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A ira dos deuses gregos Naiani Borges Toledo (UNIOESTE) 1 Resumo: Nas peças de Eurípides, as personagens são controladas pelos impulsos de suas paixões, suas emoções são tão fortes que muitas vezes as levam para um estado de loucura ou mesmo abandono. É o ciúme descontrolado que leva Medéia a assassinar os próprios filhos para se vingar de Jasão; é por amor que Alceste decide se sacrificar pelo marido. E essa luta entre o êxtase das paixões e o comedimento do pudor, é o que caracteriza Hipólito. O herói homônimo da peça euripidiana tenta sujeitar os poderes de Afrodite à pureza de Ártemis, e isso causa a ira da deusa do amor, que fará com que o jovem pague por sua desdita. Esse artigo tratará brevemente da figura heroica de Hipólito, que ao se exaltar como um homem puro cometeu uma hybris, obrigatória aos heróis trágicos, o que acabou por levá-lo à desgraça. A hybris de Hipólito será comparada a de Odisseu da obra Odisseia de Homero, haja vista que da mesma forma que Hipólito ofendeu Afrodite, Odisseu ofendeu Poseidon quando cegou seu filho o ciclope Polifemo. Palavras-chaves: Hipólito; Odisseu; herói; hybris; deuses. Abstract: In Euripides' plays, the characters are controlled by the impulses of their passions; their emotions are so strong that they often lead them to a state of madness or even abandonment. It is uncontrolled jealousy that leads Medea to murder her own children to take revenge on Jason; it is out of love that Alceste decides to sacrifice herself for her husband. And this struggle between the ecstasy of passions and the restraint of modesty is what characterizes Hippolytus. The homonymous hero of the Euripides' plays tries to subjugate the powers of Aphrodite to the purity of Artemis, and this causes the wrath of the love’s goddess, which will cause the young man to pay for his misery. This article will deal briefly with the heroic figure of Hippolytus, who, in exalting himself as a pure man, ended up committing a hybris, obligatory to the tragic heroes, which eventually led to his disgrace. Hippolytus’s hybris will be compared to Odysseus's hybris in Homer's Odyssey, since not only Hippolytus offended Aphrodite, but also Odysseus offended Poseidon when he blinded Poseidon's son, the Cyclops called Polyphemus. Keywords: Hippolytus; Odysseus; hero; hybris; gods. Considerações iniciais A tragédia começou na Grécia Antiga, e teve seu auge no século V a.C., período em que os três grandes tragediógrafos (Ésquilo, Sófocles e Eurípides) escreveram a maior parte de suas obras. Na época dos grandes festivais dionisíacos a tragédia foi a forma de teatro mais 1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras - Área de Concentração: Linguagem e Sociedade, Linha de Pesquisa: Linguagem Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados - Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), campus de Cascavel. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail para contato: [email protected]

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A ira dos deuses gregos

Naiani Borges Toledo – (UNIOESTE)1

Resumo: Nas peças de Eurípides, as personagens são controladas pelos impulsos de suas

paixões, suas emoções são tão fortes que muitas vezes as levam para um estado de loucura ou

mesmo abandono. É o ciúme descontrolado que leva Medéia a assassinar os próprios filhos

para se vingar de Jasão; é por amor que Alceste decide se sacrificar pelo marido. E essa luta

entre o êxtase das paixões e o comedimento do pudor, é o que caracteriza Hipólito. O herói

homônimo da peça euripidiana tenta sujeitar os poderes de Afrodite à pureza de Ártemis, e

isso causa a ira da deusa do amor, que fará com que o jovem pague por sua desdita. Esse artigo

tratará brevemente da figura heroica de Hipólito, que ao se exaltar como um homem puro

cometeu uma hybris, obrigatória aos heróis trágicos, o que acabou por levá-lo à desgraça. A

hybris de Hipólito será comparada a de Odisseu da obra Odisseia de Homero, haja vista que

da mesma forma que Hipólito ofendeu Afrodite, Odisseu ofendeu Poseidon quando cegou seu

filho o ciclope Polifemo.

