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AMPÉLOPE ELEUSIS DE ALMEIDA
A INSERÇÃO DO FENÔMENO DA MODERNIDADE NA SOCIEDADE CURITIBANA DA DÉCADA DE 1920
Monografia de bacharelado
apresentada em cumprimento às exigências do
curso de Graduação em Bacharelado e
Licenciatura em História da Universidade
Federal do Paraná. Professor: Dr.ª Magnus
Roberto de Mello Pereira.
CURITIBA
2009
1
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................................... 02
CAPÍTULO I - A literatura, o Saber Histórico e o Método Estrutural.....................................03
CAPÍTULO II. Uma breve introdução à modernidade ...........................................................13
CAPÍTULO III. Viva o Tango! : a irresistível atração da modernidade..................................28
CONCLUSÃO.........................................................................................................................45
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................................47
2
INTRODUÇÃO
O interesse pela literatura curitibana da década de 1920 impulsionou a realização dessa
pesquisa. Tal período foi profícuo na publicação de obras bem humoradas, que tratavam com
ironia das diversas transformações sociais ocorridas naquele período. Além do divertimento
obtido com a leitura de tais obras, elas apontam elementos suscitadores das características que
marcaram as idéias e os comportamentos da sociedade curitibana daquele início de século,
demonstrando serem fontes muito proveitosas para o estudo histórico. Assim, neste trabalho
serão analisadas três obras literárias, editadas durante aquela década: o romance “Viva o
tango!”, de Ildefonso do Serro Azul, e os livros de crônicas “Enredos Fúteis”, de Laertes de
Macedo Munhoz, e “O tanque de Jerusalém”, de Alceu Chichôrro, todas escritas por literatos
envolvidos nos movimentos futurista e modernista paranaenses.
Deparando-se com um contexto mundial de busca pelo progresso e modernização, o
qual se fez presente também na cidade de Curitiba, este trabalho propôs-se a realizar um
diálogo entre aqueles escritos literários e o meio no qual foram produzidos, um diálogo entre
o modernismo e a modernização ou, simplesmente, as opiniões daqueles escritores, expressas
em seus livros, acerca da modernização dos costumes, valores e sociabilidades da década de
20 do século passado.
Nesse intuito, foram desenvolvidos três capítulos. No primeiro, relataram-se os dados
sobre as linhas de pesquisa que aqui influenciaram, explicitando as possibilidades que a
análise de fontes literárias abre ao historiador. Neste capítulo, ainda, discorre-se sobre o
método estrutural aplicado à análise da literatura e, usando tal metodologia da forma como
fizera o antropólogo Roberto da Matta, empreende-se a redução estrutural de uma daquelas
fontes.
No segundo capítulo, tendo como base o livro Tudo que é sólido desmancha no ar, de
Marshal Berman, que versa sobre o conceito de modernidade, comentamos acerca do
desenvolvimento desta no mundo, dando ênfase, porém, à sua atuação na Curitiba do período
referenciado.
No terceiro e último capítulo deste trabalho, é que se realizou a leitura, análise e
comparação, propriamente dita, das fontes, levando-se em conta os elementos elucidados até
então.
3
CAPÍTULO I
A literatura, o Saber Histórico e o Método Estrutural
O uso da literatura enquanto fonte histórica foi durante muito tempo rechaçado, devido
ao fato de esta carregar em suas linhas, narrativas que entrelaçam real e fictício, pondo em
dúvida, assim, sua validade enquanto testemunho verídico da história.
Nas últimas décadas, entretanto, com o surgimento de correntes historiográficas
voltadas para o estudo das sensibilidades humanas, a ciência histórica passou a admitir a
utilização daquelas1, uma vez que a documentação oficial era muito restritiva em relação aos
fatores que interessavam aos novos estudos, o que acabou por solapar grande parte do
preconceito contra tais fontes.
Dessa forma, a academia que, por muito tempo, na sua férrea tentativa de manter a
imparcialidade a todo custo, acabava ignorando os sujeitos históricos2, permitiu certa
humanização de seus estudos, acolhendo os sentimentos e as experiências pessoais destes. Daí
vindo a importância que, pouco a pouco, a obra literária foi obtendo como fonte para a
conformação do conhecimento histórico: “la ciencia [...] se ocupa de las potencias, las
naciones, los pueblos, las alianzas, los grupos de intereses. No se ocupa jamás de las gentes.
Todas esas gentes que han vivido antes que nosotros solo las encontramos em la literatura”3
Esse movimento privilegiou, sobretudo, aqueles que foram ignorados pelos
documentos oficiais, possibilitando, assim, novas interpretações acerca da história dos
vencidos4, ou seja, daqueles indivíduos e grupos sociais que tiveram seus ideais e sua
existência cerceados dos registros formais, por preconizarem projetos sócio-políticos
divergentes daqueles que jaziam no poder em determinado momento. A literatura demonstrou
ter grande papel nesta recuperação, visto que raramente se identificou com a perspectiva do
Estado5.
No mesmo sentido desta mudança, a história mais tradicional, que ainda no intuito da
busca pela objetividade, redigia os acontecimentos idos como se estes estivessem mortos, de
um modo frio e afastado, passou a construir o conhecimento histórico de uma forma mais
1 SILVEIRA, C. da. “Entre a história e a literatura: a identidade nacional em Lima Barreto”. In: História: Questões & Debates, Curitiba, n. 44, p. 115-146, 2006. Editora UFPR. 2 ENZENSBERGER, Hans Magnus. “La literatura em cuanto historia” In: ECO. Bogotá, v. 201, julho 1978. 3 Op. Cit, p.944. 4 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na 1ª República. São Paulo: Brasiliense, 1993, p.21. 5 ENZENSBERGER, Op. Cit.
4
dinâmica e flexibilizada, admitindo diferenciadas e inéditas interpretações do passado,
conforme surgiam novos interesses presentes.
Hoje em dia, muito se discute, ainda, acerca do uso da narrativa literária como objeto
para a análise histórica, porém várias linhas de estudo já concebem que ela deve ser encarada
pelo historiador como qualquer outra fonte, ou seja, como um testemunho do momento de sua
produção: “a produção da obra literária está associada ao seu tempo, refletindo em suas
narrativas angústias e sonhos de agentes sociais contemporâneos à sua criação e mesclando
elementos de ficção e das possíveis realidades existentes no momento da criação literária.
Dessa forma, a obra de ficção lida com ações sonhadas, com sentimentos compartilhados,
com intermediação entre o real e as aspirações coletivas. A obra literária constitui-se, assim,
parte do mundo, das criações humanas, e transforma-se em relato de um determinado
contexto histórico-social”6
Desta forma, o escrito literário não deve ser tratado apenas como uma ilustração
daquilo que o historiador já sabia a priori, como um complemento daquilo que outras fontes
mais “confiáveis” já haviam lhe demonstrado. A literatura deve ser tratada como uma
“estratégia de intervenção no mundo, como tentativa de incitação e choque, como discurso
participante das polêmicas de certo tempo”7, ou seja, a fonte literária precisa ser considerada
por si só, como manifestação humana em determinado contexto social.
Isso não significa que em determinado estudo, visando a resolução de uma
problemática, não se possa fazer uso de certa diversidade de documentos, incluindo fontes
literária, oficial e outras mais, mas apenas que aquelas devem ser tratadas da mesma forma e
com o mesmo rigor científico que qualquer outro testemunho histórico; o que se questiona,
portanto, é a sua empregabilidade como complemento ilustrativo ao estudo histórico e não
como vestígio que possa reconstituir determinado presente.
O tratamento diferenciado legado a tais fontes deve-se ao fato de elas possuírem
assumidamente um caráter fictício. Digo “assumidamente”, pois somente há algumas décadas
atrás, os teóricos da história começaram a questionar o conceito de verdade histórica e a
confiabilidade das demais fontes utilizadas.
Durante muito tempo, privilegiaram-se documentos de cunho político, administrativo,
jurídico, diplomático, em suma, aqueles produzidos e arquivados pelo poder público que,
como já foi mencionado, permitiriam uma atitude distanciada, neutra e ausente de paixões por
6 SILVEIRA, C. da. Op. Cit, p. 119. 7 FARIA, Daniel. “Quando os poetas se despediram da felicidade: Baudelaire e Dostoievski criticam as utopias”. In: História: Questões & Debates, Curitiba, n. 44, p. 71, 2006. Editora UFPR.
5
parte do cientista da história. Esta documentação oficial era vista, portanto, como a mais
confiável, uma vez que se tratava de documentos originais, produzidos de maneira formal.
Desconheço se estes historiadores acreditavam que o Estado, por ser o representante
de todos os grupos sociais, ainda que não o seja por vontade de todos eles, seria incapaz de
fantasiar qualquer dado ou informação. Entretanto, sabemos que o Estado é feito por homens
que, como quaisquer outros, possuem seus próprios interesses, principalmente quando,
estando no poder, têm a possibilidade de defender o seu projeto sócio-político e a sua
participação nele, perante a posteridade. Sabemos, portanto, que esta documentação oficial é
tão manipulável quanto qualquer outra, e que, por vezes, pode se igualar ou sobrepor em
fantasia a muita obra literária, que assume sê-lo.
Além disso, o fato de sabermos a priori que a obra literária possui traços ficcionais
pode ser encarado como um mérito, pois pode ocasionar benefícios ao trabalho do historiador,
uma vez que este, ao analisar tal narrativa, estará mais atento e preparado para filtrar as
informações ali transmitidas, ao passo que uma documentação oficial pode ingenuamente ser
dotada de maior credibilidade que a merecida, apenas porque afirma tratar os fatos com
veracidade.
Na realidade, hoje em dia tem-se a noção de que toda e qualquer fonte utilizada pela
história, seja ela uma fotografia, um filme, um relato de viagem, ou mesmo um objeto, foi
construída e atendeu aos interesses daqueles que a produziram e que, portanto, ela testemunha
uma verdade relativa, ou às vezes, apenas forja uma falsa verdade relativa, o que, por sua vez,
também pode ser de interesse ao estudo histórico. Entretanto, por mais contraditório que isso
pareça ser, tal consciência permitiu ao historiador o acesso a infinitos traços do passado, uma
vez que o libertou do uso único e obrigatório dos “confiáveis” documentos oficiais e de uma
visão unilateral dos tempos idos.
Assim, “a questão central não é o caráter manifestadamente ficcional ou não de
determinado testemunho histórico, mas a necessidade de destrinchar sempre a especificidade
de cada testemunho”8. Dessa forma, qualquer fonte, eleita como tal pelo pesquisador, sob a
aplicação de um método de análise específico e bem formatado e, interrogada da forma
correta, pode responder às indagações do historiador acerca do passado do qual ela procedeu.
No caso da literatura, “a proposta é historicizar a obra literária ― seja ela conto, crônica,
poesia ou romance ―, inseri-la no movimento da sociedade, investigar as suas redes de
interlocução social, destrinchar não a sua suposta autonomia em relação à sociedade, mas sim
8 CHALHOUB, Sidney e PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda (Orgs.). A história contada: capítulos de história social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 8.
6
a forma como constrói ou representa a sua relação com a realidade social ― algo que faz
mesmo ao negar fazê-lo.”9
Tendo tais percepções como baliza, a análise historiográfica aqui empreendida terá
três obras literárias10 como fontes, todas editadas durante a década de 1920, em Curitiba. São
elas o romance “Viva o tango!”, de Ildefonso do Serro Azul, e os livros de crônicas “Enredos
Fúteis”, de Laertes de Macedo Munhoz, e “O tanque de Jerusalém”, de Alceu Chichôrro.
Tais obras serão imersas no contexto material e intelectual deste período, assim como seus
autores, os quais terão seu papel social esclarecido, para que só então, as fontes possam ser
consideradas testemunhos das transformações sociais ali ocorridas e da opinião de grupos
sociais acerca destas.
Quanto ao teor ficcioso da narrativa literária, é necessário reconhecer que nela tudo se
torna possível, entretanto, por mais imaginação que tenha sido colocada nas situações
relatadas, estas devem ter alguma base no contexto em que foi escrita, ainda que se trate
apenas de uma vaga preocupação ou de um sonho distante, os quais em contextos anteriores
seriam inimagináveis: “num romance, por mais simples que seja, os fatos narrados, ainda que
improváveis, se não puderem ter acontecido, se a ação não for verossímil, nós a rejeitamos. É
um romance ruim”11.
O romance “Viva o Tango!”, por exemplo, possui personagens absurdas, como um
desembargador aposentado, nomeado fiscal-auditor das transmissões telefônicas da capital e
radiomaníaco nas horas de folga, que era surdo e, apesar de ouvir o rádio todas as noites,
nunca escutara o menor som vindo dele! Ou um colunista social de um dos grandes diários da
cidade, muito requisitado para todas as festividades elegantes da alta sociedade, do qual todos
fugiam por ter ele um mau-hálito insuportável. Estes indivíduos e situações nos soam como
inconcebíveis e exageradas, mas expressam diversos elementos que caracterizam aquele
período, como a difusão do rádio e do telefone, introduzidos há apenas alguns anos naquela
sociedade, a ascendência dos periódicos, cada vez mais presentes no dia-a-dia e definidores de
opinião, além da necessidade desta alta sociedade de, ao aparecer numa coluna social,
legitimar a sua posição. Ao evidenciar situações tão contraditórias, ainda, o autor aponta uma
das principais características do período por ele vivido, que é a contraditoriedade da vida
moderna. Além disso, o exagero desses personagens era caricatural e pretendia fazer com que
9 Op. Cit, p. 7. 10 MUNHOZ, Laertes de Macedo. Enredos Fúteis. Curytiba: Placido e Silva, 1921.; CHICHORRO, Alceu. O tanque de Jerusalém. Curytiba: Placido e Silva, 1923.; RABECÃO, Jeca (SERRO AZUL, Ildefonso do). Viva o tango!. Curytiba: Placido e Silva, 1927. 11 DÖBLIN, Alfred. O romance histórico e nós. In: História: Questões & Debates, Curitiba, n. 44, p. 16, 2006. Editora UFPR.
7
o leitor da atualidade da obra identificasse sujeitos semelhantes àqueles em seu próprio meio.
O absurdo, portanto, ao ser historicizado, pode tornar-se compreensível.
Assim, por mais fantástica que sejam as circunstâncias narradas numa história, elas
devem trazer algum grau de probabilidade com o real, algum elemento de identificação com o
leitor, para que este o aceite e acredite que os fatos narrados, ainda que improváveis, são ao
menos possíveis de acontecer. Mesmo em contos de fada, há ainda um resíduo de realidade,
uma vez que estes são protagonizados por seres humanos, com sentimentos e problemas bem
contextualizados da humanidade. E, ainda que as personagens sejam animais, como numa
fábula, por exemplo, o comportamento destes e a moral final refletem atitudes e ensinamentos
que certos setores desejavam transmitir para a sociedade. Deve-se, portanto, “pensar as
ficções literárias não como cópias da realidade, mas como possibilidades de acontecimento, as
quais estão intimamente ligadas com os sentimentos e a imaginação de quem faz parte do
momento de sua confecção”12.
