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A INTENÇÃO PANKARARU – MARCOS ALEXANDRE DOS SANTOS ALBUQUERQUE Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 2, nº 1, p. 2 – 33. jan./jun. 2010. 2 A INTENÇÃO PANKARARU (a “dança dos praiáscomo tradução intercultural na cidade de São Paulo) Marcos Alexandre dos Santos Albuquerque * Introdução – Tradução como Interculturalidade “O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (Guimarães Rosa) A expansão dos modelos político-culturais do ocidente (o Estado, o colonialismo, o capitalismo global e outros) não foi capaz de extinguir as populações nativas. Ao contrário do que se previa, tais comunidades têm protagonizado estratégias políticas e culturais que vêem fornecendo à antropologia novos desafios e objetos de investigação. Como escreveu Néstor García Canclini (2005: 24), os grandes avanços da antropologia decorrem do fato desta disciplina “ter sabido situar-se na interação entre culturas”. Para Canclini, autores como Marc Abélès, Arjun Appadurai e James Clifford entre outros, estão renovando a * Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS/UFSC). Membro do LEME (Laboratório de Estudos em Movimentos Étnicos/UFCG); AVAL (Antropologia Visual em Alagoas/UFAL); NAVI (Núcleo de Antropologia Visual e Estudos da Imagem/UFSC), NEPI (Núcleo de Estudos Sobre Populações Indígenas/UFSC) e GESTO (Grupo de Estudos sobre Rito e Performance/UFSC). E-mail: [email protected] . Agradeço a Antonella Tassinari e Edmundo Pereira pelos comentários sobre este texto, e, a Waleska Aureliano pela revisão final.

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Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 2, nº 1, p. 2 – 33. jan./jun. 2010.

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A INTENÇÃO PANKARARU (a “dança dos praiás” como tradução intercultural na cidade de São Paulo)

Marcos Alexandre dos Santos Albuquerque*

Introdução – Tradução como Interculturalidade

“O real não está na saída nem na chegada:

ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”

(Guimarães Rosa)

A expansão dos modelos político-culturais do ocidente (o Estado, o colonialismo, o

capitalismo global e outros) não foi capaz de extinguir as populações nativas. Ao contrário

do que se previa, tais comunidades têm protagonizado estratégias políticas e culturais que

vêem fornecendo à antropologia novos desafios e objetos de investigação. Como escreveu

Néstor García Canclini (2005: 24), os grandes avanços da antropologia decorrem do fato

desta disciplina “ter sabido situar-se na interação entre culturas”. Para Canclini, autores

como Marc Abélès, Arjun Appadurai e James Clifford entre outros, estão renovando a

* Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS/UFSC). Membro do LEME (Laboratório de Estudos em Movimentos Étnicos/UFCG); AVAL (Antropologia Visual em Alagoas/UFAL); NAVI (Núcleo de Antropologia Visual e Estudos da Imagem/UFSC), NEPI (Núcleo de Estudos Sobre Populações Indígenas/UFSC) e GESTO (Grupo de Estudos sobre Rito e Performance/UFSC). E-mail: [email protected].

Agradeço a Antonella Tassinari e Edmundo Pereira pelos comentários sobre este texto, e, a Waleska Aureliano pela revisão final.

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disciplina ao redefinir a noção de cultura e concebê-la como um sistema de relações de

sentido que identifica diferenças, contrastes e comparações1.

Trata-se, este é o ponto, de “prestar atenção às misturas e aos mal-entendidos que

vinculam os grupos” (ibid.: 25) ao invés de descrever a “cultura” como consenso e

identidade. Como parte deste movimento, se tornou cada vez mais razoável na antropologia

a apropriação de termos e do método de outras disciplinas para falar de um objeto que

tradicionalmente lhe era reservado. De forma mais incisiva, Canclini escreveu que “num

tempo de globalização, o objeto mais revelador, mais questionador das pseudo-certezas

etnocêntricas ou disciplinares é a interculturalidade. [...] Estudar a cultura requer, então,

converter-se em especialista das interações” (ibid.).

O conceito de interculturalidade se contrapõe ao usual multiculturalismo, pois para

Canclini o multiculturalismo reconhece strito senso a existência de diferentes identidades

culturais. O conceito de interculturalidade pressupõe que a diferença cultural é construída

no próprio jogo do poder através das estratégias de composição de patrimônios culturais, de

negociações da autenticidade entre o tradicional e o moderno, da constituição de híbridos,

sincréticos, simulacros dentre outros. Com interculturalidade o autor quer “examinar sob

que condições se administram as diferenças, as desigualdades, a inclusão-exclusão e os

dispositivos de exploração em processos interculturais” (ibid.: 53).

A partir do conceito de interculturalidade, esse artigo descreve o processo social de

constituição de um sinal diacrítico por uma população indígena no contexto de uma

metrópole brasileira. Desde 1940 os Pankararu migram de suas aldeias em Pernambuco

para a cidade de São Paulo, hoje somam mais de 2000 pessoas nessa cidade. Em 1994 eles

fundaram uma associação como forma de reivindicar direitos e passaram a realizar

apresentações de uma performance, a “dança dos praiás”. Essa performance se constitui em

uma versão heterodoxa de uma dança ritual restrita às suas aldeias em Pernambuco. Tendo

em vista que a gênese dessa performance encontra-se no contexto, político e ritual, da

interseção de atores sociais assimetricamente dispostos no campo do poder (político,

1 Por exemplo, as pesquisas que estão no campo de investigação das redes (Marcus 1998; Gell 1998; Latour 2005), dos sistemas globais (Appadurai 1994), dos híbridos (Latour 1994; Hannerz 1997), das traduções interculturais (Taussig 1993; Bhabha 1998), da propriedade e das autenticidades culturais (Handler & Linnekin 1984; Clifford 1999; Marcus & Fischer 2000; Price 2000; Golçalves 2002).

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econômico, simbólico e outros), essa performance será analisada como um projeto nativo

intercultural contra hegemônico, cuja intenção é dotar os Pankararu de capital simbólico na

cidade de São Paulo.

Desse modo, analiticamente proponho pensar essa performance como uma forma de

tradução. Considerando que todo elemento cultural tem uma história particular, para

entendê-los devemos demarcar as categorias e as experiências que constituem essa

historicidade. Portanto, essa performance é uma tradução porque, como escreveu Homi

Bhabha (1998: 20-1),

“A representação da diferença não deve ser lida apressadamente como o reflexo de

traços culturais ou étnicos preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição. A

articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação

complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais

que emergem em momentos de transformação histórica”.

Nesse sentido, o discurso contra hegemônico das minorias comporta muito bem a

idéia do novo como ato insurgente de “tradução cultural” (ibid.: 27). Tradução que “não

apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado,

reconfigurando-o como um ‘entre-lugar’ contingente, que inova e irrompe a atuação do

presente”. É nesse sentido que as traduções constituem-se tanto como o espaço ideal dos

espelhamentos, do consenso e do multiculturalismo, como, inversamente, o espaço

pragmático das contra-hegemonias, das ironias, e da interculturalidade.

Ao invés do apelo de uma tradução ideal, uma tradução como pragmática enfatiza o

fato de que o ato de traduzir está renunciando a ser ideal e revela suas próprias intenções.

Nos termos de Benjamim (2008: 35), a intenção da tradução “não é somente dirigida a

finalidades diferentes mas difere já em si própria da intenção da obra original: enquanto a

intenção da obra artística é ingênua, primária e plástica, a tradução norteia-se por uma

intenção já derivada, derradeira mesmo e feita de idéias abstratas”. A tradução deve,

portanto, ser pensada como uma agência, um ato social em diálogo, cujos conteúdos

(políticos, rituais e outros) procuram constituir a identidade pela diferença. Uma tradução

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será bem sucedida somente se renunciar ao estigma de não ser o original e, portanto,

revelar-se tradução, cujas intenções derivadas, pragmáticas e abstratas (no sentido de

discurso) têm de ser levadas em conta em função do processo de interculturalidade que

constitui a imagem da diferença hoje.

A seguir procuro demonstrar a operacionalidade dessa categoria (tradução

intercultural) a partir da análise de uma situação social específica analisada em minha

pesquisa de doutorado em antropologia social no PPGAS/UFSC. Trata-se de apresentar a

performance “dança dos praiás” como uma tradução intercultural, constituída pelos

Pankararu de forma a permitir sua visibilidade social em arenas da cidade de São Paulo.