Palavras-chaves: Hipólito; Odisseu; herói; hybris; deuses.

Abstract: In Euripides' plays, the characters are controlled by the impulses of their passions;

their emotions are so strong that they often lead them to a state of madness or even

abandonment. It is uncontrolled jealousy that leads Medea to murder her own children to take

revenge on Jason; it is out of love that Alceste decides to sacrifice herself for her husband. And

this struggle between the ecstasy of passions and the restraint of modesty is what characterizes

Hippolytus. The homonymous hero of the Euripides' plays tries to subjugate the powers of

Aphrodite to the purity of Artemis, and this causes the wrath of the love’s goddess, which will

cause the young man to pay for his misery. This article will deal briefly with the heroic figure

of Hippolytus, who, in exalting himself as a pure man, ended up committing a hybris,

obligatory to the tragic heroes, which eventually led to his disgrace. Hippolytus’s hybris will

be compared to Odysseus's hybris in Homer's Odyssey, since not only Hippolytus offended

Aphrodite, but also Odysseus offended Poseidon when he blinded Poseidon's son, the Cyclops

called Polyphemus.

Keywords: Hippolytus; Odysseus; hero; hybris; gods.

Considerações iniciais

A tragédia começou na Grécia Antiga, e teve seu auge no século V a.C., período em

que os três grandes tragediógrafos (Ésquilo, Sófocles e Eurípides) escreveram a maior parte

de suas obras. Na época dos grandes festivais dionisíacos a tragédia foi a forma de teatro mais

1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras - Área de Concentração: Linguagem e Sociedade, Linha

de Pesquisa: Linguagem Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados - Universidade Estadual do Oeste do

Paraná (UNIOESTE), campus de Cascavel. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior (CAPES). E-mail para contato: [email protected]

aceita e aplaudida pelo povo grego, contrária à comédia grega. Permitia ao público se

identificar com a figura do herói trágico, sentir por ele piedade, sofrer na pele o castigo feito

pelos deuses e se horrorizar com seu destino. E esse processo permitia a catarse, a purificação

dos sentimentos, que era o principal objetivo do teatro grego.

A palavra ‘trágico’ hoje tem denotação de desastre, possivelmente relacionado à morte.

Enquanto antigamente, para os gregos, o trágico era visto como algo nobre e político, que

possibilitava a libertação das emoções a partir da empatia que o espectador sente para com o

herói, que o permite se colocar naquela situação trágica e, assim, entrar em contato com um

modelo de ser-humano (ou semi-humano) superior. De acordo com Brandão (1984, p. 64)

“seria impossível, na realidade, conceber como herói trágico, dentro dos moldes aristotélicos,

alguém que não seja ‘como nós’, porque não se pode sentir terror e piedade por esse tipo de

personagem.”. Por isso Eurípides foi muito criticado em sua época, por ter retratado seus

heróis muito semelhantes ao ser humano. Ele foi o poeta de sua época que mais explorou as

emoções dos homens, tanto que trabalhou muito com a personagem feminina, mais capaz de

expor seus sentimentos do que a personagem masculina. E são as emoções que estão sempre

impulsionando Hipólito (em seu amor à deusa Ártemis) e Fedra (que mesmo sendo induzida

a se apaixonar pelo enteado, fez sua vingança por conta própria) em realizar suas ações.

Hipólito

Primeiro, para prosseguimos com o presente artigo, devemos delimitar algumas

características principais do herói trágico, e se Hipólito se encaixa em tal descrição. Costa e

Remédios fazem alguns apontamentos básicos sobre como devem ser pintados os heróis da

tragédia:

Entende-se por herói trágico o que, consciente ou inconscientemente,

transgride uma lei aceita pela comunidade e sancionada pelos deuses. Além

disso, o herói trágico deve pertencer à aristocracia ou ser filho de um rei.

Entretanto, o que o torna trágico é sua atuação na desgraça, no caminho entre

a falha trágica e a punição. (COSTA e REMÉDIOS, 1988, p. 20).