No sentido de compreender os elementos fantásticos e simbólicos de Viva o Tango!,
será utilizada a metodologia da análise estrutural, a qual procura elucidar elementos
invariantes dentro de conteúdos diferenciados13, para tanto se pautando em princípios como:
“economia de explicação; unidade de solução; possibilidade de reconstituir o conjunto a partir
de um fragmento e de prever os desenvolvimentos ulteriores a partir dos dados atuais”14. A
aplicação mais recorrente deste método está ligada às áreas da lingüística e da antropologia,
especialmente no campo do estudo dos mitos, o qual detém o interesse deste trabalho.
O mito, na visão tradicional, define-se pelo seu conteúdo, que deve narrar como teve
início certa realidade; deve descrever a origem, a criação de algo, sejam os deuses, uma
instituição ou mesmo um comportamento humano. Roland Barthes15 possui uma visão
diferenciada desta, pois considera que, nos dias atuais, o mito obtém sua definição não no
conteúdo que transmite, mas na forma como esse conteúdo é transmitido, a qual deve se dar
através de um discurso, de uma comunicação. Sendo assim, desde uma fotografia até um
objeto, “tudo pode constituir um mito”, bastando apenas que produza alguma significância
historicamente determinada que permita sua transformação numa fala compreensível a certo
contexto. Visto desta forma, o mito pode se constituir por imensa variedade de formatos e ter
por conteúdo tudo aquilo que emitir uma mensagem compreensível a um ethos social.
12 SILVEIRA, C. da. Op. Cit, p. 122. 13 LÉVI-STRAUSS, Claude. Estruturalismo e crítica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, s/d, p. 393. 14 LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, s/d, p 243. 15 BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel, 1982, p.131-132.
8
A fonte a ser aqui analisada encaixa-se em ambas as definições de mito, uma vez que,
por meio da literatura, cria uma comunicação com os seus leitores, através da narração de
situações passíveis de serem vividas por estes ou pelos membros da sociedade que os cerca,
de modo a apresentar-lhes sua visão, favorável ou não, acerca das mesmas e, quiçá convencê-
los dela. Dessa forma, aquela obra produziu um discurso literário compreensível e incitante
do leitor da sua época.
Além disso, ela descreveu a inauguração de certos costumes, ditos modernos, em
contraposição a uma realidade tradicional que predominava até então, formando uma
narrativa que poderia ser chamada de “mito da modernidade”, ou de “mito da cidade
moderna”16, uma vez que trata do surgimento dos costumes urbanos contemporâneos. O mito
é assim definido pela posteridade, na medida em que se expressa um interesse presente nele.
Dessa forma, ainda que a referida obra não seja de fato mitológica, torna-se um texto passível
de ser submetido à análise estrutural.
O livro Viva o Tango! foi a única fonte escolhida para sofrer tal análise, pois, mesmo
tendo um texto rico em detalhes e pouco conciso, apenas ela possui uma narrativa semelhante
a de um mito, em vista da recorrência de determinados elementos na obra, caracterizados por
“um repertório de símbolos, imagens e motivos (...) restritos por fatores histórico-sociais”17.
Lévi-Strauss, um dos grandes representantes do estruturalismo e o estudioso que
fundamentou a metodologia estrutural aplicada à análise mitológica, afirma que o mito
provém do discurso, mas vai além dele e da linguagem, encontrando-se num nível mais
elevado desta, uma vez que apesar de não ser suscetível a nenhuma regra de lógica, podendo
narrar os mais incongruentes e arbitrários acontecimentos, os mitos seguem o mesmo caráter e
sentido em qualquer lugar do mundo, podendo ser reconhecidos como tal.
Desta forma, a substância do mito está na história que ele transmite: uma história que
sempre diz respeito a acontecimentos passados, ocorridos há muito tempo, mas que de alguma
forma estão concatenados com o presente e, mesmo com o futuro, possuindo, assim, “uma
dupla estrutura, ao mesmo tempo histórica e não histórica”18, que combinadas dão sentido ao
mito e permitem o seu enquadramento em tal categoria pelos contextos futuros à sua criação.
A aplicação do método estrutural na análise da literatura, encarada enquanto texto
mítico, não é de ordem recente e, sobre tal assunto, podemos citar dois interessantes artigos
16 PEREIRA, Magnus Roberto de Mello; SANTOS, Antonio Cesar de Almeida; AZEVEDO, Vidal Antônio de; HARA, Tony Renato. “Cortazar, Paz, Sá Barreto: Cidade, experiência urbana e estrutura.” 17 MATTA, Roberto da.“Edgar Allan Poe, o ‘Bricoleur’: Um exercício em Análise Simbólica”, In Alfa, n. 10, 1966, Marília, São Paulo, p.166. 18 LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, s/d. p 241
9
do antropólogo Roberto da Matta, que em ambos analisa contos de Edgar Allan Poe, O Diabo
no Campanário19 e O Gato Preto
20, sobre os quais afirma que são “um relato onde o poeta
utilizava categorias correntes da vida cotidiana [...], mas as combinava de modo a engendrar
uma estrutura cuja lógica ultrapassava a da vida diária”21.
Estes contos, portanto, contêm dissimulados em sua narrativa, em meio ao terror e ao
fantástico, vários modelos e temáticas, pautados na estrutura e nas relações sociais do
contexto do autor, as quais se repetem e se combinam umas com as outras, formando
significações historicamente determinadas, que só se tornam nítidas por meio de uma redução
estrutural.
Nesse sentido, da Matta se utiliza do termo “bricoleur”, engendrado por Levi-Strauss,
para caracterizar o autor das obras que analisa22, que se trata daquele que faz objetos unindo
pedaços de outros ― um ofício que impõe determinadas restrições, uma vez que o material
disponível é limitado (mesmo o literato tem o seu material restringido pelo contexto sócio-
histórico no qual reside), obrigando o artesão a utilizar-se da improvisação para o alcance de
seu intento.
Na execução de seu serviço, o “bricoleur” não se preocupa em especial com cada peça
de que dispõe, posto que o que lhe importa é o produto final que tem em mente; ele apenas
emprega cada peça aonde ela se faz necessária ao conjunto. Além disso, como não dispõe de
infindáveis materiais, ele precisa por vezes utilizar os mesmos fatores, variando sua ordem e
combinações. Ao final, e somente após muito se utilizar da imaginação, os pedaços do objeto
adquirem novos significados, distintos daqueles que possuíam anteriormente.
O papel do analista é, por conseguinte, estudar tal objeto a partir das novas
significações de seus pedaços, conforme o padrão de sua colocação e combinações naquele. A
análise estrutural, desta forma, desmonta a estrutura da obra, reduzindo-a a fragmentos, de
modo a procurar neles elementos que se sobreponham a simples leitura, uma vez que se
encontram num nível superior ao da narrativa. Trata-se, portanto, de uma redução que busca a
compreensão.
Tendo isso em vista e baseando-se nos dois trabalhos de da Matta, elaborou-se um
esquema recorrente, a partir da combinação de elementos (personagens, ambientes e
emoções/sentimentos), que não traduz todos os elementos importantes da obra, uma vez que
19 MATTA, Roberto da. Ensaios de antropologia estrutural. Petrópolis: Vozes, 1973. 20 MATTA, Roberto da.“Edgar Allan Poe, o ‘Bricoleur’: Um exercício em Análise Simbólica”, In Alfa, n. 10, 1966, Marília, São Paulo. 21 MATTA, Roberto da. Ensaios de antropologia estrutural. Petrópolis: Vozes, 1973, p.97. 22 MATTA, Roberto da “Edgar Allan Poe, o ‘Bricoleur’: Um exercício em Análise Simbólica”, In Alfa, n. 10, 1966, Marília, São Paulo, p.165-166
10
esta, como já fora afirmado, é um texto longo e cheio de detalhes cruciais para a compreensão
das idéias do autor e da sociedade que ele descreve, mas corresponde à sua idéia principal:
I. A história inicia com o Dr. Rogério triste pela morte da esposa e recluso no
lar.
II. O Tango (tocado na festa do vizinho) invade a casa pela janela.
III. Dr. Rogério não consegue resistir ao Tango e sorri, aceitando a vida moderna e
abrindo sua casa.
I. Em novo momento, Dr. Rogério decide fechar sua casa à vida moderna, pois
pretende casar.
I. O primeiro marido de sua noiva era um homem austero, caseiro e
conservador.
II. Em Buenos Aires o marido passa a frequentar cabarets (festa) e a dançar o
Tango.
III. O marido vicia no Tango e libera suas emoções reprimidas.
I. Dona Margarida é traumatizada com a vida moderna, da qual se mantém
rigidamente afastada (reclusa em casa).
II. Casados, Dr. Rogério e Dona Margarida são obrigados a entrar em contato com
o Tango, nas recepções (festa), onde suas presenças eram socialmente exigidas.
III. Dona Margarida e Dr. Rogério, vencidos pelos nervos, dançam o Tango.
Este esquema poderia ser assim traduzido:
I. Manutenção dos valores tradicionais/ Reclusão em casa/ Contenção das
emoções/ Sensações negativas
II. Na festa entra-se em contato com o Tango (vida moderna).
III. Aceitação do Tango/ Adesão à vida moderna/ Abertura da casa / Liberação das
emoções/ Sensações positivas
11
Percebe-se, portanto, a existência de três momentos diferenciados no texto, os quais
possuem como elemento central o Tango (não à toa está no título da obra), o qual pode ser
percebido como um rito de passagem entre o conservadorismo e a modernidade, uma vez que
é o responsável pelos três períodos que compõe este evento: o de separação, o de transição e o
de incorporação. A separação ocorre quando se entra em contato com o Tango, a transição
quando não se consegue mais resistir a ele e, a incorporação quando ele é aceito.
O Tango, assim como o gato preto no conto de Edgard Allan Poe, analisado por da
Matta, “inicia um processo de abandono das antigas regras que amarravam rigidamente sua
conduta (do indivíduo submetido a ele) e se separa para transcender a realidade que o
circunda e aliena (...). E esse afastamento tem efeitos: o primeiro é o de que o herói pode ‘ver’
sua sociedade numa perspectiva diferente, não tradicional. Isto, evidentemente, permite que
ele escolha para si novos rumos e revolucione a sua existência”23. Contudo, ao contrário do
que ocorre no referido conto, onde após este afastamento, o seu herói fica só, em Viva o
Tango!, a sensação de solidão está no momento inicial, uma vez que os indivíduos resistentes
à modernidade estavam isolados em meio a uma sociedade que já a havia aceitado.
Esta é, na verdade, uma análise parcial da obra, uma vez que ela ignora aspectos de
suma importância para o historiador, como o autor, o contexto da sua produção e do período
abordado pelo livro, além de vários elementos que, mesmo sendo recorrentes e tendo grande
23 Op. Cit, p.174.
12
importância na obra, não tiveram possibilidade de serem encaixados no esquema acima, ou
mesmo os inúmeros aspectos isolados, que expressam idéias de grande valor para a
problemática deste trabalho. Assim, os elementos apresentados no esquema serão analisados
com maior minúcia no III Capítulo deste trabalho, depois de se tomar conhecimento do
contexto do qual as obras tratam e, quando serão destrinchados e comparados todos os três
livros eleitos como fonte para análise. As conclusões parciais acima expostas, entretanto,
apontam o caminho a ser posteriormente seguido.
Assim, parte-se agora para uma breve explicação sobre a modernidade, tratando desde
o seu conceito até a sua atuação no mundo e na cidade de Curitiba, necessária para uma
compreensão mais efetiva e historicização das obras analisadas.
13
CAPÍTULO II
Uma breve introdução à modernidade
A modernidade é um fenômeno atuante na história da humanidade há cinco séculos e,
segundo o cientista político Marshall Berman, em seu livro Tudo que é sólido desmancha no
ar, tem como principal característica a contradição, o paradoxo que ela causa ao homem
moderno, o qual ao mesmo tempo em que almeja a mudança, a transformação, também teme
pelo desfacelamento daquilo que lhe é real, conhecido, do que consiste a sua vida e do que ele
é24.
Assim, o moderno pode ser acolhido tanto positivamente, quanto negativamente. No
primeiro caso, ele em geral está ligado à idéia de progresso e, efetiva-se sobremodo nas
questões tecnológicas. No segundo, o moderno atua nas áreas política, social e cultural,
gerando o já referido medo nos indivíduos e nas sociedades, em vista do seu caráter
revolucionário, de afronta à ordem estabelecida, a qual pode ser representada por uma
geração, um governo, o Estado, a sociedade ou “um outro”25.
Este sentido revolucionário, empregado à atuação do moderno, fora soberbamente
intensificada durante o último século; o termo “moderno”, que no século XVIII, surgia como
contraponto à “antigo”, em fins do XIX, passou a definir um tempo presente, como
diferenciado e independente de todo o passado que o precedeu, que provoca “a sensação
historicista de que vivemos em tempos totalmente novos, de que a história contemporânea é a
fonte de nossa significação, de que somos derivados não do passado, mas da trama ou do
ambiente circundante e envolvente, de que a modernidade é uma consciência nova, uma
condição recente da mente humana”26.
Tal percepção impôs aos homens modernos a necessidade da busca por novas
identidades27, que somada ao fato de a vida moderna estar em contínua modificação, implica
que esta procura por novas identidades seja constante na trajetória da humanidade, tornando-a
alvo de sucessivas crises de época e da agudização dos conflitos de gerações, impelidos pela
disputa gerada pela contraposição dos valores herdados e dos novos, impostos28.
24 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 25 KARL, Frederick R. O moderno e o modernismo: a soberania do artista 1885-1925. Rio de Janeiro: Imago, 1988. 26 BRADBURY, Malcolm & MCFARLANE, James “O nome e a natureza do modernismo” In: BRADBURY, Malcolm & MCFARLANE, James (Orgs.). Modernismo: guia geral 1890-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 16. 27 SCHORSKE, Carl E. Viena fin-de-siècle. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 28 Op. Cit.
14
Entretanto, é essencial frisar que, apesar de esse fenômeno incorrer numa permanente
ameaça às tradições, a própria modernidade já desenvolveu toda uma gama de tradições em
seu entorno29. O termo “modernidade” insinua uma situação presente em contraponto a um
tempo histórico já ultrapassado, sendo, portanto, um estado já efetivado, que se encontra
agora numa posição estática30. Modernização e modernismo são elementos tradicionais da
modernidade, com os quais esta às vezes se confunde que sugerem “um processo de tornar-se.
