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1 “A influência da Mídia nos Processos de Criminalização.” Dúnia Serpa Rampazzo* Sumário: 1. Introdução. 2. O “fenômeno criminal” sob a ótica da Criminologia Crítica. 3. Os Processos de Criminalização desvendados pela Criminologia Crítica. 4. A mídia como instrumento criminalizador. 5. A Mídia e os Processos de Criminalização. 6. Conclusão: violência institucional para ocultar a violência estrutural. 1. I NTRODUÇÃO A mídia 1 e os meios de comunicação em geral revelam-se grandes formadores de opinião, exercendo um enorme domínio sobre toda a população, porque detêm o poder de estabelecer certos padrões de pensamento às pessoas para promover a “formação do consenso”. De tal modo, porque mantidos pela elite social, se mostram como um instrumento de poder, difundindo crenças que interessam à manutenção do status quo vigente, o qual se baseia nas desigualdades entre as classes sociais e marginalização. Assim, são mecanismos de opressão e controle, para propagar os interesses das classes dominantes e manter a dominação dos oprimidos. O presente trabalho pretende demonstrar a influência da mídia nos processos de criminalização, sob a ótica da Criminologia Crítica e Radical. * Advogada militante, graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), pós- graduada em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal do Paraná (ICPC), pós-graduada em Estado Democrático de Direito pela Fundação Escola do Ministério Público do Paraná (FEMPAR). 1 No presente trabalho, os termos “ mídia”, “ meios de comunicação”, “ opinião pública” e “imprensa” serão utilizados como sinônimos. Serão usados de acordo com a definição utilizada por MORETZSOHN: “termo difuso, impreciso e abrangente que implica a apreciação de diversas formas de comunicação, desde o noticiário tradicional a shows de variedades que investem pesadamente na exposição de dramas populares e procuram intermediar soluções para eles (ou mesmo apresentar as próprias soluções) a título de “prestação de serviço”, passando por novelas que abraçam causas “sociais” e são aplaudidas por certos intelectuais, juristas, pelo próprio poder público como importantes instrumentos em defesa dessas causas (desde a “denúncia social” à sempre incentivada “busca de soluções”), como campanha a favor da busca de crianças desaparecidas ou, mais recentemente, a luta contra as drogas.”. MORETZSOHN, Sylvia. O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã”. In: Discursos Sediosos. Crime, Direito e Sociedade. Ano 7, nº 12. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 292.

A influência da Mídia nos Processos de Criminalização

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“A influência da Mídia nos Processos de

Criminalização.”

Dúnia Serpa Rampazzo*

Sumário: 1. Introdução. 2. O “fenômeno criminal” sob a ótica da Criminologia Crítica. 3. Os Processos de Criminalização desvendados pela Criminologia Crítica. 4. A mídia como instrumento criminalizador. 5. A Mídia e os Processos de Criminalização. 6. Conclusão: violência institucional para ocultar a violência estrutural.

1. INTRODUÇÃO

A mídia1 e os meios de comunicação em geral revelam-se grandes formadores

de opinião, exercendo um enorme domínio sobre toda a população, porque detêm o poder

de estabelecer certos padrões de pensamento às pessoas para promover a “formação do

consenso”. De tal modo, porque mantidos pela elite social, se mostram como um

instrumento de poder, difundindo crenças que interessam à manutenção do status quo

vigente, o qual se baseia nas desigualdades entre as classes sociais e marginalização.

Assim, são mecanismos de opressão e controle, para propagar os interesses das classes

dominantes e manter a dominação dos oprimidos.

O presente trabalho pretende demonstrar a influência da mídia nos processos de

criminalização, sob a ótica da Criminologia Crítica e Radical.

* Advogada militante, graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), pós-

graduada em Di reito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal do Paraná (ICPC), pós-graduada em Estado Democrático de Direito pela Fundação Escola do Ministério Público do Paraná (FEMPAR).

1 No presente trabalho, os termos “ mídia”, “ meios de comunicação”, “ opinião pública” e “imprensa” serão utilizados como sinônimos. Serão usados de acordo com a definição utilizada por MORETZSOHN: “termo difuso, impreciso e abrangente que implica a apreciação de diversas formas de

comunicação, desde o noticiário tradicional a shows de variedades que investem pesadamente na exposição de dramas populares e procuram intermediar soluções para eles (ou mesmo apresentar as próprias

soluções) a título de “prestação de serviço”, passando por novelas que abraçam causas “sociais” e são aplaudidas por certos intelectuais, juristas, pelo próprio poder público como importantes instrumentos em

defesa dessas causas (desde a “denúncia social” à sempre incentivada “busca de soluções”), como campanha a favor da busca de crianças desaparecidas ou, mais recentemente, a luta contra as drogas.”.

MORETZSOHN, Sylvia. O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã”. In: Discursos Sediosos. Crime, Direito e Sociedade. Ano 7, nº 12. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 292.

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Partindo-se dos pressupostos da teoria criminológica crítica, que busca associar

o fenômeno criminal e as formas de reação e controle com a estrutura de uma dada

sociedade, analisando-o de acordo com as relações políticas e econômicas que existem

num determinado contexto social, formulando uma teoria materialista do desvio e do

controle social, o presente trabalho realiza-se com a perspectiva de que o crime não é uma

realidade ontológica pré-constituída, mas sim resultante dos processos de criminalização,

que são enormemente influenciados pelo discurso midiático.

Assim, este trabalho visa demonstrar como a imprensa, de modo geral,

impulsiona o processo de criminalização primário e governa o processo de criminalização

secundário.

O processo de criminalização primário que, sinteticamente, se trata da

definição legal dos comportamentos criminosos e das sanções penais, é fortemente

influenciado pela opinião pública que, com a propagação de um clima de insegurança no

meio social, prega a necessidade do recrudescimento da legislação penal, o aumento do

encarceramento, o alargamento do uso de institutos que diminuem as garantias

constitucionais dos cidadãos, tais como a proliferação dos tipos de perigo abstrato e das

leis penais em branco, defendendo todas essas medidas como aptas a solucionar o

problema da criminalidade, que se trata mais de um problema estrutural do que

propriamente criminal.

No tocante ao processo de criminalização secundário, a mídia se revela a

condutora da mente de toda a população, mormente dos operadores do direito, na

perseguição contra o “inimigo” da sociedade, por meio da criação de estereótipos de

indivíduos aos quais deve ser atribuído o status de criminoso.

2. O “FENÔMENO CRIMINAL” SOB A ÓTICA DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA

A Criminologia Crítica2, partindo do paradigma da reação social (“labelling

approach”) associa o fenômeno criminal e as formas de reação e controle com o aspecto

estrutural de uma dada sociedade, apreciando-o segundo as relações políticas e

econômicas que prevalecem num determinado contexto social. A partir disso, enxerga o

comportamento criminoso e as formas de controle social sob a ótica da teoria materialista,

vale dizer, liga-os à base material e estrutural da sociedade capitalista contemporânea, a

2 Também denominada de Criminologia Radical.

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qual existe e se mantém graças às contradições de classe e desigualdade econômica e

política que imperam entre elas.3

Assim, a Criminologia Radical nos demonstra que a condição social ou de

classe é o fator determinante do crime e da repressão criminal, mostrando-nos que o fato

da maior parte dos indivíduos que sofrem a ação do sistema de justiça criminal pertencer

às camadas sociais mais marginalizadas e vulneráveis se explica porque o referido sistema

age com maior amplitude em relação a tais grupos sociais, seja pela maior severidade e

coibição dos delitos cometidos tipicamente pelos sujeitos que compõe tais categorias

sociais (essencialmente os crimes contra o patrimônio4), seja pelas maiores chances de

atribuição do status de criminoso a indivíduos pertencentes a estes grupos, por meio da

ação dos agentes do sistema criminal (os policiais, delegados, promotores, juízes, entre

outros), que agem baseados em estigmas e estereótipos sociais.5

Portanto, coloca em xeque as teorias que pregam a neutralidade e igualdade do

direito penal, nos revelando que ele não passa de um instrumento garantidor e reprodutor

das relações sociais desiguais, características das sociedades capitalistas, eis que assegura

a marginalização e opressão do grupo social que detém o poder político e econômico

sobre os grupos sociais mais vulneráveis, por meio do direcionamento dos processos de

criminalização em relação a estes.

CIRINO DOS SANTOS explicita tal marco teórico da Criminologia Crítica ou

Radical nas seguintes palavras:

A Criminologia Radical descobre o sistema de justiça criminal como prática organizada de classe, mostrando a disjunção concreta entre uma ordem social imaginária, difundida pela ideologia dominante através das noções de igualdade legal e de proteção geral, e uma ordem social real, caracterizada pela desigualdade e pela opressão de classe.6

Dessa forma, o pensamento criminológico crítico desmistifica o conceito

positivista7 de crime, típico da criminologia tradicional, demonstrando ser este o conceito

3 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Criminologia Radical. 2 ed. Curitiba: ICPC: Lúmen Juris,

2006, p. 1-10. 4 Crimes estes que nada mais são do que reações individuais de sujeitos em situações sociais

adversas, em busca de maiores recursos materiais para suprir suas defi ciências econômicas, em virtude da desigualdade social típica das soci edades capitalistas, conforme ressalta CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Criminologia Radical, p. 12.

5 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Criminologia Radical, p. 11-13. 6 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Criminologia Radical, p. 15. 7 As Escolas Criminológicas Positivistas, que surgiram no final dos séculos XVIII e início do século

XIX no continente europeu, eram embasadas na filosofia e psicologia naturalistas, tendo como objeto de estudo o homem delinqüente, ser anormal e patológico, que em virtude de caract erísticas biológicas e patológicas, era um sujeito criminoso. Note-se que esta escola desloca o centro de seu estudo do crime para dirigí-lo ao sujeito que o comete, considerando o delito como uma conduta humana inserida num complexo

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“burguês” de crime, vale dizer, revela que tais definições não são outra coisa além de

condutas contrárias às relações sociais e estruturais da sociedade capitalista.8 Ainda,

promove uma mudança de foco do autor e das causas do desvio, no que se concentram os

positivistas, para as condições estruturais e sociais do desvio, ou seja, para o processo de

construção da realidade do desvio (criminalização primária) e da atribuição do status de

criminoso ao sujeito estigmatizado (criminalização secundária). Modifica, portanto, o foco

de análise do autor do desvio para o sistema penal, os processos de criminalização e o

sistema de reação ao desvio.9

Deste modo, a Criminologia Radical, ao revelar que o crime se trata de um

fenômeno ligado à estrutura social em que se forma, sustenta que são criminosos os

sistemas sociais que produzem o crime, ou seja, que é a própria estrutura social que

condiciona a existência de comportamentos criminosos, na medida em que necessita

manter um controle sobre os comportamentos inoportunos e inconvenientes para a

manutenção do status quo vigente no meio social.