Hipólito, como todo o cidadão na Grécia Antiga, tinha conhecimento de como deveriam

ser tratados os deuses e qual seria o castigo caso tais leis fossem transgredidas, portanto ao

ofender Afrodite o herói deveria estar consciente da ira divina que atraiu para si. Ele era um

príncipe, filho do rei de Trezena, e seria o próximo a assumir o trono, mesmo seu pai tendo

filhos com a nova esposa. Existem ainda muitas outras características necessárias para que o

protagonista seja um herói trágico, mas o mais importante para esse herói é a sua passagem

pela hybris, pela hamartía (erro ou falta), e pela peripécia que termina com o seu final trágico.

É, pois, através do desequilíbrio interno, inconsciente (hybris), caracterizador

do herói trágico, delineando-se o seu ethos com o dáimon e a falha trágica,

que se estabelece a relação com o espectador, levando-o no clímax da tensão

a sentir terror ou piedade, sentimentos responsáveis pela catarse. (COSTA e

REMÉDIOS, 1988, p. 10).

Segundo Bornheim (1963, p.73-75), a tragédia grega se constrói a partir da oposição

entre o herói e o meio em que ele está inserido. Como Antígona, por exemplo, que como uma

personagem fiel às leis dos deuses, irá entrar em conflito com o resto da polis que vive regida

mais pelas leis estatais do que pelas leis divinas. Nessa luta contra os valores que não condizem

com a sua realidade, o herói trágico cometerá a hybris, que o levará a perdição.

A hybris pode ser interpretada de várias maneiras, mas, resumindo, seria ela o que leva

o herói trágico à sua perdição, a cometer uma hamartía, que o faz ultrapassar seu métron

(medida que os homens devem seguir, que os impede de se assemelhar muito aos deuses), e

de acordo com Brandão (1984, p. 12) “a tragédia só se realiza quando o métron é

ultrapassado”. Para Kothe (2000, p. 25-26), considerando que outra característica do herói é

ser um “semideus”, que tenha alguma descendência divina, a luta entre a mortalidade dos

humanos e o poder dos deuses é essencial para a tragédia, portanto ultrapassar o métron para

o protagonista trágico é, nos ideais gregos, inevitável. Mais à frente trataremos da hybris de

Hipólito, mas antes devemos contextualizar a tragédia euripidiana.

O mito de Hipólito (na versão usada por Eurípides) começa na cidade de Trezena com

o casamento entre o pai do herói, Teseu, e Fedra. Hipólito era famoso por sua castidade, sua

pureza e sua devoção à Ártemis, a deusa filha de Zeus e irmã de Apolo que simbolizava a caça

e a virgindade. Mas invejosa do amor que o herói demonstrava por Ártemis, Afrodite fez com

que Fedra se apaixonasse pelo enteado. Ao ter seu amor rejeitado pelo rapaz, a rancorosa

mulher se enforca, não antes de deixar uma mensagem para Teseu, na qual Fedra incriminava

Hipólito de ter atentado contra sua honra. O rei de Trezena, enfurecido, exila o filho e pede a

Poseidon que castigue o jovem. O deus do mar, então, faz com que um touro ataque Hipólito

e seus seguidores, e na confusão causada pela surpresa do ataque, o príncipe é arrastado por

seus cavalos até ficar quase sem vida. Ártemis repreende Teseu por suas atitudes precipitadas,

e fala que tudo o que aconteceu foi devido aos planos da deusa do amor. Na última cena o

herói aparece gravemente ferido graças à precipitação do pai em lhe castigar, mas mesmo

assim, influenciado pela deusa, o perdoa.

Aristóteles (1996, p.10) escreveu em sua Arte Poética que as personagens são

caracterizadas pelos seus atos, não são os atos que caracterizam as personagens. As atitudes

de Hipólito são dignas de um herói: honesto, puro, sem se deixar levar por sentimentos como

a paixão e a luxúria, mesmo sabendo que Fedra o desejava. Em uma primeira leitura, o herói

não pecou em nada, era fiel à integridade digna de um cidadão grego exemplar. Sua pureza

era tanta, que lembrava a da própria deusa Ártemis.