Pode ser: tornar-se novo e diferente, pode significar subverter o que é velho, tornar-se um
agente de desordem e mesmo de destruição”31, ou seja, uma situação ainda em mutação.
As idéias de modernismo e modernização, todavia, também são vistas de forma
diferenciada: o primeiro pode ser “encarado como uma espécie de puro espírito, que se
desenvolve em função de imperativos artísticos e intelectuais autônomos”32 e, o segundo,
como “um complexo de estruturas e processos materiais”33. Ou seja, a modernização e o
modernismo exprimem dois níveis diferenciados da modernidade: um material e, outro,
espiritual; um voltado para as áreas política, econômica e social e, o seguinte, para os campos
cultural, artístico e intelectual.
Foi a partir das décadas finais do século XIX e durante todo o século XX, que estes
dois processos passaram a atingir indiscriminadamente a toda a humanidade e, não mais
apenas às grandes metrópoles mundiais: “nunca em nenhum período anterior, tantas pessoas
foram envolvidas de modo tão completo e tão rápido num processo dramático de
transformação de seus hábitos cotidianos, suas convicções, seus modos de percepção e até
seus reflexos instintivos (...) no mundo tomado agora como um todo integrado”34. Este
capítulo tem por objetivo justamente tratar da disseminação do fenômeno da modernidade
pelo mundo e, de forma mais específica em Curitiba, nos períodos denominados fin-de-siècle
e belle-époque, que no nosso país, em vista da distância e do não envolvimento com a 1ª
Guerra Mundial, se prolongou para além de 1914.
Foi neste período que a civilização burguesa européia e americana alcançou o seu mais
alto grau, naquela que foi a época de maior expansão industrial e crescimento econômico
mundial já visto na história, superando inclusive os dias atuais. Esta expansão econômica
estabeleceu um clima otimista, que contagiava a cultura e os comportamentos da sociedade,
29 BERMAN, Marshall. Op. Cit. 30 KARL, Frederick R. Op. Cit. 31 Op. Cit, p.21. 32 BERMAN, Marshall. Op. Cit, p.129. 33 Op. Cit, p.129. 34 SEVCENKO, Nicolau (org.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, v. 3, p.7.
15
aliada e ocasionada pela chamada “Revolução Científico-Tecnológica” das décadas de 1850 a
1870. Através da aplicação das descobertas científicas aos processos produtivos, esta gerou
grande impacto nas áreas industrial, biológica e médica, sendo responsável por avanços de tal
ordem, que ainda servem de base para a tecnologia contemporânea, tais como a energia
elétrica; o motor a combustão interna; a turbina a vapor; os combustíveis fósseis; o
automóvel; a radiodifusão; o aeroplano; o telégrafo; o telefone; a radioatividade; a penicilina.
A partir de cada invenção, surgiam outras várias em sua decorrência, criando assim
um ciclo intenso de modernização, que encantava os homens e lhes causava a certeza do
domínio sobre a natureza e de um futuro pleno de progresso. Esses mesmos inventos,
contudo, acarretavam também o temor, principalmente pelos acidentes que iam se dando a
partir de sua difusão, dos quais os mais freqüentes eram os choques elétricos e os
atropelamentos. Além disso, um número razoável da população mundial via ainda com
desdém e incredulidade o potencial da tecnologia, ou mesmo descriam da sua efetiva
existência.
Outras situações eram, ainda, criadas pela tecnologia, como a relatada em Viva o
Tango!, na qual surge um novo embaraço proveniente do incômodo do passageiro que
levantou para sair na primeira parada e, o bonde só parou no segundo. Ildefonso do Serro
Azul, o autor deste livro, expressa uma posição crítica em relação a essa tecnologia, quando
diz ver no caiador de um aranha-céu um profissional mais heróico e valoroso que um aviador,
pois “o andaime que elle contróe para o seu equilibrio nas alturas, não tem a segurança
garantida pelas solemnes investigações desse caruncho, a Sciencia, e nem siquer a resistencia
garantida, imbecil e monotona desse grande verme que aos poucos vae substituindo, com
torpeza material, o talento humano: a Machina”35. Assim, este autor via na valorização da
ciência e da mecanização uma supressão das faculdades humanas. Eis um exemplo de que
nem todos percebiam o progresso científico como vantajoso.
Porém, nem toda a crítica e tradição impediram o desenvolvimento científico, o qual
veio acompanhado por um boom no crescimento populacional das grandes metrópoles,
ocasionado, principalmente, pela movimentação de volumosas populações, tanto do campo
para a cidade, quanto de cidades menores para maiores, e de países pobres para outros com
mais oportunidades econômicas.
35 RABECÃO, Jeca (SERRO AZUL, Ildefonso do). Viva o tango!. Curytiba: Placido e Silva, 1927, p.54.
16
Conformava-se, assim, uma sociedade “urbanizada, industrializada, mecanizada, com
toda a sua vida moldada pela rotina da fábrica ou do escritório”36 e, que começava a se basear
numa “produção de massa para um mercado de massa”37, inclusive no plano ideológico, com
o desenvolvimento da publicidade e da indústria cultural, expressa de forma mais evidente na
invenção e rápida expansão do cinematógrafo.
O fenômeno do Imperialismo, que se constituiu pela disputa e divisão, entre as
potências industriais, das áreas não colonizadas do planeta ou pelo restabelecimento dos
vínculos com as antigas colônias. Esse domínio mundial, por parte dos países avançados,
legitimava-se, não apenas a partir do ponto de vista material, como também através de um
exacerbado eurocentrismo, que afirmava a superioridade racial e cultural dos europeus em
detrimento dos demais povos. Isto justificava as dominações em nome da difusão do
progresso e da civilização.
Resultou desta situação, um rápido avanço sobre as sociedades arcaicas, que se viram
obrigadas a entrar num ritmo diverso ao que estavam acostumadas, principalmente a partir da
introdução dos novos hábitos de produção e consumo da sociedade burguesa ocidental.
Este contexto de transformações influenciou também as manifestações intelectuais e
artísticas. Nomes importantes na literatura, artes plásticas, arquitetura, música, filosofia,
ciências humanas e sociais, como James Joyce, Kafka, Freud, Gertrude Stein, Tony Garnier,
Max Weber, Émile Durkheim, Cézanne, Matisse, Picasso, Chagall, Klimt e Modigliani,
dentre outros vários, foram responsáveis pelo “período da mais extraordinária originalidade e
vitalidade na história da arte”38 e por um movimento totalmente original de estudo e
concepção do homem e da sociedade, que fora denominado de modernismo.
O modernismo foi uma “arte das cidades”39, principalmente das grandes metrópoles
cosmopolitas, como Berlim, Londres, Viena, Zurique, Nova York e Paris, cidades estas que
eram consideradas os centros culturais do Ocidente, pois congregaram em si o encontro de
idéias e pessoas de uma forma inovadora, favorecendo a renovação de pensamentos e
modalidades artísticas. Isso tornava a urbe palco de um conflito entre os valores da sociedade
tradicional e a contestação destes, baseada nas novas descobertas, experiências e percepções
que caracterizaram o ambiente moderno e o pensamento modernista. Assim, a cidade
36 BULLOCK, Alan. “A dupla imagem”. In: BRADBURY, Malcolm & MCFARLANE, James (Orgs.). Op. Cit. p. 45. 37 Op. Cit. 38 Op. Cit, p. 48. 39 BRADBURY, Malcolm. “As cidades do modernismo”. In: BRADBURY, Malcolm & MCFARLANE, James (Orgs.). Op. Cit, p. 76.
17
representava, concomitantemente, os papéis de centro da organização sócio-cultural
estabelecida e de propulsora da novidade, da criação e da transformação40.
Esta função de convergência de novas artes, artistas e da comunidade intelectual,
desempenhada pelo ambiente citadino, devia-se à oportunização de toda uma estrutura para o
desenvolvimento cultural, através de bibliotecas, livrarias, editoras, teatros, cafés, galerias,
cabarés, revistas e periódicos, bem como da presença dos patrocinadores de obras, eventos e
carreiras. A cidade facilitava, também, o contato interpessoal, as novas experiências, os
debates, o lazer, o dinheiro, a multiculturalidade, a possibilidade de adoção de idéias e estilos
diversificados e a especialização artística e intelectual.
O artista moderno era um típico morador da cidade, envolvido nos desafios trazidos
por uma sociedade tecnológica moderna, a qual suplantava várias das antigas tradições,
gerando mudanças sócio-culturais e obrigando o homem moderno a adaptar-se a um ambiente
de constantes novidades e mutações. Dessa forma, tornaram-se características deste homem, o
individualismo, a subjetividade, a crise de identidade, o nervosismo e a solidão em meio à
multidão41. Estes elementos impunham uma visão, por vezes, pessimista em relação à
sociedade urbana, implicando que “todas as formas de pensamento e arte modernistas tenham
um caráter dual: são, ao mesmo tempo, expressão e protesto contra o processo de
modernização”42.
A influência daquelas metrópoles alcançou novas cidades por todo o mundo,
envolvendo-as nos conflitos e complexidades inerentes à modernidade. Este largo alcance
geográfico obtido pelo movimento modernista deveu-se, portanto, ao cosmopolitismo de seus
adeptos, que localizados nos centros urbanos, dispunham dos espaços de comunicação e
discussão ali existentes para disseminar os seus ideais.
Entretanto, enquanto no Ocidente, durante o século XIX, a experiência moderna já
havia sido efetivamente vivenciada nas grandes metrópoles, nas áreas fora da Europa e
América do Norte, a modernização ainda não estava ocorrendo.
A inserção da modernidade no Brasil adveio com o regime Republicano, o qual fora
introduzido no país a partir do desejo de equiparação deste com o “mundo civilizado” e da sua
integração com a economia mundial. Assim, ao assumir o poder, a República propôs-se a
levar o país a romper com a “letargia” de seu passado, finalmente igualando-se às nações
40 Op. Cit, p. 77. 41 LE RIDER, Jacques. “Individualismo, solidão e identidade em crise”. In: LE RIDER, Jacques. A modernidade vienense e as crises de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992, pp. 53. 42 BERMAN, Marshall. Op. Cit, p.224.
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européias. Esse “passado” referia-se à monarquia, que se associava agora a idéias negativas,
como a escravidão e o atraso institucional.
Na busca pela formação de uma nova identidade política para o brasileiro e de sua
própria legitimação, os republicanos substituíram os antigos símbolos nacionais por novos,
como por exemplo, a alegoria feminina representando o regime e a bandeira nacional, que em
seu “Ordem e Progresso” expressava as idéias de modernidade e civilização, as quais a
República desejava estar associada ou, ainda, alteraram o antigo significado de outros, como o
da figura de Tiradentes, que de desordeiro e traidor da pátria passou a ser visto como um
mártir e um herói visionário. Dentre os novos representantes heróicos da nação, ganhava
destaque, nesta conjuntura, o aviador Santos Dumont, símbolo que atestava a possibilidade de
igualdade do Brasil com os países desenvolvidos.
Contudo, a busca para alcançar o estrato dos países modernos não ficou apenas no
âmbito do convencimento ideológico, sendo efetivada pela elite dirigente oligárquica através
de grandes investimentos nas principais capitais brasileiras, as quais deveriam enquadrar-se
nos moldes urbanísticos propostos e utilizados pela Europa Ocidental e América do Norte. O
exemplo mais emblemático ocorreu na capital do país. O empenho político de modernizar o
Rio de Janeiro se fez necessário por se tratar da sede de um governo que se propunha
moderno e, para sua legitimação, precisava concretizar os ideais defendidos. Além disso, tal
cidade, por seu papel histórico, possuía uma alta taxa populacional, ao mesmo tempo em que
mantinha traços do período colonial e do império, havendo, assim, uma inadequação entre a
sua importância e as reais condições urbanísticas nela imperantes. No intuito de solucionar
estes desajustes, realizara-se ali uma grande reforma, cujo marco maior foi a Avenida Central,
totalmente reformada e remodelada, de modo a igualar-se aos mais modernos bulevares
parisienses e, como tais, servir de cartão-postal da capital e atrativo para os estrangeiros.
Além das inovações materiais, ocorreu também uma modernização dos hábitos e
costumes, originando uma nova sociedade, que fazia do Rio de Janeiro a ligação com a
cultura européia, especialmente a parisiense, e molde para as demais elites brasileiras. A
capital do país era palco constante de novos modismos, como o francesismo, que permeava
não apenas a linguagem (as fontes analisadas mostravam que o uso de expressões francesas
era recorrente na alta sociedade), mas os trajes, os chapéus, as comidas, a literatura, os
perfumes, as diversões e, mesmo a educação; novos teatros foram construídos, conforme
aumentava a afluência a eles por parte da alta sociedade; restaurantes e hotéis eram
inaugurados, devido à maior circulação de pessoas. Saía-se às ruas, especialmente a Avenida
Central, para passear, comprar, ir às confeitarias, circular com seu automóvel e para ver e ser
19
visto; surgem os cronistas sociais para detalhar esses novos costumes e evidenciar aqueles
indivíduos que mais os representassem. Estes, segundo Ildefonso do Serro azul, tinham
“como principal escopo ditar (...) as leis da moda, registrar os anniversarios de individuos
illustres e annotar as reuniões chics com comentarios frívolos e harmoniosos”43.
A realização de festas e espetáculos em parques e jardins se tornou habitual;
freqüentavam-se com assiduidade os cinematógrafos, os quais eram cada vez mais numerosos
à medida que se tornavam populares; as fotografias estavam mais acessíveis e ser retratado já
era algo comum, principalmente com o lançamento das câmeras portáteis. Introduziram-se os
automóveis, cuja importação logo se tornou coqueluche entre a alta-sociedade que, em
seguida, organizou “Automóveis Club” e corridas automobilísticas. Nos bailes, ouviam-se e
dançavam-se as valsas, as polcas, as quadrilhas, o maxixe e o tango inicialmente de caráter
popular, logo chegariam à “hautte gomme”; o carnaval ganhava adeptos entre as classes altas,
que empreendiam refinados bailes neste período.
Adquiriam-se, entre os mais abastados, os fonógrafos e os gramofones, que
incentivaram a primeiras gravações musicais de artistas brasileiros, empreendidas pela casa
Edison. Houve grande estímulo à prática de esportes, devido principalmente, às teorias
higienistas, sendo praticadas modalidades como ciclismo, esgrima, patinação, tiro ao alvo,
tênis, hipismo, remo, canoagem, ginástica e futebol, dentre outros mais, que impulsionaram a
abertura de clubes específicos para a sua prática. Recorriam-se também aos jogos de azar,
legais como as apostas no páreo de turfe, mas também aos ilegais, que eram praticados em
casas noturnas.
