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139 Rastros - Ano XIV - Dez embro de 20 13 A inventividade da rede  Jean Segata 1 Resumo  A ideia geral desse ensaio está centrada no entendimento das redes como um modo de cri ar rea- lidades. Isso implica na equivalência de modalidades discursivas que organizam a explicação do mundo e das coisas. Mais que isso, implica mesmo no entendimento de que elas permitem que se faça o mundo, não por seus conteúdos, mais pelos seus potenciais de diferenciaç ão e multipli- cação, no que estabelecem elos não-previstos e a tradução de elementos associados. Contudo, no que tange especicamente à Cibercultura , sobretudo são necessários dois deslocamentos em rela- ção aos modos como tradicionalmente são delineados esses estudos: o primeiro se refere ao lugar dos humanos e dos não-humanos naquilo que se chama de redes sociais ou redes sociotécnicas, e o segundo, que diz respeito à própria noção de rede, que sai da entidade ou objeto estudado para a cção útil ou método de estudo. Palavras-Chave: Ficções Úteis; eoria Ator-Rede; Construtivismo. Abstract o understand the networks as a way to create realities it is the focus of this paper. Te argument implies the equivalence of discursive modalities that organize the explanation of the world and things. More than that, it implies the understanding that the networks allow you to make the world not for their content, more by their potential for dierentiatio n and proliferation in esta- blishing links unforeseen and translation associated elements. Howev er, with respect specically to Cybercultur e mainly need two shifts in relation to the ways traditionally these studies are ou- tlined: the rst refers to the place of humans and non-humans in what is called social networks or socio-technical network s, and second, with regard to the notion of network, which leaves the body or subject studied for the useful ction or method of study. Keywords: Useful Fictions; Actor-Network Teory, Constructivism. 1. Jean Segata é bacharel em Psicologia (UNIDAVI), mestre e doutor em Antropologia Social (UFSC) e bolsista de pós-doutorado do CNPq no PPGAS-UFSC.

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A inventividade da rede Jean Segata1

Resumo

 A ideia geral desse ensaio está centrada no entendimento das redes como um modo de criar rea-lidades. Isso implica na equivalência de modalidades discursivas que organizam a explicação domundo e das coisas. Mais que isso, implica mesmo no entendimento de que elas permitem quese faça o mundo, não por seus conteúdos, mais pelos seus potenciais de diferenciação e multipli-cação, no que estabelecem elos não-previstos e a tradução de elementos associados. Contudo, no

que tange especificamente à Cibercultura, sobretudo são necessários dois deslocamentos em rela-ção aos modos como tradicionalmente são delineados esses estudos: o primeiro se refere ao lugardos humanos e dos não-humanos naquilo que se chama de redes sociais ou redes sociotécnicas,e o segundo, que diz respeito à própria noção de rede, que sai da entidade ou objeto estudadopara a ficção útil ou método de estudo.

Palavras-Chave: Ficções Úteis; eoria Ator-Rede; Construtivismo.

Abstract

o understand the networks as a way to create realities it is the focus of this paper. Te argumentimplies the equivalence of discursive modalities that organize the explanation of the world andthings. More than that, it implies the understanding that the networks allow you to make theworld not for their content, more by their potential for differentiation and proliferation in esta-blishing links unforeseen and translation associated elements. However, with respect specificallyto Cyberculture mainly need two shifts in relation to the ways traditionally these studies are ou-tlined: the first refers to the place of humans and non-humans in what is called social networksor socio-technical networks, and second, with regard to the notion of network, which leaves thebody or subject studied for the useful fiction or method of study.

Keywords: Useful Fictions; Actor-Network Teory, Constructivism.

1. Jean Segata é bacharel em Psicologia (UNIDAVI), mestre e doutor em Antropologia Social (UFSC) e bolsista de pós-doutorado do CNPq noPPGAS-UFSC.