3. OS PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÃO DESVENDADOS PELA CRIMINOLOGIA CRÍTICA

A Criminologia Crítica, conforme anteriormente mencionado, partindo do

paradigma criado pelo “labelling approach”, desloca o enfoque do autor e das causas da

criminalidade, típico das teorias criminológicas positivistas, dando ênfase aos chamados

“processos de criminalização”, ou seja, aos mecanismos de definição dos comportamentos

criminosos (criminalização primária) e da atribuição do status de criminoso a certos

indivíduos selecionados pela justiça criminal (criminalização secundária), indo além, pois

acaba por destacar as condições estruturais e funcionais da criminalidade, evidenciando as

relações estruturais de classes que permeiam os processos de criminalização.10

que envolve as caract erísticas sociais, biológicas e psicológicas do sujeito. Estas escolas construíram suas teorizações, portanto, baseados no direito penal do autor. Para os teóricos desta escola penal, os indivíduos criminosos não eram dotados de livre arbítrio, sendo suas condutas resultantes de um estrito determinismo, seja biológico, hereditário ou soci al. Nestas escolas, havia o enfoque das causas e fatores determinantes da criminalidade (paradigma etiológico), por meio da observação do delinqüente nas instituições segregatóri as, essencialmente no cárcere panóptico, e da utilização de meios para combater tais fatores criminógenos, no sentido de corrigir e curar o delinqüente de sua patologia, por meio do uso de mecanismos sancionatórios que interviessem diretamente sobre o suj eito criminoso. Neste sentido ver BARATTA, Alessandro, Criminologia crítica e crítica do direito penal. Introdução à sociologia do Direito Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 32.

8 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Criminologia Radical, p. 49-53. 9 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Anatomia de uma Criminologia Crítica. In: BARATTA,

Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Introdução à sociologia do Direito Penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 14.

10 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal, p. 160 e ss.

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Dessa forma, desmistifica a própria criminalidade, afirmando não ser ela uma

realidade ontológica pré-constituída, mas sim um fenômeno resultante do processo de

criminalização que ocorre em dois momentos, a saber: a criminalização primária, com a

definição e repressão dos comportamentos que são considerados criminosos e a

criminalização secundária, com a seleção dos indivíduos a quem será atribuído o status de

criminoso. Esta visão criminológica crítica destaca, ainda, que em ambos os momentos do

processo de criminalização, tanto na definição e repressão das condutas criminosas quanto

na atribuição do status de criminoso, observa-se a influência do sistema sócio-econômico

na distribuição desigual da criminalidade entre os indivíduos.

De tal modo, contraria a visão tradicional positivista de que o crime é uma

realidade preexistente e que integra uma classe homogênea de pessoas, para chegar à

conclusão de que o desvio é algo produzido pela própria sociedade, ou seja, que a

sociedade produz o crime ao criar regras (criminalização primária) e aplicá-las a pessoas

de forma seletiva (criminalização secundária).11

Importante destacar a lição de BISSOLI FILHO neste sentido:

O desvio não é uma qualidade que reside na conduta em si mesma, mas resulta da interação entre a pessoa que pratica um ato e aqueles que respondem ao mesmo. É sempre resultado de uma atividade “empresarial”, pois nenhum ato pode ser considerado como “desviado” e nenhuma pessoa pode ser “etiquetada” e tratada como tal por ter realizado o ato, sem que antes alguém tenha feito a regra que o definiu como desviado uma vez que regras não se fazem automaticamente. O desvio é produto, também, da atividade empresarial em sentido particular e restrito, pois, a partir da sua existência, a regra deve ser aplicada a indivíduos específicos, para que a classe abstrata de “estranhos” possa ser identificada e condenada e os transgressores assinalados como “diferentes” ou estigmatizados por sua desconformidade. Esse processo de interação realiza-se em momentos distintos, ou seja, a “criminalização primária”, que compreende a definição das condutas desviadas e a “criminalização secundária” que compreende a imputação da etiqueta sobre os autores da conduta desviada, através de um processo de estigmatização, fazendo com que o desviado, assim considerado, passe a manipular a sua identidade, atendendo as expectativas da etiqueta que lhe foi imputada.12

A partir de tais pressupostos, constata-se que o direito penal não se trata de um

sistema estático de normas, mas se revela como um sistema dinâmico que desempenha

três funções essenciais: de criar normas (criminalização primária), de aplicar normas

(criminalização secundária) e de aplicar sanções (estigmatização e marginalização).13

11 BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da Criminalização. Dos antecedentes à reincidência

criminal. Florianópolis: Obra Jurídica, 1998, p. 171. 12 BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da Criminalização, p. 173. 13 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal, p. 161.

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E, assim, a Criminologia Crítica nega o mito de que o direito penal e a justiça

criminal seriam aplicáveis a todos os cidadãos igualmente, pois tais sistemas não

defendem os interesses de todos os cidadãos, mas sim os interesses de um grupo social

determinado, além do fato de não ser aplicado de modo igual a todos, mas sim aplicado a

certos indivíduos pré-selecionados, de acordo com a posição social que ocupam,

independente da gravidade ou do dano social produzido por suas condutas. Nesta seara,

ressalta CIRINO DOS SANTOS que o direito penal se mostra:

(...) como um sistema dinâmico desigual em todos os níveis de suas funções: a) ao nível da definição de crimes constitui proteção seletiva de bens jurídicos representativos das necessidades e interesses das classes hegemônicas (...); b) ao nível da aplicação de penas constitui estigmatização seletiva de indivíduos excluídos das relações de produção e de poder político da formação social; c) ao nível da execução penal constitui repressão seletiva de marginalizados sociais (...).14

A desigualdade do direito penal se revela, portanto, nas chances de certos

comportamentos serem definidos e reprimidos como criminosos e nas chances de ser

atribuído a certos indivíduos o status de criminoso15. Tais mecanismos seletivos do direito

penal são pautados pelos critérios da formação econômica e política da sociedade, pelas

condições estruturais dela, que no momento atual se trata da sociedade capitalista, na qual

impera uma grande desigualdade social e o domínio de uma classe sobre as demais.

Dessa forma, a grande descoberta da Criminologia Crítica foi de que o desvio

não se trata de uma realidade ontológica, de algo preexistente, mas sim é resultante dos

chamados processos de criminalização, que a seguir serão melhores explicitados.

3.1. O PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO PRIMÁRIO

O processo de criminalização primário é o mecanismo pelo qual ocorre a

formação das normas jurídicas que atribuem a certos comportamentos a qualidade de

criminosos, de forma que tal processo tem início por meio do estabelecimento dos valores

que devem ser protegidos por tais normas. Assim, o crime é apenas um ato qualificado

como tal, pelas normas penais que exprimem os valores daqueles que detêm o poder de

criar normas.

Assim nos ensina BISSOLI FILHO:

14 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal – Parte Geral. Curitiba: ICPC: Lúmen Juris,

2006, p. 485. 15 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal, p. 164.

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A criação ou definição das normas (criminalização primária) tem começo naquelas vagas e generalizadas manifestações de preferências, que são chamadas pelos cientistas sociais de “valores”. Dado que os valores só podem ministrar um guia geral para a ação e não são úteis para decidir sobre cursos de ação em situações concretas, as pessoas desenvolvem regras específicas vinculadas mais estreitamente com as realidades da vida cotidiana. Os valores prevêem as premissas principais das quais se deduzem as regras específicas. As pessoas modelam os valores sob a forma dessas regras em situações problemáticas, advertindo que alguma área de suas existências encontra-se em situação penosa ou difícil e requer uma providência. Depois de considerar os distintos valores aceitáveis, selecionam um ou mais relacionados com suas dificuldades e deles deduzem uma regra específica. A regra, construída de modo coerente com o valor, expõe, com relativa precisão, as ações que se aprovam e que se proíbem, as situações às quais se aplica e as sanções ligadas a sua transgressão.16

Evidentemente que as normas que qualificam um ato como desviante irão

expressar os valores daqueles que detêm o poder político e econômico numa dada

sociedade, que são as pessoas que possuem o poder de afirmar quais condutas são nocivas

aos seus interesses e quais condutas não o são, ou seja, quais podem e devem ser toleradas

no meio social.

Conforme muito bem assinala CIRINO DOS SANTOS:

Crime é o que a lei, ou a justiça criminal, determina como crime, excluindo comportamentos não definidos legalmente como crimes, por mais danosos que sejam (o imperialismo, a exploração do trabalho (...). 17

Por tais motivos, se pode afirmar que ocorre uma seleção dos bens jurídicos

que serão tutelados pela norma penal, de acordo com os interesses daqueles que possuem

o poder de definição das condutas qualificadas como desviantes. Peculiar o ensinamento

de BISSOLI FILHO a respeito da seletividade do processo de criminalização primário:

Na seletividade do processo de criminalização primária a escolha dos bens jurídicos a serem penalmente tutelados e das condutas socialmente danosas, uma vez vencedores os que detêm mais poder (os fortes), obviamente que recairá sobre os interesses destes. As condutas mais afeitas aos fracos, por certo, serão mais consideradas e as penais mais agravadas, enquanto aquelas das classes mais altas serão relevadas.18

De tal forma, conforme muito bem salienta BARATTA19, em relação ao que se

denomina de processo de criminalização primário, ou seja, à definição dos

16 BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da Criminalização, p. 174-175. 17 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Criminologia Radical, p. 11. 18 BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da Criminalização, p. 181. 19 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal, p. 165 e ss.

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comportamentos criminosos, o direito penal – conjunto de regras que expressam valores -

se mostra seletivo, na medida em que tende a tutelar os interesses das classes dominantes,

por meio da concentração do processo de criminalização nos desvios típicos das classes

inferiores (crimes patrimoniais) e da imunização dos comportamentos danosos típicos das

classes que detém o poder, funcionais ao sistema (crimes econômicos).

3.2. O PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIO

O processo de criminalização secundário, por sua vez, se trata do mecanismo

pelo qual o sistema penal, através de seus operadores (policiais, promotores de justiça e

juízes), atribui o status de desviante a certos indivíduos que, dentre todos aqueles que

cometem delitos, são os estigmatizados, estereotipados e considerados “inimigos” pelo

sistema.

Com efeito, a Criminologia Crítica, a partir do paradigma criado pelo

“labelling approach”, constatou que a prática de comportamentos considerados

criminosos ocorre não por uma minoria, mas sim pela maioria dos membros da nossa

sociedade, de forma que nos demonstrou que existe a chamada “cifra negra” da

criminalidade, ou seja, comportamentos desviantes que foram praticados, mas que não

foram detectados pelo sistema de justiça criminal.

A existência da chamada “cifra negra” da criminalidade, evidenciada pela

Criminologia Crítica, nos demonstra, conforme muito bem assinala CIRINO DOS

SANTOS

(...) a diferença entre a “aparência (conhecimento oficial) e a realidade (volume total) da criminalidade convencional, constituída por fatos criminosos não identificados, não denunciados ou não investigados (por desinteresse da polícia, nos crimes sem vítima, ou por interesse da polícia, sob pressão do poder econômico e político) (...).20

Assim, o processo de criminalização secundário é o processo por meio do qual

há a escolha seletiva dos indivíduos que praticaram comportamentos desviantes para que

somente a estes seja atribuído o status de criminoso, dentre inúmeros outros

comportamentos desviantes que também existiram no meio social e que ficaram na “cifra

negra”. Tal critério de seleção leva em consideração o estereótipo do sujeito, ou seja, a

classe social a que pertence, o crime que cometeu, a profissão, por vezes a sua cor, o fato

de ser ou não estrangeiro, isto é, os fatores que nos demonstram que o sujeito é

marginalizado ou, de alguma forma, discriminado no meio social.

20 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Criminologia Radical, p. 13.

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Deste modo, no que pertine ao processo de criminalização secundário, o

caráter desigual do direito penal se destaca ainda mais, enfatizando sua natureza seletiva,

eis que realiza a distribuição da criminalidade baseado pela posição social do sujeito a

quem será atribuído o status de criminoso.

