistar novas geraes de consumidores, agora dis-postas a constiturem os seus arquivos musicais pessoais, enquanto atraamconsumidores j fidelizados para a renovao das suas coleces nos novosformatos. Para alm de que ofereceram uma oportunidade para procederde forma justificvel a uma subida de preos dos CDs. essa renovao dediscos, de gravaes e de preos que explica, em grande medida, o cresci-mento dos mercados fonogrficos na segunda metade da dcada de oitenta,no fim da qual a venda de discos de vinil nos principais mercados fonogr-ficos tinha sido claramente ultrapassada pela venda de CDs (Gronow eSaunio, 1999: 147-212).8

    Menos de dez anos aps a introduo dos primeiros discos compactos edos respectivos equipamentos de leitura, comearam a surgir nos mercadosos primeiros sistemas de gravao udio digital: o Digital Audio System(DAT) daSony, aDigital Compact Cassette (DCC) da Philips e oMini Disc(MD), tambm da Sony. Nenhum destes suportes e formatos teve sucessonos mercados. Desta vez, a incapacidade daSony e da Philips em chegarem

    8

    Isto acontece, de facto, nos mercados fonogrficos da Amrica do Norte, da Europa e do Japo.No entanto, como mostram os trabalhos de Peter Manuel (1993) e de Roger Wallis e Krister Mlm(1984), a subsistncia dos mercados fonogrficos perifricos depende das tecnologias mais econ-micas, principalmente das cassetes.

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    a um entendimento sobre o padro tecnolgico a adoptar gerou umaincompatibilidade entre os sistemas e uma forte concorrncia no mercado.A resistncia das companhias fonogrficas em editar nestes formatos ter

    contribudo, igualmente, para o fracasso destas tecnologias.De um modo geral, a indstria fonogrfica temia a comercializaoaberta das novas tecnologias de gravao digital pelo facto de elas abriremrenovadas possibilidades para a reproduo no autorizada de fonogramas.A pirataria passara a ser uma preocupao central para os campos fono-grficos desde a popularizao dos sistemas de gravao magntica e, porisso, as associaes representativas do sector nos mercados norte-ameri-cano (em particular, aRecords Industry American Assotiation RIAA)eeuropeu (representadas pela International Federation of Phonographic

    Industry IFPI) mobilizaram as suas foras para evitar a difuso das tec-nologias de gravao digital.

    No obstante a atitude conservadora da indstria, o desenvolvimentointegrado dos sistemas informticos e de entretenimento conduziu intro-duo nos mercados de dispositivos informticos capazes de operar comsistemas de codificao digital para vdeo, udio, texto, animao e esque-mas de interactivos. Os CD-Rom foram os primeiros suportes desta naturezaa surgir, podendo ser lidos atravs de uma drive em qualquer computador

    pessoal. Seguiram-se os discos compactos gravveis (CD-R), os discos com-pactos regravveis (CD-RW) e, mais tarde, os DVDs. Estes desenvolvimen-tos deixaram de ser controlveis pela indstria fonogrfica e os mecanismosde gravao digital de fonogramas passaram a estar disponveis nos merca-dos de equipamentos domsticos e acessveis aos consumidores a preosrelativamente baixos.

    No final da dcada de noventa, as possibilidades oferecidas aos consu-midores pelas novas tecnologias digitais adquirir um CD de msica gra-vada, copi-lo para o disco rgido de um computador ou reproduzi-lo,copiando-o para outro CD foram multiplicadas pelas inovaes queocorreram no universo das tecnologias da informao. Essas inovaesseguem-se constituio, em 1989, da rede mundial de comunicao entrecomputadores a World Wide Web (WWW)9 e, em 1994, ao surgimentodo primeiro browsercomercial o Netscape.

    A segunda metade da dcada de noventa foi frtil em inovaes tcnicase tecnolgicas que exploravam as inmeras potencialidades oferecidas pelaWorld Wide Web e que, em poucos anos, transformaram radicalmente os

    9 O protocolo que estabeleceu a internetsurgiu em 1974, mas s em 1989 foi estabelecida a WorldWide Web, WWW(Kretschemer, Klimis e Wallis, 2001: 418).