Faço isso em três momentos. No primeiro apresento a diáspora Pankararu como o resultado

do poder tutelar e a “autenticidade” do grupo, nas arenas de São Paulo, como a atualização

desse poder. No segundo apresento os termos da tradução realizada pelos Pankararu ao

contrastar a “dança” dos praiás (realizada nos terreiros das aldeias Pankararu em

Pernambuco), com a “dança dos praiás” (realizada nas arenas de São Paulo). E ainda,

defino o ato Pankararu de tradução, sua intenção, como um ato político cuja autenticidade,

do ponto de vista nativo, é ratificada cotidianamente pelo ato ritual que atualiza o político.

Por fim, demonstrarei que o ato político e o ritual formam um único e mesmo ato contra-

hegemônico de tradução intercultural, cuja intenção é vencer a violência simbólica que

tende a atualizar categorias do poder tutelar e, portanto, invisibilizar os Pankararu como

uma comunidade etnicamente diferenciada em São Paulo.

Poder tutelar, diáspora e a autenticidade Pankararu nas arenas de São Paulo

Seguindo teoricamente uma antropologia histórica (Oliveira 1988; 1999a), a

população chamada hoje de Pankararu2 foi formada pelo aldeamento de diversos grupos

nativos e, posteriormente, de ex-escravos, que habitavam a região do sub-médio do vale do

São Francisco no estado de Pernambuco, nordeste do Brasil, durante a formação do país.

Somente no ano de 1940 os Pankararu apareceram como grupo indígena nos quadros

administrativos do governo ao conseguirem o reconhecimento dessa identidade e a

2 O nome místico do grupo é Pancarú Geritacó Cacalancó Umã Canabrava Tatuxi de Fulô.

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regularização de seu território tradicional (finalmente regularizado em 1996). Um

importante elemento de reconhecimento dessa comunidade como indígenas foi o fato de

que nela se realizavam uma série de rituais cujas características culturais atestavam, aos

olhos do órgão público da época (o Serviço de Proteção ao Índio - SPI), a origem autóctone

do grupo, admitindo-os, portanto, no quadro de comunidades assistidas pelo órgão tutor.

Como bem demonstrou Lima (1995), a categoria de índio (ou indígena) foi

instituída pelo aparelho administrativo do estado brasileiro como uma nomenclatura geral

para representar o conjunto de povos nativos do território brasileiro. Historicamente essa

“presença” de povos nativos no território brasileiro foi considerada uma grave “questão”

nacional. Intitulada de a “questão indígena”, sinteticamente, ela significa o problema

político e jurídico do lugar dos povos nativos na formação do Brasil. O percurso histórico

dos modelos de gestão desse problema/“questão” foram, primeiro, durante o período

imperial, o da “guerra como política”, e, com o advento da republica, passou a ser o da

“política como guerra”. É nesse momento que se institui um tipo muito específico de

dispositivo político-administrativo, o poder tutelar (ibid.).

O poder tutelar fazendo a “paz” atualiza, de maneira diferente, a “guerra de

conquista”, isso porque no exercício do poder tutelar a violência aberta do período imperial

se transforma em violência simbólica no período republicano. O poder tutelar se constitui

num dispositivo disciplinar do estado brasileiro cujo exercício implica no monopólio de

definição e controle sobre a população ao qual incide, instituindo para tanto uma definição

extranativa do ser indígena como parte de dispositivos de poder, momento em que se

desloca o direito à identidade para uma forma externa de atribuição. Sob a administração

desse poder tutelar, os povos nativos foram classificados em estágios de “aculturação” que

se tornaram marcadores da integração dessa população ao exercício econômico da

sociedade brasileira como um todo (ibid.).

Naturalizando assim a violência colonialista ao classificar (o suposto no lugar do

imposto) os povos indígenas em “graus” de “assimilação”, essa forma de atribuição externa

instituiu um instrumento de controle e invisibilização dos povos autóctones. Definidos e

classificados de tal maneira, ao estado cabia a tarefa de construir mecanismos

administrativos que promovessem a extinção gradual das afinidades étnicas e dos laços de

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solidariedade entre os povos nativos, permitindo assim a “assimilação” dessas populações

ao grosso da população chamada de “brasileira” (ibid.).

Desse ponto de vista, os “territórios indígenas” são parte e categoria do quadro

administrativo do Estado no processo geral de regularização econômica e fundiária do país.

Ao isolar os povos nativos em aldeias procurava-se apaziguar os conflitos que ocorriam no

campo pelo domínio de território entre nativos e colonizador. Além disso, sedentarizando

povos errantes, o poder tutelar pretendia vencer, pela “não violência”, a resistência dos

povos nativos em se fixarem em lugares definidos pelo Estado (ibid.). Com a imposição da

imobilidade aos povos nativos, o Estado pode conter e vigiar essa população a fim de

transformá-la, gradualmente em trabalhadores rurais e garantir, assim, a ocupação do

campo e a disponibilização de mão de obra para essas regiões.

Na medida em que as aldeias tinham tamanhos reduzidos, que fronteiras foram

instituídas, proibindo-se a entrada em locais que antes eram espaços de coleta, de caça e

sobrevivência material e cultural, a soma das más condições nas aldeias exigiu dos

indígenas que migrassem a procura de trabalho nas fazendas e pequenas cidades no entorno

das aldeias. Esse processo favoreceu a inserção desses grupos na população pobre do

campo e das pequenas cidades tornando esses indígenas invisíveis e ilegítimos no momento

em que categorias próprias do poder tutelar (“aculturado”, “assimilado”, e outras) ganham

o campo do discurso da sociedade como um todo.

Tais categorias, portanto, são hoje de uso franco no discurso preconceituoso,

estigmatizante e ideológico que setores da sociedade brasileira insistem em manter com

relação à representação dos povos nativos. Tal representação, paradigmaticamente, regida

pelo modelo do “museu” (ver adiante), evoca a “primitividade”, a “pobreza”, a

atemporalidade e o anonimato, como condição de autenticidade das culturas nativas.

Instituindo assim, de forma arbitrária, a “cultura nativa” como estática, tanto no tempo

histórico quanto no espaço físico (co-extensiva a um território específico), cuja

sobrevivência fora do tempo (história) e do espaço (suas fronteiras), conveniência das

conveniências, está garantida pelo “museu”. Portanto, categorias do poder tutelar, como as

de “desaldeados”, “aculturados” e outras serviram, e são atualizadas ainda hoje, como

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dispositivos para retirar do indígena a sua permanência no campo da história e invisibilizar

sua presença fora das Terras Indígenas (TI`s).

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizou em 2000 o Censo

PNAD (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios), o censo da população

brasileira. Nos resultados desse censo constatou-se o total de 734 mil indígenas, sendo que

383.298 destas vivem em cidades, e 350 mil em áreas rurais. Esses números passaram a

apresentar uma nova realidade da distribuição da população indígena no país, agora 52,21%

da população indígena encontra-se nas regiões urbanas, sendo que dos vinte municípios

com maior numero de habitantes indígenas, dez são capitais. Isso mostra que a realidade do

indígena que está no meio urbano é significativamente o contexto das grandes cidades. Mas

não para a FUNAI, que ainda trabalha com o numero de 350 mil indígenas no Brasil,

numero esse que representa quase que apenas a população indígena que é atendida pelo

órgão em TI`s, e cuja legislação é extremamente ambígua com relação a população que está

nas cidades.