Tal processo de atribuição do status de criminoso se concentra nos níveis mais

baixos da escala social, nos estratos sociais nos quais os órgãos oficiais, orientados por

preconceitos e estereótipos, acham normal encontrá-la, dirigindo a procura da

criminalidade aos grupos marginalizados, aos excluídos do mercado de trabalho, àqueles

sujeitos com defeitos de socialização familiar, escolar, entre outros. Ademais, observa-se

que o processo da criminalização secundário desfavorece tais setores sociais quando da

análise, pelo juiz, dos elementos subjetivos do delito (dolo e culpa), da personalidade do

agente, dos elementos relativos à ocupação social e familiar21, fatores estes que conduzem

os operadores jurídicos a esperarem um comportamento em conformidade com a lei das

classes sociais mais abastadas e em desconformidade com a ordem jurídica das classes

inferiores e vulneráveis.22

O processo de seleção dos indivíduos a quem será atribuído o status de

criminoso funciona por meio do uso das “meta-regras” ou basic rules. Estas “meta-

regras” são “regras sobre a interpretação e aplicação das regras gerais”, ou seja, são

“mecanismos que agem objetivamente na mente do intérprete”, funcionando como pré-

conceitos que realizam um “processo de filtragem” e seleção no momento de atribuição

do status de criminoso aos sujeitos criminalizados. Tais basic rules são “juízos

atributivos” que pautam a atividade dos operadores jurídicos - os policiais os promotores,

os juízes – selecionando os indivíduos que serão criminalizados de acordo,

essencialmente, com a classe social na qual estes estão inseridos. Isto não significa que o

fato de pertencer às classes sociais mais vulneráveis levará o sujeito a delinqüir, mas sim

que o fato de se pertencer a tal classe gera uma maior probabilidade deste sujeito ser

selecionado pelo sistema criminal, pela atividade desenvolvida pelos operadores jurídicos

pautada pelas metas-regras. Assim, percebe-se que o poder de se atribuir o status de

criminoso a alguém se encontra intrinsecamente ligado à estrutura desigual da sociedade

contemporânea, que se mostra divida em classes, conforme ressalta BARATTA.23

21 Em relação a tais aspectos é muito comum na justiça criminal brasileira que os Juízes, ao

avaliarem as circunstâncias judiciais no momento da aplicação da pena, dispostas no art. 59 do Código Penal, se orient arem por critérios referentes à situação soci al do acusado, revel ando-se, como critérios negativos o fato de ser o acusado desempregado, não possuir residência fixa, já ter sofrido uma condenação criminal anteriormente etc, o que nos demonstra que, de fato, a posi ção social ocupada pelo acusado influi no pensamento do julgador, o qual atua, desta forma, pautado pelas meta-regras.

22 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal, p. 165, 176-177. 23 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal, p.105-112.

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A respeito da seletividade do processo de criminalização secundário, com

propriedade, também salienta BISSOLI FILHO:

A seletividade do processo de criminalização secundária também prejudica os mais fracos. Isto porque não haveria como se criminalizar a todos os autores de condutas, recaindo a seleção nas pessoas que já são estereotipadas ou estigmatizadas como “más”, as quais, via de regra, estão entre as classes menos favorecidas. Esta seleção secundária é a que é realizada pelos órgãos policiais em primeira mão (Polícia Militar, Polícia Civil, Polícia Federal, demais organizações policiais ou repartições públicas que exercem o poder de polícia), pelo Ministério Público (no momento da deflagração da ação penal ou arquivamento do inquérito policial ou outras peças que informam a ocorrência de condutas criminais) e pelo Poder Judiciário (ao proferir sentenças condenatórias ou absolutórias). Esta seleção também continua no momento da execução da pena, uma vez que, não obstante as condenações, nem todas são executadas, ficando a mercê dos critérios seletivos da Polícia a captura dos diversos condenados. Também o sistema penitenciário seleciona os condenados que terão direito aos benefícios penitenciários, conforme os critérios que lhe são próprios.24

Assim, explica-se o porquê da maior parte da população carcerária ser

composta por sujeitos pobres, já marginalizados e que cometem, essencialmente, crimes

patrimoniais, pois, como acima foi mencionado, a ação do sistema criminal, tanto em

nível da criminalização primária quanto da criminalização secundária, se dirige

principalmente à repressão de comportamentos e pessoas pertencentes a estes grupos,

comportamentos que, segundo ressalta CIRINO DOS SANTOS25, nada mais são do que

reações individuais de sujeitos em situações sociais adversas, em busca de maiores

recursos materiais para suprir suas deficiências econômicas, em virtude da desigualdade

social típica das sociedades capitalistas.

E, com isso, também se demonstra o caráter desigual e seletivo do direito

penal e do sistema de justiça criminal, que dirige sua ação com maior vigor contra as

classes já marginalizadas, promovendo a manutenção e reprodução da desigualdade e

marginalização existentes no meio social.

A seletividade do sistema penal se revela sob duas perspectivas, segundo os

ensinamentos de BISSOLI FILHO26:

a) “qualitativamente”, na medida em que reprime com predominância as

condutas mais comuns às classes baixas, imunizando ou simplesmente tolerando as

condutas danosas das classes mais altas. Assim, criam estereótipos de desviantes e

24 BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da Criminalização, p. 181. 25 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Criminologia Radical, p. 12. 26 BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da Criminalização, p. 182-183.

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criminosos, produzindo uma estigmatização social dos denominados “inimigos” do

sistema;

b) “quantativamente”, vez que o sistema penal se revela incapaz de detectar

todas as violações às normas penais que ocorrem, de forma que dá privilégio, assim, aos

desvios praticados pelos indivíduos estereotipados, estigmatizados pelo sistema, taxados

de “inimigos” do direito penal.

Nos processos de criminalização primário e secundário, observa-se uma

enorme influência dos meios de comunicação, o que será melhor demonstrado nos

próximos capítulos deste trabalho.

4. A MÍDIA COMO INSTRUMENTO CRIMINALIZADOR 4.1. A MÍDIA E A FORMAÇÃO DO “CONSENSO”

A função da mídia na sociedade hodierna nos leva a indagar em que tipo de

sociedade vivemos: naquela em que todo o público possui condições de participar na

condução dos meio de informação, os quais são abertos e livres, que seria o prevalecente

numa verdadeira sociedade democrática, ou naquela em que ao povo é vedado o acesso

aos meio de informação, os quais devem ser mantidos sob o mais severo controle e

fiscalização pelas elites do poder.

Infelizmente, este último modelo de sociedade, falsamente democrática, é o

que impera na maior parte do mundo, na qual a propaganda possui um extraordinário

efeito, sendo dirigida e apoiada pelas classes dominantes, para fazer valer os seus

interesses.27

Com efeito, a imprensa é um instrumento mediatizado e seletivo do poder

político e econômico, tendo em vista que se concentra na mão de muitos poucos e

depende, mediata ou imediatamente, dos grandes centros internacionais de poder, em

razão dos recursos tecnológicos, assim como das agencias internacionais de notícias,

conforme salienta LOLA ANYAR DE CASTRO.28

Dessa forma, percebe-se que os meios de comunicação são utilizados como

instrumento de opressão e controle em sociedades que se denominam como democráticas.

Sem sombra de dúvidas, “os meios de comunicação demonstram ser cruciais na

27 CHOMSKY, Noam. Controle da Mídia – os espetaculares feitos da propaganda. (Trad.)

Antônio Augusto Fontes. Rio de Janeiro: Graphia, 2003, p. 9-13. 28 CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da Libertação. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2005, p.

210-221.

Page 12: A influência da Mídia nos Processos de Criminalização

12

construção das ideologias. E, em conseqüência, das atitudes e valores”, conforme muito

bem salienta LOLA ANYAR DE CASTRO.29

Nas sábias palavras de CHOMSKY “a

propaganda está para a democracia assim como o cassetete está para o Estado

totalitário”.30

De tal modo, portanto, a mídia se revela necessária e sagaz para as

sociedades capitalistas “ditas” democráticas, eis que se mostra por demais útil na defesa de

seus dogmas.

Neste sentido, peculiar a lição de LOLA ANYAR DE CASTRO:

Não apenas os meios impõem, decidem o que os receptores devem conhecer, independentemente, inclusive, do que estes queiram efetivamente conhecer, mas orientam seletivamente a atenção do público para um determinado número de notícias num mesmo dia.31

De fato, os meios de informação são manipulados pelas classes dirigentes e

economicamente mais poderosas para “produzir o consenso”, vale dizer, para se obter a

aquiescência de toda a população em relação a certos assuntos que sintetizam os interesses

desta pequena elite, fazendo com que tais interesses sejam vistos como “interesses

comuns” de toda a sociedade. Neste sentido, importante destacar a lição de BOURDIEU

para o qual:

(...) assim como no campo político e o campo econômico, e muito mais que o campo científico, artístico ou literário ou mesmo jurídico, o campo jornalístico está permanentemente à prova dos veredictos do mercado (...).32

Desta forma, a mídia objetiva a formação de um “consenso”, haja vista que

busca que todos os seus receptores assimilem acriticamente os postulados difundidos sob a

denominação de “informação”, fazendo com que tais indivíduos pensem serem postulados

universais, mantendo-os alienados demais para que percebam como são doutrinados pelo

discurso midiático, de acordo com as convicções que sejam convenientes aos interesses

das elites econômicas do mercado. Assim,

(...) os meios criam uma sensação de universalidade, de um mundo sem lutas e expropriam do homem sua capacidade de intervir nos processos sociais, interpretá-los. (...) O meio despersonaliza a ação do emissor, dos conteúdos ideológicos da mensagem, e apresenta em seu lugar um pseudo-ator, um ator imaginário chamado ‘opinião pública’ que lhe

29 CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da Libertação, p. 201. 30 CHOMSKY, Noam. Controle da Mídia – os espetaculares feitos da propaganda, p. 19. 31 CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da Libertação, p. 207, grifo nosso. 32 BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. A influência do jornalismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Editor, 1997, p. 106.

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13

permite contrabandear a opinião de classe do emissor e oferecê-la como opinião das grandes maiorias.33

Na verdade, as elites buscam criar certas “ilusões necessárias” as quais se

mostram eficazes no intuito de manter a população assustada, ou melhor, o “rebanho

assustado”, segundo a terminologia utilizada por CHOMSKY, controlado e fiel aos

dogmas que lhes interessam, para a manutenção do status quo.34

De acordo com a doutrina de PASCALI35, não há propriamente uma

interação/comunicação entre o emissor e o receptador do discurso midiático. Pelo

contrário. O receptor apenas recepciona acriticamente e alienadamente o informado pela

mídia. Neste ínterim, assevera LOLA ANYAR DE CASTRO que

(...) a concentração do poder comunicacional origina a necessidade de se utilizar mensagens passíveis de serem compreendidas por todos, o que conduz à massificação do receptor. Esta seria, na realidade, a essência da ordem social: nivela o destinatário da ordem com a plaina da obediência. Os chamados grandes informadores trabalham sobre a base da entrega dos cérebros. Portanto, não se trata propriamente de “comunicação”, porque não há resposta. Trata-se de um trabalho de engenharia social no qual a ordem permanece oculta e a obediência tem raízes subliminares.36

Assim, produzem uma “uniformidade” da informação, sempre de acordo com

os interesses do mercado, informação esta que é, quase que unanimemente, repassada ao

público por todos os meios de comunicação de maneira igual e distorcida, de forma a

produzir o tão almejado “consenso”. Neste diapasão, observa BOURDIEU que:

(...) esse mecanismo, muito poderoso, tem também por efeito impor insidiosamente ao conjunto do campo as “escolhas” dos instrumentos de difusão mais direta e completamente sujeitos aos veredictos do mercado, como a televisão, o que contribui para orientar toda a produção no sentido da conservação dos valores estabelecidos (...).37

Portanto, percebe-se que o objetivo e o compromisso principal da mídia é o

controle da mente da população, a qual deve se encontrar diante dos aparelhos de

comunicação submetendo suas cabeças às marteladas que dali provém a fim de que

inculquem os valores ali pregados como sendo seus.38

33 VILLASMIL, Xiomira. Difusión masiva y hegemonía ideológica.Valencia, Venezuela: Vadell

Hermanos, 1980, p. 55. Apud CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da Libertação, p. 200. 34 CHOMSKY, Noam. Controle da Mídia – os espetaculares feitos da propaganda, p. 14-19. 35 PASCALI, Antonio. Comunicación y cultura de masas. Caracas: Monte Ávila, 1977, p.110.