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    mecanismos de distribuio e acesso msica gravada, alterando a face dosmercados fonogrficos. Ainda em 1993, Rob Lord e Jeff Patterson arqui-tectaram uma espcie de arquivo musical digital em formato MP2,10 o

    Internet Underground Music Archive IUMA, particularmente destinado msica alternativa e independente. As condies de operacionalidade daInternete o desenvolvimento ainda incipiente dos sistemas de codificaode ficheiros udio no permitiram, contudo, que este servio se afirmassecomo uma alternativa s clssicas formas de distribuio musical. Em 1995,Rob Glaser apresentou oReal Audio System, um dispositivo que comprimiaos ficheiros udio e os remetia para os utilizadores da internet. A ele associouoReal Player, o software que, quando instalado nos computadores pessoais(PCs), fazia a leitura dos ficheiros udio e vdeo comprimidos atravs do

    Real Audio System. Em 1997, Justin Frankel ajudou a desenvolver o Winamp,um programa que lia ficheiros musicais codificados em MP3 e os reprodu-zia nos computadores domsticos.

    Com o advento e a rpida difuso do MP3 abriram-se definitivamenteas possibilidades de circulao da msica gravada atravs da internet, sur-gindo, desde ento, inmeros portais disponibilizando contedos de some de imagem. Um dos mais conhecidos ter sido o MP3.com, aberto porMichael Robertson em 1997. Inicialmente vocacionado para divulgar infor-

    maes acerca dos cada vez mais comuns portais de msica em formatoMP3, transformou-se rapidamente num deles, alojando sobretudo os tra-balhos de bandas independentes (Millard, 2005: 388-402). Em 1999, a

    Diamond Multimedia introduziu o primeiro leitor autnomo de MP3: oRioPMP 300. Depois dele, muito outros modelos surgiram, de tal modo que,como sugere Andre Millard (2005: 395), os leitores de MP3se transforma-ram nos Walkman do sculo XXI.

    As companhias fonogrficas mantiveram a distncia relativamente a estesprocessos. Continuaram a apostar na produo de CDs e, sobretudo, nasua distribuio e comrcio tradicionais, apesar de algumas terem iniciadoa comercializao de CDs atravs da internet.11

    No entanto, no final da dcada de noventa, quando comeavam a seradoptados novos mecanismos de distribuio fsica de informao digital

    10 O MP2, tal como o MP3, um sistema de codificao digital de sons. O MP3 foi desenvolvido,desde 1985, pelo Fraunhofer Institute for Integrated Circuites, na Alemanha, e introduzido em 1992.A sua adopo como parte dos sistemas padro de compresso digital de udio e vdeo foi definida pelo

    Motion Pictures Experts Group (MPEG) Layer3 em 1994 (Kretschemer, Klimis e Wallis, 2001: 419).11

    Muitas delas adoptaram oReal Audio System para colocar online pequenas amostras dos temascontidos nos seus discos, audveis pelos internautasque possussem oReal Player. No entanto,no disponibilizavam a totalidade das faixas contidas nos CDs. O conjunto global dos temas man-tinha-se apenas associado aos discos enquanto objectos fsicos.

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    a banda larga, o cabo ptico, os modems de alta velocidade , proporcio-nando maior rapidez e maior qualidade ao fluxo de informao na internet,surgiram os dispositivos de troca directa de msica gravada atravs da rede,

    os sistemaspeer-to-peer(P2P). Shawn Fanning tornou-se um nome familiarpara os utilizadores da internetpelo facto de ter desenvolvido este processoatravs do sistema Napster, introduzido na rede em 1999 e desenhado paraproporcionar uma troca livre e directa entre amantes da msica.