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 Jean Segata

Introdução

Faz alguns anos que a Cibercultura tem reunido pesquisadores de várias disciplinas, em es-pecial a comunicação, a filosofia, a sociologia e a antropologia. De modo amplo, suas discussõestomam como eixo a ideia de rede sociotécnica para falar do ciberespaço. Isso se traduziria, grossei-ramente, por fazer pensar em um tipo de espaço não-espaço constituído por pessoas e técnicas.

Contudo, basta uma revisão ainda que superficial de alguns desses trabalhos, para se notarque ora a ênfase está no sócio (entendido como o humano) onde são enfatizadas as formas deajuntamento de pessoas, cuja maior parte das vezes deixa subentendido que aquilo que chama-mos de relações sociais é algo que se estabelece exclusivamente entre humanos/pesssoas. Assim, arede sociotécnica assumiria a forma de um lugar técnico preenchido ou sustentador de relaçõessociais. Ora também está no técnico (entendido como o não humano) a ênfase encontrada nes-

ses trabalhos. Então é possível encontrar neles discussões que tratam da inovação tecnológica,enfatizando as potencialidades das máquinas e dos softwares, cuja maior parte das vezes deixasubentendido que o humano está para essas técnicas, como se elas exclusivamente determinas-sem novas modalidades de relação e constituição entre os humanos.

Enfim, tanto de uma forma como de outra, sócio e técnico aparecem como fenômenosdistintos, mesmo que corriqueiramente tratados sob a égide de um único termo – o sociotécni-co. E foi a partir dessa constatação que se começou a buscar na Actor-Network Teory (AN)os subsídios para se dar um tratamento diferenciado à Cibercultura, pensando o sócio e técnicoconstituídos simetricamente como uma rede que descentra agências na sua capacidade de tradu-ção (constituição de híbridos).

De modo amplo, meu objetivo nesse ensaio será modesto e se limita a fazer pensar nas pos-sibilidades de aproximação entre a Actor-Network Teory e a Cibercultura no que diz respeitoao uso da noção de rede sociotécnica em seus trabalhos 2. Rede sociotécnica é um termo muitocomumente empregado nos estudos em Cibercultura. Contudo, e notadamente em um diálogoentre a comunicação e a antropologia, nota-se que ele não é evocado com as mesmas qualidades.De modo resumido, esse termo pode tomar aspectos de objeto a ser descrito como maneira dedescrever um objeto. Sobre esse segundo aspecto, em especial, a Actor-Network Teory (AN)tem trazido nos últimos anos contribuições significativas para um debate que reformula muitasdas proposições gerais das Ciências Sociais, e por conseguinte, nos seus campos específicos depesquisa, como é o caso da Cibercultura. Outrossim, ao final, procurarei traçar qualquer paralelocom o construtivismo nominalista de Nelson Goodman, um filósofo estadunidense de orien-

2. Esse ensaio foi apresentado na Mesa emática Cibercultura e Redes Sóciotécnicas: questões teórico-metodológicas e experiências de pesquisa, doIV Simpósio Nacional da ABCiber (Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura), realizado entre os dias 01 e 03 de novembro de 2010 naECO-UFRJ. Agradeço aos demais membros dela, Teophilos Rifiotis (UFSC), André Lemos (UFBA), Erick Felinto (UERJ) e Massimo di Felice (USP)pelas contribuições que se incorporam a essa versão.

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tação do Círculo de Viena, para quem descrever o mundo é criar uma versão de mundo. Nessecaso, ao final das contas, eu quererei sustentar que se a rede pode ser pensada como um méto-

do para organizar uma descrição de mundo enquanto ficção útil, ela é, na sua potencialidadeinventiva, uma maneira de construir versões de mundo. E uma versão de mundo, para NelsonGoodman(1991), é o modo como o mundo é.