Apud. CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da Libertação, p. 201. 36 CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da Libertação, p. 201. 37 BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. A influência do jornalismo, p. 108. 38 CHOMSKY, Noam. Controle da Mídia – os espetaculares feitos da propaganda, p. 20-26.

Page 14: A influência da Mídia nos Processos de Criminalização

14

Neste ínterim, de extrema importância se revelam as notícias sensacionalistas,

que convertem, dramaticamente, certos fatos em tragédias e mitos, na medida em que

tocam os sentimentos e atingem a emoção do receptor. Como conseqüência disto, muito

comum é a utilização, na dramatização de certos fatos, da dicotomia entre o que é o bom e

o mal, entre aquele que é o amigo e o inimigo, criando e potencializando um sentimento

de insegurança no meio social.39

Deste modo, outro compromisso dos meios de informação é o amedrontamento

do receptor, a propagação do terror e o atiçamento na luta contra o “inimigo comum”,

passando a mensagem de que, quando reprimimos o inimigo estamos, na verdade, nos

protegendo e defendendo nossos interesses que são os interesses comuns de toda a

sociedade civilizada.40 Todavia, poucos percebem que esta imagem transmitida pela mídia

é fantasiosa e construída, guardando nenhuma similaridade com o que, de fato, existiu ou

ocorreu.41

Assim, é forçoso admitir, na esteira de pensamento de LOLA ANYAR DE

CASTRO42, que a mídia realiza a construção social de uma suposta realidade, vale dizer,

nos informa a respeito de fatos de forma dramatizada, convertendo acontecimentos

simples em tragédias e mitos, de forma a criar um sentimento de insegurança na

população. Logo, cria uma realidade, dando-lhe aparência de verdadeira, conferindo-lhe

“efeito real”. Peculiar o ensinamento de BOURDIEU neste tocante:

Os perigos políticos inerentes ao uso ordinário da televisão devem-se ao fato de que a imagem tem a particularidade de poder produzir o que os críticos literários chamam de efeito do real, ela pode fazer ver e fazer crer no que faz ver. Esse poder de evocação tem efeitos de mobilização. Ela pode fazer existir idéias ou representações, mas também grupos.43

E, neste aspecto, a mídia se revela como um instrumento criminalizador, na

medida em que cria uma realidade fantasiosa de insegurança, passando, então, a difundir

crenças, tais como o “aumento das leis penais resolverá o problema da criminalidade”,

“punições mais severas solucionarão o problema da violência”, dentre outras, as quais são

inculcadas nos telespectadores como sendo “interesses comuns” de toda a sociedade. Tais

crenças são propagadas por meio do seu discurso midiático de que a pena e a

criminalização seriam os melhores mecanismos para a solução dos conflitos que existem

39 CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da Libertação, p. 208-209. 40 CHOMSKY, Noam. Controle da Mídia – os espetaculares feitos da propaganda, p. 27, 31, 38

e 39. 41 CHOMSKY, Noam. Controle da Mídia – os espetaculares feitos da propaganda, p. 31 e 33. 42 CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da Libertação, p. 205 e 207. 43 BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão, p. 28.

Page 15: A influência da Mídia nos Processos de Criminalização

15

no meio social, conflitos estes que, entretanto, são resultantes da própria estrutura social

existente.

Dessa forma, a mídia se revela como sendo um instrumento manipulador,

servindo ao interesses das elites, tendo em vista que dissemina discursos que somente

servem para a reprodução do sistema, na medida em que, ao invés de incentivar práticas

para solucionar os problemas sociais, apenas dissemina discursos fomentadores da

exclusão. Neste tocante, vem a calhar a conclusão de LOLA ANYAR DE CASTRO sobre

os meios de comunicação:

(...) sabemos que estão associados ao poder, que produzem um sistema cultural e um sistema moral e que isso tem efeitos claros na gestão da vida coletiva. Sabemos que orientam, limitam, uniformizam. Que são “de sentido único” porque impedem a resposta. São, portanto, e isso talvez seja o mais importante, um eficaz instrumento de manipulação, de engano, de restrição à apresentação de realidades múltiplas e de opções possíveis. Reduzem a liberdade e a criatividade, da mesma forma que a participação, e portanto, a representatividade social e política, o pluralismo e a democracia. Ao menos da maneira pela qual são utilizados hoje.44

4.2. A RELAÇÃO ENTRE A MÍDIA, OS PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÃO E O CAPITALISMO

Assim, percebe-se que a mídia, na medida em que se intitula como “guardiã

dos valores coletivos”, na expressão utilizada por BOURDIEU45, se vincula enormemente

com os processos de criminalização, influenciando na criação de leis penais, agravamento

das sanções e propagação de discursos de “lei e ordem”, assim como se revela um

instrumento característico da sociedade capitalista, pois deixou de ser mera agência

informativa e passou a assumir a função de executivação e legitimação do sistema penal,

por meio da promoção de discursos que legitimam a criminalização dos conflitos e tensões

sociais.46

A imprensa legitima o poder punitivo exercido pela classe burguesa, na medida

em que, ao assumir o discurso de “defesa social”47, mostra-se completamente fascinada

pelos dogmas contidos nos discursos criminológicos positivistas, de que existem causas e

fatores que geram a criminalidade os quais devem ser combatidos e, ainda, que a pena é

um mecanismo necessário para prevenir e defender a ordem social da conduta criminosa.

44 CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da Libertação, p. 236. 45 BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. A influência do jornalismo, p. 116. 46 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. In: Discursos Sediosos. Crime,

Direito e Sociedade. Ano 7, nº 12. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 271. 47 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, p. 271-272.

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Portanto, o vínculo entre a mídia, o sistema penal que se revela pelos

processos de criminalização e o capitalismo deve ser buscado, seguindo a esteira de

pensando de RUSCHE e KIRCHHEIMER48 de que “todo sistema de produção tende a

descobrir punições que correspondem às suas relações de produção”, nas condições

estruturais desta dada sociedade (no caso a sociedade capitalista neoliberal), que necessita

de um poder punitivo, segundo ressalta NILO BATISTA, “onipresente e capilarizado, que

controle os contingentes humanos que ele mesmo marginaliza”.49

O pacto da imprensa, órgão informativo econômico, com a sociedade

capitalista, é a “chave” de compreensão da relação mídia e sistema penal. Significa, antes

de tudo, o incentivo a crenças tidas como convenientes e oportunas (do discurso

criminológico midiático) e a omissão, descaso, silêncio e ocultação das informações tidas

como inconvenientes ou que desmintam as referidas crenças (discurso criminológico

acadêmico crítico).50

Conforme salienta MORETZSOHN, a vinculação entre mídia e sistema penal

encontra-se disfarçada através da função exercida por aquela de “quarto poder”, tendo em

vista que busca alertar o Estado, omisso em tempos de neoliberalismo, para os problemas

em relação aos quais este se mantém inerte, de forma que o mobiliza e o pressiona a dar

respostas emergenciais a problemas que, ao invés de serem criminais como ela aclama, são

estruturais na nossa sociedade. Nas suas sábias palavras:

(...) esse vínculo entre mídia e sistema penal é convenientemente disfarçado atrás da imagem de “quarto poder”, a imprensa abrindo os olhos do Estado para as falcatruas debaixo do seu nariz, como afirmou O

Globo em editorial em 27 de novembro de 2001. Nesse processo de “abrir os olhos”, a imprensa mobiliza o sistema penal, instado a dar respostas ao descalabro noticiado.51

VERA MALAGUTI BATISTA também destaca tal vinculação entre a mídia e

o capitalismo tardio (neoliberalismo), ressaltando que aquela promove discursos que

visam a criminalização da miséria e dos excluídos do mercado de trabalho, para atingir os

objetivos almejados pelo capitalismo, dentre eles a marginalização e exclusão social, nos

seguintes termos:

Na periferia do neoliberalismo, no tardio capitalismo dos trópicos, o capital soberano (a única soberania possível) descarta a multidão, esta

48 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. (trad.) Gizlene Neder.

Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 1999.p. 18. 49 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, p. 272. 50 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, p. 273. 51 MORETZSOHN, Sylvia. O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã”, p. 294.

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17

velha categoria da qual o positivismo tratava de dar conta para o controle social do capitalismo industrial. Aqui, do lado selvagem, à turba de trabalhadores indesejáveis se juntam os sobreviventes da tragédia indígena, do extermínio escravista, dos náufragos do arraial de Canudos,os eternos sem-terra. São eles que vão povoar nossos Bangus, nossas Febens, agora num gigantesco processo de criminalização e encarceramento, como nunca houve na historia da humanidade. Os discursos que matam, hoje, começam na mídia, principal protagonista da questão criminal: é ela quem dispõe da maior concentração de poder penal: é a matéria do Jornal Nacional de hoje que pautará amanhã a ação da polícia, do Ministério Público e da máquina mortífera em geral. (...) O incomensurável poder político da mídia provocou um interessante fenômeno acadêmico: categorias que migram de um senso comum imbecilizante e imbecilizado para as teses acadêmicas e para os ofícios dos especialistas nos sistemas penais superlotados.52

Neste ínterim, VERA MALAGUTI BATISTA sabiamente conclui que a mídia

estimula o medo e a propagação da criminalização dos excluídos pelo sistema capitalista,

haja vista que tal se revela necessário para gerir a pobreza produzida por este sistema

econômico. Nas suas palavras:

Nestes dias difíceis, nos quais parece que o medo sempre vence a esperança, um certo discurso sobre o crime precisa ser repetido ad infinitum e ad nauseam : ele é fundamental para a gestão dos pobres, daqueles que não vão fazer parte do footing no shopping, da cidadania do consumo.53

4.3. AS CRENÇAS CRIMINALIZADORAS E PUNITIVAS DIFUNDIDAS PELO DISCURSO MIDIÁTICO

Uma das crenças do discurso midiático, conforme assinala NILO BATISTA54, se

revela na “idéia de pena”: o discurso criminológico midiático acredita ser a pena um

mecanismo sagrado de solução de conflitos, transformando em bem aceito e

imediatamente incorporado ao conteúdo informativo dos meios de comunicação qualquer

discurso legitimante da sanção penal ou do seu agravamento.

Nesta seara, salienta BARATTA que:

É a nível da opinião pública que se desenvolvem aqueles processos de projeção da culpa e do mal, e que se realizam as funções simbólicas da pena (...) a pena atua como elemento de integração do corpo social, produzindo sentimentos de unidade em todos aqueles que são somente

52 MALAGUTI BATISTA, Vera. A nomeação do Mal. In: Criminologia e Subjetividade. Rio de

Janeiro: Lúmen Juris, 2005 , p. 44. 53 MALAGUTI BATISTA, Vera. A nomeação do Mal, p. 42. 54 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, p. 273.