As mulheres começam a lutar por direitos iguais aos dos homens, principalmente no
que tangia ao voto, à educação e a condições de trabalho, mas também angariando maior
participação neste espaço público recém-formado pela modernidade, não apenas como
ornamento da sociedade, mas no efetivo papel de literatas, artistas plásticas, musicistas,
poetas, filósofas e outros setores da intelectualidade, até então de domínio quase exclusivo
dos homens.
Ascendia uma nova elite brasileira, elemento que, segundo Sevcenko, ao lado dos
fenômenos da libertação dos escravos, do fim da monarquia e união entre Igreja e Estado, e da
chegada de milhares de imigrantes ao país, fora responsável pela alteração dos “quadros
hierárquicos e de valores da sociedade (...) [e por] um amplo processo de desestabilização da
sociedade e cultura tradicionais”44, percebida através de várias manifestações populares,
43 RABECÃO, Jeca Op. Cit, p.132. 44 SEVCENKO, Nicolau (org.).Op. Cit, p. 16.
20
ocorridas neste período. Estas foram motivadas pela sensação de perda de referências e
ruptura com as origens, que reverteu traumaticamente toda uma série de certezas já
firmemente arraigadas na mentalidade brasileira. Tal situação resultou de um processo de
modernização forçada, imposta de cima para baixo, que se baseava numa política de mão-
dupla: de um lado, o estabelecimento da modernidade, com seus benefícios e facilidades, que
eram usufruídos pelos membros da elite, enquanto de outro, via-se a repressão, a exclusão e o
autoritarismo, que eram voltados para a grande maioria da população.
Esta tendência modernizadora, com seus traumas e benefícios, logo alcançou a cidade
de Curitiba, para a qual se tornava imperativo, “no início do século, disseminar a moral,
difundir a ética e a fé, enaltecer o progresso e o trabalho; distribuir a disciplina e a ordem,
incentivar o civismo e introduzir a saúde e a higiene”45. Seguindo este modelo, Curitiba
avançou na conquista de sua modernização, enquanto encetava novas formas de sociabilidade
e forjava uma identidade curitibana.
Este contexto propiciou a formação do espaço para o embate do ideário da
modernidade e os consolidados valores da sociedade tradicional: agrária, patriarcal,
monarquista e clericalista. O antigo conflito entre o dogmatismo católico e o conhecimento
científico, surgido com o advento da modernidade, entrou em debate intenso na capital.
A ciência originando a tecnologia e, esta melhorando os meios de produção, gera o
progresso e a prosperidade financeira ou material, que levam a novos hábitos de lazer e
consumo. Nesse contexto, a igreja que por muito tempo fora o local para o encontro
comunitário perdeu seu espaço central e reagiu, condenando e advertindo contra as
oportunidades de desvio de conduta por influência do pensamento materialista, que embasava
a modernidade. A Igreja em Curitiba, aderente aos propósitos do Vaticano, coibia o
modernismo através da intensificação do estudo e de hábitos religiosos, assim como proibia o
acesso a qualquer fonte de informação não religiosa. A ação das dioceses e seus movimentos
foi reforçada, assim, no âmbito da vigilância e coerção. O alvo principal dessa ação era a
mulher, a qual procurava-se impedir que alcançasse a inserção social e o desenvolvimento
profissional e intelectual. Tal empreendimento estabeleceu como principal canal de
divulgação, nessa Curitiba, a Revista Veritas, a qual preconizava “restrições ao teatro e ao
cinema, considerados veículos de divulgação de cenas licenciosas e vida desregrada; pela
condenação dos bailes e das danças ‘modernas’, focos de lascívia e apelo sexual; pelo
desestímulo à vaidade feminina e à preocupação com os ditames da moda. Sob a expressão ‘o
45 TRINDADE, Etelvina Maria de Castro. Clotildes ou Marias: mulheres de Curitiba na Primeira República. Curitiba: Fundação Cultural, 1996, p. 28.
21
mundo’, são condenados, então, a vida dos salões, as manifestações culturais e toda e
qualquer forma de lazer”46.
Este posicionamento autoritário da Igreja incentivou intelectuais a assumirem uma
posição anticlericalista, pois viam os clérigos como anacrônicos e agentes inibidores do
progresso buscado pela sociedade, uma vez que pregavam um conhecimento enrijecido e
dogmático, contrário aos princípios científicos. A Igreja, na medida em que exercia seu poder
e influência social, dificultava o desenvolvimento da República, já que esta se propunha laica
e, portanto, livre das interferências espirituais na política. Além disso, os clérigos defendiam o
celibato como virtude que, se praticada em escala social, impediria a formação de famílias,
símbolo da mediação do indivíduo com a pátria. Outro agravante, que servia de restrição dos
intelectuais para com os padres, era a origem estrangeira da maior parte de suas ordens
religiosas, corrompendo os ideais patrióticos próprios da modernidade.
O anticlericalismo, assim, foi um movimento que se opôs à interferência do clero nos
vários setores da sociedade. Este movimento defendia o livre-pensamento, a liberdade
individual e a espontaneidade nos relacionamentos interpessoais. Para o alcance de tais ideais,
via-se como necessária a educação laica para os jovens e o fim da influência dos padres nas
particularidades da vida familiar, que se fazia sentir mais intensamente sobre a mulher. Dessa
forma, era importante e decisiva a adesão desta, pelo seu papel de mãe e primeira educadora
dos indivíduos da sociedade. Tais medidas assegurariam uma formação com base numa
mentalidade moderna e racional.
A adesão de intelectuais à Igreja, assim como os seus oponentes, é encontrada
inclusive nas fontes analisadas neste trabalho. Na crônica “Diário de uma dama 1820”, do
livro Enredos Fúteis, Laertes de Munhoz elogia o recato das moças dessa época, que iam à
missa vestidas com suas melhores roupas e, envergonhavam-se com as investidas masculinas,
pedindo perdão a Deus apenas por ouvir palavras pecadoras saídas da boca de um homem.
Em Viva o Tango!, o anticlericalismo do autor aparece em diversos momentos do texto.
Exemplo disso se dá quando a personagem da jovial Alzira diz que Dr. Rogério proibiu as
danças modernas em sua casa, pois “o tango, o maxixe, o shimmy e o charleston são
excommungados por S.S. o Papa, que Satanaz o tenha em suas divinas caldeiras”47. O autor
coloca, em nota, que a abreviatura de Sua Santidade possuía relação com Guiness, fabricante
inglês de cerveja, pois um tem os dois ss no início e, o outro no fim. Outra situação em que
Rabecão critica a Igreja ocorre quando menciona um padre que recebe dinheiro para escutar
46 Op. Cit, p. 158. 47 RABECÃO, Op. Cit, p.16.
22
as confissões de um morto, que naturalmente nada diz. Na realidade, este livro, poderia ser
considerado um livro anticlerical por essência, uma vez que defende justamente aquilo que a
Igreja mais criticava no período, que era a vida moderna.
Apesar da oposição da Igreja e de grupos conservadores, Curitiba tornou-se palco para
a discussão e disseminação de vários ideais, como o republicanismo, o positivismo, o
cientificismo, a maçonaria, o espiritismo, o neopitagorismo, o anticlericalismo e o feminismo.
Esta discussão se aperfeiçoou e surgiram diversos novos periódicos em defesa dessas variadas
opiniões: Diário da Tarde, Olho da Rua, Electra, Cenáculo, Esphynge, Luz de Krotona e A
Doutrina.
O Centro de Letras do Paraná, fundado em 1914, e a Academia de Letras do Paraná,
de 1923, expressavam a recente importância dada às letras na capital, sendo compostas pelos
escritores mais tradicionais da literatura do estado. Estes, por sua vez, eram rivalizados pelo
dinâmico grupo de literatos estreantes, seguidores dos movimentos futurista e, mais tarde,
modernista, formado por nomes como Octávio de Sá Barreto, Castella Braz, Laertes de
Munhoz, Alceu Chichorro, Rodrigo Junior, Clemente Ritz, Valfrido Pilotto, Jurandyr
Manfredini, Ada Macaggi, Raul Gomes, Ildefonso do Serro Azul e Brasil Pinheiro Machado,
entre outros. Tal movimento obteve representação também na música e artes plásticas
paranaense, com Ruth Pimentel, Leo Cobbe, Lange de Morretes, Trapple e João Turin.
O debate, produção e publicação das idéias destes variados grupos de pensadores
desenvolveram um ativo círculo de intelectuais, composto por jornalistas, poetas, educadores,
escritores, advogados e amantes da história, geografia e etnologia, os quais circulavam nos
cafés, salões, redações dos jornais, grêmios, cassinos e clubes.
As idéias de muitos destes intelectuais eram que os problemas sociais só poderiam ser
solucionados a partir da aplicação racional do conhecimento técnico-científico. Daí surgiu
uma nova visão aplicada aos estabelecimentos de ensino, tanto públicos como privados, laicos
ou confessionais, que fizeram do ensino primário um meio para instrução mais elementar das
massas e, do profissionalizante, a fonte e regulamentação da mão-de-obra para o mercado em
formação. Tanto uma quanto outra modalidade escolar multiplicou-se nessa Curitiba, tendo
seu ponto culminante na construção da primeira universidade do país, a Universidade do
Paraná, em 1913. Assim, elementos como educação, ciência, progresso, civilização e
modernização passaram a ser vistos como inseparáveis.
Essa crença no progresso e na modernidade, associada ao desejo de equiparação com
os grandes centros urbanos influenciadores da época, fez da Curitiba do início do período
republicano uma cidade em transformação. Este fenômeno tornou-se visível através da
23
implantação de novas atitudes ditas “civilizadas”, que passavam a ser regidas por toda uma
série de ordenamentos políticos, especialmente no centro da cidade. Situações corriqueiras,
como a construção de casas de madeira e a criação de animais, foram normatizadas e
afastadas do núcleo urbano, que com isso pretendia melhorar seus hábitos de higiene e
limpeza, particulares e coletivos.
O planejamento urbano aplicado ao centro da cidade modificou-o através da abertura,
calçamento e pavimentação de ruas, a exemplo da reformulação da Rua XV de Novembro, a
via principal da cidade; da construção do Paço Municipal e de edifícios mais elevados e
arquitetonicamente projetados; da implementação da infra-estrutura concernente à canalização
de rios, limpeza pública, esgoto, água encanada e iluminação elétrica e da arborização das
ruas e praças. A difusão da luz elétrica na cidade, por exemplo, é narrada por Ildefonso do
Serro Azul, em Viva o Tango!: “Os lustres do brilhante salão illuminaram-se tocados por
mãos invisiveis.... (O autor pede desculpas por esse trecho de romance sensacional! As mãos
invisiveis pertenciam ao creado, que num gesto simplíssimo abrira o comutador da luz
electrica, collocado atraz da porta...)”48.
Assim, estava criada a condição para os curitibanos saírem mais de suas casas e,
mesmo destro destas, se socializarem. Isso propiciou a abertura de espaços públicos voltados
para o lazer, tais como cafés, teatros, clubes e parques, dos quais se destacou o Passeio
Público, assiduamente freqüentado pela elite curitibana, que também exigiu a criação de casas
de comércio à sua altura e agências bancárias.
De todos os novos espaços e hábitos originados por esta conjuntura, os teatros eram os
freqüentados mais a miúde pela clientela de nível econômico elevado. Guayra, Hauer,
Polytheana e pequenos teatros dos clubes da cidade, incentivavam a apreciação artística, no
que tange a música, a dramaturgia e a declamação poética. Estes mesmos teatros se
incumbiram de apresentar a novidade que lhes tiraria a predileção do público: o
“cynematógrapho”, que, modesto inicialmente, conquistou rapidamente o interesse e a paixão
do público. Esta adesão e a conseqüente lucratividade permitiu que, em pouco tempo, fosse
exibido em salas próprias. O cinema além de se proliferar por vários locais da cidade, invadiu
conversas de ruas e praças, ocupando colunas nos principais periódicos, tanto para divulgação
quanto para a crítica e censura. Em Viva o Tango!, o autor desenha uma personagem
melindrosa photomaniaca, que estudava as poses das atrizes de cinema, nas revistas
ilustradas, para fazer os seus próprios retratos.
48 RABECÃO. Op. Cit, p.33.
24
As matinês faziam parte das tardes de “footing” e de avenida das jovens curitibanas,
que incorporavam palavras de língua estrangeira ao seu vocabulário e usavam cabelos e
vestidos da moda, terminando seu passeio com o elegante “five o’clock tea” ou com as tardes
de mate. Já as famílias iam aos piqueniques, saraus e às atividades ofertadas pelos clubes:
recreativas, beneficentes, musicais e de ginástica, esporte bem aceito na época, sendo os mais
freqüentados pela elite curitibana o “Club Coritibano” e a “Sociedade Thalia”. Assim, seja
pelo cinema, seja pelo teatro, no descompromissado passeio ou na ida ao clube, os curitibanos
aprenderam a se divertir publicamente.
Essas transformações também ocasionaram grandes problemas para a cidade, uma vez
que ela não estava preparada para enfrentar modificações tão rápidas e intensas. A expansão
dos seus limites foi pressionada pela elevação da taxa demográfica, que se deu, em grande
parte, devido ao contingente imigratório para cá dirigido, especialmente entre os anos de 1870
a 1890. As famílias curitibanas, principalmente as oriundas de imigrantes já fixados,
contribuíram significativamente com esses números, pois, tinham uma média bastante alta de
filhos (segundo Boni, os italianos possuíam uma média de quase dez filhos por família).
Dessa forma, em curto período, a população da cidade praticamente dobrou.
Esse aumento populacional, entretanto, acabou gerando para as camadas mais baixas a
fome e o desemprego e, a preocupação para as camadas mais altas, uma vez que o aumento da
mendicidade, do abandono de menores, da miséria dos trabalhadores, do movimento operário
e da criminalidade, ou seja, uma série de problemas sociais, acabavam enevoando o ideal de
cidade moderna dentro da qual buscavam envolver Curitiba.
As soluções encontradas para os problemas urbanos geralmente acabavam por piorar
ainda mais a vida dos pobres, exemplo disso é a reforma urbana ocorrida na segunda década
do século XX. Na administração do prefeito Candido de Abreu, o projeto de desapropriação
executado pela Prefeitura da Capital, pretendia melhorar a aparência da cidade. Foram
banidos do centro os casarões ou residências coletivas, assim como os casebres de tábua
serrada, nos quais viviam famílias sem as mínimas condições de higiene e, geralmente
aglomeradas em um só cômodo. Também foram afastados das áreas centrais os hotéis
duvidosos, os bares que abrigassem badernas, as casas de jogos de azar e as pensões para
mulheres desocupadas. Esta tentativa de remover os problemas e as presenças perigosas de
mendigos, prostitutas, loucos e vagabundos apenas retirou do centro da cidade as camadas
sociais mais baixas. O intuito desta reforma, como já o fora a do Rio de Janeiro, era de
esconder os problemas sociais, dando um aspecto moderno para a cidade e, tornando-a
25
aprazível aos olhares internos e externos, fazendo de Curitiba, assim, um centro urbano
efetivamente europeizado e não só de habitantes com feições daquele continente.