E foi essa sua principal qualidade que o levou à desventura. Ao se exaltar como homem

puro que não se deixava levar pela cegueira das paixões, acabou por desprezar os poderes de

Afrodite e negligenciar as oferendas à deusa do amor. Um criado chama a atenção de Hipólito

para essa sua falta com Afrodite, e chega até a tentar se desculpar com a deusa pelas atitudes

do jovem.

CRIADO

E nós, que não devemos imitar os moços

em seus arroubos, com palavras adequadas

a escravos rezaremos e faremos preces

perante a tua imagem, soberana Cípris.

Perdoa a quem, com a impetuosidade

da alma juvenil, te diriges palavras

imponderadas. Finge que não as ouviste;

os deuses devem ser mais sábios que os mortais.

(EURÍPIDES, Hipólito, 2007, p. 98).

O criado sabe o quanto as atitudes do filho de Teseu podem ofender a deusa, e numa

tentativa de zelar pelo amo implora que Cípris2 perdoe as “palavras imponderadas” de Hipólito,

e que ela se mostre mais sábia que os mortais ao ignorar os insultos a ela dirigidos. Mas

Euripídes começa sua peça com um monólogo de Afrodite, em que a deusa já se decidiu pela

punição de Hipólito.

AFRODITE

[...] Faço a ventura de quantos,

desde o distante Ponto até os limites de Atlas,

2 Um dos epítetos da deusa Afrodite.

reverenciam meu poder, e abato os outros,

os relutantes, que me tratam com desdém

[...] Não me causa despeito essa predileção

(de fato, que me importa?) mas, pelas ofensas

para comigo, Hipólito será punido

ainda hoje e sem maior esforço meu.

(EURÍPIDES, Hipólito, 2007, p. 93).

Ela não está disposta a perdoar os insultos de Hipólito, sendo que é ela a deusa que

retém um poder capaz de abater qualquer um que se oponha a ela, enquanto ele é o mortal que

deve respeitar os deuses assim como reconhecer a grandiosidade dos mesmos. E para essa

vingança que ocorrerá “sem maior esforço” de Afrodite, Fedra é usada como um meio para que

a deusa alcance seu objetivo, sendo então uma dupla vítima, do pecado de Hipólito e da cólera

de Afrodite.

Desrespeitar aos deuses, qualquer um que fosse, era algo muito grave para os gregos.

Essa falta não era considerada apenas um “pecado”, como na perspectiva judaico-cristã atual,

mas também merecedora de punição e de castigo divino. Ofender um deus olímpico era motivo

para cair na desgraça, ser levado ao máximo do infortúnio, sem chance de se redimir.

De todas as tragédias completas de Eurípides que chegaram até nós, o tragediólogo usou

este tema duas vezes como o conflito principal em suas peças, em Hipólito e depois em As

Bacantes, em que Penteu proibiu o culto a Dionísio, provocando a ira do deus do vinho que fez

com que o herói fosse morto pela própria mãe. Nas duas peças o herói principal adora a todos

os deuses olímpicos, com apenas uma exceção, o que mostra o quanto a religião grega era uma

questão delicada naquele tempo.

Eurípides foi, muitas vezes, considerado ateu por seus contemporâneos quando saiam

da boca de suas personagens falas que atacavam a onipotência dos deuses. Podem-se perceber

em Hipólito traços de uma adoração monoteísta: quando expõe abertamente toda sua fidelidade

a Ártemis ele entra em contraste com os outros cidadãos da polis, que respeitam a todos os

deuses igualmente, mesmo que apresentem alguma preferência por um deus ou por outro, como

disse Afrodite em seu monólogo inicial. Esse é o grande conflito do herói, a característica

principal de sua religiosidade se opõe à religiosidade corrente, ou natural, dos gregos de seu

tempo. É como se a natureza cética de Eurípides estivesse precisando expor essa intolerância

dos deuses, que não aceitavam outra forma de pensar a religião. Mas também isso pode ser

visto como a resignação do autor quanto à impossibilidade de se lutar contra a soberania dos

olimpianos, sendo que não importa o que o herói faça, ele sempre estará sujeito ao castigo

divino.