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18

seus espectadores e, desse modo, realiza uma consolidação das relações de poder existentes. 55

A crença na pena como instrumento apto a solucionar os conflitos sociais produz

duas conseqüências, a saber: a) recordam certos tabus, segundo os quais se o castigo

sobreveio é porque houve uma violação do estabelecido na ordem social; b) conduz à

conclusão de que se o delito ocorreu, o infrator deve ser responsabilizado penalmente,

realizando uma estreita articulação entre o delito-notícia que reclama a pena-notícia,

conforme destaca NILO BATISTA.56 Em vista de tal situação, as garantias constitucionais

do acusado, tais como o devido processo legal, a plenitude da defesa e a presunção da

inocência são mostradas pelos meios de comunicação como um inconveniente, são vistas

com indiferença e como algo que pode e deve ser solapado, em busca pelo fim da

impunidade.

Com efeito, conforme muito bem assinala MORETZSOHN, muitas vezes a

imprensa assume uma função que ultrapassa, em muito, seu singelo e “inocente” papel de

informar, realizando a função do Estado que se mostra omisso e mais reduzido nos tempos

do neoliberalismo, no afã de realizar a tão aclamada “justiça”. Assim conclui que:

(...) é notório que a imprensa vem procurando exercer funções que ultrapassam de longe o seu dever fundamental, assumindo frequentemente tarefas que caberiam à polícia ou à justiça. E essa invasão de espaços pode ser considerada justamente a partir de uma definição cara à imprensa: a qualificação de “quarto poder”, que data do início do século XIX e lhe confere o status de guardiã da sociedade (contra os abusos do Estado), representante do público, voz dos que não têm voz. É certamente sustentada por essa visão mistificadora – porque encobridora dos interesses da empresa jornalística, desde sua constituição, há dois séculos, e especialmente agora na era das grandes corporações – que a imprensa se arroga o direito de penetrar em outras áreas. (...). Mas uma análise mais ampliada dessa ocupação de espaços não pode ignorar que se trata de uma estratégia empresarial muito bem conduzida no contexto do neoliberalismo: a redução do tamanho do Estado é “compensada” pela “responsabilidade social” de “empresas cidadãs” de acordo com a formulação de uma “nova ética de co-responsabilidade” (entre Estado, empresas e sociedade civil) que mascara conflitos e valoriza indiscriminadamente iniciativas voltadas para “fazer o bem”.57

Em vista de tal situação, por inúmeras vezes, os meios de comunicação, mormente

os de conteúdo jornalístico, assumem uma função investigatória, mediante a qual se

realiza uma reconstrução dramatizada e fictícia dos fatos, propiciando ao público um

55 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal, p. 204. 56 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, p. 273. 57 MORETZSOHN, Sylvia. O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã”, p. 293.

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julgamento próprio do caso, sem qualquer direito de defesa ao acusado. Trata-se do

chamado por NILO BATISTA de “trial by media”, não se tratando de mera influência a

um tribunal, mas sim da realização direta e privada do julgamento.58 Afinal, conforme

ironicamente, porém verdadeiramente salienta MORETZSOHN, “se o Estado não

funciona, nada mais lógico do que assumir o seu lugar”.59 Neste sentido, também

importante a lição de LOLA ANYAR DE CASTRO:

A força pública começa assim a substituir a atividade do Poder Judiciário, de modo que, sem processo legal e sem condenação, “antecipa-se” à pena. (...). A publicidade oficial insiste no slogan “quem não deve não teme”, segundo o qual a população deveria desconsiderar as violações ao Estado de direito.60

Outra crença muito difundida pela imprensa, conforme ressalta o próprio NILO

BATISTA61, se mostra pelo dogma da “criminalização provedora” 62, segundo a qual a

criminalização é vista como resposta e alternativa para a solução eficaz dos problemas

(conflitos) políticos e sociais que existem.

Por tais motivos, os agentes políticos se sentem “pressionados” pela mídia a

oferecerem uma resposta rápida e emergencial aos conflitos sociais, passando a

criminalizar as tensões sociais, pois aquela se intitula “guardiã dos valores coletivos”.

Conforme assevera BOURDIEU:

(...) a influência do campo jornalístico reforça as tendências dos agentes comprometidos com o campo político a submeter-se às pressões das expectativas e exigências da maioria, por vezes passionais e irrefletidas, e freqüentemente constituídas como reivindicações mobilizadoras pela expressão que recebem na imprensa.63

Em verdade, trata-se de uma resposta “simbólica” dada a um problema real, apenas

“varrendo para debaixo do tapete” as causas reais do problema social. Com efeito, o fluxo

de informações alienadas sobre o sistema penal oferecida pela mídia é aceita e não

questionada (já que esta se intitula como “guardiã dos valores coletivos”) de tal forma que,

58 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, p. 275 e 283. 59 MORETZSOHN, Sylvia. O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã”, p. 297. 60 CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da Libertação, p. 235. 61 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, p. 274-275. 62 Grande exemplo é o caso da Lei que criminalizou o Assédio Sexual (Lei 10.224/01), que somente

passou a existir após a exibição de um programa da Rede Globo a respeito do assunto, assim como a Lei de Crimes Hediondos, que passou a existir em vista do clamor público dado pela mídia ao assassinato da filha de uma grande escritora de novelas da Rede Globo. Ver BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, p. 279-280. Conferir, também, MORETZSOHN, Sylvia. O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã”, p. 292.

63 BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. A influência do jornalismo, p. 114.

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numa sociedade totalmente marcada pela repartição em classes e desigualdade econômica,

a seletividade do sistema penal é ocultada e manipulada pela mídia. De tal forma,

propagam-se discursos de “lei e ordem” e difundem-se as campanhas incentivadoras de

políticas de “tolerância zero”, ambos intensamente apoiados pela imprensa.

4.4. INSTRUMENTOS CRIMINALIZADORES UTILIZADOS PELA MÍDIA

NILO BATISTA64 nos dá vários exemplos de instrumentos utilizados pela mídia

para a reprodução do discurso midiático e propagação das crenças oportunas a tal discurso.

São eles: os editoriais, o uso de especialistas, o noticiário, os programas esportivos, os

filmes e, por fim, o mais conhecido e difundido deles – o programa Linha Direta.

Nos Editoriais, lócus de argumentação e polêmica, se mostram os mais elevados

índices de disputa desigual entre o discurso criminológico acadêmico crítico e o discurso

criminológico midiático. Neste lugar, todo discurso que desmistifique a crença defendida

pelo discurso criminológico midiático é ignorado ou ocultado. Ou seja, qualquer teoria que

questione e coloque em xeque o dogma penal, a criminalização e o sistema penal não são

veiculados em igualdade de condições.65

Os Especialistas, por sua vez, tratam-se de pessoas que na posição que ocupam,

qual seja, de “excelentes” (e superficiais) entendedores de determinado assunto, buscam

alastrar as teses do discurso midiático. Difundem que os conflitos sociais que existem nada

mais são do que um grave problema criminal, fundamentando, portanto, a atuação das

instituições públicas sob a ótica da defesa social. Enunciados de efeito utilizados pela

mídia, tais como “a impunidade aumenta o número de crimes”, “penas elevadas

dissuadem”, que não possuem comprovação empírica alguma, necessitam de certo

respaldo científico, momento que faz vir à tona a figura dos Especialistas, os quais serão

selecionados segundo suas crenças sejam oportunas e adequadas ao discurso

criminológico midiático. Importante ressaltar que, se parte da fala do Especialista se

desvia dos ideais deste referido discurso, será banida ou editada.66

Neste sentido, válido o ensinamento de BOURDIEU, para o qual:

A influência do campo jornalístico sobre os campos de produção cultural (sobretudo em matéria de filosofia e de ciências sociais) se exerce, principalmente através a intervenção de produtores culturais situados em um lugar incerto entre o campo jornalístico e os campos especializados (literário ou filosófico etc.). Esses “ intelectuais-jornalistas”, que servem

64 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, p. 275-287. 65 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, p. 275. 66 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, p. 276-278.

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de seu duplo vínculo para esquivar as exigências específicas dos dois universos e para introduzir em cada um deles poderes mais ou menos vem adquiridos no outro, estão em condições de exercer dois efeitos principais, de um lado fazer adotar formas novas de produção cultural (...) de outro lado, impor, em especial através de seus julgamentos críticos, princípios de avaliação das produções culturais que, conferindo a ratificação de uma aparência de autoridade intelectual às sanções do mercado e reforçando a inclinação espontânea de certas categorias (...) orientam escolhas (...).67

Assim, nota-se que a relevância dos Especialistas para o discurso midiático é

puramente retórica, no sentido de que, por meio do uso de artifícios - a suposta

“autoridade” no assunto que possuem -, convencem o público a quem se dirigem da

veracidade das crenças por ele defendidas, usando, para tanto, da força persuasiva que,

como “especialistas”, possuem.

Conforme bem assinala MORAES DA ROSA:

Nestes casos, surgem sempre os ‘fast thinkers’ capazes de emitir comentários pseudocientíficos, sem qualquer análise mais detida dos fatos, armando-se (este é o termo), ao depois, ‘debates verdadeiramente falsos ou falsamente verdadeiros’, nos quais a encenação é patética e o resultado conhecido de antemão. Afinal, o patrocinador não pode ter sua imagem prejudicada. A ‘moral vedete’ surge nos discursos moralizantes e normatizadores, enunciados pelos ‘Juízes Midiáticos’, nos quais as garantias penais e processuais são francamente vilipendiadas (...).68

Do mesmo modo, o Noticiário se mostra como palco no qual os noticiadores são

verdadeiros atores e atrizes que, por meio do uso de expressões, trejeitos e linguagem

manipuladora, escapam da postura neutra e descritiva que deveriam possuir e revelam uma

postura totalmente moralizante e maniqueísta, destacando a necessidade e importância da

criminalização e judicialização das relações sociais (cerca de 80% do noticiário é criminal

ou judicial).69 Dessa forma, contribuem enormemente para a disseminação da

criminalização dos conflitos sociais, com a expansão da intervenção penal. São

disseminadores de ideologias segundo as quais:

A marginalização, a exclusão, a pobreza generalizada, as guerras civis, os massacres, a fome e a conseqüente morte de milhões de seres humanos são apresentados como condições necessárias à reengenharia social, onde as políticas compensatórias e o controle repressivo se complementam. Ao ‘Estado Mínimo’ na esfera social e econômica corresponde o ‘Estado Máximo’ na esfera de políticas de segurança

67 BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. A influência do jornalismo, p. 111. 68 MORAES DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: a Bricolagem de Significantes. Rio de

Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 229. 69 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, p. 282-283.

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pública e no exercício do controle social através da ‘criminalização’ dos problemas sociais.70

Os programas esportivos, igualmente, acabam por pregar e disseminar o discurso

criminológico midiático, mesmo que de maneira camuflada. Isto é perceptível quando os

comentaristas e narradores disseminam e apóiam o mito de que o melhor juiz é aquele

rígido e a melhor das punições é aquela mais severa, sendo ambos mecanismos aptos a

manterem a paz em campo.71 Analogicamente, percebe-se que este discurso veicula uma

maior resposta penal aos conflitos sociais para se atingir a tão almejada “paz social”, por

meio da atuação implacável dos agentes oficiais do sistema penal e da aplicação de

sanções penais rigorosas.