Para a elite e a intelectualidade locais, o ideal de uma Curitiba que caminhava a passos
largos rumo à modernização continuaria intacto e, não seria necessário recordar a todo
instante a irrealidade desta imagem e o árduo processo de resolução dos problemas sócio-
econômicos, que seria imperativo para torná-la verdadeira. Para o olhar externo, a aparência
da cidade deveria ser persuasiva e indicativa de que era um bom lugar para investir e se
estabelecer com tranqüilidade.
Os pobres teriam que se arranjar com imóveis de aluguéis mais caros, os quais, devido
a menor oferta, haviam se elevado por toda a cidade, exceto na periferia, e arcar, ainda, com
novos gastos como a eletricidade e o transporte dos bondes. Com os salários cada vez mais
baixos, devido a crise econômica que estava a abater o Paraná, o ganho dos trabalhadores ia
quase que integralmente no pagamento de sua moradia e, muitas vezes, para aliviar tal gasto,
eram obrigados a juntar três ou quatro famílias em cada casa, vivendo sob péssimas condições
de higiene, o que por sua vez também era criticado pelas classes mais altas, que viam na
situação uma total imoralidade.
As classes dirigentes se inquietavam, ainda, com aqueles indivíduos que não
estivessem inseridos no mundo do trabalho como os menores abandonados, vadios e
mendigos, os quais eram vistos como possíveis focos de criminalidade ou aliciadores de
outros trabalhadores e, sobretudo, como possível mão-de-obra que precisava ser integrada.
Internar estes sujeitos em hospitais psiquiátricos, apelar para instituições de caridade ou,
ainda, no caso de menores, encaminhá-los para escolas disciplinares, eram recursos bastante
utilizados para afastá-los do olhar público. Caso tais medidas não fossem suficientes para
enquadrá-los nos modelos socialmente aceitáveis ou, ao menos, pudessem afastá-los do
convívio dos demais cidadãos, recorria-se, então, à força policial e ao seu recolhimento em
prisões.
Para garantir a segurança patrimonial e pessoal da elite e sustentar as regras recém
impostas pela sociedade, especialmente no núcleo central urbano, criou-se a guarda civil, uma
vez que o contingente policial ora existente não cobriria todos os postos necessários para tal
vigilância. Esta seria exercida principalmente sobre os freqüentadores de bares, jogatinas,
prostíbulos e portadores de armas proibidas. Pode-se dizer, então, que “A importância da
polícia cresce paralela à evolução da cidade”49.
49 Op. Cit, pág. 207.
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Mesmo assim, crescendo junto com a modernidade, novos hábitos de diversão,
considerados tradicionalmente ilícitos, ganhavam espaço em todos os setores da sociedade.
Desta forma, a elite jogava nos cassinos, enquanto os mais pobres se arriscavam na jogatina,
assim como havia os bordéis que iam do luxo ao meretrício. Quando mencionados em
sociedade, tais hábitos eram condenados por um discurso moralista, que via neles uma chaga
maldita oriunda do progresso e da decadência dos bons costumes que o acompanha, ou seja,
eram vistos como “vícios da civilização” ou “desconfortos da urbanização”, dos quais a
boemia, a prostituição e a vida noturna eram o veículo. A intelectualidade mais progressista e
adepta destes hábitos, entretanto, alegava que “o conjunto de vícios, insatisfações,
transgressões, (..) configura-se em sinônimo de civilização; isto sim irá distinguir a ‘villa’ da
‘urbs’”50. Dessa forma, o julgamento moral se aplicava com mais tolerância à elite e menos
compreensão aos demais extratos sociais. Cada qual deveria, portanto, permanecer na sua
esfera, mantendo a distância segura para evitar o constrangimento público. Buscava-se, assim,
resguardar os jovens desses maus exemplos, de modo que as gerações futuras ficassem limpas
daqueles vícios.
Os imigrantes que aqui se fixaram, apesar de serem inicialmente recebidos com grande
expectativa pela elite curitibana, que esperava deles, além do embranquecimento da
população, que trouxessem uma bagagem de valores, comportamentos e tradições européias e
civilizadas, que uma vez difundidas, auxiliariam o processo de modernização brasileira,
acabaram por também serem marginalizados pela sociedade curitibana. A imagem idealizada
criada em torno do imigrante logo foi suplantada pela de indivíduos viciados, sujos, doentios
e perigosos, principalmente no que tangia à visão deste em relação ao trabalho, o
inconformismo com as condições trabalhistas aqui imperantes e as teorias revolucionárias nas
quais baseavam suas reclamações nesse setor. Dessa forma, de trabalhador ideal o imigrante
passou a ser visto como uma ameaça à coesão social da pátria em formação.
Mas o perigo que os imigrantes impunham à nação advinha sobremaneira de outro
elemento: a manutenção e, mesmo fortalecimento do sentimento de pertencimento étnico aos
países de origem, traduzido principalmente pela conservação da língua e cultura originais.
Em Curitiba, a larga presença de imigrantes, provenientes das mais diversas
nacionalidades, dificultava a imposição a todos os habitantes da ideologia republicana
brasileira, que se dava principalmente por meio dos ensinamentos escolares. A resistência a
tal ideário, assim, ocorria através da permanência de escolas estrangeiras nas colônias, que
50 BERBERI, Elizabete. RODRIGUES, Marilia Mezzomo. A “URBS” viciosa. A crônica está além da notícia. Monografia de Graduação. UFPR. Curitiba. 1991, s/ pág. Grifo no original.
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mantinham não apenas a língua de outros países, mas também a cultura, bem como dos clubes
e sociedades recreativas difusoras e mantenedoras dessas culturas, tais como o “Deutscher
Sängerbund”, a ‘Junak’, a “Giuseppe Garibaldi” e a “Sociedade dos Amigos da Cultura
Ucraína”.
Estas atitudes, num momento em que o nacionalismo intensificava-se em todo o
Brasil, foram abominadas pela intelectualidade curitibana, que via como urgente a defesa da
lealdade à pátria e a preservação da cultura nacional. Nesse sentido, engendrou-se uma
campanha, cujo ápice ocorreu com o movimento paranista e a 1ª Guerra Mundial, de
nacionalização daqueles grupos, por meio de medidas oficialmente impostas, como o
fechamento de escolas estrangeiras, clubes recreativos, imprensa de manifestação étnica e, até
mesmo a proibição do culto religioso em língua estrangeira.
Dessa forma, Curitiba, em meio a tantas modificações no seu perfil, ocorridas no
convulsivo quadro sócio-cultural acima relatado, buscou o progresso e a modernização, sob as
influências advindas das mais importantes cidades brasileiras e das grandes metrópoles
mundiais. Influências estas que, amalgamadas aos costumes da sociedade curitibana, teceram
uma nova identidade ao habitante desta interiorana capital, como a conclamada herança
européia, devida aos antes desprezados imigrantes; a alcunha de cidade desenvolvida e
planejada, ainda defendida por grandes obras urbanísticas; a defesa de uma cultura “culta”,
voltada e de acesso para poucos. Tudo isso, em meio a um conservadorismo que fora
intensificado após o período analisado e, que acabou por engessar a modernidade curitibana a
modelos recorrentes, que impediram, em certo grau, a manutenção desta mesma modernidade,
uma vez que feriram a própria essência de inconstância desta.
Tendo todos os aspectos aqui elucidados em vista, segue-se para a análise
propriamente dita das fontes, escritas numa época em que estes problemas ainda não haviam
se conformado na cidade e, esta ainda era considerada “a cidade sorriso”, característica que,
como afirmara Regina Iório, era muito bem expressa na literatura deste período.
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CAPÍTULO III
Viva o Tango! : a irresistível atração da modernidade
Durante a década de 1920, em meio ao agitado contexto relatado no capítulo anterior,
os escritores modernistas de Curitiba, que formavam um grupo dinâmico, de grande
produção, encontravam grande dificuldade para a publicação de seus textos, os quais
acabavam sendo vinculados apenas em periódicos. Assim, poucos foram os escritores que
conseguiram granjear a publicação de um livro seu. Pretende-se aqui analisar três destas
parcas publicações do período, todas as quais repercutiram de forma polêmica, por tratarem
de um mesmo assunto: a modernização dos costumes sociais.
A primeira é Enredos Fúteis, de autoria Laertes de Macedo Munhoz e publicação de
1921. Trata-se de livro de crônicas, do qual foram escolhidas as que melhor expressam a
temática de nosso interesse. O autor, quando da edição da obra, era bastante jovem ainda, pois
nascera nesta cidade no ano de 1900. Filho do literato e secretário de estado Alcides de
Munhoz, Laertes formara-se em direito, vindo a exercer a licenciatura na Universidade do
Paraná nesta mesma área, além da promotoria pública e da política. Publicara, no mesmo ano,
o livro Coroa de Espinhos; em 1928, Veneno de Cobra; em 1946, Discursos; e, em 1956,
Discursos e Perfis.
Na crônica “A’Haute Gomme” o autor parte de uma frase de Voiron, que diz que o
público é um idiota e, que através da situação que vai relatar, quer demonstrar que assim é
aquela sociedade. O relato diz respeito ao Dr. Mendes, um representante do mundo “chic”,
que soube da vinda de uma companhia alemã de operetas e perguntou ao autor como adquirir
a assinatura para o evento. Ele admirou-se por Dr. Mendes apreciar arte, mas este disse que
era para as filhas. O autor perguntou, então, se eram elas as apreciadoras, ao que o elegante
negou, dizendo ser necessário, pois ficaria feio não ir quando todo mundo iria... “Era a
moda...”. Junto a isso, elenca diversos elementos que são moda nesta sociedade: ter palacetes,
automóveis, jogar tênis, roleta e poocker, tomar chá às cinco horas e usar vestidos
escandalosos. Critica a sociedade, portanto, dizendo ser ela “Fútil como uma melindrosa que
tanto surpreende com a sua banalidade extrema, de dar mais importância a um laço de fita que
a todos os graves problemas do momento...”.
Nesta crônica, o autor expõe uma opinião bastante negativa acerca desta sociedade,
chamando-a de “fútil e idiota”, uma vez que reproduz comportamentos, sem refletir sobre
eles, mas apenas porque a moda dita que assim se proceda. Seus membros ostentam, portanto,
a aparência de estarem coerentes com seu tempo e com os ditames da moda, para manter sua
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posição privilegiada na sociedade. A melindrosa, ainda, é criticada por sua futilidade e falta
de noção de mundo, atitude alimentada por esta educação baseada nas aparências e não nos
valores morais.
As crônicas seguintes a serem aqui analisadas são complementares: “Diário de uma
dama 1820” e “Diário de uma melindrosa de 1921”, nas quais trata da mudança dos costumes
ocorridos em apenas um século.
No primeiro, Munhoz conta sobre os contentamentos e preocupações de uma recatada
dama, que, frequentadora da Igreja, fica perturbada pelo comportamento do Marquês, amigo
de seu pai, o qual inicialmente a olhou e, depois, mais ousado, apertou suas mãos e declarou
seu amor. A dama pediu perdão a Deus por escutar tão pecadoras palavras ditas pela boca de
um homem.
No segundo, o autor relata sobre uma ousada melindrosa, que tem preocupações fúteis,
como a insipidez de um jogo de roletas e de um baile, e contentava-se apenas com excessos
imorais, como a intimidade extremada com os homens.
Nestas crônicas, há uma idealização das mulheres do passado, como detentoras de
extremo recato, pudor e temor a Deus. A melindrosa de seu tempo, ao contrário, é percebida
como uma pessoa totalmente imoral, que consome champagne em excesso, expõe seu corpo
desnecessariamente, vai ao cabaret e tem contato íntimo com os homens, permitindo a dança
com corpos colados e o acesso irrestrito ao seu decote, indignando-a o homem que respeitava
os limites morais, considerado por ela como um covarde.
Ambas são julgadas fúteis pelo autor, entretanto, a futilidade da dama de 1821 era
encarada como ingenuidade, inocência, enquanto a de seu tempo, é detentora de uma
banalidade imoral. As duas figuras são construídas de forma exagerada, de modo a evidenciar
as qualidades da primeira dama e os defeitos escandalosos da segunda, assustando os leitores
do período quanto ao ponto em que a liberalidade exagerada, através de uma vida feminina
por demais mundana, poderia chegar.
A segunda obra analisada, também é de crônicas, e trata-se de O tanque de Jerusalém,
escrito e ilustrado por Alceu Chichôrro, em 1923. Seu autor foi um célebre chargista
paranaense, boêmio, nascido em 1896, filho do professor e político Joaquim Procópio Pinto
Chichôrro. Exerceu as profissões de jornalista, desenhista, fotógrafo jornalístico, caricaturista,
além de ser funcionário dos correios, local da onde tirava seu verdadeiro sustento, já que as
outras funções não lhe rendiam o suficiente para viver.
Nesta obra será analisada apenas uma crônica, que causou bastante polêmica na época:
“Raio X”. Esta mostra o Dr, Aragão, impaciente esperando sua filha aprontar-se para sair. A
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esposa reprime sua reclamação de demora, dizendo ser necessário muito tempo para uma
moça aprontar-se. Quando a moça terminou, apareceu vestida com seda transparente, ao que o
pai ficou visivelmente contrariado, dizendo não aprovar aqueles trajes. A filha defendeu-se
contando que aquela era a moda do raio x, usada para passear na hora em que o sol jogava
seus raios sobre o vestido transparente. Dizia ela não achar aquilo bonito, mas a moda era
para quem via e não para quem usava e, os moços afirmavam que aquela era a moda mais
bela.
Aparece novamente aí, portanto, a crítica aos modismos da alta sociedade, expressa
desde o relógio “ômega” do Dr. Aragão, a limusine estacionada em frente ao portão, até o
ritual exigido para se vestir para frequentar o espaço público, e a grande futilidade que
marcava o comportamento feminino, presentes tanto na mãe quanto na filha. O autor
evidenciava, também, a falta de autoridade paterna.
Assim, conforme a afirmação de Berman de que “todas as formas de pensamento e
arte modernistas (...) são, ao mesmo tempo, expressão e protesto contra o processo de
modernização”51, as crônicas selecionadas dos livros de Laertes de Macedo Munhoz e Alceu
Chichôrro, apontaram críticas de teor equivalente àquela sociedade, relacionadas à vida de
aparências de seus membros, mantida através da ostentação de posses supérfluas e hábitos
elegantes, aos modismos e sua incoerências e, principalmente, ao comportamento feminino,
personificado pelas melindrosas, que se baseava em interesses fúteis, banalidade, excessos,
exibicionismos, superexposição do corpo, desmedida liberdade de deslocamento e intimidade
com os homens, os quais também eram questionados quanto à sua falta de autoridade, que
permitiu a degeneração da conduta das mulheres.