O trágico e o sofrimento do herói são resultados do conflito entre o monoteísmo de

Hipólito e o politeísmo dos gregos. A hybris do herói, porém, não foi apenas sua adoração

devota à Ártemis, mas seu orgulho. Sua forma de mortal o obrigava ao respeito e a devoção de

todos os deuses do Olímpico. Mas ao querer se exultar de mais como um homem puro, e ao

rejeitar os conselhos do coro e do criado para não ultrajar Afrodite, deixou sua arrogância

sobrepujar sua razão. No começo da peça já é possível perceber como Hipólito se contradiz:

CRIADO

Odiar o orgulho e o que a maioria odeia.

HIPÓLITO

Concordo, mas quem não acha o orgulho um mal?

CRIADO

E ser afável, ao contrário, não é bom?

HIPÓLITO

E muito. É proveitoso e custa pouco esforço.

CRIADO

E não devemos ser assim também com os deuses?

HIPÓLITO

Sim, pois dos deuses recebemos nossas leis.

(EURÍPIDES, Hipólito, 2007, p. 96).

Percebemos nesse trecho as intenções do criado que tentava usar da razão para fazer

com que o herói mudasse suas atitudes perante Afrodite. Até aí, Hipólito se porta como fiel a

todos os deuses, concorda com o criado, nada mais digno para um cidadão grego. Mas ao ser

confrontado com sua falha, ou sua contradição, sua atitude muda.

CRIADO

E por que não cultuas uma deusa esplêndida?

HIPÓLITO

Qual delas? Não soltes demais a tua língua!

CRIADO

Aquela ali, que se ergue junto à porta: Cípris.

HIPÓLITO

Respeito-a, mas à distância, pois sou puro.

CRIADO

Ela, porém, é grande, e todos a veneram.

HIPÓLITO

Não amo deusas cultuadas na penumbra.

CRIADO

Os deuses, entretanto, querem ser honrados.

HIPÓLITO

Deuses e amigos, cada homem tem os seus.

[...]

E quanto à tua Cípris, digo-lhe “bom dia”!

(EURÍPIDES, Hipólito, 2007, p. 96-97).

Primeiro, ele se mostra amigável, depois, quase agressivo em frente ao criado. Sua

hybris, muitas vezes, o cegava ao ponto de fazer com que as opiniões do herói se tornassem

subjetivas, que variassem conforme suas necessidades de afirmar seus ideais.

Hipólito peca ao não cultuar e ao desdenhar da deusa Afrodite e a mesma o faz pagar

por sua ofensa.

Odisseu

Segundo Kothe (2000), o herói pode ser clássico, trágico ou pícaro, embora também

surjam classificações secundárias.

Proveniente do meio aristocrático, o herói clássico grego surge como um rei, como

ocorre com Odisseu, porém se analisarmos ele melhor verificamos características do herói

trágico, haja vista que ele comete uma hamartía, passa por uma hybris, e para retornar a sua

condição de herói precisa se purificar.

Antes de comentarmos sobre a hybris de Odisseu, faz-se necessário contextualizar a

história do livro. Odisseia é um poema que narra o que deveria ser o retorno tranquilo do herói

Odisseu da guerra para sua terra.

Odisseu, também é conhecido como Ulisses, foi o lendário rei de Ítaca, filho de Laerte,

pai de Telêmaco e esposo de Penélope. Ele foi, ainda, um dos principais heróis da Guerra de

Ílion, nome grego de Tróia, e quem idealizou o cavalo de madeira que dá à Grécia a vitória

sobre Tróia. É conhecido pela prudência e inteligência, qualidades destacadas durante todo o

livro, porém no canto IX o herói no ímpeto de se salvar, no país dos ciclopes, esquece sua

cautela e utiliza sua esperteza para fugir e nesse ato acaba por ofender Poseidon.