Rede como Método

Para a ideia de rede como método escolhi pensar a minha trajetória de pesquisas em ciber-cultura, em especial do modo que a constitui a partir de algumas de nossas discussões clássicasaté chegar em Bruno Latour.

alvez soe prosaico demais, mas isso poderia ser chamado “as coisas que Latour tirou de

mim”. Fazia alguns anos que eu respondia que o que eu vinha pesquisando era a vida social daspessoas nas tecnologias e as tecnologias na vida das pessoas - enfim, redes sociotécnicas. E aquicomeçam meus problemas.

O primeiro deles é o do lugar do técnico da rede sociotécnica em Cibercultura. O técnicosempre teve um valor de destaque nos trabalhos em Cibercultura, e sem muitos detalhes, eu meinspirava em um dos nossos clássicos, Pierre Lévy, quando em seu Cibercultura (2003, p. 41),ele define que

o ciberespaço não compreende apenas materiais, informações e seres humanos, é também

constituído e povoado por seres estranhos, meio textos, meio máquinas, meio atores, meio

cenários: os programas. Um programa, ou software, é uma lista bastante organizada de

instruções codificadas, destinadas a fazer com que um ou mais processadores executem a

tarefa. Através dos circuitos que comandam, os programas interpretam dados, agem so-

bre informações, transformam outros programas, fazem funcionar computadores e redes,

acionam máquinas físicas, viajam, reproduzem-se, etc. (LÉVY, 2003, p. 41).

 Assim como nessa definição de Pierre Lévy do que seria o ciberespaço, outras tantas defini-ções de outros objetos da Cibercultura reservam um lugar de destaque ao técnico, contudo essedestaque é sempre polarizado - ou é coadjuvante ou é protagonista.

Como coadjuvante, o técnico é aquilo que permite inovações humanas - novas formasde se comunicar ou de se relacionar de um modo amplo. Ele engrandece a possibilidade do

humano, desafia os seus limites, e se mistura mesmo ao humano como no caso dos ciborgues -mas no fim, aparece sempre o humano como o agente, como aquele que faz, possibilitado peloseu coadjuvante, o técnico. E foi nesse caminho que conduzi minha etnografia no orkut entre2005 e 2006, onde eu entendia, por exemplo, que o “programa orkut”, com os seus bits, bytesou pixels, formavam um lugar especial onde humanos poderiam se associar - uma espécie de

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cenário tecnológico. E novas associações se faziam conforme novas possibilidades técnicas iamaparecendo naquele programa. E antes do orkut, outros programas faziam isso, como o e-mail,

as listas de discussão, as salas de bate-papo ou os blogs; e outras viriam depois, como o twitter,por exemplo, com seus 140 caracteres. Enfim, eu pensava em um humano protagonista que crianovas técnicas e que permitia se recriar nelas num jogo assimétrico de regras “humano-agente etécnico-agido”. O sociotécnico seria então um rótulo dessa síntese que entendia o sócio comoconjunto humano e o técnico como o conjunto das demais coisas, não humanas. E mesmo queeu quisesse inverter os papéis, pensando o técnico como agente e o humano como agido, eu voltaàs discussões já presentes em parte da filosofia da tecnologia dos meados do século XX que vianas novas criações humanas uma forma de dominação da máquina sobre o homem - o que cabeno rótulo do determinismo tecnológico.

Vou ser bem mais econômico: eu olhava para essas conexões que eu chamava de redessociotécnicas e via de um lado pessoas e de outro técnicas. Ou melhor, eu via pessoas se relacio-

nando no interior de técnicas, ou de redes - as redes eram as coisas formadas por essas técnicas/tecnologias, e no interior dessas redes técnicas, outras redes se formavam, as de pessoas. Cadanova rede técnica, possibilitava novas redes de humanos. E eu me contentava até mesmo com aideia de rede social. Por que? Porque eu não via apenas dados passando naquelas redes técnicas- eu via pessoas circulando também e formando redes. E por supor que o social era uma espéciede entidade formada por humanos, aquelas eram então redes sociais. E isso tudo era muito con-fortável, pois o técnico sempre poderia ser ativado para explicar o social e mais confortável aindaera o fato de que o social (o sócio) era sempre bom para explicar o técnico. Mas Bruno Latourtirou-me isso com a eoria Ator-Rede.