A terceira e última obra analisada, Viva o tango!, é um romance, de 1927, escrito por
Ildefonso Pereira Correia do Serro Azul, sob o pseudônimo de Jeca Rabecão. Este nascera na
Curitiba de 1888, filho do Barão do Serro Azul, um grande industrial do mate. Foi poeta e
romancista, além de publicar textos em diversos periódicos da cidade. Fundou, com Alceu
Chichorro, a revista O anzol e publicou diversos livros, como Lilases, Saudade, Paisagens de
minha terra e Fazendo a América, dentre outros.
Viva o tango! apresenta uma visão diferenciada acerca da modernização dos costumes
da alta sociedade curitibana e, ao contrário dos autores anteriores, vê este processo de forma
positiva. Assim, a análise dessa obra será mais minuciosa, principalmente porque ela
apresenta concepções mais abrangentes da modernidade. Ela foi escrita entre julho e
51 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.224.
31
dezembro de 1926, e se tratava, segundo os próprios dizeres da contracapa, de um “Romance
Humoristico de palpitante actualidade”.
A primeira parte do livro inicia com a apresentação da personagem dr. Rogerio de
Mendonça: “medico de fama”, “possuidor de bens” herdados de família e “cavalheiresco”.
Era um quarentão de espírito moderno, exímio bailarino das danças modernas, que a viuvez e
responsabilidade pela criação dos filhos não impediram de se tornar “um bohemio, nobre e
exquisito”, adepto da liberdade, “cada vez mais excêntrico, mais bizarro e amante da
vagabundagem doirada dos cabarets”.
Era pai de Augusto, “um eterno estudante de Direito, bohemio e talentoso” e Judith,
“creaturinha perspicaz que tinha o dom de ser bella e seductoramente maliciosa, como todas
as meninas deste adoravel seculo de futilidades”, possuidora de um cérebro privilegiado para
elaboração de planos intrépidos e dona de uma ironia natural.
Inicialmente, quando a esposa de Rogério morreu, seis anos após o casamento, este
“recolheu-se a um silencio doloroso”, sendo assolado por uma dor infinita. O vizinho do lado,
entretanto, tocava flauta e costumava reunir amigos no seu salão, cuja janela dava para o
gabinete do desconsolado viúvo. Ao ouvir pela primeira vez a música que vinha dali, Rogério
fechou a janela com violência, “zangado com a alegria alheia que perturbava o silencio
magoado de sua solidão”. Tanta impetuosidade, contudo, fracassara na segunda vez, quando
escutou um tango “perturbante”, “fino e travesso” entrar pela sua janela e reavivar sua alegria.
Reagiu ferozmente contra a fraqueza, pretendendo fechar todas as frestas, mas a flauta do
vizinho sorriu e o Dr. Rogério, sem querer, sorriu com ela e, ao invés de fechar, abriu a janela
para melhor ouvir “a musica, a alegria, o barulho (...) que estavam inquietando a sua
solidão!”. Dias depois, ele saiu, voltando somente de madrugada.
O problema do livro acontece quando os filhos, já adultos em 1926, acreditam que seu
pai está zangado com eles e põe o assunto em discussão com seus amigos, tentando encontrar
uma explicação para esta inexplicável zanga do dr. Rogério, o qual estava querendo acabar
com as recepções em seus salões. Esta notícia, inclusive, fora recebida pelo grupo com grande
incredulidade, pois a juventude via no fim daquelas reuniões elegantes o naufrágio da
civilização. A situação era ainda mais alarmante pois ele pedira à filha que não dançasse mais
as danças modernas e, ao filho, que “acabasse com as bohemias nocturnas de cabarets,
mulheres e champagne...” Seu pai declarava-se enjoado da vida boêmia e, ultimamente, estava
preferindo ficar em casa com o amigo Marcello e os filhos, jogando mah-jong. Esta
solicitação de maior “recato nas palestras e nas dansas”, significava para os jovens “Muita
valsa, pouco maxixe!”
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Os amigos de seus filhos eram: Roberto, “moço brilhante e justo”, “o tranquillo Oscar
e a fascinante Alzira, senhorita vivaz, que amava com extraordinaria paixão, demonstrar
interesse pela decifração dos enigmas fúteis”, adorável menina malacacheta, de dentes
perolificados e eterno sorriso. O amigo Marcello de Araújo, assíduo freqüentador de sua casa
era “solteirão bizarro e perfeito typo 1926”, “um alegre e jovial solteirão, de caracter bohemio
e que anda beirando pelos quarenta e poucos annos de uma existência descuidada e livre” e,
que, por paixão, quase cometera a besteira de se casar em sua juventude, sendo salvo,
entretanto, pelo Acaso, ao qual, a posteriori, ficara devidamente agradecido. Era um grande
amigo do Dr. Rogerio e nutria uma grande admiração pelos filhos deste.
Apesar dos pedidos de moderação aos filhos, o viúvo havia marcado, para aquele
mesmo dia, uma festa em seus salões, com convites e orquestras, a qual os jovens, tendo em
vista as últimas resoluções paternas, não concebiam o motivo, que só lhes seria declarado
pouco antes da chegada dos convidados.
Para se precaver e galhofar a situação, os jovens resolvem dançar as “dansas mortas”,
quando surge então o senhor Narciso da Conceição, personagem da qual os jovens estavam
enfastiados. Tendo em vista o desgosto para com o mencionado senhor, e sabendo do sonho
deste de “ser o ‘lançador’ das novidades e das modas!”, os jovens dizem-lhe que a mazurka
voltou a ser a dança da moda em Paris e, que por isso estavam a treiná-la, fingindo assombro
por logo ele desconhecer o fato. Narciso fica alvoroçado e, em seu afã de lançar modismos,
lembra-se de que dali a um mês ocorreria um baile de luxo e novidade na casa de Madame
Avellar, na qual poderia apresentar a mazurka, idéia esta que recebe vivas dos jovens. E
perante o problema de um par, os jovens, interessados como estavam na ocorrência daquela
pequenina perfídia, indicam-lhe a Clotilde, indo parte do grupo depois convencê-la.
O senhor Narciso da Conceição, o querido Cisinho era grande admirador da família do
dr. Rogério e seus amigos, dos quais costumava repetir os modos e as falas, como sendo seus.
Enegrecia os cabelos, usava pó de arroz no rosto e sombreava os lábios com carmim, fazia
massagens faciais, usava espartilho para disfarçar a idade, trajava-se de forma exagerada e
adorava discutir figurinos. Era um “rapaz indigesto como as conservas alimenticias”,
principalmente porque, em sua fala, utilizava expressões estrangeiras à exaustão. Era também
curioso, exibicionista, desavergonhado e, sempre interrompia a alegria dos jovens e
intrometia-se nos assuntos alheios. Segundo o autor, era “grandemente feliz por ser
grandemente imbecil!”. Clotilde era “um querido Cisinho de saias”, que se considerava “uma
moça moderna e amava, com delirio, os caprichos da moda”.
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Sozinhos, os dois irmãos voltam a discutir a resolução paterna e, o rapaz diz à irmã,
achar que o pai pretende casar novamente. Dr. Rogerio entra em cena e, finalmente, vem lhes
falar sobre a natureza da recepção daquela noite, a qual se daria em homenagem a uma digna
senhora, que mantinha uma nobre educação em sua casa, pois não permitira que seus filhos
tivessem contato com essas danças modernas e as libertinagens da vida moderna.
Os filhos de Dr. Rogério diziam-lhe estarem na época do jazz e, que não poderiam
recitar versos da bíblia no meio de um salão moderno. Viver alheado a esse ambiente, como
os filhos da nobre senhora, era agir como trogloditas. Porém, o pai diz que na idade deles, é
necessário fazer uma parada para que “não se acostumem somente aos gosos dessas
frivolidades” e, proíbe a dança do tango naquela noite ou mesmo que se comente sobre as
danças modernas com os filhos da senhora.
Os filhos, muito obedientes que se diziam ser, afirmam que agiriam conforme a ordem
paterna e, vendo que o dr. Rogerio ainda não havia dito o verdadeiro motivo daquela palestra,
por embaraço, fizeram-no confessar a sua pretensão de matrimônio com a referida dama,
informando-o, posteriormente, que já haviam adivinhado esta sua vontade e, que ele podia
trazer, sem problemas, esta segunda mamãe para sua casa. Esta, vieram a saber os jovens, se
chamava Margarida e, seus filhos, eram Rosa e Luis, o qual cursava medicina.
Dona Margarida era “dama distincta e respeitavel”. Fora casada por dez anos com o sr.
Marcolino de Rezende, num casamento harmônico, respeitável e, de grande severidade na
educação dos filhos. Em 1920, o casal foi descansar em Buenos Ayres, onde morava o irmão
mais velho de Marcolino. Ele contou a Dona Margarida que seu esposo fora uma criança que
jamais chorou, fosse por fome ou dor, até aos seis anos, quando lhe narrou uma anedota. O
autor diz que Marcolino devia ter sido um gênio-precoce nessa idade, pois “não ha coisa mais
tragica e triste do que se ouvir anedoctas!”. Depois daquilo nunca mais ninguém o viu
chorando.
Em Buenos Ayres, o irmão tratou de tirar-lhe os seus austeros costumes, levando-o
“num music-hall barato, onde o marido de Margarida bebeu cock-tails e dansou o tango...”.
Voltando apenas às 4 horas da manhã e, indagado pela esposa sobre o que era aquilo, apenas
pôde responder que dançara o tango e, teve a voz embargada por uma torrente de lágrimas:
“Chorou durante 46 minutos, consecutivamente...”. Até o fim da vida (três meses depois
daquele fato), ele “dansou o tango no cabaret barato”, sentindo remorsos apenas quando
entrava nos aposentos de sua esposa, quando chorava durante quase uma hora consecutiva.
Dona Margarida, assim, vira o marido ficar “‘secco’ pelo tango e pelas modernices”, vindo
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daí o terrível ódio por ela devotado aos costumes modernos. Dessa forma, toda vez que ouvia
a palavra “tango”, vinha-lhe à mente a cena de Marcolino em prantos...
Na festa do dr. Rogerio, Judith e Augusto são apresentados a Dona Margarida de
Rezende e aos filhos. Esta logo descreveu os modos austeros com que vivia, disse que aquela
era a primeira festividade a qual Rosinha assistia e que teria agido do mesmo modo com Luis,
se este não fosse estudante e tivesse suas obrigações como secretário-geral do Club
Academico. Os jovens vão, então, para outro canto do salão, longe dos severos olhos da
senhora Margarida e, com mais liberdades, eles se põe a comentar sobre a rígida educação
ministrada por aquela dama, ficando todos penalizados pelo fato de Rosa nunca ter podido
assistir a uma “recepção chic”. Luis, entretanto, afirmava já ter o seu “cursosinho de rapaz
moderno” e, de já ter ensinado, escondido de sua mãe, a irmã a dançar o tango, o que ela fazia
com grande graciosidade.
Chega Alzira, que fica a par da situação de Rosa e do motivo que levara à proibição da
execução de qualquer dança moderna naquela recepção e, com falsa indignação, diz que
aquilo merecia uma vingança. Judith, que tem nesta a sua melhor amiga, concorda com tal
resolução e põe-se a engendrar uma vingança diplomática. Esta se daria a partir da anulação
da ordem dada pelo dr. Rogerio à orquestra, de não tocar nenhuma peça moderna, para que
pudessem dançar o tango perante Dona Margarida e, esta visse “que o diabo não é tão feio
como o pintam...”. Empolgado com o plano, Luis decretou que também dançaria o tango e,
que sua irmã o acompanharia. Rosa ficou desesperada, ao que os outros puseram-se a
encorajá-la, argumentando que seria ela o elemento mais precioso para convencer a mãe,
devido à sua beleza e elegância, demonstrando que não havia nada de pernicioso naquilo.
Assim, também, Rosa propõe-se a dançar o tango.
As dansas finalmente tiveram início, com “uma walsa somnolenta”, que deixou o salão
deserto. O jovens, todos “sorridentes e nervosos”, esperavam a segunda marca. Logo “a
orchestra jazzbandeou um tango...”, ao que dona Margarida ficou horrorizada. Seu horror só
foi aumentando, na medida em que os pares ocupavam o salão, primeiro Roberto e Judith,
depois Alzira e Luis (seu filho sabia dançar o tango!) e, a “tremenda ignonimia”, Augusto
atado à inocente Rosinha... Dona Margarida só pode gemer e, então, perdeu os sentidos.
A segunda parte do livro inicia-se quando Dr. Rogério e Dona Margarida já estão
casados e, esta procurava impor ordem e disciplina no palacete, tornando aquele ambiente
sério e carregado. Passados, porém, alguns dias depois do matrimônio, eis que surge um
problema: os convites para que Dr. Rogério comparecesse às recepções eram insistentes e,
dona Margarida se recusava terminantemente a aceitá-los, devido ao já referido ódio que
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devotava a essas modernices. Mas o Dr. Rogerio insistia, uma vez que sua posição de médico
daquela sociedade de “modernices” exigia a sua presença naquelas reuniões. Perante o
argumento de que o que estava em jogo era o amor-próprio de Rogério, dona Margarida acaba
sendo convencida, muito a contra-gosto, a ir à recepção dos Avellar.
Sabendo da pequena abertura dada pela senhora Mendonça, os filhos, principalmente a
audaciosa Judith, que enchia a sua nova mamã de elogios, atiçando a vaidade desta,
aproveitaram a ocasião para começar a burlar o rigor e a disciplina imposta naquele lar, em
prol do retorno das recepções modernas àqueles vazios salões.
Mal o casal Mendonça chegou à casa de Madame Avellar e, o querido Cisinho veio
correndo entregar-lhes o programa da festividade, no qual estava anunciado o lançamento de
uma grande novidade coreográfica. Indagado por Dr. Rogério sobre qual seria a surpresa,
Cisinho disse que apenas os filhos do casal tinham conhecimento dela, ao que o médico ficou
apreensivo de que pudesse haver alguma perfídia. Não demorou muito para que o próprio
Cisinho e sua acompanhante percebessem isso, pois mal se ouviram as primeiras notas e mal
o casal deu os seus primeiros passos, e os expectadores foram saindo, com sorrisos irônicos e
maldosos no rosto, restando apenas, ao final da marca, o célebre colunista social Torres de
Barros. O par terminou a dança com lágrimas nos olhos e tão abatidos, que não conseguiram
nem bradar os insultos pretendidos contra o dr. Rogerio e seus amigos. Quando a coragem
finalmente surgiu e, Cisinho preparava-se para fazer alguma coisa contra aqueles “traidores”,
eis que surge Torres de Barros, sucedido pela previsível fuga de todos os envolvidos,
inclusive dos próprios dançarinos.