    Os sistemas P2Prevolucionaram o acesso msica gravada, facilitandoa constituio de audincias globais, interligada pela World Wide Web ecapazes de partilhar, sem outros intermedirios para alm dos dispositivostcnicos e tecnolgicos, ficheiros de udio. Se as outras tecnologias digitais

    j ofereciam aos consumidores a possibilidade de controlo e manipulao

    sobre os registos musicais, os programas de troca directa de contedosmusicais abriram-lhes oportunidades infinitas de acesso s audiotecas pri-vadas de outros utilizadores da rede. De facto, as redes P2Psoradicalmentediferentes do tradicional modelo cliente-servidor, no qual a informaoflui entre uma fonte centralizada (o servidor, um computador ou conjuntode computadores que armazenam e distribuem os dados) e os seus utiliza-dores (os clientes, que solicitam dados ao servidor). Em vez disso, o modeloP2P descreve uma rede descentralizada, na qual cada computador tem

    acesso directo a determinados ficheiros armazenados em cada um dos outroscomputadores; a circulao de dados entre os membros de uma rede conhecida como partilha de ficheiros(Katz, 2004:161).

    Neste contexto, a posio das companhias fonogrficas achou-se seria-mente ameaada. Por um lado, os novos meios e sistemas de comunicaoem rede constituam uma ameaa s suas funes de seleco e difuso deobras musicais e s suas estruturas de distribuio e comercializao defonogramas. Por outro lado, os sistemas P2P pulverizaram os princpiosbasilares da propriedade intelectual, oferecendo possibilidades inimagin-veis de uso ilegal dos fonogramas e ameaando o controlo dos direitos depropriedade intelectual distribudos pelos vrios agentes da cadeia de valordo sector fonogrfico. ameaa da pirataria industrial fortalecida pelastecnologias digitais, somava-se agora a exploso das possibilidades de cpiailegal pelos consumidores.

    Abriu-se assim um conjunto de possibilidades que alteraram radicalmenteos modos de relao dos consumidores musicais com o universo da msicagravada e, com ela, as convenes que regeram durante longo tempo a

    definio dos valores de uso desta msica. Em ltima anlise, estas alteraesgeraram desentendimentos sobre a definio dos prprios objectos daindstria fonogrfica, reflectindo equvocos que haviam j preenchido os

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    primrdios desta indstria. De facto, a indstria fonogrfica foi incapaz deperceber e assimilar o processo de desmaterializao da msica gravada,no acompanhando a reinveno dos dispositivos de mediao da criao

    e do consumo. Esses dispositivos permitiram uma recriao significativa dacultura musical, dos processos de constituio de critrios de fruio ldicae esttica da msica e das prticas de uso e manipulao dessa mesmamsica. Simultaneamente, os mesmos dispositivos alteraram as condiesde criao, de registo e de difuso musical, possibilitando, em ltima anlise,uma relao directa e recproca entre criadores e consumidores.

    Atravs da rede, os consumidores revelam-se cada vez mais como amantesde msica, no sentido em que Antoine Hennion nos fala (Hennion, 2001).Seleccionam temas musicais, elegem intrpretes, partilham preferncias,

    justificam os seus gostos e argumentam em defesa dos seus critrios, con-trapem escolhas, comparam temas e intrpretes, comunicam com os cria-dores, compem eles prprios seleces musicais que estabelecem dilogosinditos entre temas e intrpretes Isto, para alm de poderem articulartodas essas actividades com o universo das prticas criativas, hoje acessveisatravs da articulao entre os dispositivos informticos, os equipamentosde produo e de registo de som e os instrumentos musicais.

    A rede revelou-se como um dispositivo tcnico que ampliou e transfor-

    mou brutalmente as redes de socializao cultural, as prticas de construodo gosto musical e os modos de relao com as obras musicais (Hennion,2005). Nesse sentido, os sistemas digitais, a rede e, em particular, os dis-positivos P2Pabriram um conjunto de novas possibilidades para a actua-lizao do princpio da grandeza da inspirao na definio do valor dosfonogramas.