Na eoria Ator-Rede, tudo é associação. Não existe algo que seja por si só social. Social éinteração não uma coisa. Humanos e não-humanos se associam e essas associações geram efeitos,e esses efeitos deslocam objetivos, redefinem posições e sentidos. Não importa as entidades, sejalá qual forem as suas naturezas, o que importa são os efeitos que esses “atores” fazem fazer.

Mas é preciso lembrar que aqui a noção de ator não pode ser confundido com o sentidotradicional de “ator social”, uma vez que para Latour (1999) um ator é tudo aquilo o que age,deixa traço, produz efeito no mundo, podendo se referir a pessoas, instituições, coisas, animais,objetos, máquinas ou tudo isso simultaneamente: “usar la palabra ‘actor’ significa que nunca estáclaro quién y qué está actuando cuando actuamos, dado que um actor en el escenario nunca estásolo en su actuación” (LAOUR, 2008, p. 73). E lá se foi o conforto de explicar um elementopor outro - dizer que o humano é assim porque o técnico é assaz ou vice-versa.

Sublinhe-se ainda que a ação não é o que o ator faz - ela é distribuída, não é univocal, não

cabe na identificação do ator-em-si: “por definición, la acción es dislocada. La acción es tomadadistribuida, sugerida, influida, dominada, traicionada, traducida (Id., 74). Daí de se assinalarque se está tratando aqui de um ator-rede, e não simplesmente de “um ator” e de “uma rede”,em separados. Há agências, as mais diversas, atuando simultaneamente no mundo, e assim,com o intuito de se evitar o equívoco de atribuir exclusivamente ao humano a agência ou ao

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não-humano, é comum encontrar a utilização do termo semiótico actante, ou seja, qualquercoisa que atue, ou que mova alguma ação (Akrich & Latour, 1992). Nesse mesmo sentido, há

ainda a utilização de uma voz verbal presente entre os gregos, a “middle voice”, que não serianem passiva, nem ativa, e que à falta em outras línguas, poderia ser traduzida como o que “fazfazer” (“faire faire” no francês, ou “to make one do”, no inglês) - ela permite distribuir as certezasdo que, ou de quem está agindo (Latour, 1999), sem a possibilidade de indicar com certezas opossível sujeito da ação.

Mas nunca é demais lembrar que é muito fácil cair na armadilha da simples colagem de“humano/sócio” e não-humano/técnico” quando se fala em rede ou rede sociotécnica. E assim,a rede na eoria Ator-Rede começou a se tornar um problema para mim em Cibercultura, jus-tamente pelo fato de que ela exigia que eu desloque a ideia de rede como WWW, como tradi-cionalmente trabalhado a partir da cibernética. Essas redes da cibernética se referem àquilo quetransporta informações de conexão em conexão, por longas distâncias, em especial, mantendo

essas informações intactas. Latour está justamente interessado nos efeitos, nas traduções, nosdesvios, nos “chiados” dos atores-rede - e não no intacto. Enfim, o que está em proeminênciasão as associações entre o humano e o não-humano de modo a não conseguir distinguir agentee agido, mas somente perceber os efeitos - as traduções. Latour está preocupado em dissolveras entidades - o social, o natural, técnico ou quaisquer coisas assim autoexplicativas. Bem, euconfesso, não é tão fácil, uma vez garantida a ideia de que a rede era qualquer coisa formada porhumanos e não-humanos, eu continuei enxergando ainda por algum tempo os humanos do ladodo sócio e os não-humanos do lado do técnico.