É nesse contexto que o número de indígenas vivendo na região metropolitana de

São Paulo veio aumentando a cada censo. Em 1998 o IBGE havia registrado 33.829

indígenas, em 2000 esse número foi de 59.989, constituindo a terceira maior população

indígena do país (atrás somente dos estados da Amazônia, 113.391 e Bahia, 64.240).3 No

entanto, no último registro realizado pela FUNASA (2007), órgão público responsável pela

saúde dos povos indígenas, existiam pouco mais de duas mil pessoas cadastradas, ou seja,

apenas 3,6% da população indígena migrante que vive na região metropolitana de São

Paulo tinha algum tipo de atendimento diferenciado no sistema de saúde.4 Desses pouco

mais de 2000, 1338 eram da etnia Pankararu, pelos dados da FUNASA (e outros, como

3 Pelo levantamento da ONG Opção Brasil, realizado pela equipe do Projeto “Índios na Cidade” e atualizado em maio de 2009, as etnias existentes na Grande SP são 51: Aranã, Atikum, Baniwa, Cinta Larga, Fulni-ô, Geripankó, Guajajara, Guarani Kaiowá, Guarani Mby’a, Guarani Nhamdeva, Kaingang, Kaimbé, Kalapalo, Kambiwá, Kamayurá, Kanela, Kantaruré, Kapinawá, Karajá, Kariri, Kariri–Xocó, Katokim, Kaxinawá, Kayabi, Pankararé, Kayapó, Krenak, La Klãnõ, Macuxi, Munduruku, Mura, Nhambiquara, Pankararu, Pataxó, Pataxó Hã Hã Hãe, Potiguara, Puri, Tapeba, Terena, Ticuna, Tremembé, Truká, Tukano, Tuxá, Tuyuka, Wassu, Xavante, Xerente, Xukuru, Xukuru–Kariri e Yanomami. 4 Tabela com os dados cadastrais da FUNASA, número de indígenas por etnia: Atikum = 25; Kambiwa = 10; Terena = 34; FULNI-ô = 18; Katokin = 2; Tuxa = 3; Pankarare = 302; Wassu = 25; Guajajara = 1; Pankararu = 1338; Xukuru = 106; Jeripankó = 1; Pataxo = 9; Xukuru-Kariri = 1; Kaimbé = 2; Potyguara = 28. Essa tabela não conta a população guarani das quatro aldeias da grande SP.

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CIMI, ONG “Opção Brasil”) as principais etnias que constituem a população indígena

migrante da cidade de São Paulo são do nordeste brasileiro, com enorme destaque para os

Pankararu.

A disparidade entre dados do CENSO e os dados da FUNASA mostra como os

indígenas em São Paulo têm dificuldade em terem seus direitos efetivados. O principal

instrumento de contestação da “autenticidade” dos indígenas, seja do poder publico de

forma ampla (FUNAI, FUNASA, e outros), que os mantêm, administrativamente num

“limbo jurídico”, seja a própria sociedade civil que os estereotipa, vem da atualização de

categorias do poder tutelar e contemporização com o “senso comum”.5 Noções como

“desaldeado” são recorrentemente colocadas como obstáculo pelo poder público para que a

população indígena migrante consiga regularizar o acesso a direitos, reivindicando um

“limbo jurídico” (a falta de instrumentos jurídicos e administrativos que discriminem a

forma de atuação do poder publico junto a essas comunidades) o poder público atualiza a

violência simbólica da “política como guerra” do poder tutelar cujo resultado prático é a

manutenção da invisibilidade dos indígenas no contexto urbano e a constituição de uma

omissão legítima.6

É nesse contexto que os Pankararu surgem como uma população indígena migrante,

“desaldeada” e “aculturada” aos olhos do poder publico e da sociedade paulistana nos anos

1990. A migração vivida por esse grupo foi definida como uma diáspora (Arruti 1999).

Etimologicamente a definição de diáspora remonta ao termo em grego antigo, διασπορά –

"dispersão", que se define como o deslocamento, normalmente forçado ou incentivado, por

motivos religiosos ou políticos, de comunidades ou populações originárias de uma região

para outras. A diáspora Pankararu para São Paulo começou nos anos 1940 e se intensificou

nas duas décadas seguintes. Em São Paulo os primeiros Pankararu que chegaram não

5 Como muito bem definiu e apontou Oliveira (1999b: 176), o antropólogo deve, “evitar contemporizações, explicitando que considera e reconhece como sociedade indígena toda aquela coletividade que por suas categorias e circuitos de interação se distingue da sociedade nacional, e se reivindica como ‘indígena’, isto é, descendente – não importa se em termos genealógicos, históricos ou simbólicos – de uma população de origem pré-colombiana”. 6 O Supremo Tribunal Federal brasileiro declarou que a regra constitucional não “pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental” (AgRg RE 393715/RS, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, julg. 12/12/2006, DJ 02-02-2007, p. 140.).

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tinham instrução formal e tornaram-se trabalhadores braçais. A maioria trabalhava nas

equipes de desmatamento da Cia. De Luz do Estado para onde eram agenciados por “gatos”

que iam buscá-los na própria aldeia, para entregá-los em lotes, ao “empreiteiro” das obras

(Arruti 1999: 267).

Uma boa parte dos Pankararu trabalhou na construção do estádio de futebol Cícero

Pompeu de Toledo (o Estádio do Morumbi). Próximo ao local dos alojamentos, alguns

trabalhadores começaram a se apossar de partes do terreno às margens do rio Pinheiros que

eram de utilidade publica, “sobras” do loteamento do bairro e destinadas a construção de

benfeitorias públicas que nunca chegaram a termo, formando assim uma “favela”,

inicialmente chamada de “favela da mandioca” e posteriormente com o nome do bairro,

“favela do Real Parque”. Foi nesse contexto que grande número de Pankararu acabou

construindo um endereço fixo em São Paulo o que possibilitou a vinda de parentes

formando assim uma migração constante para São Paulo, normalmente intercalada entre

grandes períodos de trabalho em São Paulo e breves retornos a aldeia em Pernambuco. O

número de Pankararu em São Paulo gira em torno de 2000 pessoas e na favela do Real

Parque estão pelo menos ¼ da população Pankararu da cidade.

O núcleo Pankararu que se formou na “favela do Real Parque” começou a ganhar

visibilidade social a partir do incremento da política de autogestão e associativismo que

caracterizou os movimentos sociais pós Constituição de 1988. Como não existe um

mecanismo jurídico específico de reconhecimento dos indígenas migrantes, os Pankararu

do Real Parque, inseridos numa gama de entidades de assistência eclesial, de ONGs e de

associações auto gestionadas, lançaram mão da experiência com o associativismo vindo do

cotidiano da favela e também do contato com outros povos indígenas.7 Assim, em 1992,

formaram sua primeira associação, a SOS Índios Favelados, depois, em 1994, renomeada

de Associação Indígena Comunidade Indígena Pankararu, a SOS-CIP, entidade que

formalmente representa os Pankararu em São Paulo junto a FUNAI, FUNASA e outros

órgão públicos e entidades da sociedade civil.

7 Esse contato se deu com outros grupos de Pernambuco e do Nordeste, mas particularmente junto aos Guarani de São Paulo, população nativa da região, com quatro aldeias na área metropolitana de São Paulo, e que já há muito tempo mantinham práticas de associativismo com algumas associações já constituídas e atuantes junto ao poder público e sociedade civil.

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Ao se inserirem em campos de atuação política e ganharem alguma visibilidade

social, os Pankararu passaram a se inserir em circuitos conexos aos espaços de mobilização

social e demandas simbólicas começaram a surgir, no caso, demandas por sinais diacríticos

capazes de “provar” a legitimar das demandas políticas e étnicas dos Pankararu. Solicitados

a exibir traços culturais que os qualificasse como uma população diferenciada, mesmo que

em contexto urbano, os Pankararu constituíram a performance “dança dos praiás”.

Ao constituírem uma associação, os Pankararu do Real Parque constituíram

duplamente uma forma de se representarem politicamente como comunidade e, também,

uma forma de se representarem simbolicamente como indígenas. Esse duplo percurso não

esteve separado e nem se conformou como uma caminhada em separado. Ao

incrementarem sua presença política em espaços de mobilização social os Pankararu foram,

ao longo do tempo, desenvolvendo uma atividade simbólica e cultural que tinha por

objetivo constituir uma resposta a demanda por sinais diacríticos e por autenticidade

cultural advindo do fato de que os Pankararu se colocaram nesses espaços como uma

população etnicamente diferenciada.

Se de fato, como bem demonstra a etnologia dos povos indígenas do nordeste

(Grunewald 1993; 2001, Palitot 2005, Albuquerque 2005, Barbosa 2003; 2005, Valle 1999,

Mota 2005), as emergências étnicas, com o incremento de elementos e performances

culturais desses povos, ocorreram em diálogo com o estado e a sociedade envolvente, onde

tais agências constituíram um importante papel na experiência étnica desses grupos, então,

em São Paulo com os Pankararu, esse fenômeno repetiu-se, porém, com sua singularidade.