Ainda, outro instrumento utilizado pelos meios de comunicação para disseminar o

discurso midiático são os filmes, os quais criam verdadeiros paradigmas da dicotomia

entre o bem e o mal.72 De fato, os filmes nos apresentam de forma romantizada e

dramatizada a guerra do bem contra o mal e, constantemente, a nobre e valente vitória

daquele sobre este. Assim informa LOLA ANYAR DE CASTRO:

A mensagem oculta nos filmes e novelas de caubóis e policiais poderia também sustentar um sentimento de insegurança: deles se deduz que o mal (definitivamente) é invencível (“sempre haverá criminosos”), que é o preço que se paga pela chamada liberdade e que o convívio humano não se baseia na solidariedade coletiva e na cooperação, mas na existência messiânica de super-homens.73

Por fim, o programa Linha Direta se revela como o programa que exala o discurso

midiático em seu em grau máximo, eis que desperta a indignação da população, comove

seus telespectadores, de forma a convencer os “cidadãos do bem” a prestar informações a

respeitos dos “bandidos” que escaparam das mãos da justiça. Com efeito, o programa

Linha Direta é o símbolo da chamada “espetacularização da violência”, tendo em vista que

objetiva unir os “cidadãos do bem” na luta contra o “inimigo comum”, interferindo na

realidade social pelo clamor que gera em seus telespectadores contra a impunidade e busca

pela realização da justiça, mesmo que seja “com as próprias mãos”. Nas palavras de

MENDONÇA:

70 DORNELLES, João Ricardo. Ofensiva neoliberal, globalização da violência e controle social.

In: Discursos Sediosos, Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro, n. 12, 2002, p. 119-137. 71 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, p. 284. 72 CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da Libertação, p. 223. 73 CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da Libertação, p. 224.

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23

O Linha Direta constitui o capítulo mais efetivo entre um histórico de produtos jornalísticos fundamentados na espetacularização da violência. Antes dele, programas como O Homem do Sapato Branco, O Povo na TV, Aqui Agora, Cidade Alerta, Cadeia e Na Rota do Crime já utilizaram de diferentes maneiras, este recurso. (...) Duas características se apresentam comuns a todos estes programas: o desejo de conquistar a audiência das camadas mais populares e a estratégia de não se limitar a entreter e informar, mas interferir na realidade social.74

Em verdade este programa coloca em xeque todas as garantias constitucionais do

acusado, numa ampla violação do princípio da presunção da inocência, do direito a

julgamento justo, do direito à imagem, proporcionando um julgamento antecipado e

privado do acusado, uma vez que, ao reconstruir fatos reais de maneira dramatizada e

fictícia, distorce a realidade e acaba por assumir uma função própria das agências

executivas do sistema penal, fazendo, conforme informa NILO BATISTA, “a justiça

funcionar como deveria”, segundo os adeptos do discurso da “defesa social”.75

5. A MÍDIA E OS PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÃO

5.1. O CLIMA DE INSEGURANÇA GERADO PELA MÍDIA

Em suma, pode-se dizer que discurso criminológico midiático, que impregnou

completamente a opinião pública, busca uma hegemonia, no sentido de legitimar a

criminalização dos conflitos e tensões sociais.

Com efeito, segundo assinala BARATTA76, a opinião pública sustenta e legitima a

ação do sistema penal, pautando-se pelas teorias do senso comum e pelos estereótipos da

criminalidade, servindo, ainda, para perpetuar a imagem mítica da igualdade do direito

penal e, assim, conseguir legitimá-lo. Para além disso, a mídia promove e transmite à

população processos de “alarme social” e um “clima de insegurança difuso”.

Portanto, assim como a realidade que nos é passada pelos meios de comunicação é

construída, conforme anteriormente exposto, este sentimento de insegurança gerado no

povo pela imprensa também é socialmente construído.77

74 MENDONÇA, Kleber. A não-voz do criminoso: o Linha Direta como crônica moral

contemporânea. In: Discursos Sediosos. Crime, Direito e Sociedade. Ano 7, nº 12. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 334.

75 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, p. 285-286. 76 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal, p. 204-205. 77 CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da Libertação, p. 210.

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24

Sem embargos, este clima de insegurança é usado para manipular e legitimar as

chamadas campanhas de “lei e ordem”, as quais apenas servem para manter a estrutura de

poder e de marginalização e desigualdade entre as classes sociais, eis que unifica os

“cidadãos do bem” (leia-se aqui aqueles que pertencem aos grupos sociais mais abastados

e os receptores acríticos do discurso midiático) na luta contra o “inimigo comum”, que

normalmente é encontrado nas classes sociais mais vulneráveis, ou seja, nos

marginalizados sociais, por meio da direção dos processos de criminalização nos desvios

típicos destas classes sociais e a atribuição do status de criminoso a tais indivíduos.

Com propriedade, MORAES DA ROSA enfatiza que:

(...) a força da mídia promove (...) a vivacidade do espetáculo ‘violência’, capaz de instalar a ‘cultura do pânico’, formentador do discurso da ‘Defesa Social’ e combustível inflamável para aferrolhar o desalento constitutivo do sujeito clivado com a ‘promessa de segurança’, enfim, de realimentar os ‘estereótipos’ do crime e criminoso, mote dos discursos da ‘Lei e Ordem’.(...). Alicerçados sobre o medo, o temor do deliquente, a ‘Defesa Social’ mantém a estrutura de perscrutar o ‘criminoso’ na sua subjetividade e construir mecanismos de proteção da sociedade contra o ‘inimigo’(...). O criminoso, em não sendo um igual, se considerada a divisão entre o mundo dos bons e dos maus, pode e deve, na lógica da ‘Defesa Social’, ser liquidado ou reformado para ser igual aos bons (...). Em nome do ‘bem comum’ e da ‘segurança jurídica’ (...) pode-se tudo: reprimir, reformar, excluir, tratar, independentemente da ocorrência de conduta (...) vilipendiar ‘direitos e garantias’ Constitucionais, rumo ao que se chama de ‘Direito Penal Máximo’. 78

Nesta seara, disseminam-se argumentos para uma hipertrofia do Estado Penal, por

meio de uma política de aumento da repressão e do uso do direito penal, com o seu

direcionamento contra os setores mais vulneráveis do meio social - os negros, pobres,

favelados, imigrantes indesejáveis - permitindo-se a violação das garantias constitucionais

e dos direitos humanos e, assim, promovendo uma “ampla estratégia de criminalização

das classes potencialmente perigosas”.79 Neste sentido, salienta ARGÜELLO que:

(...) as elites políticas, que já não podem prometer uma existência estável aos seus cidadãos, podem ao menos desviar o foco das incertezas individuais sobre como garantir os meios de vida para uma preocupação desatinada com a segurança pública (...) recorrer aos sentimentos vingativos de indivíduos que necessitam ter onde despejar seus temores

78 MORAES DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: a B ricolagem de Significantes, p. 204, 210,

214. 79 ARGÜELLO, Katie. Do Estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem.

Artigo originalmente produzido para a Conferência intitulada “ Do Estado Social ao Estado Penal” proferida no 1º Congresso Paranaense de Criminologia (novembro de 2005), Londrina, PR, disponível em <http://www.cirino.com.br/artigos/Artigo%20Katie.pdf>, p. 5-6.

Page 25: A influência da Mídia nos Processos de Criminalização

25

(...) preconizam a construção de mais prisões, o aumento do número de policiais nas ruas, leis mais rigorosas, enfim, a implacabilidade com o crime (...).80

Dessa forma, por meio da articulação da mídia, mostra-se possível e viável a

construção de um discurso penal de “criminalização em massa”, embasado no clima de

insegurança difuso e no medo que as campanhas de “lei e ordem” difundem na sociedade,

por meio da qual o problema da criminalidade e da violência somente podem ser

resolvidos com a elaboração de leis penais mais severas, imposição de penas mais rígidas

e longas, ou até mesmo com a adoção da pena de morte, na vã tentativa de “varrer para

debaixo do tapete as verdadeiras causas de tais problemas”81.

Como conseqüência disto, instaura-se entre os membros da sociedade, que

absorvem acriticamente o discurso midiático, uma compulsão comum pela luta contra a

“escalada avassaladora da criminalidade”, pautada pelas emoções e sentimentos de defesa

da ordem social.82

E, ao conseguir legitimar e sustentar campanhas de “lei e ordem”, com objetivos de

expandir o direito penal e dirigi-lo na repressão das classes marginalizadas, a mídia acaba

por se vincular mais uma vez ao sistema penal e ao capitalismo, na medida em que serve

como instrumento garantidor do status quo vigente, compactuando com a reprodução e

manutenção das gritantes desigualdades existentes no meio social, característica essencial

da sociedade capitalista, ao proporcionar e apoiar o direcionamento dos processos de

criminalização contra os setores sociais mais vulneráveis.

Assim, sustentam-se medidas simbólicas por parte do Estado, cada vez mais

autoritárias e punitivas, em vista da busca obsessiva pela segurança, conforme salienta

MORAES DA ROSA:

(...) o clima de insegurança atende aos anseios políticos de manutenção do status quo, sempre afirmando-se a ocorrência de violência, mas sem nunca resolvê-lo, ocupando matreiramente o tempo dos cidadãos que se encontram, pois, eclipsados do que importa numa sociedade democrática: “paradoxalmente, o medo e a insegurança neste período democrático permitem ao Estado medidas simbólicas cada vez mais

autoritárias, leis cada vez mais punitivas, legitimadas por demandas

sociais de proteção reais e imaginárias, principalmente da elite (...).83

80 ARGÜELLO, Katie. Do Estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem, p. 4. 81 MORAES DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: a Bricolagem de Significantes, p. 222-223. 82 MORAES DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: a Bricolagem de Significantes, p. 231. 83 MORAES DA ROSA, Alexandre. Direito Infracional: Garantismo, Psicanálise e Movimento

Anti-Terror. Florianópolis: Habitus, 2005, p. 51.

Page 26: A influência da Mídia nos Processos de Criminalização

26

5.2 A MÍDIA E O PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO PRIMÁRIO: A PROPAGAÇÃO

DOS DISCURSOS DE “LEI E ORDEM” E A CARCEIRIZAÇÃO/CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA

Conforme muito bem assinala ZAFFARONI84, nas últimas décadas o mundo

assistiu a expansão do poder punitivo e a hipertrofia do Estado Penal. Supostas situações

emergenciais, as quais para adquirirem tal qualidade contaram com a cooperação dos

meios de comunicação em geral, fizeram com que houvesse a propagação dos discursos de

“lei e ordem”, com o consequente endurecimento da legislação penal, aumento da

criminalização e carceirização da pobreza, gritante agravamento das penas e alargamento

do uso de institutos que diminuem as garantias do cidadão diante do grande Estado

Punitivo, tais como os exemplos clássicos da proliferação dos tipos de perigo abstrato e

das leis penais em branco. Assim comenta o referido doutrinador:

Nas ultimas décadas produziu-se uma notória transformação regressiva no campo da chamada política criminal ou, mais precisamente, da política penal, pois do debate entre políticas abolicionistas e reducionistas passou-se, quase sem solução de continuidade, ao debate da expansão do poder punitivo. Nele, o tema do inimigo da sociedade ganhou o primeiro plano de discussão. (...) Assinalou-se que as características deste avanço contra o tradicional direito penal liberal ou de garantias consistiriam na antecipação das barreiras da punição (até os atos preparatórios), na desproporção das conseqüências jurídicas (penas como medidas de contenção sem proporção com a lesão realmente inferida), na marcada debilitação das garantias processuais e na identificação dos destinatários mediante um forte movimento para o direito penal do autor. (...) pode-se distinguir o debilitamento do direito penal de garantias através da imputação jurídica conforme critérios que são independentes da causalidade; da minimização da ação em benefício da omissão, sem que interesse o que o agente realmente faça, a não ser o dever que tenha violado; da construção do dolo sobre a base do simples conhecimento (teoria do conhecimento), que lhe permite abarcar campos antes considerados próprios da negligência; da perda de conteúdo material do bem jurídico, com os conseqüentes processos de clonação

que permitem uma nebulosa multiplicação de elos; do cancelamento da exigência de lesividade conforme à multiplicação de tipos de perigo de perigo (perigo abstrato ou presumido); da lesão à legalidade mediante tipos confusos e vagos e a delegação da função legislativa penal, sob o pretexto das chamadas leis penais em branco, etc.85

Neste sentido, importante lembrar que a redução do Estado Social e o

agigantamento do Estado Penal, por meio de políticas emergenciais para conter o medo da

população apenas tenta, ineficazmente, reduzir a violência estrutural, produto da própria

estrutura social capitalista desigual, com a violência institucional, de forma a manter

84 ZAFFARONI, Eugênio Raul. O inimigo no direito penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p.

13. 85 ZAFFARONI, Eugênio Raul. O inimigo no direito penal, p. 13-15.