Na festa de Madame Avellar encontravam-se interessantes personagens: o Dr. Silvino,
“philosofo cacete”, juiz de paz, do qual todos tentam escapar. É a fala da ciência e, em suas
reflexões está sempre elaborando frases de impacto, cheias de dizeres científicos, esperando
receber grandes aplausos por elas, mas elas geralmente não eram nem notadas. Estava lá
também o Desembargador Ricardo, “funcionário aposentado, terrivelmente surdo”,
“radiomaniaco e director dos telefones”.
A festa contava também com a presença do já mencionado Roberto Ferreira Torres
Barros, um elegantíssimo e habilidoso repórter social de um dos grandes diários da Capital,
“que embora banhado em perfume, (...) tem um máo halito insupportavel”, sendo, ainda
assim, pelo enorme talento com que exercia a sua profissão e pelo grande sucesso que fazia a
coluna social da qual era diretor, “requisitado a comparecer, com insistencia e violencia, a
todas as festas que explodiam na cidade”. Além disso, ele “tinha um defeito de pronuncia
(língua pegada) que impedia-o — injustiça do destino!! —de pronunciar, exactamente os
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‘érres’ dos quaes possuía grande stock nos seus rebarbativos appelidos”, pronunciando-o
assim: “Oubéto Feieia Toes de Bauos! E só usava ‘oupas de bim banco’!”. Quando o “pouco
cheiroso e eloquente chronista” se aproximava, a fuga era geral.
Inicia-se, então, a terceira e última parte do livro, com uma Judith radiante. Ela e
Augusto haviam vencido! Depois de três meses de resistência fortíssima de dona Margarida,
eles finalmente teriam uma “matinée dansante” em sua casa. Ambos, porém, admitiam que só
conseguiram porque contaram com a ajuda de duas pessoas: o dr. Rogerio e o querido
Cisinho. O primeiro ficara tão zangado com o segundo, que juntara seus pedidos aos dos
filhos e, Dona Margarida obrigou-se a ceder. O segundo, em retaliação à humilhação sofrida
na recepção dos Avellar, fora o autor de várias cartas “anônimas”, enviadas diariamente aos
Mendonça. Numa destas cartas, dizia que era público o fato de que os salões do Dr. Rogério
estavam silenciosos, porque ele estava totalmente dominado pela esposa, sendo inclusive
surrado por ela. Daí resultou a referida zanga do médico.
A dona da casa mantinha a posição de estar sendo obrigada a permitir o requebro das
danças modernas em seu lar, as quais impôs que fossem tocadas apenas uma única vez. Mas
causava espanto aos filhos a naturalidade com que ela agora pronunciava a palavra tango,
“sem um arrepio, sem uma contracção!”, além de ter demonstrado um entusiasmo inesperado
na organização daquela matinée (“A senhora Margarida [...] emprestando auxilio á realisação
de uma festa moderna?! Impossivel! E com enthusiamo?! Inacreditavel!!”)
Marcello chega à residência dos Mendonça, feliz pelo convite que recebera, trazendo
consigo o senhor Narciso, o qual prontificou-se a pedir as desculpas que fossem necessárias,
para que pudesse ganhar um convite para a matinée daquele dia. Mesmo espantado com o
caradurismo do almofadinha, dr. Rogério, sem mágoas, atendeu seu pedido.
Indignados com a presença de Cisinho, os filhos põem-se a tramar uma nova perfídia
envolvendo o duvidoso jovem. Dessa vez, o plano seria chamar o Dr. Silvino, toda vez que o
Sr. Narciso viesse falar com eles, deixando este a palestrar com o filósofo.
O próximo obstáculo dos jovens era pedir a Dona Margarida que Rosinha pudesse
dançar o tango naquele dia. A senhora ficou enfurecida por tal pedido, mas os moços não
quiseram perder a oportunidade, uma vez que já haviam declarado seu rogo. Suas súplicas
foram tão intensas e sedutoras, que, por fim, ela acabou por ceder. Vencida pela mocidade,
que saiu risonha do recinto, a senhora dona Margarida suspirou e, logo depois, inconsciente
de seu ato, pôs-se a cantarolar um tango, ao que seu corpo respondeu com perfeição. Quando
se deu conta do seu ato, surpreendeu-se, cerrou o semblante e continuou a cantar “a Marcha
Fúnebre, de Chopin”.
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Já na matinée, todos se puseram a explicar ao dr. Silvino que o sr. Narciso da
Conceição estava precisando da sua luminar inteligência, para a realização de alguns artigos, e
que ele deveria procurá-lo quando este chegasse. Assim que Cisinho pisou no salão, o filósofo
grudou nele, dizendo estar à sua disposição. O almofadinha bem que tentara se livrar do juiz
de paz, mas não encontrando escapatória, caiu numa cadeira, desanimado, e ali ficou,
praticamente sem sentidos.
A orquestra inicia o tango: “Ah, a agitação, a vida, a febre, que existe agora no salão!
Como é emocionante o ondear do tango com seus requebros macios e suaves como a brisa
que avelludasse as jubas de um leão!
Que encanto! Que maravilha! O ruido deslisante dos pés são caricias de mãos virgens
sobre a polpa de um pecego maduro...
Que volupia embriagadora! De uma attracção tão forte, que a senhora Margarida,
estonteada, vencida, sem poder applacar os seus nervos, se mexia, se sacudia, a esfregar-se em
Rogerio, idem, idem, extasiado!
Era a musica que andava no ar, mysteriosamente, sacudindo nevróses, despertando
saudades, revivendo alegrias! E, ali pelo salão, o marulho das dansas, embalando uma canção
de vertigens...
Quem poderia fugir á seducção tamanha? Quem?
Nesse instante, Rogerio, num languido olhar saudoso, apertando a esposa, juntando-a
ao seu corpo, num frenesi de encantamento, ciciou-lhe ao ouvido, ardendo em suplica:
— O tango é irresistível, meu amor! Vamos acompanhar a vida moça! Vamos dansar,
tambem!
A resposta da austera dama, foi quase um gemido de volupia e embriaguez...
E dominada pela mágica attracção, Margarida, a severissima ex-viuva de Marcollino,
ergueu-se e estreitando Rogerio, o regenerado bohemio, deslisou, mexeu, quebrou e
requebrou — com que graça incomparavel! — o tango, o bemdito tango, ante os olhos
electrisados da assistencia, muda e paralysada de surpreza!
De repente, Marcello desabafou um grito, arrancado do fundo de sua alma, numa
alegria estouvada de creança:
— Viva o tango!
Foi o toque de clarim da Victoria. Moços e moças, expandiram o seu triumpho em
gritos de prazer, entre uma chuva de palmas...
E Margarida e Rogerio a requebrarem abstractos, como engolfados num sonho, leves e
ethereos, docemente embalados pela vertigem da dansa...
38
(...)
A musica terminou o tango endoidecedor, e todos os assistentes correram em direcção
ao garboso casal para saudal-o, abraçal-o, beijal-o! Margarida e Rogério, recebiam as
saudações, profundamente admirados, com um ar pasmo, quase inconsciente... Que razão
havia para tamanho arroubo? Teriam elles praticado algum raid de dansa-hora? Nada disso.
Haviam, somente obedecido aos seus nervos... Rogério, vencido pela saudade, Margarida,
vencida pelo ambiente...
(...)
Vibrando pelo triumpho inesperado, moças e rapazes, redobraram os hurras e as
palmas
(...)
E com enorme e geral assombro, a severa senhora Margarida de Mendonça,
contagiada da mesma vibração, ergueu os braços ao ar, ruborisada de prazer, e exclamou:
— Viva o tango!
Era o grito que confirmava a Victoria completa da Mocidade! O triumpho, porem, foi
de tal modo imprevisto, que todas as boccas emmudeceram, emquanto os olhares luziam de
contentamento. Fez-se o silencio das grandes commoções...
Neste momento, a voz de Silvino dos Reis foi ouvida... Rigido, espectral, tremelicando
o indicador, quase a bater no minúsculo nariz de Cisinho, que acabava de escorregar todo o
corpo pela cadeira abaixo, o implacável Philosopho, doutorava ao infeliz Elegante, com a
profunda voz dos prophetas:
— A Philosofia, senhor Narciso da Conceição, considera a Mocidade como a unica
força invencivel que existe neste Mundo!...”52.
Assim, com um final apoteótico, Rabecão termina seu livro, no qual expressa uma
consciência exemplar acerca da época na qual vivia. Muitos dos elementos expostos por
Marshal Berman, em “Tudo que é sólido desmancha no ar”, na sua caracterização da
experiência moderna, são relatados por nosso autor. A pretensão declarada por aquele, de
“explorar e mapear as aventuras e horrores, as ambiguidades e ironias da vida moderna”53 em
seu estudo do passado, é realizada pelo autor de Viva o tango!, na sua observação do presente.
Por meio de um romance que, poder-se-ia pensar, trata apenas da vida de salões e
futilidades da alta sociedade curitibana, da década de 1920, Ildefonso do Serro Azul
descortina os conflitos vivenciados por seus contemporâneos, em decorrência da inserção da
52 RABECÃO. Op. Cit.,p. 197-200 53 BERMAN. Op. Cit, p.13.
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modernidade em seu ambiente. Modernidade esta que, em incrível semelhança às definições
do intelectual norte-americano, manifesta-se por meio de um “turbilhão de encantos e
seducções que prende e attrahe como um abysmo...”.
É perceptível, ainda, a insistência com a qual Ildefonso frisa situações que exprimem
aquela que é considerada por Berman como sendo a principal característica da vida moderna:
a contradição. Esta é demontrada nas vaias do grupo para aqueles que se atreviam a ser
coerentes “no meio paradoxal que vivia”; no fato de Augusto, que era meio surdo, tocar piano
de ouvido; na “dificílima tarefa de convencer uma pessoa convencida...”; na melindrosa que
se chamava Abrilina, por ter nascido em outubro, filha do sr. Setembrino, nascido num 14 de
julho; na gripe espanhola, “assim baptisada por ter nascido no Congo... Belga”; no jornal
“Meio-dia”, que circulava as oito horas da noite; no fato de Cisinho estar atrasado para a
recepção na casa do Dr. Rogério e, sua ausência ser recriminada “com mais vigor, pelo grupo
que, exactamente, andava architectando meios e modos de vel-o pelas costas, por toda a
eternidade...”.
O autor apresenta, também, personagens que tem como objetivo principal na história o
de demonstrar estas incoerências e, o quanto ela atingia a essência humana e a sociedade. São
eles, o Dr. Silvino, cujas reflexões tinham como único propósito o de formular frases
científicas, impactantes, incompreensíveis e inúteis, tornando-se, assim, um filósofo que
ninguém queria escutar (!?); o Desembargador Ricardo, que apesar de surdo, foi nomeado
pelo governador, auditor-fiscal das transmissões telefônicas, além de ser grande admirador do
rádio, sem que, entretanto, já tivesse “ouvido o menor som” vindo dele; e, o colunista social
Roberto Ferreira Torres Barros, do qual a alta sociedade necessitava para legitimar a sua
posição social, mas do qual todos eram obrigados a fugir e, que não se enquadrava na
modelagem, por ele mesmo ditada, para os membros da “haute gomme”.
A história narrada no livro poderia ser sintetizada como a inútil resistência dos
costumes e moral tradicionais contra a irresistível modernidade, com seus atrativos e
liberdades e, já senhora daquela época. Assim, o autor forja personagens que ou estão em
constante conflito entre a manutenção de suas tradições e a atração das “agitações de
encantos, de loucuras, de seducções que embriagam” características à vida moderna ou, então,
já se renderam prazerosamente a estas, podendo, assim, gozar da liberdade e alegria provindas
da aceitação do ambiente.
Os mantenedores dos valores tradicionais, assim, precisavam agir com intolerância,
aspereza, severidade, rispidez e austeridade, características que lhes eram necessárias, em
vista de estarem em constante luta contra seu meio e contra si próprios. Dona Margarida,
40
assim, ao dar aos filhos uma educação que os mantivesse longe das libertinagens modernas,
desprezar as “modificações desavergonhadas da moda”, manter modos austeros e respeitáveis
e, um semblante sério e carrancudo, agia naquele sentido. Episódio em que a luta interna da
personagem torna-se mais visível, dá-se na terceira parte do livro, quando a Sra. Mendonça
comove-se pela euforia da juventude. Ficando sozinha, suspira e solta um “Si eu pudesse!”.
Em seguida, sem tomar tino do próprio ato, cantarola e dança o odiado tango. Neste
momento, portanto, a rígida personagem, levada pela comoção, está livre em seus
sentimentos, deixando-se levar pelas emoções e pelo ambiente. Quando se dá conta de sua
atitude, entretanto, ela surpreende-se e reage, fechando o rosto e cantando a Marcha Fúnebre.
Ou seja, o raciocínio e o autocontrole é que a mantinham na sua posição conservadora. Esta
demandava esforço e contrariedade para ser sustentada, o que implicava na sua infelicidade.
Caso agisse naturalmente, Dona Margarida seria moderna.
Os modernos, que eram livres destas auto repreensões, podiam ser alegres e, rir à toa e
o tempo todo. Para o autor, estes indivíduos possuíam “um espirito superior que acompanha o
evoluir dos tempos com um sorriso de ironia e bemaventurança”, uma alma jovem, portanto.
Dessa forma, o moderno aparece geralmente relacionado com a mocidade e, esta é
compreendida mais como um estado de espírito do que propriamente uma faixa etária. As
personagens do Dr. Rogério e do amigo Marcello expressam muito bem esta idéia, pois,
apesar de quarentões, agem como os jovens e possuem com estes uma relação de paridade.
Além da sedução pela eterna juventude (Dr. Rogério podia ter cem anos que não envelheceria,
diziam os filhos), perpetuada num estado de espírito, ser moderno abria possibilidades para
um comportamento, até então, não aceito abertamente em sociedade: sarcástico, vivaz,
esnobe, escorregadio, ágil, maroto, perspicaz, brejeiro, mordaz, esperto, malicioso, ladino,
sedutor, tenaz, persistente e até herético. E, tudo isso sem máscaras, mostrando a verdadeira
face dos indivíduos.
As mulheres modernas eram alçadas pelo autor a uma posição de destaque, como
detentoras de características superiores às masculinas. As personagens Judith e Alzira eram
quem elaboravam os planos para suplantar as forças de Dona Margarida e afastar o incômodo
Cisinho, demonstravam um tino exemplar para perceber as intenções alheias e usavam com
primor os seus encantos e alegria contagiante para convencer os outros. Dizia Rabecão, que
Augusto e Luis eram talentosos, as moças, porém, eram inteligentes, perspicazes, possuidoras
de grande gênio inventivo, criatividade, firmeza para assegurar as suas invencionices e poder
de ação, além de serem sedutoramente encantadoras e usarem constantemente esse predicado
41
a seu favor. Esta visão, portanto, revela grande tranqüilidade do autor quanto à inversão dos
papéis tradicionais masculino e feminino, que estava bastante em voga na modernidade.