Agora, um tipo específico de demanda (digamos pós-moderna8), por tradições, culturas, e

autenticidades nativas, produziu um fenômeno inverso ao das emergências étnicas do

8 “Após décadas em que a assimilação de ex-escravos e de nativos era considerada o modelo para a incorporação dessas diversas populações, ainda que dentro de um quadro hierárquico no qual continuavam constituindo as classes subalternas, um pluralismo cultural, impulsionado também por movimentos de afirmação étnico-raciais, emergiu dando lugar a um outro paradigma sociopolítico no qual as tradições e as etnias nativas eram celebradas como tais. O que antes era visto negativamente tornou-se um valor. Na pós-modernidade esses movimentos tendem a ser engolfados em um modelo do que poderíamos chamar de mercantilismo cultural, numa “nova era capitalista” onde bens culturais, da chamada tradição ancestral de um povo, tornam-se mercadorias, servindo aos propósitos tanto das classes dominantes como dos próprios indígenas” (Mota 2008: 23).

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nordeste, trata-se agora de pensar “a forma como o ‘resgate cultural indígena’ está levando

o indígena para fora de sua aldeia” (Mota 2008: 22).

Esses espaços de valorização do multiculturalismo, com todas as exigências por

exotismo e autenticidade, demandadas por seu público9, carregam no seu curso também os

indígenas em diáspora. Nesses espaços os Pankararu construíram a performance “dança

dos praiás” como um sinal diacrítico e como linguagem simbólica de ingresso em tais

locais, assim, conseguiram atualizar sua condição étnica diferenciada e re-significar sua

diáspora de forma positiva afirmando sua natureza política.

Levando em conta as agências que se encontram e se somam nesses espaços de

visibilidade social indígena, defino tais locais como arenas, recuperando assim o sentido de

campo de Bourdieu (1989; 2004)10. Na antropologia contemporânea, o termo arenas é uma

denominação geral que se refere aos espaços de negociação e constituição de autenticidade

dos conteúdos sociais. Estas arenas, que se constituem em um campo de disputa (em torno

da legitimidade de seu conteúdo e regras), vêem se apresentando como espaços de

renovação do movimento indígena na medida em que tornam visível a presença dessa

população em São Paulo, constituem lugares de congregação da comunidade, de encontros

interétnicos, além de tornar acessível essa “cultura exótica” a um grande público. Essas

arenas se constituem em um conjunto heterogêneo formado, por exemplo, por museus,

galerias, feiras de artesanato, escolas, faculdades, instituições de pesquisa, ONG`s,

exposições de cunho internacional, veículos midiáticos (TV, jornais, rádio, etc.) e outros.

A seguir demonstrarei como a “dança dos praiás” se constituiu numa versão

pragmática, ou, numa tradução heterodoxa de uma modalidade ritual como um sinal

9 “Esta imagem de um ‘índio autêntico’ tem sido divulgada principalmente por uma parcela da sociedade brasileira não-indígena, correspondendo ao desenvolvimento de um movimento alternativo conhecido como o new age. Essa visão aproxima-se muito da visão do ‘bom selvagem’ preconizada por [Jean-Jacques] Rousseau” (Mota 2008: 23). 10 Para Bourdieu (2002: 156-7) “Toda a história do campo social está presente, em cada momento, em forma materializada – em instituições (...) – e em forma incorporada – nas atitudes dos agentes que fazem funcionar estas instituições ou que as combatem (...) A posição social adequadamente definida é a que dá a melhor previsão das práticas e das representações; mas para evitar que se confira (...) à identidade social (...), a função de uma essência de que derivariam todos os aspectos da existência histórica – (...) – é preciso ter em atenção de modo muito claro que este status, como o habitus que nele se gera são produtos da história, susceptíveis de serem transformados, de modo mais ou menos difícil, pela história”.

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diacrítico que pretende cooptar11, de forma contra-hegemônica, a imagem da diferença nas

arenas de São Paulo. Essa imagem da diferença, cujo regime tem por modelo o “museu”

(Price 2000; Clifford 1998), institui o anonimato e a atemporalidade, violência simbólica

que atualiza categorias do poder tutelar (como, por exemplo, as de “aculturado”,

“civilizado”, “desaldeado” e outras).

Clifford (1999: 192) definiu o museu como uma zona de contato, um espaço, “no

qual pessoas geograficamente e historicamente separadas entram em contato umas com as

outras e estabelecem relações, normalmente envolvendo condições de coerção,

desigualdade radical, e intratável conflito” (tradução minha). Ao monopolizar o discurso

imagético da história e se colocar como porta-voz oficial do estado, o museu invisibiliza a

violência da ocupação colonial e atualiza a violência simbólica do poder tutelar ao impor à

representação do indígena e de suas tradições o duplo papel de: a) anonimato; e b) de

neutralidade histórica e espacial (Clifford 1999; 1998; Price 2000). Negando assim que os

povos indígenas e suas tradições estão na história e, negando a contemporaneidade, a

heterogeneidade e o caráter contra-hegemônico destas tradições.

Com o conceito de interculturalidade procuro enfatizar que esse sinal diacrítico,

“dança dos praiás”, deve ser pensado de um ponto de vista processualista que confira a tal

tradução o poder de questionar e dialogar com noções essencialistas de autenticidade,

anonimato e atemporalidade demandadas aos indígenas em tais arenas pelo modelo do

“museu”. A gênese dessa tradução se encontra: a) na interseção de várias agências nessas

arenas onde, no jogo do poder simbólico, essa tradução intercultural cria a ilusão de

consenso; e, b) nas estratégias nativas de negociação (entre o tradicional e o moderno) da

autenticidade, política e ritual, de tal tradução.

11 “1. Agregar; 2. Admitir numa sociedade, por escolha dos seus próprios membros, com dispensa das formalidades de praxe” (http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=cooptar), ou ainda; 3. Atrair ajuda (http://pt.wiktionary.org/wiki/cooptar).

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Traduzindo… da “dança” dos praiás nos terreiros à “dança dos praiás” nas arenas

A performance que estou analiticamente denominando de “dança dos praiás” é

chamada pelos Pankararu em São Paulo de “apresentação”. Essa “apresentação” se

constitui numa performance heterodoxa de uma dança ritual originalmente realizada apenas

dentro da área Pankararu em Pernambuco, sempre num terreiro e por dançadores usando

uma veste sagrada chamada de praiá (saiote e máscara), no contexto de um culto religioso

típico de um complexo ritual comum aos povos indígenas do nordeste brasileiro. Essas

apresentações em São Paulo são realizadas em determinadas arenas que vêem se

constituindo em espaços de visibilidade social da população indígena na cidade. Pretendo

mostrar que os Pankararu em São Paulo instituíram a “dança dos praiás” como uma

performance com a intenção de cooptar a imagem da diferença que os institui como

indígenas (portanto, como o outro, a diferença) na sua relação com a sociedade nacional.

Desse modo, como recurso analítico, faço uma distinção entre “dança” dos praiás e

“dança dos praiás”.

A “dança” dos praiás nos terreiros Pankararu em Pernambuco

Começando por uma descrição do praiá propriamente dito, ele é uma “veste” ou

“roupa”, constituída de algumas peças: uma máscara ou tunã cobre todo o rosto e corpo de

um dançador (dançarino) feita da palha de caroá (croá, kroá, caroá-açu); um saiote, feito do

mesmo material; uma coroa, rodela de plumas, feita de penas de peru; um penacho feito de

plumas que se encaixa num pequeno orifício no centro, em cima da máscara ou tunã; e uma

cinta, um tecido colorido, normalmente tecido de chita estampado ou algum pano bordado

com um símbolo religioso. Ela é usada por um dançador (dançarino) portando na mão

direita um instrumento musical, o maracá (espécie de “chocalho”), e geralmente presa a

máscara uma gaita (flauta doce). O dançador utiliza o praiá durante uma festa cerimonial,

principalmente, em homenagem a um feito milagroso, uma cura em geral, atribuído à ação

de uma entidade sagrada, genericamente chamada de encantado, cuja representação

material é o próprio praiá.