Mas o problema ainda seria maior. Bem, aparentemente conseguimos identificar redes nociberespaço. Sim, porque não? Veja as chamadas redes sociais, com seus programas e gentes einterações de múltiplas formas. Contudo, na perspectiva de Bruno Latour elas são redes apenasse supostamente elas tenham possibilidades de actância, ou seja, se elas fazem fazer - se elas geralefeito. Nesse caso, mesmo que existam redes, o que importa é que, pelo menos a partir da eoria

 Ator-Rede, elas não são o objeto de análise. A análise deve recair nos efeitos ou transformaçõesentre elementos associados nisso que chamamos de redes. E é aí que a rede de Bruno Latour setorna um modo de ver essa produção de efeitos na possibilidade que ela dá de rastrear e descreverassociações entre humanos e não humanos. Então Latour tirou de mim as próprias redes, comocoisas identificáveis. E me deu um método.

 Aqui, quem mais me ajudou a perceber o que sobrou depois de Bruno Latour foram doisantropólogos que dialogam direta e inderetamente com ele ou que o fazem na prática. A britâni-ca Marilyn Strathern e o estadunidense Roy Wagner. Posso adiantar que eles também me tiraram

coisas importantes: a sociedade e a cultura, dois bons e seguros conceitos autoexplicativos ondeos antropólogos nos apoiamos por décadas.Segundo Strathern (2006, p. 37), “a ideia de sociedade parece um bom ponto de partida,

simplesmente porque ela própria, como uma metáfora para organização, organiza muita da ma-neira pela qual os antropólogos pensam”. Não há a entidade sociedade - há elementos que eu

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reuno em minha descrição sob um rótulo que me estabelece critérios para a organização dessadescrição - e esse rótulo é a sociedade.

No mesmo sentido, Roy Wagner (2010, p. 14), ao tratar da cultura, sugere que ela é “apre-sentada como uma espécie de ilusão, um contrapeso (e uma espécie de falso objetivo) para ajudaro antropólogo a ordenar as experiências”. Cultura não explica, cultura não é uma coisa, culturacomo sociedade é um modo de organizar uma descrição de coisas.

 Aonde quero chegar? Assim é que eu compreendo rede em Bruno Latour: como um modode organizar as nossas descrições. A ideia de rede permite nos auxiliar a ver o modo como deter-minados elementos se associam e fazem fazer efeitos. Mas ela, a rede, não é a coisa a ser descrita,tampouco nos garante sabermos a origem das agências ou dos seus componentes. E aqui começaa inventividade dela.

Não quero que isso soe negativo, mas vou dizer que do ponto de vista da eoria Ator-Rede,eu fui ingênuo na Cibercultura - e a minha ingenuidade estava justamente em pressupor a exis-

tência de redes. As redes não existem por si só - elas são inventadas e são inventivas. Inventadas,porque as criamos. Olhamos, por exemplo, para trilhos de trem, linhas telefônicas e vemos redes.Olhamos para perfis de orkut “lincados” e vemos redes, seguimos pessoas no twitter e vemos re-des. E são inventivas ao mesmo tempo que inventadas, pelo fato de que, ao me utilizar delas paradescrever um mundo o que resulta é um mundo por elas inventado ou criado. Mas as redes nãoestão lá, nos trilhos do trem ou no twitter. Nós olhamos para essas coisas e vemos redes e quandovemos redes nisso essas redes nos permitem organizar um mundo com essas coisas.

Perceba-se o seguinte: ao partir de um ponto qualquer, eu sigo até outro ponto qualquerformando uma conexão entre eles, e de conexão em conexão que eu formo unindo pontos, euconstruo uma rede. E nesse sentido, elas são como rastros - eu olho para trás e vejo os rastros - edigo que é uma rede, mas esqueço que são meus rastros formando conexões a partir de pontosque decidi seguir, como gosta Latour, “no fluxo das ações”. Assim, a rede não estava lá, eu a fiz – arede não é um dado, é um resultado.