Page 27: A influência da Mídia nos Processos de Criminalização

27

marginalizada a “ralé que incomoda”86, ou seja, os excluídos do mercado de trabalho, por

meio da criminalização dos conflitos sociais, leis penais de emergência e carceirização da

miséria. Assim comenta ARGÜELO:

A ascensão do Estado mínimo no aspecto econômico e social e do Estado máximo no campo das políticas de segurança, as quais utilizam o “darwinismo social” como estratégia de controle e as políticas penais de emergência com base na eficiência penal, instaura um paradoxo: pretende remediar com mais violência institucional a violência estrutural brutalmente intensificada pela expulsão massiva de trabalhadores do mercado de trabalho oficial.87

De fato, conforme já anteriormente ressaltado, a mídia pressiona (e por vezes

substitui) o Estado na solução dos problemas sociais, sempre requerendo soluções

criminalizadoras ou punitivas, por meio do endurecimento da legislação penal e aumento

da carceirização, como forma de evitar a impunidade dos “inimigos” do sistema.

O Estado, por sua vez, se revela “de cabeça liberal sobre corpo autoritário”

segundo a expressão utilizada por LOIC WACQUANT88, ou seja, se mostra permissivo no

tocante à questão social, fechando os olhos diante da realidade desigual que impera na

sociedade, contudo, se mostra totalmente paternalista e punitivo no tocante à

criminalização dos conflitos e tensões sociais, resultantes da própria estrutura social

capitalista neoliberal, que é desigual por excelência. Nas palavras de LOIC WACQUANT:

Desenha-se assim a figura de uma formação política de um tipo novo, espécie de “Estado centauro”, cabeça liberal sobre corpo autoritário, que aplica a doutrina do “laissez-faire, laissez passer” ao tratar das causas das desigualdades sociais, mas que se revela brutalmente paternalista e punitivo quando se trata de assumir as conseqüências.89

Em verdade, a imprensa influi no processo de criminalização primário tendo

em vista que, ao veicular programas que induzem à conclusão de que o grande problema

social que existe no país resulta da impunidade à violência e da brandura da legislação

penal, acaba por insuflar a população dos “cidadãos do bem” a exigir do Estado o

endurecimento das leis penais e o agravamento das penas, assim como a utilização cada

vez mais frequente do cárcere para comportamentos desviantes, mormente os das classes

86 Expressão utilizada por WACQUANT, Loic. Punir os pobres. A nova gestão da miséria nos

Estados Unidos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2001, p. 62. 87 ARGÜELLO, Katie. Do Estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem, p.

23. 88 WACQUANT, Loic. Punir os pobres. A nova gestão da miséria nos Estados Unidos, p. 53. 89 WACQUANT, Loic. Punir os pobres. A nova gestão da miséria nos Estados Unidos, p. 53.

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mais vulneráveis, sem qualquer ofensividade social. Assim, observa-se a substituição do

Estado que deveria investir na questão social, pela hipertrofia do Estado penal.

Tal busca pela carceirização resulta da necessidade do Estado em demonstrar

para a população e para a mídia que não há impunidade, assim como alternativa muito

conveniente encontrada pelo Estado para o isolamento e depósito dos sujeitos excluídos e

marginalizados do mercado de trabalho, ou seja, para “governar a ralé que incomoda”.

Assim conclui WACQUANT:

A quadruplicação, em duas décadas, da população encarcerada se explica não pelo aumento da criminalidade violenta, mas pela extensão do recurso à prisão para uma gama de crimes e delitos que até então não incorriam em condenação à reclusão, a começar pelas infrações de menores à legislação sobre os estufacientes e os atentados à ordem pública. (...) O que mudou neste período não foi a criminalidade, mas a atitude dos poderes públicos em relação às classes pobres, consideraras o seu principal foco. Classes junto às quais o Estado penal se encarrega de reafirmar os imperativos cívicos do trabalho e da moralidade com força crescente na proporção em que a precarização do emprego e a contração de políticas sociais os colocam em situação ainda pior.90

Ainda, há que se ressaltar que esta influência da mídia no processo de

criminalização primário se dá, principalmente, em direção aos comportamentos típicos das

classes marginalizadas socialmente, tendo em vista que mostra, em seus programas,

jornais, campanhas, novelas e demais meios, que a violência e a impunidade se encontram

nas favelas, nos bairros pobres, na periferia da cidade, sendo medida imprescindível a

repressão policial em tais locais, para não haver impunidade. Assim, há a prolifereação da

criminalização da miséria, como forma de solucionar a desordem social gerada pela

própria estrutura social capitalista, que é desigual e marginalizadora por excelência.

Ademais, outro ponto importante a ser destacado, é a proliferação de

campanhas de “lei e ordem” propiciada pelos meios de comunicação, os quais tentam

propor soluções às tensões e problemas sociais por meio da criminalização. Como

exemplo, mecanismos e campanhas de “tolerância zero” utilizados pelo Governo de Nova

Iorque para conter os comportamentos desviantes são vistos pela imprensa como resposta

eficiente contra a “escalada avassaladora da criminalidade”.

Neste tocante, importante destacar uma notícia veiculada pela Revista Veja,

famosa revista brasileira de cunho político direitista, destacando a importância e os

benefícios da política de “tolerância zero” desenvolvida pelo Governo de Nova Iorque, nos

Estados Unidos, como forma de conter a criminalidade e promover a segurança social.

Confira-se:

90 WACQUANT, Loic. Punir os pobres. A nova gestão da miséria nos Estados Unidos, p. 62.

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“Prefeito de Nova York por dois mandatos, de 1994 a 2002, Rudolph W. Giuliani tornou-se uma referência quando o assunto é recuperação

urbana. Com mão firme, ele reduziu pela metade as taxas de

criminalidade e transformou a cidade em uma das mais seguras dos Estados Unidos.”

91

Diante de uma notícia desta, publicada por uma das mais lidas revistas

nacionais, tida como grande formadora de opinião, é inconteste a influência da mídia no

processo de criminalização primário, por meio do incentivo às políticas penais cada vez

mais drásticas e severas, como forma de diminuir a criminalidade, tal como a política de

“tolerância zero” desenvolvida pelo prefeito de Nova Iorque, Rudolph W. Giuliani.

Todavia, os meios de comunicação, na propagação de seu discurso midiático

criminalizador, ocultam a realidade que se perfaz por trás de seus interesses: na verdade

não há nenhum vínculo entre a diminuição da taxa de criminalidade e estas políticas

repressivas, tanto é que a diminuição da criminalidade na cidade de Nova Iorque já vinha

ocorrendo antes da sua adoção, assim como foi observada esta redução nos índices

criminais em cidades onde não foram adotadas tais políticas de “tolerância zero”. Deste

modo menciona ARGÜELO:

É a essa repressão ensandecida que os políticos e a mídia nacional e internacional atribuem precipitadamente a queda da criminalidade em Nova York nos últimos anos, embora silenciem sobre ao aumento vertiginoso das denúncias de brutalidades policiais e também sobre o fato de que não há nenhuma correlação entre a adoção desse tipo de estratégia e a queda da taxa de criminalidade, eis que esta precedeu em três anos a implementação dessas medidas e pode ser observada em outras cidades daquele país que não a aplicam, como Boston, Chicago ou San Diego.92

Contudo, como não interessa à imprensa relatar o que se mostra contrário aos

seus dogmas, tal situação passa despercebida a quem acriticamente absorve a

“informação” falsamente transmitida.

Outrossim, esta política de “tolerância zero” legitima o uso da violência

institucionalizada pelo Estado contra a miséria, os pobres, os excluídos e marginalizados,

justamente estes que sofrem as conseqüências da violência estrutural resultante da

sociedade capitalista, que é eminentemente desigual. Assim salienta WACQUANT:

91 REVISTA VEJA. Editora Abril. Disponível em

<http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/secao/geral/page/13/>. Acesso em 21 de julho de 2009. 92 ARGÜELLO, Katie. Do Estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem, p. 8

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30

De Nova Iorque a doutrina da “tolerância zero” vai se propagar pelo globo com uma rapidez estonteante e com ela a retórica militar da “guerra” ao crime e da “reconquista” do espaço público. Esta doutrina é o instrumento de legitimação da gestão policial e judiciária da pobreza que incomoda – a que se vê, a que causa incidentes e problemas no espaço público, alimentando assim um sentimento difuso de insegurança ou mesmo simplesmente de tenaz incômodo e de inconveniência. (...) Postos à margem do mercado de trabalho e abandonados pela caridade do Estado, os membros das classes populares são o principal alvo da política de “tolerância zero”.93

5.3 A MÍDIA E O PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIO: A CRIAÇÃO DO

“INIMIGO” DO DIREITO PENAL

Em relação ao processo de criminalização secundário, a influência exercida

pela mídia se revela na criação do chamado “inimigo” do sistema, vale dizer, criação do

indivíduo ou grupo de indivíduos que precisam ser rechaçados, excluídos e afastados,

tendo em vista que não respeitam as normas de bom convívio em sociedade. Desta forma,

a estes indivíduos não devem ser aplicados os direitos e garantias fundamentais, tendo em

vista que não ostentam a condição de verdadeiras cidadãos, de “pessoas”, do “bem”.

Segundo as teorizações de GÜNTHER JACOBS, a própria qualidade de

“pessoa” somente é aplicável àquele cidadão que respeita o Direito, ou seja, àquele cujo

comportamento é adequado à norma. Já o inimigo é aquele que desafia o sistema de

direitos e garantias, os quais já não podem ser a este aplicados, vez que são por ele próprio

negados quando age em desconformidade com as normas.94

ZAFFARONI sintetiza tais premissas, afirmando que o tratamento

diferenciado atribuído ao inimigo pelo direito é a não atribuição de condição de pessoa,

sendo considerado pura e simplesmente um “ente perigoso”. Nas suas palavras:

A essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o direito lhe nega sua condição de pessoa. Ele só é considerado sob o aspecto de ente perigoso ou daninho. Por mais que a idéia seja matizada, quando se propõe estabelecer a distinção entre cidadãos (pessoas) e inimigos (não-pessoas), faz-se referencia a seres humanos que são privados de certos direitos individuais, motivo pelo qual deixaram de ser considerados pessoas (...).95

Este é, sem sombras de dúvidas, o discurso proferido pela mídia, quando

destaca os criminosos como seres dotados de periculosidade social e que devem ser

93 WACQUANT, Loic. A Globalização da “Tolerância Zero”. In: Discursos Sediosos. Crime,

Direito e Sociedade. Ano 5, nº 09 e 10. Rio de Janeiro: Revan, 2000, p. 113 e 118. 94 ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan,

2008, p. 801. 95 ZAFFARONI, Eugênio Raul. O inimigo no direito penal, p. 18.