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Fotos: Maria dos Dores Conceição Pereira do Prado

Os encantados são entidades sagradas que habitam na natureza, são atributos de

Deus, elas são entidades vivas, já que são seres que não morreram, sendo entendidos como

ancestrais dos Pankararu que se encantaram, ou seja, passaram para o plano espiritual

porém sem passarem pela experiência da morte, por isso continuam vivos no plano

terrestre, mas habitando não mais entre os homens, mas na natureza, nas matas e

principalmente nas quedas d água.12 São portanto seres especiais que estão tanto na “terra”

quanto no “céu”, como seres que estão em “ambiguidade” eles estão tão próximos de Deus

quanto dos homens, e portanto a eles se pode recorrer em auxilio para orientação e proteção

espiritual, pessoal, familiar, da comunidade e, principalmente, para a realização de uma

cura, a recuperação da saúde de uma pessoa, entendida como um milagre.

Analiticamente os encantados fazem parte de um complexo religioso cuja distinção

e definição foi proposta por Mota & Barros (2002) e Nascimento (s/d.) como sendo o

“complexo da jurema”. Campo religioso afro-indígena cuja linguagem ritual guarda a

12 Como escreveu Arruti (1999: 269), “Os Encantados são ‘índios que se encantaram’, voluntária ou involuntariamente, e por isso o culto a eles, como insistem os Pankararu, não pode ser confundido com o culto aos mortos, identificado como a ‘religião de negros’”. A atuacao do encantado no médium é uma relação de irradiação e não de incorporação. Essa distinção pretende construir, no discurso da etnicidade, uma diferença com relação aos cultos afro-brasileiros, cujo médium incorpora o espírito de uma entidade “morta” (como o preto-velho, a pomba-gira, o boiadeiro, etc.). No caso dos Pankararu o médium apenas irradia, ou seja, realiza um contato cuja incorporação difere essencialmente pelo fato de que o encantado não é o espírito de uma pessoa morta, mas sim o espírito de um ser encantado, algo vivo, na natureza e no plano humano, na Terra.

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herança colonialista católica e as alianças territoriais, simbólicas e de parentesco entre os

povos autóctones e escravos negros durante a formação histórica da região nordeste do

Brasil. Particularmente entre os Pankararu, os encantados são o centro de um complexo

terapêutico13 onde são considerados um atributo de Deus que atuam no plano humano a

partir da instituição da “promessa” (relação de dádiva e contra-dádiva que uma pessoa

contrai com essas entidades) para a realização de um milagre (intervenção dos encantados

na recuperação da saúde e cura de uma pessoa).

A emergência, ou em termos nativos, o levantamento de um praiá começa com o

aparecimento da semente que “é a forma material por que os Encantados se manifestam

pela primeira vez aos Pankararu” (Arruti 1999: 269). Os encantados escolhem uma pessoa

para zelar por eles, aparecem em sonho, as informam de suas intenções e lhe entregam a

semente. Ela é então guardada em um pote e enterrada no solo embaixo da casa do zelador

(a pessoa que fica então responsável pela guarda e preservação das máscaras corporais dos

praiás). Deste modo, os encantados passam a se manifestar no particular (culto doméstico,

às vezes chamado de mesa, restrito a poucas pessoas, normalmente os familiares mais

próximos), neste espaço eles revelam seu nome e seu toante (cântico) próprio. Isso significa

que cada encantado tem um nome próprio e um toante próprio (do mesmo modo que terá

em seguida uma veste, ou um praiá, próprio que o identifica através da cinta).

Depois disso o encantado pede para ser levantado, ou seja, cultuado nos terreiros,

nesse momento possivelmente o encantado já mostrou sua força realizando algum tipo de

cura, assim ele está apto a pisar no terreiro (um espaço público diferente do particular) e

ser conhecido pelo resto da comunidade. Neste momento então é que o zelador constrói, ou

seja, organiza uma equipe de especialistas, somente homens, que tecerão a indumentária

característica dos praiás, máscara e saiote. Às mulheres cabem tecer a cinta, um tecido

retangular com nome do praiá ou símbolos religiosos bordados ou ainda pode ser usado um

pano de chita estampado ou liso. Este zelador convoca então em sigilo (tendo em vista que

às mulheres é vedado conhecer a identidade daquele que está usando o praiá) um homem

jovem da comunidade para “vestir” o praiá. Para esta função o jovem deve ser alguém de

13 Estou utilizando a palavra terapia recuperando o seu sentido original, já que terapia vem do grego θεραπεία, que significa literalmente "servir a deus".

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conduta moral reconhecível. Do mesmo modo, também “não é qualquer pessoa que é

reconhecida como apta a receber uma ‘semente’, estando esse lugar marcado por certa

avaliação coletiva acerca de sua reputação” Arruti (1999: 271). O zelador passa a

concentrar em torno de si a realização de particulares e deve manter um terreiro para a

realização das cerimônias públicas (Menino do Rancho, Três Rodas e outras).

Para manter vivos os praiás alguns ritos devem ser realizados e alguns tabus devem

ser seguidos. Os mais importantes atos rituais nesse sentido são: a) alimentá-los todo dia,

ou seja, através do campiô (cachimbo ritual) defumá-los com fumo preparado; b) isso deve

ser realizado por um homem, normalmente seu zelador, esse não pode ter tido relações

sexuais no dia ou na véspera e não pode ter ingerido bebida alcoólica, também não deve ser

feito na presença de muitas pessoas, principalmente não indígenas; e, c) os dançadores

devem seguir os mesmos tabus e ritos acima descritos, praticados pelo zelador, na véspera e

no dia de vestirem o praiá.

Segundo Carneiro da Cunha (1999: 56-7) é possível classificar o número de praiás

em três gerações: a) inicialmente eram oito, depois somaram-se mais cinco totalizando

treze praiás iniciais; b) mesmo com a presença de faccionalismos ao longo dos anos 1970 e

1980 entre a TI Pankararu e a TI Entre-Serras, o número de praiás cresceu em apenas

algumas unidades; e, c) Carneiro da Cunha (1999: 57) registrou em sua pesquisa que o

número de praiás ultrapassava os cinqüenta. Durante o ano de 2009, eu registrei uma

cerimônia do Menino do Rancho na aldeia sede dos Pankararu, no seu terreiro principal

(Fonte Grande), onde se pôde contar mais de sessenta praiás. O número de praiás

atualmente não é conhecido, mais alguns dizem que ultrapassa facilmente os cem.

Como registraram vários autores (Carneiro da Cunha 1999; Arruti 1999; Matta

2006), novos praiás são mal vistos, ou pelo menos, colocados em suspeita, por muitos

Pankararu que têm uma postura mais ortodoxa com relação à ampliação do número de

praiás, normalmente esse grupo mais crítico é formado por pessoas mais idosas. Além do

seu aspecto ritualístico, levantar um praiá significa se colocar de forma mais ampla nos

espaços coletivos de celebração, já que os praiás são identificados com as famílias que os

possuem. A organização social dos Pankararu distribui o poder político no seio das famílias

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influentes no campo das qualificações rituais, onde tanto o número quanto a antiguidade

dos praiás são importantes.14

Com relação especificamente aos Pankararu, o toré é o nome usado pra se referir

tanto a um ritual, quanto ao tipo de dança e de música nele executados.15 Os torés, enquanto

músicas, são cânticos religiosos, que na sua maioria fazem referencia ao universo do que

denominei acima de “o complexo da jurema”, onde se destacam Jesus, Deus, os

encantados, santos católicos, e outros. Esse tipo de cânticos são entoados na sua maior

parte em português, por um especialista na execução de cânticos cerimoniais, chamado de

cantador, e sempre como encerramento de um ritual, ocasião que também é chamada de

toré ou de “brincadeira”, momento mais lúdico, onde há a participação coletiva.

Já os praiás, como já foi dito, são máscaras corporais que “vestem” os encantados

durante um ritual (que pode durar mais de um dia) sempre num terreiro (lugar sagrado

reservado para essas ocasiões). No caso dos praiás, embora eles compartilhem do momento

do toré, os rituais propriamente ditos, são realizados “para que os praiás dancem”, é uma

festa dada a eles, desse modo, o toré é uma espécie de momento lúdico que acompanha o

fechamento (encerramento) de um ritual feito para os encantados dançarem com os praiás

no terreiro. Durante a “dança” dos praiás um cantador executa cânticos cerimoniais

diferentes dos que são executados durante o toré. Na “dança” dos praiás são executados

cânticos chamados de toantes. Os toantes são cânticos feitos numa espécie de língua

ancestral Pankararu, eles são compostos tantos de palavras vindas de uma linguagem

ancestral, como também por sons que representam essa linguagem e ainda por vocábulos

em português normalmente pronunciados de maneira a se adequar ao som da música em

conformidade a essa linguagem ancestral.