A Inventividade da Rede e a Antropologia

Para finalizar e tentar cumprir as largas promessas feitas no meu resumo vou trazer para adiscussão Nelson Goodman. Ele é um nominalista construtivista, e seu antirrealismo me tirouuma coisa muito mais confortável do que aquelas que Latour já tinha me tirado: Nelson Good-man me tirou o mundo. Mas com isso eu ainda preciso me acostumar, e de momento, me resta

tentar explorar a sua consideração de que não há o mundo dado, pelo menos não importa se háou não, importa que só podemos fazer versões dele em nossas descrições.Serei muito econômico: a antropologia é um modo de fazer mundos. Essa é a tese que sus-

tento nessa apresentação. Os cientistas, os artistas, os filósofos ou as pessoas comuns, produzemversões de mundo quando preocupadas em conhecer os modos de organização, funcionamento

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ou entendimento entre as coisas que elas entificam para a composição dos seus mundos. E en-tendo um ente qualquer como uma coisa ou evento que ao ser nomeado ou simbolizado ganha

estatuto e passa a compor um mundo em criação. Produzir conhecimento sobre o mundo é pro-duzir um mundo. E se cada vez mais os discursos desses cientistas, artistas, filósofos ou pessoascomuns têm sido objeto de análises antropológicas, implica em se pensar que ela cria versões demundo que incluem outras versões - versões de versões.

Contudo, uma versão de mundo é o modo como o mundo é. E cada outra descrição ouanálise produz outra versão, ou seja, produz outro mundo. Como então conhecer uma versão demundo se ao se produzir conhecimento sobre ela se produz também uma versão? Há, então, umproblema de tradução, e é sobre ele que se instala a tese sustentada.

Vamos jogar abertamente: não temos quaisquer garantias razoáveis que indiquem que es-tamos nos comunicando. Quando digo, “estamos nos comunicando”, quero dizer, “estamosnos entendendo”, “estamos em acordo”, ou mais dificilmente ainda “estamos falando da mesma

coisa” ou de que “sabemos quaisquer coisas sobre o outro”. Enfim, não temos quaisquer garantiasde que conhecemos “o modo como o mundo é”. Paralelo aos trabalhos de Nelson Goodman, W.Quine nos deu luzes para tratar disso, naquilo que ele chamou de “indeterminação da tradução”por conta da inescrutabilidade da referência - qualquer coisa chamada por Viveiros de Castro(2009), de “método da equivocação controlada”.

Em Palavra e Objeto, Quine (2010, p. 21) já afirmou um empirismo moderado3, sugerindo que

coisas físicas geralmente, quão remotas estejam, tornam-se conhecidas por nós somente

por meio de efeitos que elas ajudam a induzir em nossas superfícies sensoriais. A enti-

ficação inicia à distância; os pontos de condensação no esquema conceitual primordial

são coisas avistadas, não vislumbradas. [...] Cada um de nós aprende sua linguagem de

outras pessoas, por meio da pronúncia observável de palavras em circunstâncias inter-

subjetivas conspícuas. Linguisticamente e, logo, conceitualmente, as coisas focadas com

precisão são coisas que são suficientemente públicas para serem comentadas publica-

mente, suficientemente comuns e conspícuas para serem comentadas frequentemente,

e suficientemente próximas para serem sentidas de forma a serem rapidamente identifi-

cadas e aprendidas pelo nome.

Então, vivas à Hume? Não! Há um problema que se instala antes disso - o da representa-ção: nosso problema não é a coisa, é se sabemos algo sobre a coisa. Desde Platão, nos vemos àsvoltas com uma proposta de que apenas é possível conhecer o mundo via representação dele - e

entenda-se representação, nesse caso, como ideal (mental). Isso implica em trata-la na forma de

3. Bas Van Fraassen, 2006, em seu A Imagem Científica, nega a universalidade das teorias científicas e desloca a verdade como critério de legitimidadede um determinada teoria - para ele, nessa linha antirrealista de empirismo moderado, prepondera o que ele chama de “empiricamente adequado”.