Muitas vezes o herói vai cometer a hybris por influência de algum deus, pois sempre

há um deus por trás do herói, seja para protegê-lo ou dificultar sua vida. Isso ocorre com

Hipólito, já que sua hybris é causada por Afrodite e também com Odisseu nas duas vezes que

ele manifesta uma desmedida.

Primeiramente, ocorre uma Assembleia dos Deuses, na qual Atena, a deusa da

sabedoria e protetora de Odisseu, pede para Zeus, pai de todos os deuses, que mande Calipso,

a ninfa, permitir a partida de Odisseu de sua ilha, pois ele está infeliz e tudo o que quer é voltar

para casa e são muitos os que acreditam que ele está morto e cortejam sua esposa. Em seguida,

Zeus ordena que Hermes, mensageiro dos deuses, vá até Calipso e mande-a permitir a partida

de Odisseu, após sete anos de retenção. Mesmo sendo contrária a tal atitude, Calipso liberta

Odisseu que constrói uma jangada e se lança ao mar. Poseidon, deus do mar, enfurecido por

Zeus ter atendido ao pedido de Atena faz com que Odisseu passe por uma tempestade perdendo

o rumo de Ítaca e indo parar na ilha dos Feácios.

Depois de conquistar a confiança do rei e da rainha e ser bem recebido pelos Feácios,

Odisseu começa a relatar para eles suas aventuras que para Aristóteles (1996) seriam

Peripécias - sucesso ao contrário/ desgraças. Dentre elas, ele narra sobre o país dos Ciclopes

onde seis de seus companheiros foram devorados e Odisseu utilizando sua astúcia fura o olho

de Polifemo que é filho de Poseidon, o que justifica a raiva do deus contra ele, e foge com o

restante de seus homens.

Para escapar de Polifemo, Odisseu se utiliza não só da astúcia quando oferece vinho

para que o ciclope fique bêbedo, mas também de leviandade quando utiliza um truque

linguístico dizendo que seu nome é “Ninguém”, visto que Odisseu tinha consciência de que

para o ciclope era difícil lidar com as palavras, já que na cultura dele o emprego destas eram

sempre a verdade/o real e não havia “jogos” com a língua. Logo, Polifemo nem desconfia da

existência da possibilidade de que Odisseu tenha mentido seu nome e é exatamente por isso

que quando os outros ciclopes perguntam por que Polifemo está gritando, ele responde que

“Ninguém” está o machucando. Mesmo notando que os outros ciclopes não estão entrando na

caverna não reformula sua frase para explicar quem é esse “Ninguém” e demonstrar para os

outros ciclopes que ele precisa de ajuda. Isso fica claro no seguinte trecho:

Pelos Ciclopes, que em vizinhas grutas

Sobre ventosos cumes habitavam.

Aos gritos acudindo, eles à entrada

O que o aflige indagam: “Polifemo,

Porque a noite balsâmica perturbas

E nos rompes o sono com tais vozes?

Acaso ovelha ou cabra te roubaram,

Ou por dolo ou por força alguém machucou-te?”

“Amigo, do antro Polifemo disse,

O ousado que por dolo, não por força,

Machucou-me, foi Ninguém.” — Replicam logo:

“Se ninguém te ofendeu, se estás sozinho,

Morbos que vem de Jove3 não se evitam;

Pede que te alivie ao pai Netuno.”4

Com isto vão-se andando, e eu rio n’alma

De que meu nome e alvitre os enganasse.

(HOMERO, 2009, p.104).

Fica claro o confronto de duas culturas muito distintas. Enquanto para Polifemo a

língua é apenas um instrumento para se comunicar, para Odisseu ela representa mais que isso,

já que pode ser vista e aplicada como uma “arma” para o inimigo ignoto, pois se fosse com

alguém de sua própria cultura, o estratagema não teria funcionado, porque o adversário teria

composto uma sentença mais explicativa e assim receberia ajuda.