Simplificando sobremaneira se pode dizer que o toré, referindo-se ao seu conjunto e

nas suas partes (ritual, canto e dança), apesar de sagrado é público e tem características

14 Outra forma de adquirir praiás é por herança, com a transmissão de um praiá ou mesmo um batalhão pela linha de parentesco. 15 O toré é uma importante manifestação política e cultural dos povos indígenas no nordeste e se tornou uma importante referência para todas essas populações. Na medida em que o toré se constituiu em diferentes contextos, em diferentes comunidades indígenas ele vai adquirindo certas características próprias, existindo portanto uma enorme gama de manifestações entre os povos indígenas que são chamadas de toré (ver, por exemplo, Grunewald 2005).

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laicas, congregando muito bem elementos puramente religiosos com manifestação e

performance estética e política, sendo executado em momentos rituais como “brincadeira”

dentro das aldeias e em momentos políticos como performance. O praiá (máscara corporal,

dança e toante) é restrito a rituais religiosos específicos (Menino do Rancho, Três Rodas,

Dança dos Passos, e outros) que ocorrem apenas em terreiros que se localizam sempre

dentro das TI`s dos Pankararu, portanto, por regra, sua ortodoxia não permite seu ingresso

em espaços que não sejam terreiros em aldeias16. O toré é então realizado tanto

internamente como “brincadeira” na comemoração de festas, na parte final dos rituais mais

importantes, e outros, quanto fora da área Pankararu, como exibição de identidade e força

política, já a “dança” dos praiás, pelo seu caráter mais sagrado, ficam restritas aos terreiros

das aldeias. (Sandroni et. al. 2005; Arruti 1999; e Carneiro da Cunha 1999).

A “dança dos praiás” nas arenas de São Paulo

Em São Paulo, não existe nenhum terreiro Pankararu, isso significa que em teoria

não deveriam existir praiás na cidade, visto que os praiás nesse contexto não teriam função

ritual propriamente dita, na medida em que apenas num terreiro eles poderiam “dançar”.

Portanto, a emergência de praiás entre os Pankararu do Real Parque é uma heterodoxia, já

que ela somente pôde ocorrer ao relativizar a ortodoxia ritualística que rege o ato de

levantar o praiá, como exposto acima. De maneira analítica, pode-se dizer que o ato de

levantar praiás em São Paulo modificou-se, passou de um discurso ritual para um político.

Portanto, é pelo e como um ato político, atualização dupla no jogo do poder, que rigores

rituais atualizam-se como condição de responder à violência simbólica, atualização de

categorias do poder tutelar, das arenas de São Paulo.

16 Além do caso em são Paulo, vale a nota de que entre os Pankararu existe a devoção a padre Cícero, e durante as comemorações da festa de padre Cícero, os Pankararu realizam romarias até a cidade de Juazeiro, do mesmo modo que muitos sertanejos pelo nordeste, mas o diferencial dos Pankararu, alem de outros obviamente, é que alguns Pankararu chegam a levar praiás para a cidade e a festa santa. Alem desse momento é importante notar também que os praiás Pankararu podem eventualmente “dançar” em outros terreiros dentro de outras áreas indígenas, particularmente daqueles reconhecidas como “parentes” próximos dos Pankararu. Do mesmo modo que praias desses locais podem “dançar” em festas na área Pankararu.

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Em entrevista, o ex-presidente da SOS-CIP, Manuel Alexandre Sobrinho, o Bino,

disse que,

“logo que cheguei aqui [São Paulo] nosso povo não se identificava como índio, eles

tinham vergonha de mostrar a cultura, tinham cisma também das empresas não

aceitar se você é índio. Aqui não tinha praiá, não tinha toré, nós não nos reuníamos

pra fazer nosso trabalho de mesa. Nós começamos a dançar o toré, os praiá, e se

identificar, depois da associação. Lutamos por ela porque a FUNAI não queria nos

atender como índio, porque eles acham que índio só é índio na aldeia, como a

FUNAI queria tirar o corpo dela fora pra não assumir nós com nada, ela botou essa

dificuldade, só nos apoio depois que viu a nossa cultura”.

Foi nesse contexto que os Pankararu tomaram a decisão de consultar o cacique, o

pajé, e as demais lideranças de Pernambuco “pra nós trazermos os praiá aqui pra São

Paulo”.

No ano de 2008 a SOS-CIP realizava apresentações da performance “dança dos

praiás” com um grupo de dez praiás. Esses praiás não foram levantados de forma usual, ou

seja, como um ato ritual após o aparecimento da semente, eles foram levantados como um

ato político. Os praiás em São Paulo são considerados a segunda roupa, já que a primeira,

também chamada de o tronco velho, a originalmente levantada pelo circuito ritual da

semente, está na aldeia em Pernambuco. Sendo assim, todos os dez praiás em São Paulo são

cópias de praiás de sua aldeia em Pernambuco, são a segunda roupa de outros praiás.17

Em São Paulo o primeiro praiá segunda roupa foi levantado oficialmente pela

diretoria da SOS-CIP através de seu primeiro presidente, Frederico Marciolino de Barros,

em 1994. Nesse ano Frederico trouxe da aldeia sede dos Pankararu, Brejo dos Padres, um

praiá chamado “Cinta Vermelha”, que é a segunda roupa de um dos primeiros praiás a ser

17 Um praiá segunda roupa é tão legítimo quanto o original. O fenômeno da segunda roupa não é um ato isolado dos Pankararu em São Paulo, de fato ele ocorre também nas suas aldeias em Pernambuco, mas esse fenômeno ainda não foi bem descrito pela literatura antropológica.

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levantado entre os Pankararu.18 Em fins de 1999, Bino, que fazia parte da diretoria da SOS-

CIP, trouxe a fibra de caroá da aldeia e, tendo a presença de um artesão Pankararu que

estava no Real Parque, foram levantados mais três praiás segunda roupa, totalizando

quatro. Nessa época, Bino havia retornado da aldeia em Pernambuco com dois praiás

pequenos, usados por crianças, também considerados como a segunda roupa, totalizando

assim seis praiás. Todos esses praiás segunda roupa, pertencem ao batalhão original do

“Cinta Vermelha” no Brejo dos Padres.

Dimas Nascimento, após derrota na tentativa de reeleição como presidente da SOS-

CIP em 2003, constituiu uma ONG, a Ação Cultural Indígena Pankararu. A dinâmica dessa

ONG procurava parceiros na iniciativa privada para a confecção de “projetos culturais”

com o objetivo de ‘”resgatar e conservar” aspectos da cultura dos Pankararu. Essa ONG

constituiu, tal como a SOS-CIP, uma performance da “dança dos praiás”. Para tanto, Dimas

levantou, no Brejo dos Padres, quatro praiás segunda roupa e os trouxe para São Paulo. Tal

procedimento acirrou o faccionalismo entre a SOS-CIP e essa ONG, colocando em jogo a

própria legitimidade dos Pankararu como comunidade indígena em São Paulo.

Do ponto de vista desse caso específico, o associativismo indígena Pankararu em

São Paulo é o resultado de outra atualização do poder tutelar, já que restitui a indianidade19

(Oliveira 1988) como condição de representação política. Aqui, ele gerou o monopólio da

representação política dessa comunidade em todo o Estado, e isso porque os Pankararu em

São Paulo passaram a ser assistidos pela FUNAI em Bauru (SP), sendo a SOS-CIP, a

entidade formal e representante oficial dessa comunidade junto ao poder público. O

18 O primeiro praiá levantado foi o do “Mestre Guia”, que se constitui no principal encantado e cujo praiá “dança” no terreiro apenas uma vez ao ano, no encerramento da festa “corrida do Imbu”. Para muitas pessoas, o “Cinta Vermelha” e o “Xupunhum” são os primeiros praiás depois do “Mestre Guia”. O “Cinta Vermelha” é o chefe de um batalhão importante no Brejo dos Padres, isso significa que esse encanto é o cabeça, o guia de todo um conjunto de praiás, é o chefe que vai na frente durante a “dança” dos praiás, e também é o chefe que normalmente comanda a realização de um milagre, sendo uma espécie de coordenador do processo terapêutico. 19 “Em função do reconhecimento de sua condição de índios por parte do organismo competente, um grupo indígena específico recebe do Estado proteção oficial. A forma típica dessa atuação/presença acarreta o surgimento de determinadas relações econômicas e políticas, que se repetem junto a muitos grupos assistidos igualmente pela FUNAI, apesar de diferenças de conteúdo variadas das diferentes tradições culturais envolvidas. Desse conjunto de regularidades decorre um modo de ser característico de grupos indígenas assistidos pelo órgão tutor, modo de ser que eu poderia chamar aqui de indianidade para distinguir do modo de vida resultante do arbítrio cultural de cada um” (Oliveira 1988: 14. Em itálico no original).