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um subproduto do mundo - a representação é tomada por substituta do mundo dentro de nos-sas cabeças (como a representação jurídica, que substitui) ou ficção do mundo dentro de nossas

cabeças (como a representação teatral, que “imita o real”). E continuamos sem saber do mundo,apenas da representação dele nas nossas cabeças. Adiante, Locke e Hume, para citar abertamente os emblemáticos empiristas, sugeririam que é

possível conhecer as coisas (o mundo) diretamente na observação, e a linguagem (representação) setorna novamente coadjuvante - aquilo que nos liga ao mundo. As coisas detém o seu conhecimen-to e para que possamos conhecê-las precisamos “roubar” o conhecimento das coisas das própriascoisas, e usamos “como meio” a linguagem. Mais tarde, Wittgenstein acalora o debate com osseus “issos” e “aquilos”, mas que ainda toma a linguagem como “espelho” do mundo, como “umaanalogia dele”4. E é aqui que eu situa a minha opção: pensar a descrição antropológica a partir daFilosofia da Linguagem - contudo, daquela nominalista construtivista de Nelson Goodman.

Goodman me parece minimamente razoável: não sabemos nada do mundo, senão do mun-

do que posso construir na linguagem a partir de um quadro de referências. A sua contra-intuiçãoé a de que não é o mundo que constrói a linguagem, mas a linguagem que constrói o mundo.Como resposta a essa “necessidade” do empírico, mesmo como coadjuvante, Goodman (1990,p. 36) provoca: “se eu pergunto acerca do mundo, você pode se oferecer a me contar como eleé, sob um ou mais quadros de referência; mas se eu insisto que você me conte como ele é forade todos os quadros, o que você pode me dizer? Somos confinados a modos de descrição, seja odescrito o que for”. Enfim, o tamanho do mundo é do tamanho da linguagem que o descreve.

em algo aqui que não está muito distante daquilo que Bertrand Russel chamou de “co-nhecimento por descrição”. Segundo ele, há o conhecimento por contato, que é o mais óbvioe flagrante justamente porque joga com a moeda do empírico. Isso o faz limitado, haja vista aimpossibilidade de conhecimento do que houve no passado, ou, sequer, o próprio conhecimentodos nossos sentidos. Já o conhecimento por descrição opera por meio do conhecimento de ver-dades. Sigamos Russel (2008, p. 108-9):

 A mesa é “o objeto físico que causa tais e tais dados dos sentidos”. Isto descreve a mesa por meio

dos dados dos sentidos. Para saber seja o que for da mesa, temos de conhecer verdades que a

liguem a coisas com as quais temos contato: temos que saber que “tais e tais dados dos sentidos

são causados por um objeto físico”. Não há qualquer estado mental no qual estejamos direta-

mente cientes da mesa; todo o nosso conhecimento da mesa é na realidade conhecimento de

verdades e, estritamente falando, a própria coisa que a mesa é não é de modo algum conhecida

por nós. Conhecemos por descrição, e sabemos que há apenas um objeto ao qual a descrição se

aplica, apesar de o próprio objeto não ser diretamente conhecido por nós. Em tal caso, dizemosque o nosso conhecimento do objeto é conhecimento por descrição.

4. Refiro-me abertamente ao que se chama de primeiro Wittgenstein, aquele do ractatus Logico-Philosophicus, e não o segundo, o das Investigações.