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segredados do convívio em sociedade ad eternum, em relação aos quais não devem ser

observadas as garantias constitucionais da presunção de inocência, ampla defesa, devido

processo legal, individualização da pena, (que se desdobra no direito à progressão do

regime) e por ai adiante. À título exemplificativo, quando um indivíduo condenado por um

delito que causou grande “clamor público” já cumpriu sua pena e é solto, ou simplesmente

beneficiado com a progressão de regime ou liberdade condicional, lá se encontra a mídia

noticiando o evento como sendo um absurdo. Ou seja, este indivíduo, que não ostenta a

qualidade de pessoa, não é sujeito de direito e, portanto, a ele não devem ser aplicados os

direitos e garantias fundamentais, segundo o discurso midiático.

De fato, os meios de comunicação influenciam na criação do chamado

“inimigo” do sistema, tendo em vista que ao se referirem à questão criminal, o fazem de

acordo com uma abordagem totalmente de índole positivista, dividindo a sociedade entre

os “cidadãos (pessoas) do bem” e os “inimigos”, que mormente são encontrados na

periferia e nas classes sociais populares, em relação aos quais deve ser aplicada a dura

legislação penal, produzida emergencialmente, e haver o aumento da repressão, para que

não haja impunidade.

Neste sentido a lição de MORETZSOHN:

A cobertura criminal na grande imprensa baseia-se em fundamentações de cunho positivista e se orienta por uma lógica que se estende à cobertura dos fatos relacionados às classes populares, servindo à disseminação do medo e à formulação e ampliação de políticas cada vez mais repressivas de segurança pública. (...) ao tratar das questões criminais, adota o comportamento positivista clássico, refletido na configuração do “mal” individualizado para abarcar os moradores da periferia. E ai se aplica precisamente a mesma lógica dual e complementar que informa a cobertura dos fatos relativos aos marginalizados, com a especificidade da linguagem audiovisual: diante do crime, locutores e repórteres teatralmente indignados com o ponto a que chegamos, ressaltando a “ousadia dos bandidos” e o seu “poder paralelo, alardeando a “ausência do Estado” e o conseqüente abandono dos “cidadãos do bem” e, finalmente, estimulando declarações a favor do endurecimento das penas e do aumento à repressão (...).” 96

No mesmo sentido conclui ARGÜELLO, afirmando que:

Sob o enunciado da “proteção” ofertada aos “cidadãos de bem”, oculta-se a impotência dos governantes em face da catarse de conflitos e tensões aos quais eles não podem (ou não estão dispostos a) responder senão através de uma justificativa meramente retórica à opinião pública, criando uma falsa idéia de unidade diante de um inimigo interno personificado na figura do “outro”: selecionado entre os membros dos

96 MORETZSOHN, Sylvia. O caso Tim Lopes: o mito da “mídia cidadã”, p. 298.

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setores socialmente vulneráveis.97

Com efeito, uma das mais evidentes conseqüências do sentimento de medo

gerado pela mídia está na perseguição dos indivíduos considerados “inimigos” do sistema.

Conforme muito bem salienta MORAES DA ROSA, esta função de perseguição do

“mau”, do “satã”, do “inimigo”, atribuída à imprensa existiu desde seus primórdios:

(...) a propaganda possui, desde a sua criação pela Igreja, um objetivo vem definido: propagar e reiterar a “crença no amor”: é a cruzada contra o Satã. A ciência do sorriso ganha espaço para fazer os sujeitados amarem o Poder, apontando o “Mal” a ser perseguido/aniquilado em nome do “Bem”, palabra do enunciador, claro, divulgando-se a existência inata, em cada ser humano, da distinção entre os bem aventurados e os recalcitrantes.98

Tal criação do “inimigo” ocorre por meio da invenção dos estereótipos de

criminosos gerados pela mídia, os quais são fundamentados sobre apenas um tipo de

delinqüência: a delinqüência típica das classes menos favorecidas. Isto ocorre em virtude

da necessidade de se criar “bodes expiatórios” contra os quais será dirigida toda a

agressividade do sistema penal, assim como para reforçar o sistema de valores que

predominam no meio social. Neste sentido a lição de LOLA ANYAR DE CASTRO:

Os estereótipos são elementos simbólicos, facilmente manipuláveis nas sociedades complexas. O estereótipo do deliquente (como alguém pertencente às classes subalternas, de condições afetivas e familiares precárias, agressivo, incapaz de incorporar-se com sucesso ao aparato produtivo), tem duas funções essenciais: 1. Serve para a suposta maioria não-criminosa redefinir-se a si mesma com base nas normas que o delinqüente violou e para reforçar o sistema de valores dominante. Reproduz o sistema e contribuiu para delimitar a zona do bem e a zona do mal, liberando a cultura danosa dos poderoso, que estariam a salvo por não pertencerem ao estereótipo. Haveria, portanto, classes criminosas e classes não-criminosas. 2. Funciona como bode expiatório, já que dirige-se (sic) a ele toda a agressividade latente das tensões de classe que, em caso contrário, se voltaria contra os detentores do poder.99

Com propriedade, assinala WACQUANT que estes “inimigos” seriam os

“squeegee men”, os sem-teto que abordam os motoristas nos sinais para lavar os pára-

brisas por uns trocados, os pequenos revendedores de drogas, as prostitutas, os mendigos,

97 ARGÜELLO, Katie. Do Estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem, p. 1. 98 MORAES DA ROSA, Alexandre. Direito Infracional: Garantismo, Psicanálise e Movimento

Anti-Terror, p. 46. 99 CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da Libertação, p. 215.

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33

os vagabundos e grafiteiros. Em suma, “o sub-proletariado que vive no mercado informal

e representa uma ameaça”.100

Exemplo desta invenção de estereótipo de deliquente pela mídia ocorre por

meio da edição da notícia, dos caracteres e linguagens utilizados, as fotos e vocabulários

particulares desta espécie de delinquência, conforme sintetiza LOLA ANYAR DE

CASTRO.101

Do mesmo modo que cria o chamado “inimigo”, por meio dos estereótipos de

criminosos, os meios de comunicação, através da dramatização dos fatos, constroem

realidades, fomentam e orientam o medo gerado na população apenas em relação ao

estereótipo de criminoso considerado “inimigo”. Assim, o próprio sentimento de

insegurança gerado pela mídia é seletivo. Neste sentido importante destacar, novamente,

os ensinamentos de LOLA ANYAR DE CASTRO:

(...) a construção social da notícia mediatizada pelo poder econômico e político vai gerando atitudes e valores, isto é, elementos de juízo, para que se crie um sentimento de insegurança, que é absolutamente seletivo. Esse processo indica o que é que se deve temer, deixando na sombra situações e condutas abertamente danosas que, entretanto, não causam temor. (...) Estes delitos não causam medo, passam debaixo da mesa da distribuição seletiva de notícias, graças ao estereótipo diferencial que se difunde, e que neste caso, tem a ver com a manipulação de poder (...). O estereótipo de delinqüente como pertencente a uma só classe social produz uma ampliação do sentimento de insegurança, porque se teme, mais propriamente, toda uma classe social. O delinqüente é um inimigo de classe.102

Ainda, importante mencionar que os meios de comunicação, ao criarem a

figura do “inimigo”, acabam por influir na atuação dos agentes e operadores do sistema

penal, quais sejam, juízes, promotores, delegados, políciais entre outros.

Com efeito, a mídia alavanca um sentimento de agressividade em relação ao

“inimigo” do sistema, de forma que passa a exigir e a exercer pressão, por meio de

atitudes notoriamente públicas, que as penas aplicadas pelos juízes sejam as mais graves

possíveis, que as prisões cautelares sejam utilizadas como regra e não como exceção, que

haja a primazia do princípio “in dubio pro societate” em detrimento do “in dubio pro

reo”.

Neste diapasão, cabíveis as palavras de MORAES DA ROSA:

100 WACQUANT, Loic. A Globalização da “Tolerância Zero”, p. 112. 101 CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da Libertação, p. 234. 102 CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da Libertação, p. 215-216, grifo nosso.

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O conjunto dessas condicionantes criminológicas e midiáticas aparece no ato decisório. (...). Mesmo que não apareça a foto, a referência à sua decisão faz com que – muitas vezes – o juiz, o policial, o promotor de justiça massageie o ego e possa, assim, mostrar ao Outro que cumpriu a missão de aplicar a Lei. Ainda que conscientemente isto não apareça de forma ostensiva, no inconsciente o dever está cumprido e comprovado pela imprensa.103

Deste modo, por meio da formação de estereótipos de criminosos e pela

perseguição contra o “inimigo comum” é que a mídia influencia no processo de

criminalização secundário, servindo de base para os operadores do direito na atribuição

do status de criminoso aos indivíduos estereotipados e considerados “inimigos” do

sistema – os excluídos.

6. CONCLUSÃO: VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL PARA OCULTAR A VIOLÊNCIA ESTRUTURAL

A partir do exposto no corpo do presente trabalho, várias conclusões podem

ser tiradas.

A primeira delas é que a mídia, controlada pela elite social, na sua pretensa

função neutra de informar, acaba por promover a formação do “consenso” em relação a

assuntos que lhe interessam, influindo de maneira irremediável nos processos de

criminalização.

Ao difundir o dogma da “criminalização provedora”, os meios de

comunicação incentivam o processo de criminalização primário, no afã de estimular o

endurecimento da legislação penal, aumento da criminalização e carceirização da pobreza,

agravamento das penas e alargamento do uso de institutos que diminuem as garantias

constitucionais diante do hipertrofiado Estado Penal, tais como a proliferação dos tipos de

perigo abstrato e das leis penais em branco.

Ainda, a imprensa ao estabelecer os estereótipos de criminosos e promover a

criação do “inimigo” que deve ser perseguido pelos operadores do sistema penal, contra

quem deve ser aplicada, implacavelmente, a dura legislação penal de emergência, acaba

por gerir o processo de criminalização secundário, por meio do incentivo à atribuição do

status de criminoso ao considerado “inimigo” da sociedade, que é personificado na figura

dos membros dos setores mais vulneráveis da sociedade.

Em verdade, tal influencia da mídia nos processos de criminalização resulta

da sua vinculação com o capitalismo, pois aquela se revela um instrumento manipulador,

103 MORAES DA ROSA, Alexandre. Direito Infracional: Garantismo, Psicanálise e Movimento

Anti-Terror, p. 52.

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35

que dissemina discursos que somente servem para a reprodução da desigualdade social, na

medida em que, ao invés de incentivar práticas para solucionar os problemas sociais, que

são muito mais estruturais do que propriamente criminais, apenas dissemina discursos

fomentadores da exclusão. Uma vez que a sociedade capitalista necessita de

marginalizados sociais, a mídia opera como um mecanismo oportuno e formidável neste

tipo de sociedade, já que se revela como uma formadora de opinião, aparentemente neutra,

mas que na verdade apenas promove e legitima a ideologia dominante das classes que

detêm o poder e que possuem evidente interesse em manter a estrutura classista e desigual

que impera no meio social.

De tal forma, a mídia promove discursos que visam a criminalização da miséria

e dos excluídos do mercado de trabalho, para atingir os objetivos almejados pelo

capitalismo, dentre eles a marginalização e exclusão social, propondo uma maneira de

gerir a miséria produzida pela sociedade capitalista: violência institucional para dissimular

a violência estrutural.

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