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associativismo, única saída possível aos Pankararu para garantirem algum tipo de

atendimento pelo órgão tutor (saída improvisada, diga-se de passagem, tendo em vista

continuarem num “limbo jurídico”) acabou constituindo um novo tipo de indianidade, cuja

forma definiu como instrumento de representação a suposta coerência e homogeneidade da

comunidade em São Paulo.

O modelo de organização social Pankararu em Pernambuco é baseado em núcleos

familiares que são donos de batalhões e terreiros, desse modo, o poder político é atrelado

ao religioso, permitindo assim apenas uma relativa autonomia do cacique e do pajé. Em São

Paulo ocorreu um espelhamento e uma síntese desse modelo, no caso, a SOS-CIP e sua

presidência, por ter o monopólio político, passou a reivindicar também o simbólico, ou seja,

o de representar oficialmente os Pankararu através da performance “dança dos praiás” em

arenas da cidade de São Paulo.

Desse modo, em 2003, as duas entidades Pankararu em São Paulo, a SOS-CIP e a

ONG, realizavam apresentações com a performance “dança dos praiás”. Essa performance

se constituía numa síntese da “dança” dos praiás original reduzindo o que normalmente

demora o dia inteiro (ás vezes até mais de um) em apenas algumas horas, ou, muito mais

comum, em cerca de 40 minutos. Nessa época portanto, a diretoria da SOS-CIP não estava

contente com o fato da ONG estar realizando apresentações públicas com praiás, já que tal

elemento cultural, sendo “o mais significativo dos Pankararu” não poderia ser usado por

uma entidade que não fosse também a legitima representante da comunidade em São Paulo.

Além disso, essa disputa colocava em cheque a legitimidade dos Pankararu em São Paulo,

da própria SOS-CIP e da presença dos praiás em apresentações, já que o ingresso dos praiás

nesse sistema de apresentações e, portanto, na constituição de outro status dos praiás

através do discurso do levantar como um ato político, foi largamente negociado com as

lideranças Pankararu em PE que, após várias intermediações, inclusive com a presença

dessas lideranças em São Paulo em reuniões com a SOS-CIP, concederam que alguns

poucos praiás pudessem fazer parte da SOS-CIP constituindo, assim, um pequeno batalhão

para servir de referencia cultural e religiosa aos Pankararu em São Paulo, e incrementar o

trabalho de valorização da identidade indígena dos Pankararu perante os órgãos públicos e

a sociedade paulistana em geral. Para dar conta do entrave político que se gerou entre as

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lideranças em São Paulo, e como forma de evitar um desgaste dessas lideranças e com isso

do poder político da própria comunidade, o representante da pastoral indigenista, Benedito

Prézia, que atuava junto aos membros da ONG desde a época em que eram a “situação” na

SOS-CIP, interveio junto a Dimas, presidente da ONG, e conseguiu uma conciliação com a

passagem dos quatro praiás para a SOS-CIP.

Desse modo, em 2008, Bino, presidente da SOS-CIP, era o zelador de um batalhão

de dez praiás segunda roupa. Com esse conjunto ele e os membros da SOS-CIP já haviam

realizado apresentações da performance “dança dos praiás” em diversas arenas da cidade de

São Paulo: escolas públicas, igrejas, faculdades particulares, ONG`s, parques de exposição,

feiras de artesanato, formatura de alunos Pankararu, festas do “dia do índio”, na Casa de

Saúde Indígena (CASAI-SP), eventos culturais (principalmente a Virada Cultural),

apresentação na Assembléia Legislativa (SP), sarais poéticos (como o evento “I Sarau

Indígena” na Av. Paulista), encontro da entidade de moradores do Real Parque (SARP), no

protesto “Marcha Grito dos Excluídos” evento que congrega milhares de pessoas e é

promovido por diversas entidades sociais, encontros de lideranças indígenas, e muitos

outros.

Fotos: na esquerda o batalhão de praiás de São Paulo em uma “apresentação”, na direita Bino

comanda a performance. Autor das fotos: Marcos Alexandre dos Santos Albuquerque

A segunda roupa é um duplo, ela representa literalmente o encantado tal como o

praiá original, por isso, com relação a segunda roupa, todos os ritos e tabus relacionados ao

praiá original devem ser seguidos. Desse modo, em São Paulo, “continuam latentes as

potencialidades e os perigos inerentes ao uso da vestimenta dos praiás e à prática ritual,

independente da dose política investida na produção dos encantados e na ‘apresentação’ do

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rito” (Matta 2005: 181). A legitimidade dos praiás que estão em São Paulo e sua força são

“atestadas ao passo que os pedidos a eles proferidos forem concretizados” (ibid.: 178)20.

Assim, o ato político de levantar os praiás em São Paulo embora uma heterodoxia, não o

destituiu da ortodoxia que o mantém vivo. Esse ato apenas pode ser atualizado a cada

apresentação se o ato ritual que mantém os praiás vivos for cotidianamente atualizado

também.

Zelar (cuidar), alimentar (com fumo) e vestir (usar pelo dançador), todos os atos

rituais descritos acima sobre a forma como se mantém vivos os praiás em Pernambuco,

devem ser seguidos à risca em São Paulo, sob pena de quem infligi-los “ser corrigido” pelo

encantado (como por exemplo, sentir um mal estar com cegueira e incapacidade de se

movimentar momentâneas). Foi como e por um ato político que a segunda roupa pôde

nascer em São Paulo, mas é apenas pelo ato ritual que ela pode sobreviver. A segunda

roupa tem status ritual igual ao da original porque sua gênese como um ato político atualiza

o ato ritual que deu origem ao praiá original.

“A árvore tem folhas”: a cultura política do ato de traduzir

Durante a formação do seu território atual os Pankararu passaram por muitas

mudanças sociais, culturais, fenotípicas, lingüísticas que são a prova e o resultado mais

contundente da ação do poder tutelar como dispositivo político-administrativo. Dentre um

número muito grande de mudanças há algumas que são mais tipicamente levantadas contra

os Pankararu em geral e, mais particularmente, contra os que estão em São Paulo. Como já

foi dito, o discurso das arenas em São Paulo ao atualizar categorias do poder tutelar,

pretende instituir um modelo (o “museu”) de autenticidade, e, no caso específico dos

Pankararu, tal modelo opera com três categorias paradigmáticas: “assimilados”,

“aculturados”, e “desaldeados”, em três níveis:

20 Isso significa que o complexo ritual que contém os praiás continua existindo entre os Pankararu em São Paulo. No Real Parque existem alguns curadores ou rezadores Pankararu que realizam alguns cultos e rituais, tal como fazem em Pernambuco, como a benzedura e os chamados trabalhos de mesa. Também são realizados os “pagamentos de promessa” mais simples: a garapa e o prato. Os rituais de “pagamento de promessa” mais complexos e dispendiosos necessitam da existência de um terreiro, é o caso das Três Rodas e do Menino do Rancho, e são realizados apenas em Pernambuco.

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a) “Assimilados”: ao serem questionados por não possuírem uma “cara de índio”, os

Pankararu atuais são, de forma inversa, acusados pela violência da qual foram vítimas, já

que eles não possuem um fenótipo característico das populações nativas devido ao fato de

serem uma população formada pela concentração de diversos povos nativos em uma mesma

área e, paralelamente, incorporaram escravos fugidos;

b) “Aculturados”: a ausência de uma língua ancestral demonstraria que essa

população já não possui traços aborígenes, portanto teriam sido completamente

“aculturados”. Apelo extemporâneo que pretende negar outra lógica de apropriação de uma

linguagem geral. O português obviamente se tornou uma língua geral no seio da população

genericamente chamada de Pankararu devido a dois fatores, primeiro o fato dessa

população ser fruto da união de vários povos diferentes, nativos e de ex-escravos, e,

segundo, por estarem durante esse processo sob a gestão de uma ordem religiosa católica e,

depois, do poder tutelar, que desencorajava o uso de idiomas nativos e promovia o

português como língua geral;

E, c) “Desaldeados”: supostamente auto exilados nas cidades, pareciam então ter

abdicado voluntariamente da “proteção” do poder tutelar e, mais contemporaneamente, da

assistência dos órgãos públicos (FUNAI, FUNASA, e outros). Mecanismo de

invisibilizacao da violência do processo colonial e do poder tutelar, tal categoria pretende

contestar a miséria e a violência no campo que produz as diásporas como estratégia de

continuidade social e de sobrevivência cultural.