Assim, “Existiam os modernos de novas idéias e novas formas (...) e existiam ainda os
modernos que se adaptavam ao novo como a uma moda”54. Estes eram muito criticados pelo
autor e, poderiam ser chamados de falsos modernos, pois apenas seguiam a moda, tornando-se
meros imitadores dos primeiros. O Sr. Narciso da Conceição representa este grupo, sendo
alvo constante da ridicularização do autor e dos modernos, ou seja, filhos e amigos do dr.
Rogério, grupo do qual o almofadinha alardeava fazer parte, chamando-o de “nosso
grupinho...”, e do qual costumava reproduzir as atitudes. Esta reprodução acabava por se
manifestar através de mímicas e meneios sem significado ou valor, tornando-o, assim, um
sujeito caricatural e risível em sua extrema imbecilidade. No seu afã de seguir e lançar moda,
Cisinho tornava-se uma pessoa inconveniente e intragável, especialmente pela “porgativa
eloquencia do pas de paroles”, ou seja, a utilização extremada de expressões estrangeiras em
sua fala, a ponto de incomodar até mesmo o leitor. Os modernos passam toda a história
tentando livrar-se dessa figura, criando embustes para que ele caísse em seu próprio estilo,
conferindo-lhe, assim, diversas derrotas sociais. Ao final, aqueles conseguem anulá-lo e, este
não participa da apoteose do tango e da modernidade.
A moda e seus seguidores são, assim, abundantemente criticados em Viva o tango!.
Outro exemplo disso é o jogo com o qual o Dr. Rogério passa a ocupar suas noites, as dos
filhos e as do amigo Marcello, após a resolução de acabar com sua vida boêmia: o mah-jong,
segundo Rabecão, um joguinho chinês, de 412 anos a.C., “fabricado especialmente para a
elaboração das digestões pesadas dos cônegos e bispos”, que estava novamente na moda.
Dizia Roberto, que aquele jogo fedia a “Tut-Ank-Amen” e, que jogá-lo comparava-se “a
tornar a dansar a polka militar, o schottisch, a horrenda mazurka, só porque a convenção ditou
que estas dansas voltaram á moda...”. O autor criticava, então, a irracionalidade da moda,
reproduzida em série pelos seus seguidores, os quais eram a maioria dos membros do grupo
social presente no livro.
Estes, ainda, ostentavam uma falsa mocidade, usando de artimanhas para aparentar a
juventude ainda, como o fazia Narciso da Conceição. A mocidade, entretanto, como já fora
afirmado, trata-se de um estado de espírito, transmitido por meio de idéias e atitudes, que ao
serem copiadas tornavam-se modismo, esvaziando-se, assim, em sua artificialidade.
54 KUNA, Franz. “Viena e Praga, 1890-1928” In: BRADBURY, Malcolm & MCFARLANE, James (Orgs.). Modernismo: guia geral 1890-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 96.
42
A mocidade é apresentada como a essência da modernidade e, junto às danças
modernas, é detentora de um poder de irresistível atração e adesão. Na verdade, estes
elementos − mocidade, modernidade e danças modernas − tinham uma força de atração tão
intensa, que toda luta contra eles era inútil, uma vez que a derrota era só questão de tempo e
paciência. Assim, Dr. Rogério não teve chances, quando da segunda vez que a realidade
moderna entrou pela janela de seu escritório, recinto da sua auto-imposta solidão, por meio de
um tango que, contra sua determinação, liberou sua antiga alegria, fazendo-o aceitar a música
e a vida modernas. Ou o sério Marcolino, que tendo dançado o tango e vendo que era bom,
não conteve suas emoções e, soltou as lágrimas reprimidas durante toda vida, fato que virou
hábito de dançar pela noite a fora e chorar e se arrepender ao voltar para a esposa, mas sem
conseguir deixar de retornar ao tango na noite seguinte. Ou a Dona Margarida, com os
estremecimentos e tonturas provocados pelos traumas com o tango, mas que acabou
gradativamente cedendo a esse, com seu irresistível ritmo atordoante, até a rendição total,
quando foi vencida, pelos próprios nervos, no final apoteótico do livro, que declara a derrota
do conservadorismo e a vitória da modernidade, esta concebida como a soma do ambiente
moderno circundante e da vontade da juventude.
O meio onde a história do livro transcorreu foi geralmente o interior da Casa e, esta
apresentava duas facetas diferenciadas: a casa de uma família conservadora era, por essência,
o núcleo da vida privada, havendo pouco contato entre ela e o mundo exterior (durante o
período de maior rigidez de Dona Margarida, nem mesmo o amigo Marcello foi visitar a casa
dos Mendonça); a casa de uma família moderna, ao contrário, estava constantemente aberta,
sendo local para a recepção e sociabilidade com os amigos e, para a confraternização com seu
grupo social, havendo, portanto, uma maior integração entre a vida familiar e a vida social do
indivíduo.
As festas, recepções sociais no recinto do lar, tornaram-se, assim, recorrentes nesse
ambiente moderno, como o meio para as relações e legitimações sociais ou, como dizia
Rabecão, apenas “um capricho de gente rica que não entediava e fazia passar as horas
deliciosamente”. Segundo Trindade, a festa é a ocasião na qual “um grupo ou uma
coletividade projeta simbolicamente sua representação de mundo, e até filtra metaforicamente
todas as suas tensões. A festa é a sensação do tempo louco, notavelmente lento ou acelerado,
vibrante e invertido, em que as ações podem acontecer simultaneamente, sem haver uma
separação entre elas e os espaços onde normalmente ocorrem. A festa é uma vida de exceção,
é o momento em que, esquecendo o seu cotidiano, as pessoas se encontram, se revelam com a
43
nitidez que um certo relaxamento produz”55. Em Viva o Tango!, este momento de exceção é
extremamente importante para o andamento da história, uma vez que é o ambiente primordial
para a chegada do tango até os indivíduos. E assim ocorreu com a festa na casa do vizinho do
Dr. Rogério, as festas no music-hall argentino, no qual Marcolino ia toda noite, e aquelas
onde Dona Margarida foi inicialmente forçada a ver e ouvir o tango até a da sua derrocada
final, quando aceitou e dançou o mesmo. O contexto da festa era também o momento
essencial para as expansões dos modernos, o local onde estes podiam exercer sem pudores os
seus atributos, burlar o cotidiano e extravasar suas vontades mais íntimas.
A modernidade influenciava também no âmago da vida familiar, implicando em
grandes transformações em relação à família tradicional. Esta possuía a mãe como seu
elemento central e propulsor, o pai como seu esteio financeiro e a maior autoridade, e os
filhos obedientes e sem direito de emitir opiniões. Na visão de Rabecão, entretanto, a família
não necessitava de uma mãe para desenvolver-se plenamente, demonstrando isso através do
Dr. Rogério e seus filhos. Estes formaram uma relação familiar baseada na mútua amizade,
sinceridade, compreensão, carinho, respeito, obediência, orgulho e companheirismo, que
permitia, inclusive, o convívio social, o compartilhamento de segredos e das mesmas
amizades, tudo isso sem a presença materna. Quando esta apareceu no lar do Dr. Rogério, foi
como uma figura a ser ainda domesticada nos moldes ali adotados. Assim, o relacionamento
familiar tornava-se mais saudável, descontraído e flexível quanto ao papel ocupado por seus
membros.
O casamento, no livro, é visto como uma exigência tradicional e, como tal, é bastante
criticado pelo autor. Dr. Rogério casa-se pela primeira vez por ser esta a “pena exigida post-
formatura”. Era, portanto, um castigo socialmente imposto. Seu segundo matrimônio (“todo
sujeito que casa duas vezes é criminoso... Criminoso voluntario e aggravado de
premeditação”, dizia o autor) ocorre por uma recaída ao conservadorismo, dos quais retoma
os hábitos. O livro está permeado de comentários infames que expressam o desagrado de
Rabecão em relação ao casamento. Ele compara, por exemplo, a satisfação do noivo com a do
negociante “que vendeu a um freguez 356 grammas de toucinho por 1 kilo completo!” (!?). O
próprio autor admite que a comparação é torpe, porém a mantêm. Dizia, ainda, que as
palestras de noivado eram uma xaropada, um choco e, que os pais de uma solteirona
concediam a mão da filha em casamento como se estivessem tirando um peso das costas.
55 TRINDADE. Op. Cit, p.241.
44
De modo geral, portanto, Jeca Rabecão, em seu livro, apresentava uma visão bem
positiva acerca dos benefícios sociais provenientes da modernização, defendendo boa parte
destas mudanças ou, talvez, apenas apresentando uma visão mais abrangente acerca das
mesmas, mostrando elementos que os outros autores não haviam percebido. Ainda assim, ele
comungava das críticas desses feitas à moda e à superficialidade da alta sociedade.
Possivelmente, esta visão diferenciada de Ildefonso do Serro Azul deva-se ao fato de ser ele
um membro efetivo desta alta sociedade curitibana, e que por sua origem nobre, acostumou-se
a tais ambientes, conhecendo em profundidade as idéias e o comportamento das pessoas que
os frequentavam. O livro Viva o tango!, portanto, poderia ser considerado uma defesa de si e
de seu grupo social. Além disso, estava nesse grupo, a maioria dos leitores com possibilidade
de compra, da Curitiba do período, sendo, portanto, uma boa forma de vendagem, tratar a alta
sociedade por meio de uma ótica interna do grupo, minimizando as críticas aos seus
comportamentos.
Para quem via de fora e sob uma ótica jornalística, à semelhança de Laertes de
Macedo Munhoz e Alceu Chichôrro, o que chamava desprendia ao olhar era o comportamento
caricatural das pessoas pretensamente modernas ou os abusos, deslizes e exibicionismos dos
indivíduos deste grupo, do que resultava a visão puramente negativa destes.
45
CONCLUSÃO
A pesquisa aqui empreendida, baseada na análise de obras literárias curitibanas da
década de 1920, como fontes para a documentação histórica das características sociais em
transição no período, foi bastante proveitosa, uma vez que permitiu a realização de um
diálogo entre os intelectuais modernistas e a modernização dos costumes.
Em primeiro lugar, utilizando o método estrutural para a análise de Viva o Tango!, de
Ildefonso do Serro Azul, encarada como um mito, forjou-se um esquema de combinação de
elementos recorrentes na obra, os quais puderam ser reduzidos a três momentos: o da
manutenção dos valores tradicionais, que vinha acompanhada pelo afastamento do mundo e
uma auto-imposta contenção das emoções do indivíduo, os quais refletiam-se em sensações
negativas; o segundo momento, de separação com a realidade anterior, que ocorre quando a
festa ocasiona o contato do indivíduo com o tango; e os momentos de transição e
incorporação da nova realidade, impressos na irresistível atração do indivíduo pelo tango e na
aceitação do mesmo, que implicava numa adesão à vida moderna e, conseqüentes,
aproximação do mundo (abertura da casa) e liberação das emoções até então contidas,
resultando em sensações positivas para o indivíduo, uma vez que agora ele estava adequado
ao ambiente e às pessoas ao seu redor. Assim, o Tango era colocado na obra como o
precipitante do afastamento do indivíduo das antigas regras de conduta moral nas quais estava
imerso, transcendendo, então, essa realidade e revolucionando suas escolhas e existência
numa situação nova. O Tango, portanto, poderia ser aí encarado, utilizando o linguajar
antropológico, como o rito de passagem entre a o conservadorismo e a modernidade.
Tendo estas conclusões parciais como baliza e, após a depuração do contexto das
obras e seus autores, empreendeu-se, uma análise mais minuciosa destas e, por tal meio foi
possível verificar duas visões diferenciadas acerca da transformação dos costumes sociais da
elite curitibana do período: em Enredos Fúteis e O Tanque de Jerusalém, respectivamente de
Laertes de Munhoz e Alceu Chichorro, a percepção apresentada restringia-se à crítica da vida
de aparências dos membros da alta sociedade, aos modismos e, principalmente, ao
comportamento das mulheres e à inversão dos papéis tradicionais masculino e feminino.
Ildefonso do Serro Azul, entretanto, expõe uma visão diferenciada, mais positiva e
abrangente daquelas transformações. Partindo da análise inicial do “mito da modernidade”,
acima exposto, percebe-se uma delimitação, não absoluta, das personagens em dois grupos: os
conservadores e os modernos. Os primeiros estão em constante conflito interno entre a auto-
imposta manutenção de seus costumes e a atração externa do ambiente moderno, enquanto os
46
segundos já se renderam à modernidade, gozando da liberdade de expressar de suas emoções,
permitida pela aceitação de seu meio. Entretanto, a resistência dos primeiros é inútil, pois a
derrota era apenas questão de tempo e paciência, uma vez que a vida moderna já era senhora
daquela época.
É necessário frisar, porém, que a escolha do indivíduo, ao contrário do que a análise
estrutural deixa transparecer, não era nula frente ao arrebatador domínio do ambiente, pois
este era aceito após a percepção de que a vida moderna era uma realidade melhor que a
anterior. Além disso, ela contava com o apoio da mocidade, que forjava as situações
necessárias à sua vitória. Assim, a modernidade, a mocidade e o Tango tinham significados
semelhantes na obra, todos os quais possuidores de uma irresistível atração, baseada
principalmente na liberação dos sentimentos e emoções dos indivíduos, que acabavam
convencidos a aderir a tão contagiante meio.
Alheados destes dois grupos, estão os seguidores da moda, colocados como reles
imitadores dos modernos e sujeitos ridículos e caricaturais. Nesse sentido e, em confluência
com as críticas dos outros autores, Jeca Rabecão censurava a irracionalidade da moda,
reproduzida em série pelos seus seguidores, os quais conformavam a maioria dos membros
daquele grupo social.
Em visão oposta à daqueles autores, entretanto, colocava as mulheres modernas numa
posição de destaque em relação aos homens, uma vez que detinham características superiores,
como a inteligência, a perspicácia, a criatividade, o poder de ação e uma incrível sedução.
Além disso, via como benéficas as mudanças nas relações familiares, que passavam a basear-
se na mútua amizade, sinceridade, compreensão, carinho, respeito, obediência, orgulho e
companheirismo entre pais e filhos.
As fontes aqui analisadas, portanto, expressaram percepções contraditórias e
inesperadas sobre a alta sociedade curitibana do período, demonstrando serem documentações
bastante profícuas para a elucidação das características concernentes àquele grupo social.
Sobre tais obras poderiam ser ainda lançados novos olhares, pois são documentações pouco
utilizadas na análise histórica desse contexto e, expressam diversos elementos de interesse
para novos estudos.
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