Poseidon, que não gostava muito de Odisseu e ficou revoltado com a atitude de Zeus,

ao desviar o herói do caminho de Ítaca acabou interferindo e mesmo sem a intenção levou

Odisseu a cometer uma hybris, pois ao relatar aos Feácios o herói demonstra satisfação em ter

utilizado a ingenuidade de Polifemo e elaborado um truque tão eficaz. Da mesma forma que

Hipólito, a primeira hybris de Odisseu é o orgulho. Essa foi a primeira métron que Odisseu

comete, a segunda será o massacre dos pretendentes de sua esposa.

No canto XXII, ocorre um dos quadros mais sanguinários da mitologia grega, a

desforra de Odisseu contra os pretendentes que lhe queriam roubar o trono se apresenta como

uma das mais covardes transgressões heróicas. Haja vista que Odisseu mata seus rivais

trancando-os como ovelhas para o abate, deixando-os sem armas e sem chances de se

defenderem. Essa hybris realça a violência exagerada da matança, que gerou uma impureza a

ponto de Odisseu ter que se purificar para compensar a morte de tantos homens.

Da mesma forma que sua primeira transgressão ocorre devido ao ato de um deus, essa

hybris também é apoiada por deuses. Considerando que antes do combate, no canto XXI,

quando o herói vai buscar o arco que lhe concederá a vitória, por um momento ele hesita, sem

saber se os deuses estariam do seu lado. Então Zeus troveja satisfeito demonstrando que aprova

a matança que está prestes a acontecer. Verificamos isso na seguinte passagem:

Forte Jove troveja, e o divo Ulisses

Folga ao sinal: da mesa pega a nua

Leve seta, na aljava as outras sendo

Que hão de os Aqueus experimentar; sentado,

Embebe-a no arco, puxa o nervo e as barbas;

3 Um dos epítetos do deus Zeus. 4 Um dos epítetos do deus Poseidon.

Da mira não desvaira a brônzea flecha,

Das secures zunindo os furos passa.

Ao filho clama: “O hóspede que abrigas

Não te desonra; o tiro foi certeiro

O arco tendi sem lida: hei sãs as forças,

Cessem do vitupério estes senhores.

Hora é de preparar com dia e ceia;

Orne a lira o banquete, o canto o alegre.”

As sobrancelhas move: aguda espada

Eis Telêmaco cinge, empunha a lança;

Do pai senta-se ao pé, de bronze armado.

(HOMERO, 2009, p. 234).

Em seguida, no canto XXII, no meio do sangue e da confusão, Odisseu oscila quando

um dos pretendentes, Agelau, o lembra das consequências das atitudes criminosa que Odisseu

está praticando, diante disto Atena, disfarçada de Mentor, incentiva o herói a não ser um

covarde e cumprir a sua revanche. Notamos isso no seguinte trecho:

Arrouchado e suspenso, o abandonaram,

Fechando a porta; e em bronze reluzindo,

A respirar vigor, juntam-se ao divo

Sábio guerreiro: à entrada apenas quatro,

São muitos os da sala e não cobardes.

Em Mentor se disfarça e vem Minerva5;

Ulisses a folgar: “Mentor, socorro;

Amigo teu fui sempre, e me és coevo.”

Ora assim, mas suspeita ser Tritônia.

Rompem logo em doestos, e é primeiro

Agelau Damastórides: “Ulisses

Contra os procos, Mentor, não te seduza;

Ou com teu sangue expiarás a culpa,

Assim que ele e Telêmaco sucumbam,

Como é de crer. Depois que o bronze expires,

Teus bens de fora e urbanos confundidos

E os do Laércio, de Ítaca a família,

Os filhos teus, as filhas, casta esposa,

Nós surdos à piedade expulsaremos.”

Em mais cólera a déia: “Já te falta,

Ulisses, o valor que, da alva e nobre

Helena a pró, nove anos despregaste,

Varões tantos rendendo em graves prélios,

Ílion por teus conselhos derrocada:

Como! nas tuas possessões recusas

A insolentes punir! Ânimo, filho;

O Alcimides verás como te é grato.”