Como o poder tutelar é também uma empresa cognitiva, orientada por

procedimentos semióticos (Lima 1995), esse mecanismo do “jogo do poder” é sentido e

expresso pelos Pankararu pela noção nativa de “preconceito”. O “preconceito” cria a

invisibilidade social do indígena e coloca em risco os direitos garantidos a essa parcela da

população pela própria constituição. Essa violência simbólica é combatida pelos Pankararu

através da performance “dança dos praiás”, uma tradução intercultural contra hegemônica,

cujo ato político de gênese permite caracterizá-la como constituindo uma versão heterodoxa

da dança ritual dos praiás. E, cuja intenção do ato político dessa e nessa tradução é dotar

os Pankararu de capital simbólico nas arenas da cidade de São Paulo. Tais arenas podem ser

definidas como sendo um campo (Bourdieu 1989) de visibilidade social onde a violência

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simbólica do modelo “museu” de representação dos indígenas, atualiza, pelo menos, três

grandes categorias do poder tutelar (“assimilados”, “aculturados”, e “desaldeados”) ao

demandar aos Pankararu a ambígua tarefa social de restituírem-se, sob a continuidade da

violência colonial, os estigmas fenotípicos (“cara de índio”), lingüísticos (“idioma

ancestral”), e político-administrativos (isolamento e distância temporal e espacial).

Teoricamente interpreto essa noção de “preconceito” como sendo a ação do poder

simbólico, um “poder subordinado”, uma “forma transformada, quer dizer, irreconhecível,

transfigurada e legitimada, das outras formas de poder”, onde, “o trabalho de dissimulação

e de transfiguração (numa palavra, de eufemização) que garante uma verdadeira

transubstanciação das relações de força fazendo ignorar-reconhecer a violência que elas

encerram objetivamente e transformando-as assim em poder simbólico, capaz de produzir

efeitos reais sem dispêndio de energia” (Bourdieu 1989: 15).21

Pela sua natureza, o “preconceito” tem origens indeterminadas, já que “o poder

simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a

cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o

exercem” (ibid.: 07-8). O “preconceito” é a atualização da “guerra de conquista” dos povos

indígenas via a “política como guerra”, violência simbólica distribuída pelo corpo do poder

público e da sociedade civil, já que,

“é enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de

conhecimento que os ‘sistemas simbólicos’ cumprem a sua função política de

instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para

assegurar a dominação de uma classe sobre a outra (violência simbólica) dando o

reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam” (ibid.: 11).

21 Como definiu Bourdieu (1989: 09), “os ‘sistemas simbólicos’, como instrumentos de conhecimento e de comunicação, só podem exercer um poder estruturante porque são estruturados”, desse modo, “os símbolos são os instrumentos por excelência da ‘integração social’” já que por meio deles se torna possível o “consensus acerca do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração ‘lógica’ é a condição da integração ‘moral’” (ibid.: 10).

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Esse tipo de “preconceito” pode ser caracterizado como essencialmente um

preconceito da autenticidade, cujo efeito, propriamente ideológico, “consiste precisamente

na imposição de sistemas de classificação políticos sob a aparência legítima de taxonomias

filosóficas, religiosas, jurídicas, etc.” (ibid.: 14). Se de fato o poder simbólico exerce,

“O poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de

confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o

mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente

daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de

mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário”

(ibid.).

Então, a performance “dança dos praiás” constituiu-se num espaço contra

hegemônico já que permitiu o ingresso e a visibilidade dos Pankararu enquanto uma

comunidade etnicamente diferenciada nas arenas de São Paulo, restituindo a esses

indígenas os sinais diacríticos esperados pela audiência dessas arenas.

Nesse sentido, essa performance realizou tal tarefa ambígua ao cooptar e atualizar, a

sua maneira, categorias do poder tutelar, no sentido de que essa performance contém : a) a

“cara de índio” através da máscara, pois ao cobrir o rosto indígena a máscara cria um outro

rosto, uma outra visibilidade, permitindo que o indígena possa ser identificado como “índio

genérico”; b) um idioma indígena pelo uso do toante. Na “dança dos praiás” são usados os

toantes tal como na “dança” dos praiás em PE. Esses toantes (cânticos realizados com

fragmentos e palavras de um língua ancestral Pankararu, e com a mistura de palavras em

português e sons que simulam essa linguagem) se constituem em uma linguagem ritual, em

um “idioma musical”, um veículo de comunicação étnica diferente da linguagem falada.

Portanto, os Pankararu não perderam propriamente seu idioma étnico, mas sim o

mantiveram vivo por outra forma; e, c) produz o deslocamento tempo/lugar, já que a

apresentação da dança dos praiás produz a sensação de deslocamento, de distância

temporal/passado e espacial - aldeia/rural

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Os Pankararu assim parecem ter compreendido como “luta social” o processo

definido por Bourdieu (ibid.: 15) como a tomada de consciência do arbitrário,

“a destruição deste poder de imposição simbólico radicado no desconhecimento

supõe a tomada de consciência do arbitrário, quer dizer, a revelação da verdade

objetiva e o aniquilamento da crença: é na medida em que o discurso heterodoxo

destrói as falsas evidências da ortodoxia, restauração fictícia da doxa, e lhe

neutraliza o poder de desmobilização, que ele encerra um poder simbólico de

mobilização e de subversão, poder de tornar atual o poder potencial das classes

dominadas”.

A “dança dos praiás” se constituiu assim no instrumento simbólico de ingresso dos

Pankararu de São Paulo no campo do poder simbólico, na luta por legitimidade da

comunidade como indígenas, já que a intenção ao traduzir a “dança” dos praiás na

performance “dança dos praiás” foi a de evocar e construir no imaginário do público dessas

arenas a “cara de índio”, o “idioma ancestral”, e o deslocamento histórico e geográfico que

os constrangia à invisibilidade.

Seguindo a idéia defendida por Oliveira (1999b: 08) de que “uma compreensão das

sociedades e culturas indígenas não pode passar sem uma reflexão e recuperação críticas de

sua dimensão histórica”, assim, qualquer transformação nos elementos culturais de uma

comunidade indígena deve ser entendido como um movimento duplo, de diálogo desta

comunidade, de abertura e também de agência do grupo frente a projetos políticos e

culturais amplos. Sobre a SOS-CIP, Bino costumava repetir, “se nós não tivéssemos a

cultura que nós temos hoje, dificilmente a associação ia pra frente. Que índio é esse que não

tem cultura? Eu sempre eu falo, o índio sem cultura eu considero ele uma árvore sem folha,

porque o índio não tem que ter vergonha de mostrar aquilo que ele sabe, o dom que Deus

deu pra ele”. Política da cultura e cultura política, como escreveu Foucault,

“O grande jogo da história será de quem se apoderar das regras, de quem tomar o

lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para pervertê-las, utilizá-la ao

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inverso e voltá-las contra aqueles que as tinham imposto; de quem, se introduzindo

no aparelho complexo, o fizer funcionar de tal modo que os dominantes encontrar-

se-ão dominados por suas próprias regras” (2000: 25-6).

Como ato político e ritual os praiás segunda roupa foram dotados de legitimidade

cuja semente segue a diáspora Pankararu, como escreveu Arruti (1999: 230), “no lugar de

um etnômio, encontrei uma “árvore” (...); no lugar de uma situação e de uma narrativa, uma

rede e suas conexões, que estendiam os fios da sociogênese Pankararu a diversos outros

grupos de “remanescentes indígenas” ao longo do Sao Francisco”, e muito mais além...

Hoje, com certeza, passando nas margens de um outro rio, o Pinheiros, onde na favela do

Real Parque os mesmos Pankararu continuam “germinando” com arte as sementes que os

dotam de “frondosas árvores”.

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