    De um modo geral, as mudanas que tm vindo a ocorrer desde a dcadade 1980 mudanas em diversos dispositivos tecnolgicos, nos processosde composio, formas e contedos musicais, nos dispositivos do mercado,nas modalidades de uso dos consumidores vieram alterar de uma formaradical uma parte significativa das convenes de funcionamento do campofonogrfico, nas quais se plasmavam as ordens de grandeza que presidiamao seu funcionamento. Os novos dispositivos tecnolgicos introduziramincertezas agudas relativamente queles que, ao longo da sua histria, seforam definindo como os objectos especficos da actividade fonogrfica osfonogramas. Podero eles continuar a ser discos? Ou estaro estes objectoscondenados a desaparecer e a dar definitivamente lugar a protocolos ima-

    teriais? As novas modalidades de composio e criao musical alterarama conveno sobre as obras musicais e a sua originalidade. E com issointroduziram muitas novas questes relativamente definio dos direitos

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    de autor, consagrados desde o incio do sculo XX, e aos mecanismos defuncionamento da ordem cvica que presidiu coordenao da actividadefonogrfica neste domnio. A transformao dos dispositivos de mercado,

    nomeadamente o surgimento de sistemas de troca directa, no comercial eno material, ameaou os mecanismos do comrcio a retalho convencionale obrigou inveno de dispositivos de comrcio online. Nestes novosdispositivos, os protocolos de clculo associados so radicalmente diferen-tes dos mobilizados no comrcio clssico,12 impondo mudanas na produ-o do valor de mercado dos fonogramas. Ainda assim, a troca directa eno monetria entre consumidores continua a gerar incertezas nesse dom-nio. As mudanas do uso que os consumidores fazem dos fonogramas, queultrapassa a audio de discos, para incluir amplamente a sua reproduo

    e partilha, mas tambm a sua recriao, alteraram as convenes da culturamusical subjacentes ao consumo fonogrfico e geraram fortes controvrsiassobre as regras do mercado, sobre as convenes da propriedade musicale sobre a prpria conveno acerca da distino entre criador, obra e con-sumidor, uma conveno que um dos fundamentos da instituio doscampos culturais modernos.

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    Para terminar, retomo muito brevemente a ideia inicial deste ensaio, na qualexpressava perplexidade face ligeireza com que frequentemente as inds-trias culturais so tratadas pela literatura sociolgica. O que a histria daindstria fonogrfica nos mostra a esse propsito que as indstrias cultu-rais constituem campos organizacionais com um elevado grau de comple-xidade. Neles operam no apenas as lgicas da aco tcnico-industrial emercantil, classicamente associadas ao universo das actividades econmi-cas, mas tambm as que dominam nas esferas culturais e artsticas a lgicada inspirao e a da reputao e a que orienta a regulao pblica algica cvica. A complexidade do campo das indstrias culturais decorreda coexistncia dessa diversidade de lgicas e regimes de coordenao que,sendo incomensurveis entre si, coexistem na organizao e na dinmicado campo. Uma coexistncia suportada, fundamentalmente, pelo recursoa numerosas convenes institudas que permitem a operacionalizao des-ses regimes e a sua alternncia no decurso das actividades.

    Os momentos em que surgem e se formam novos universos de activida-des, como aconteceu nas duas ltimas dcadas do sculo XIX e nas primeiras

    do sculo XX, ao longo das quais se foram afirmando e aperfeioando as

    12 Sobre a concepo dos mercados como dispositivos colectivos de clculo, ver Callon e Muniesa, 2005.

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    actividades fonogrficas, permitem-nos dar conta da diversidade de prin-cpios convocados por esses campos de aco. Mas essa percepo torna-separticularmente aguda em momentos de crise, como aquela que a indstria

    fonogrfica tem vivido nas duas ltimas dcadas em resultado da redefini-o de vrias convenes, seja de carcter tcnico-industrial, seja de naturezacultural, mercantil ou mesmo cvica. A transformao dessas convenesteve mltiplas consequncias sobre a coordenao das actividades e sobrea estrutura do campo, instalando um ambiente de dvidas e de incertezasquanto legitimidade dos regimes de justificao institudos. Essas incer-tezas revelaram-se particularmente agudas porque pulverizaram as disputasno s em torno dos objectos e dos dispositivos materiais pertinentes parao universo fonogrfico, mas tambm da definio dos actores relevantes,

    dos testes que permitem avaliar as respectivas grandezas e definir as suashierarquias e, sobretudo, em torno dos prprios princpios de grandezasubjacentes s diversas actividades. Uma multiplicidade de possveis focosde incerteza que mostram saciedade a irredutibilidade dos campos dasindstrias culturais clssica dicotomia entre economia e cultura e ilustramuma densidade de processos ainda muito pouco estudados.

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