E a fim de comprovar o esforço dele

E do excelso Telêmaco, a vitória

5 Um dos epítetos da deusa Atena.

Inda balança, e em resplendente poste,

A revoar, qual andorinha, pousa.

Eurínomo, Agelau, Demoptólemo,

Anfimédon, Pisandro Politório,

Pólibo armiperito, aos seus roboram;

Os fortes são que vivos pleiteavam,

Pois o arco assíduo os outros já domara.

“Vêde-o, grita Agelau, que as mãos invictas

Retêm; Mentor jactancioso foi-se;

À entrada, amigos, sós pelejam quatro.

(HOMERO, 2009, p.239-240).

A violência é legítima para o guerreiro nobre, já que todo herói tem um direito sagrado

ao excesso, à vingança e à transgressão de limites quando sua honra está em jogo, os deuses

concedem um direito divino ao herói. Dessa forma, a hybris manifesta como uma desmedida

criada entre o deus e o homem.

Quando o herói cai em hýbris ele está impuro, mas esta impureza lhe confere uma

espécie de sacralidade. Ele se torna quase divino. Por isso a sua transgressão não vai gerar a

necessidade de punição obrigatoriamente, embora exija sempre uma purificação. Odisseu terá

que se purificar com fogo e enxofre, e será obrigado a pagar caros presentes aos pais dos

pretendentes mortos:

Vão-se purificados ao Laércio,

Que determina: “Salutar enxofre Traze e fogo,

Euricléia; defumada

Seja a casa. Ao depois a vir exortes

A rainha e as escravas.” — Mas a velha:

“Otimamente, filho meu, discorres;

Outras vestes porém dar-te-ei primeiro:

Decoroso não é que em teu palácio

Forres de andrajos os robustos membros.”

Insta o senhor: “O fogo é já preciso.”

Fogo e enxofre sem réplica ela trouxe.

Com que Ulisses defuma a sala e o pátio.

Sobe a ama de novo e intima as ordens:

As servas em tropel sustendo fachos,

Ledas em torno, abraçam-no e saúdam,

Beijando-lhe a cabeça e as mãos e espáduas;

E ele, que n’alma as reconhece, um doce

Desejo tem de choro e de suspiros.

(HOMERO, 2009, p. 244).

Após sua purificação, Odisseu é digno de retornar ao seu posto ao lado de Penélope e

perante seu povo encerrando assim sua longa jornada de volta para casa.

Considerações finais

Por meio do presente artigo notamos que o deus Poseidon se faz presente em ambas as

histórias e possui um papel importante no rumo das tramas. Também é possível verificar que a

influência dos deuses é fundamental nos textos, ora protegendo ora prejudicando, eles são parte

indispensável das obras e responsáveis em certo ponto pela hybris dos heróis, sejam eles

trágicos ou clássicos.

Sem a interferência dos deuses as histórias poderiam ser completamente diferentes,

mesmo que em Homero os deuses tenham uma ação mais direta, enquanto em Eurípedes suas

atuações estejam mais relacionadas aos sentimentos do que propriamente a atos o destino dos

heróis é selado em partes pelos deuses, haja vista que sem suas intervenções os caminhos

traçados pelas personagens poderiam ser o mesmo ou não.

Referências

ARISTÓTELES. A Arte Poética, São Paulo, Editora Cultrix, 1996.

BORNHEIM, Gerd. O sentido e a máscara. São Paulo: Perspectiva, 1963.

BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro Grego: Tragédia e Comédia. Rio de Janeiro: Editora

Vozes, 1984.

COSTA, Lígia M. da. REMÉDIOS, Maria L. Ritzel. A Tragédia: Estrutura e história. São

Paulo: Editora Ática, 1988.

EURÍPIDES. Medéia, Hipólito, As troianas. Tradução de Mário da Gama Kury. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.

HOMERO. Odisseia. Trad. Manoel Odorico Mendes, 2009. Disponível em:

<http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/odisseiap.pdf> Acesso em: 02 set. 2017.

KOTHE, Flávio R. O Herói. São Paulo: Editora Ática, 2000.