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No que está afeto a Nelson Goodman, parece-me clara a ideia de que o que se pode, em ter-mos de conhecimento, ser razoavelmente considerada, é a descrição. Das coisas, o que sabemos (e

Goodman não joga com valor de verdade, mas de coerência) é o que cabe coerentemente em nossasdescrições, não sabemos das coisas em si. Sabemos das descrições. O que estou chamando de des-crição coerente é qualquer coisa como aquilo que é publicamente coerente dentro de um conjuntode símbolos que Goodman chama de referência. Se estou diante de um quadro cubista, certamenteele é arte por produzir um determinado conhecimento do mundo que é coerente no conjunto desímbolos que constitui a referência cubismo. Ele pode ser descrito também como um aglomeradode partículas atômicas e subatômicas que dispostas de maneira x ou y tomam determinadas formas edesviam determinadas quantidades de luz que formam determinadas ondas de tamanhos diferentesque produzem que distinguimos por aquilo que chamamos de cores. E isso tudo é coerente paraquímicos ou físicos, pois joga com símbolos que constituem sua referência, que é o modo como essetipo de cientista descreve o mundo. Contudo, pode ser incoerente ou inadequado para um cubista.

E, acima de tudo, o químico e o cubista estão produzindo aquela coisa que por comodidade a meuconjunto de símbolos eu optei por chamar de quadro, mas que certamente me faz acumular muitasincertezas sobre o que ele é, de fato, caso ele seja algo. Eu prefiro as versões do que ele, e prefiro as ver-sões coerentes. Não há mundo que anteceda as versões, ao menos não um mundo que seja do nossoconhecimento - conhecemos apenas as versões e elas são o mundo que podemos conhecer.

Nesse caso, seguindo Nelson Goodman (1991, p. 46), a “coerência é uma característica dasdescrições, não do mundo: a questão importante não é se o mundo é coerente, mas se a nossaexplicação dele o é. E o que chamamos de simplicidade do mundo é apenas a simplicidade quesomos capazes de alcançar ao descrevê-lo”.

Enfim, a tensão posta aqui é a de que no conforto do empirismo eu tenho um mundopovoado pelas mais diversas entidades que posso apreender na minha descrição. Em suma, omundo ou elementos dele compõem aquilo que eu descrevo. E esse é o solo mais tradicional daantropologia - no que Lévi-Strauss já resumiu como “uma ciência do empírico”. Por conseguinteesse é o solo daqueles que conseguem ver as redes, como objetos a serem descritos.

Por outro lado, no caminho do nominalismo construtivista Nelson Goodman, não temosum mundo a priori. Ele é criado a partir de nomes e predicados suficientemente públicos paraserem admitidos e reconhecidos de modo a garantirem a sustentação de uma versão de mundo.Esses nomes e predicados formam uma referência. A descrição no nominalismo construtivistanão é composta de mundo como no empirismo, ela cria um mundo na descrição.

FinalizandoO que eu resolvi provocar aqui como “A Inventividade das Redes” implica em considerar

que a rede está na nossa descrição e não no mundo. Ou melhor, ela é um modo de descrição enão uma qualidade do mundo. Uma referência que podemos assumir para construir o mundo.

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 Jean Segata

Por isso a minha insistência em afirmar a rede uma espécie de método (no sentido de caminhoou modo), pois eu entendo que ela está na minha descrição como algo que me permite organiza-

ção ou coerência. Por extensão ou simpatia, isso implica em provocar meus colegas antropólogosem pensar a cultura ou a sociedade como métodos que utilizamos para organizarmos as nossasdescrições - ou mesmo, modos que utilizamos para criar mundos. Sociedade, cultura ou redesão ficções úteis que nos poupam discurso - elas não têm correlatos materiais que as entifiqueme que permitam que elas em si sejam objeto de descrição - eles apenas organizam a maneira decomo vemos certas coisas dispostas. Enfim, o que eu chamo então de inventividade das redes, epor que não, da antropologia, diz respeito a sua capacidade de criar mundos.

Redes não são feitas de certos elementos de um mundo, é com ela que se inventam mundos.

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149Rastros - Ano XIV - Dezembro de 2013

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